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Luc Van Campenhoudi,

Jacques Marquet e Raymond Quivy

MANUALDE INVESTIGAÇÃO
EM GIENDIAS ODGIAO
Tradução da edição original de 1995
JOÃO MINHOTO MARQUES,
MARIA AMÁLIA MENDES
e MARIA CARVALHO

Revisão científica da edição original de 1995


RUI SANTOS
(Departamento de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa)

Tradução parcial da edição original de 2017, revista e aumentada


ISABEL LOPES

gradiva
Título original Manuel de recherche en sciences sociales, 5º édition
Autores Luc Van Campenhoudt, Jacques Marquet e Raymond Quivy
O Dunod, Malakoff, 2017

Tradução da edição original de 1995 João Minhoto Marques, Maria Amália Mendes
e Maria Carvalho
Revisão científica da edição original de 1995 Rui Santos
Tradução parcial da edição original de 2017, revista e aumentada Isabel Lopes
Revisão de texto Helder Guégués
Capa Armando Lopes (concepção gráfica)/O Fotolia (imagem)
Fotocomposição Gradiva
Impressão e acabamento Multitipo — Artes Gráficas, L.“

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1.º edição Setembro de 2019


Depósito legal 460 074/2019
ISBN 978-989-616-929-9

gradiva
Editor GUILHERME VALENTE

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Oportunidades fantásticas!
Prefácio à 5.º edição... rerereerererererererererreeeerereesa

OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO

1. Os objectivos................ e rcereeeeaeerereaearerererereners
lil Objechivos geralSsennzaiea css sa Tecarremaress
12 Concepção didáciica «suas nsznenanenen
nn nar ano
13 «Investigação» em «ciências» SOCIAIS? ssscereaseresasaasaecaaninesaremans
2. O procedimento ............... ri rreeereeereeeereeeanerereerereasos
2.1 Problemas de método (o caos original... Ou três maneiras de
comecar Bal) asas emetersessioslbiras
onto dolioceanançda odicemcee mall is sbre eemaçea
22: setapas do procedimento «wasfnincaidizatentiaicadinanednaaaasasa

PRIMEIRA ETAPA
A PERGUNTA DE PARTIDA

1. Objectivos... ir rrereeerererereeeeeereeeererererererererarenerteres
2. Uma boa forma de actuar... renas
3. Os critérios de uma boa pergunta de partida .........................
3.1 As qualidades de clareza.............iieeeeeererererereeeeeererennareraro
3.2 As qualidades de exequibilidade...................iiree
3.3 As qualidades de pertinência .............cicieeeeeeeeeeeeeeererrereeents
Alguns exemplos de boas perguntas de partida.............ees
Conclusão... rir rereeeaeraaeeaceaeracanaearereceaaeeeaerace
een enerenaaaa
SEGUNDA ETAPA
A EXPLORAÇÃO

« Objectivos............. si irereeeeererereeererererereeeerererereerenerererereerererenes 65
. A leitura... reerereeaeaeesaee eee eee ee ae rata aeasaraneada 65
2.1 A escolha e a organização das leituras..............ccceeeseeereeeees 67
22 “Como ler? ,sssersavesamanilaiidaieieoselrilacesemarna
ore secaseussanemenisoreresto To
. As entrevistas exploratórias................ceeeeereerserererereeererees 88
3.1 Com quem é útil ter uma entrevista?.........ceieeeeeeeeeeeereeeees 90
3.2 Em que consistem as entrevistas e como realizá-las? .................... 91
3.3 A exploração das entrevistas exploratórias .............cceeceeceees 103
. O papel dos métodos exploratórios no processo de
investigação ............ si irerererereeeeererererererereraraeaerereaeeerererecererereneseses 109
4.1 Métodos exploratórios complementares ............cccceeeeecesereenes 109
4.2 Continuidade entre a fase exploratória e as etapas seguintes....... 110

TERCEIRA ETAPA
A PROBLEMÁTICA
AE O PR 117
. Exemplos de problemáticas ..................
is sieeeeeereereeereerenes 118
2.1 Os comportamentos sexuais perante o risco de sida .................... 118
2.2 As expectativas dos cidadãos em relação à Justiça ................... 127
2.3 A exposição de si na internet .........ccesecesecmeseieeecrseressaceenccosecesats 132
24 O suicidio seas corintiano
Temo senai aco nen eneaas 136
. O conceito enquanto ferramenta de problematização .............. 138
31 Interacção smustinacinainsasioaneaade
degradada erre aces 141
de” Jona, de incerheza amet ren 142
33 Sistema ssa aaa an neaenasaras 143
34: Campo ssaasiias ease nb cepa os as ane 143
3:35. Redes de actores socialS:s a cus dida meadd 145
36 BUInÇÃO: aca ssatia musa cansado eronano isER 146
37 Acção coleciiva..saisieinico romeo amena crinsaiiionaideaaniosa
danca cemearaandemaceriais 147
. Os dois momentos de uma problemática ........................ 150
4.1 O primeiro momento: fazer o balanço e elucidar
as problemáticas possíveis sa asineannnnenanansciiinnaaniudeecmeemeders 151
4.2 Segundo momento: atribuir-se uma problemática .................... 153
QUARTA ETAPA
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE
; Objectivos ...eareeeeenernseenme
emana rermoemarereme eram eiem mens renas ema 163
2. Em que consiste o modelo de análise?............................. 164
2 O suicídio: uses sia aus casar da ls acamadesas 164
22: Poder etede social azesuasa auesasinao casuais ESAaANA ea near as gaisaiaaas 171
2.3 A construção de conceitos...............ccccieecieeeeeeereererenererenereareneeaas 177
2.4 A formulação e as funções das hipóteses... 180
. Dois caminhos para proceder concretamente.............................. 188
31. A teorização emprestadas ssseizemismsaa sentazarta ecrêniena Teiascradosasissaands 189
32 A-teorização produzidas cnticasa descrtiigacas a afubini Duda sueis cas nciganaça 192
3.3 Teorização emprestada ou teorização produzida? ....................... 196
« Duas aplicações. Pala SERIE iaeresdadasssserpreniiis
asian anicasabiálaao 198
4.1 Comportamentos sexuais e atitudes perante o risco de sida......... 199
4.2. O Movimento: Branco secs sssascos srcscemssssaecessana
rasishsanecsss ssssacecesssaoo 208

QUINTA ETAPA
A OBSERVAÇÃO
a CIRECRROR cxcasniaioiisocanemaiinonnailionaadeiibaadsas dialeto 7
2. Observar o quê? A definição dos dados pertinentes................. 221
. Observar quem? O campo de análise e a selecção
das unidades de obsSemçÃo aerea sarna 223
31 O campo ide análise sessao
rasas munasaa mamae set anss 223
32 A amostra san ac icasamamesicescraeciseço 224
« Observar como? Os instrumentos de observação e a recolha
dos dadoA, sussa aca sal lia asas ssa baia 229
4.1 A elaboração dos instrumentos de observação.............................. 230
4.2 As três operações da observação ..............ccccccieeereeeeererereneranes 248
« Panorama dos principais métodos de recolha das
informações ................. ri irrerererereeceereneerececeasenanerenenea 253
5.1 O inquérito por questionário... sseeseeresesereseacerenaa 255
52 À CHITEVISA. ass creneremisemenussase comove cre vessecnaaeas ines ereaniesiniis vem cniimpiosanes 260
5.3 A observação directa .................
iris eeereereeeeeraaeeeraceenaraacenaceaa 267
5.4 A recolha de dados preexistentes: dados secundários e dados
Fo [o Toji in [o x | ED 274
SEXTA ETAPA
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES
a CONCERNOS caso ns saladas 287
v DIGAS DO: socar onda dia li 288
2.1 Os comportamentos sexuais e as atitudes perante o risco

.« As três operações de análise das informações ...................... 308


3.1 A preparação dos dados ou informações .............ccceeeeeeeeetere 308
3.2 A ligação entre dados ou informações .............ceeeeeeeseeeererseess 312
3.3 A comparação dos resultados observados com os resultados
esperados e a interpretação das diferenças..............ceceeseseses 315
« Panorama dos principais métodos de análise das
DEDE ei E 317
4.1 A análise estatística dos dados .............ceeeeeeeseeeeeeeeeecerereranes 317
4.2 A análise de conteúdo ...........ccc
cc errecreeererereserrerecereneererraareano 322
4.3 Limites e complementaridade dos métodos específicos: o exemplo
da field researéhsssuseeseererer ser emmenervenewereerenesiieisaiicopatitce
rasas unia scncõss 332
4.4 Um cenário de investigação não linear............ccccicieeceeereererrenes 335
4.5 Exemplos de investigações que aplicam os métodos
apresentados: ssa qemnginesrenmennagancesesneresaaanesboce
den sina CERTAS TUA aura 336

SÉTIMA ETAPA
AS CONCLUSÕES

q CORRI assnisao pensar e o 343


.« Retrospectiva das grandes linhas do procedimento ................... 343
« Novos contributos para os conhecimentos ....................... 344
3.1 Novos conhecimentos relativos ao objecto de análise................... 344
3.2 Novos conhecimentos teóricos...cscssenseneecsereecisirecterosneroraessacesaeess 345
« Perspectivas PISÉICAS ocsmsosreerainrene
vei minssreeoe enia ençasada 347
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO

À. Objectivis mens eis consi iii 353


2. Aplicação n.º 1: a relação com o corpo nos cuidados ............ 353
21 A pergunta de partida sssesasesssnaeases anna pnsecosaaireaneras sermos 354
22 A exploração «ssuanmasnasasananerana rara scene mesa ncceneas 355
23 A problemática «sa sea mina ransa Ra name sa rasas 359
2.4 A construção do modelo de análise .............cciiisreeeererecemeos 363
2.5 À observação «us acne snasana a a caccanran sacas 370
2.6. A análise das informações... sesasanmaea nenem semana casacos 375
27 Conclusões... semecennenicinitasattrose
cena saida EEICEEEENENES SRA nam 381
3. Aplicação n.º 2: os modos de adaptação ao risco
de infecção pelo VIH nas relações heterossexuais..................... 384
3.1 A pergunta de partida... ieeceeeercereerecererereraneranee 384
3.2 A exploração... crcrrersceserereraresersstaacasensacras
cesar acesaasacasstádo 385
3.3 A problemática .................en
e ceeereceeeceeeeererereneersnaneaana 388
3.4 A construção do modelo de análise ............ccccscciiieeeserereecerenes 391
3.5 A observação... rrrreererecereereneacacaceraeseceaacraeaacanacana 395
3.6 A análise das informações ..............ccccceeceeecreeeeeeecrsereseceseacesaness 396
3.7 Conclusões...............c...
nn iris ceereeeeereracereceseeanceneeraceaeracenaceneana 400

Recapitulação das operações... sumpnrenseremeneeaanieiisicia


rios seres 403
BABI pas asas 407
Glossário ......... e irreeeeereereeeeereereeeateaeeaeracanearecaeeneaeesaeseeaeaneaana 409
Prefácio à 5.º edição

Cada nova edição de o Manual de Investigação em Ciências


Sociais trouxe melhorias substanciais a fim de o adaptar conti-
nuamente às necessidades de estudantes, jovens investigadores e
docentes de ciências sociais. Estas necessidades desenvolvem-se com
o contexto societal, cuja rápida transformação impõe uma reno-
vação das temáticas. Simultaneamente, registou-se uma evolução
das ferramentas metodológicas (sobretudo graças à informática e
ao digital) e os investigadores devem estar em condições de poder
tirar proveito delas.
Mas as numerosas alterações trazidas ao longo das suces-
sivas edições puseram em risco a coerência do conjunto da obra.
Por isso, nesta 5.º edição, a primeira preocupação foi o reforço
dessa coerência. Doravante, desde a problemática até à análise da
informação, o leitor acompanhará as mesmas duas investigações
concretas. A primeira ilustra a aplicação dos chamados métodos
qualitativos, a segunda, os métodos quantitativos. Deste modo,
o leitor estará apto a compreender melhor o processo de inves-
tigação na sua continuidade. Os problemas inerentes a qualquer
pesquisa serão abordados o mais aproximadamente possível da
realidade, no momento em que ocorrem. Os temas destas duas
investigações, bastante actuais, não faziam parte das primeiras
edições: os comportamentos perante o risco de infecção pelo VIH
nas relações sexuais e a participação dos cidadãos numa acção
colectiva. Outros exemplos marcam este livro, nomeadamente,
as expectativas dos cidadãos quanto à justiça ou as relações entre
profissionais de medicina psiquiátrica e do direito e o trabalho em
12 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

rede, terminando nas duas aplicações que, no final da obra, sinte-


tizam o conjunto do procedimento, sendo uma, também ela iné-
dita, sobre a relação com o corpo nos cuidados de enfermagem.
Reunidos em torno de temáticas relacionadas com diferentes
aspectos da vida em sociedade, a partir de situações concretas
susceptíveis de tocar cada um no âmago da sua existência, tanto
investigadores como inquiridos, os diversos exemplos são retirados
de investigações reais, nas quais os próprios investigadores parti-
ciparam directamente. Encarar a realidade social é uma exigência
da investigação em ciências sociais sobre a qual esta 5.º edição
insiste mais do que as anteriores.
Proximidade e envolvimento com as temáticas não impedem
que estas sejam abordadas com toda a distância e sangue-frio
necessários, sobretudo para os que se iniciam na profissão. É por
isso que o procedimento aqui exposto se mantém bastante pro-
gressivo, sendo cada operação cuidadosamente detalhada, passo
a passo. Por motivos pedagógicos, o procedimento apresentado é
essencialmente dedutivo, pelo que se progride mais da teorização
para o terreno do que o inverso. Mesmo quando o investigador
adopta um procedimento indutivo, em que parte do terreno para a
teorização, precisa, sobretudo se ainda está em formação e apenas
a começar, de decompor as etapas e as diversas operações que
aquelas comportam, para depois as ordenar e conhecer melhor.
O Manual parte do princípio de que, no decorrer da maioria
das investigações concretas, a dedução e a indução não se opõem,
muito pelo contrário: completam-se. O mesmo acontece com os
métodos quantitativos e qualitativos, que muitas vezes são mobi-
lizados, de forma complementar e em proporções variáveis, no
seio do mesmo projecto de investigação. O leitor dar-se-á conta
disso conforme for progredindo na leitura do Manual. Mesmo
que opte por uma abordagem claramente indutiva, as etapas, as
ferramentas e as indicações contidas nestas páginas serão refe-
rências importantes para si.
PREFÁCIO 13

Muitos docentes de ciências sociais que estão a coordenar tra-


balhos de estudantes enviam-nos para o terreno sem preparação
e com uma recomendação apenas: «Vão, desenrasquem-se...» e,
na maioria das vezes, estes perdem-se pelo caminho, ficando sem
saber o que fazer com todas as observações que fizeram e com
todos os testemunhos que recolheram, muitas vezes sem qualquer
regra. Por isso, geralmente, limitam-se a justapor as «vivências»
de algumas dezenas de pessoas, tal como os notários que registam
actos, sem nunca alcançar a prometida teorização. Aceitariam de
bom grado uma orientação maior e melhor, um pouco mais de
ajuda, que não condicionasse a sua tarefa, mas que, pelo contrá-
rio, lhes permitisse sair do caos, desenredar os cordelinhos do seu
trabalho, conferindo-lhe clareza. Tudo isso pode ser encontrado
aqui, numa perspectiva pedagógica mais dedutiva, mas que poderá
dar lugar ao procedimento indutivo e à complementaridade dos
dois processos, onde estão igualmente presentes métodos quanti-
tativos e qualitativos. Se pensa limitar-se apenas a estes últimos e
a um procedimento essencialmente indutivo, encontrará também
indicações preciosas em alguns excelentes manuais de métodos
qualitativos (que citaremos mais adiante).
O desenvolvimento de alguns dos exemplos desta 5.º edi-
ção implica a apresentação de algumas operações técnicas de
base, tanto quantitativas como qualitativas. Estas explicações
são indispensáveis para compreender o processo de investigação
em contexto real e continuam redigidas de forma tão clara e
pedagógica quanto possível. Tornada a formação proposta pelo
Manual mais robusta e consistente, passa a ser possível levar a
cabo exercícios baseados em dados e informações concretas, quer
individualmente, quer em grupo, ou na sala de aula.
Acrescentaram-se outras melhorias ao longo destas páginas,
sobretudo recursos disponíveis na internet para a fase exploratória
e também para a análise das informações, e procedeu-se a uma
actualização da bibliografia especializada relativa às diferentes
etapas do procedimento.
14 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Para evitar que estas melhorias e acrescentos tornassem o


texto muito pesado, reduzimos algumas passagens menos úteis ou
redundantes. Tal como nas edições anteriores, optámos igualmente
pelo género masculino («o investigador», «o professor», «o aluno)
no sentido universal, ou seja, sem marca de género e que pode,
assim, designar tanto uma mulher como um homem. No entanto,
registamos uma excepção: a investigação sobre a relação com
o corpo nos cuidados de enfermagem, apresentada no final do
livro, onde as dimensões de género e sexo são centrais e devem
ser sublinhadas.
Como se verifica, nesta 5.º edição, as mudanças são par-
ticularmente numerosas e importantes. Impunham-se em virtude
dos avanços evocados no início deste prefácio. Mais ainda do
que anteriormente, os autores tiveram em consideração as críticas
mais pertinentes que foram sendo feitas às edições anteriores do
Manual, sobretudo as que diziam respeito ao carácter considerado
demasiado rígido e estritamente dedutivo do procedimento pro-
posto, assim como o desenvolvimento muito sumário de algumas
partes, como as pesquisas que exemplificavam a análise dos dados
quantitativos.
Com esta 5.º edição, mais completa e equilibrada, mas sempre
tão pedagógica e prática como as anteriores, o Manual é, mais
do que nunca, o guia e o companheiro precioso do estudante e do
jovem investigador em ciências sociais.
OBJECTIVOS E
PROCEDIMENTO
1. OS OBJECTIVOS
1.1 Objectivos gerais
A investigação em ciências sociais segue um procedimento aná-
logo ao do pesquisador de petróleo. Não é perfurando ao acaso
que este encontrará o que procura. Pelo contrário, o êxito de um
programa de prospecção petrolífera depende do procedimento
seguido. Primeiro o estudo dos terrenos, depois a perfuração. Este
procedimento implica a participação de numerosas competências
diferentes. Os geólogos irão determinar as zonas geográficas onde
é maior a probabilidade de encontrar petróleo; os engenheiros
irão conceber processos de perfuração apropriados, que irão ser
aplicados pelos técnicos.
Não pode exigir-se ao responsável do projecto que domine ao
pormenor todas as técnicas necessárias. O seu papel específico será
o de conceber o conjunto do projecto e coordenar as operações
com o máximo de coerência e eficácia. É sobre ele que recairá
a responsabilidade de levar a bom termo o dispositivo global de
investigação.
No que respeita à investigação social, o processo é comparável.
Importa, acima de tudo, que o investigador seja capaz de conceber
e de pôr em prática um dispositivo para a elucidação do real, isto
é, no seu sentido mais lato, um método de trabalho. Este nunca
se apresentará como uma simples soma de técnicas que se trataria
de aplicar tal qual se apresentam, mas sim como um percurso
global do espírito que exige ser reinventado para cada trabalho.
Quando, no decorrer de um trabalho de investigação social,
o seu autor se vê confrontado com problemas graves que com-
prometem o prosseguimento do projecto, raramente isso acontece
por razões de ordem estritamente técnica. É possível aprender
18 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

variadíssimas técnicas de um modo bastante rápido, assim como,


de qualquer forma, solicitar a colaboração ou, pelo menos, os
conselhos de um especialista. Quando um investigador, profíssio-
nal ou principiante, sente grandes dificuldades no seu trabalho,
as razões são quase sempre de ordem metodológica, no sentido
que damos ao termo. Ouvimos então expressões invariavelmente
idênticas: «Já não sei em que ponto estou», «tenho a impressão
de já nem saber o que procuro», «não faço a mínima ideia do
que hei-de fazer para continuar», «tenho muitos dados... mas não
sei o que fazer com eles», ou até mesmo, logo de início, «não sei
bem por onde começar».
Porém, e paradoxalmente, as numerosas obras que se dizem
metodológicas não se preocupam muito com... o método, no seu
sentido mais lato. Longe de contribuírem para formar os seus
leitores num procedimento global de investigação, apresentam-se
frequentemente como exposições de técnicas particulares, isoladas
da reflexão teórica e da concepção de conjunto, sem as quais é
impossível justificar a sua escolha e dar-lhes um sentido. Estas
obras têm, bem entendido, a sua utilidade para o investigador,
mas só depois da construção metodológica, depois de esta ter
sido validamente encetada.
Esta obra foi concebida para ajudar todos os que, no âmbito
dos seus estudos, das suas responsabilidades profissionais ou
sociais, desejem formar-se em investigação social ou, mais preci-
samente, empreender com êxito um trabalho de fim de curso ou
uma tese, trabalhos, análises ou investigações cujo objectivo seja
compreender mais profundamente e interpretar mais acertadamente
os fenómenos da vida colectiva com que se confrontam ou que,
por qualquer razão, os interpelam.
O modo de utilização deste manual dependerá das necessida-
des específicas de cada um, em função das suas ambições e do
âmbito do trabalho. Os que iniciam uma tese de doutoramento
numa disciplina de ciências sociais devem realizar todas as fases
do processo de investigação científica aprofundadamente. Os que

| |
OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 19

trabalham num mestrado, menos ambicioso, podem apoiar-se


utilmente nesta obra para reunir e tratar eficazmente todos os
documentos e construir a sua problemática, sem que para isso
tenham de seguir, de forma exaustiva, todas as etapas e o que
isso implica.
Pelos motivos acima expostos, pareceu-nos que esta obra só
poderia desempenhar esta função se fosse inteiramente concebida
como um suporte de formação metodológica, em sentido lato, isto
é, como uma formação para conceber e aplicar um dispositivo de
elucidação do real. Significa isto que abordaremos numa ordem
lógica temas como a formulação de um projecto de investigação,
o trabalho exploratório, a construção de um plano de pesquisa
ou os critérios para a escolha das técnicas de recolha, tratamento
e análise dos dados. Deste modo, cada um poderá, chegado o
momento e com pleno conhecimento de causa, fazer sensatamente
apelo a um ou a outro dos numerosos métodos e técnicas de
investigação, em sentido restrito, para elaborar por si mesmo, a
partir deles, procedimentos de trabalho correctamente adaptados
ao seu projecto. No momento próprio, cá estaremos para ajudar.

1.2 Concepção didáctica


No plano didáctico, esta obra é directamente utilizável. Isto
significa que o leitor que o deseje poderá, logo a partir das pri-
meiras páginas, aplicar ao seu trabalho as recomendações que
lhe serão propostas. Apresenta-se, pois, como um manual cujas
diferentes partes podem ser experimentadas, seja por investigadores
principiantes isolados, seja em grupo ou na sala de aula, com o
enquadramento crítico de um docente formado em ciências sociais.
No entanto, recomenda-se uma primeira leitura integral antes de
iniciar os trabalhos de aplicação, de modo que a coerência glo-
bal do procedimento seja bem apreendida e as sugestões sejam
aplicadas de forma flexível, crítica e inventiva.
20 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Semelhante ambição pode parecer uma aposta impossível: como


é possível propor um manual metodológico num campo de investi-
gação no qual, como é sabido, os dispositivos de pesquisa variam
consideravelmente com as investigações? Não existe aqui um
enorme risco de impor uma imagem simplista e muito arbitrária
da investigação social? Por várias razões, pensamos que este risco
só poderia resultar de uma leitura extremamente superficial ou
parcial deste livro.
Embora o conteúdo desta obra seja directamente aplicável, não
se apresenta, no entanto, como uma simples colecção de receitas,
mas como uma trama geral e muito aberta, no âmbito da qual (e
fora da qual!) podem pôr-se em prática os mais variados procedi-
mentos concretos. Seé verdade que contém numerosas sugestões
práticas e exercícios de aplicação, nem aquelas nem estes arras-
tarão o leitor para uma via metodológica precisa e irrevogável.
Este livro foi inteiramente redigido para ajudar o leitor a conceber
por si próprio um processo de trabalho, e não para lhe impor
um determinado processo a título de cânone universal. Não se
trata, pois, de um «modo de emprego» que implique qualquer
aplicação mecânica das suas diferentes etapas. Propõe pontos de
referência tão polivalentes quanto possível para que cada um
possa elaborar com lucidez dispositivos metodológicos próprios
em função dos seus objectivos.
Com este propósito — e trata-se de uma segunda precaução —,
as páginas desta obra convidam constantemente ao recuo crítico,
de modo que o leitor seja regularmente levado a reflectir com
lucidez sobre o sentido do seu trabalho, conforme for progre-
dindo. As reflexões que propomos ao leitor fundam-se na nossa
experiência de investigadores em sociologia, de formadores de
adultos e de docentes. São, portanto, forçosamente subjectivas
e inacabadas. Esperamos, assim, harmonizar as exigências de uma
formação prática que requer referências metodológicas precisas
e as da reflexão crítica que discute o alcance e o limite dessas
mesmas referências.
OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 21

Muitos dos leitores desta obra seguiram ou seguem paralela-


mente uma formação teórica, e gozam da possibilidade de discutir
criticamente com um docente ou um investigador formado em
ciências sociais. Evidentemente seria o ideal. Outros, que seguem
uma formação principal numa área diferente ou que não têm um
percurso escolar convencional, não têm, ou dificilmente terão,
esta possibilidade. Para esse efeito, a nossa obra de método
contém um determinado número de recursos de base que serão
apresentados conforme forem sendo mobilizados no processo
de investigação.
Uma investigação social não é, pois, uma sucessão de métodos
e técnicas estereotipados que bastaria aplicar tal qual se apresen-
tam, numa ordem imutável. A escolha, a elaboração e a organi-
zação dos processos de trabalho variam com cada investigação
específica. Por isso — e trata-se de uma terceira precaução —,
a obra está elaborada com base em numerosos exemplos reais.
Alguns deles serão várias vezes referidos, de modo que realcem
a coerência global de uma investigação. Não constituem ideais
a atingir, mas sim balizas, a partir das quais cada um poderá
distanciar-se e situar-se.
Por fm — última precaução —, este livro apresenta-se,
explicitamente, como um manual de formação. Está construído
em função de uma ideia de progressão na aprendizagem. Por
conseguinte, compreender-se-á de imediato que o significado e o
interesse destas diferentes etapas não podem ser correctamente
avaliados se forem retiradas do seu contexto global. Umas
são mais técnicas, outras mais críticas. Algumas ideias, pouco
aprofundadas no início da obra, são retomadas e desenvolvidas
posteriormente noutros contextos. Certos trechos contêm reco-
mendações fundamentadas; outros apresentam simples sugestões
ou um leque de possibilidades. Nenhuma delas dá, por si só,
uma imagem do dispositivo global, mas cada uma ocupa nele
um lugar necessário.
22 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

1.3 «Investigação» em «ciências» sociais?


No domínio da formação metodológica que aqui nos ocupa,
utilizam-se frequentemente as palavras «investigação» ou «ciência»
com uma certa ligeireza e nos sentidos mais elásticos. Fala-se, por
exemplo, de «investigação científica» para qualificar as sondagens
de opinião, os estudos de mercado ou os diagnósticos mais banais
só porque foram efectuados por um serviço ou por um centro
de investigação universitário. Dá-se a entender aos estudantes do
primeiro nível do ensino superior, e mesmo aos dos últimos anos
do ensino secundário, que as suas aulas de métodos e técnicas de
investigação social os tornarão aptos a adoptar um «procedimento
científico» e, desde logo, a produzir um «conhecimento científico»,
quando, na verdade, é muito difícil, mesmo para um investigador
profissional e com experiência, produzir conhecimento verdadei-
ramente novo que faça progredir a sua disciplina.
O que é que, na melhor das hipóteses, se aprende de facto
no fim daquilo que é geralmente qualificado como trabalho de
«investigação em ciências sociais»? A compreender melhor os
significados de um acontecimento ou de uma conduta, a fazer
inteligentemente o ponto da situação, a captar com maior perspi-
cácia as lógicas de funcionamento de uma organização, a reflec-
tir acertadamente sobre as implicações de uma decisão política,
ou ainda a compreender com mais nitidez como determinadas
pessoas apreendem um problema e a tornar visíveis alguns dos
fundamentos das suas representações.
Tudo isto merece que nos detenhamos e que adquiramos essa
formação; é principalmente a ela que o livro é consagrado. Mas
raramente se trata de investigações que contribuam para fazer
progredir os quadros conceptuais das ciências sociais, os seus
modelos de análise ou os seus dispositivos metodológicos. Trata-se
de estudos ou análises mais ou menos bem realizados, consoante
a formação e a imaginação do «investigador» e as precauções
de que se rodeia para levar a cabo as suas investigações. Este
trabalho pode ser precioso e contribuir muito para a lucidez dos
OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 23

actores sociais acerca das práticas de que são autores, ou sobre


os acontecimentos e os fenómenos que testemunham, mas não se
deve atribuir-lhe um estatuto que não lhe é apropriado.
Esta obra, embora possa apoiar determinados leitores empenha-
dos em investigações de certa envergadura, visa sobretudo ajudar
os que têm ambições mais modestas, mas que, pelo menos, estão
decididos a estudar os fenómenos sociais com uma preocupação de
autenticidade intelectual, de compreensão e de rigor metodológico.
Em ciências sociais temos de nos proteger de dois defeitos
opostos: um cientismo ingénuo que consiste em crer na possibi-
lidade de estabelecer verdades definitivas e de adoptar um rigor
análogo ao dos físicos ou dos biólogos, ou, inversamente, um
cepticismo que negaria a própria possibilidade de conhecimento
científico. Sabemos ao mesmo tempo mais e menos do que por
vezes deixamos entender. Os nossos conhecimentos constroem-
-se com o apoio de quadros teóricos e metodológicos explícitos,
lentamente elaborados, que constituem um campo pelo menos
parcialmente estruturado, e esses conhecimentos são apoiados por
uma observação dos factos concretos.
É a estas qualidades de autenticidade, de curiosidade e de rigor
que queremos dar relevo nesta obra. Se utilizamos os termos
«investigação», «investigador» e «ciências sociais» para falar tanto
dos trabalhos mais modestos como dos mais ambiciosos, é por
uma questão de facilidade, mas é também com a consciência de
que são frequentemente excessivos.

2. O PROCEDIMENTO

2.1 Problemas de método (o caos original...


Ou três maneiras de começar mal)
No início de uma investigação ou de um trabalho, o cenário é
quase sempre idêntico. Sabemos vagamente que queremos estudar
24 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

tal ou tal problema — por exemplo, o desenvolvimento da nossa


própria região, o funcionamento de uma empresa ou de uma ins-
tituição pública, a introdução das novas tecnologias na escola, as
relações sociais numa sociedade multicultural ou as actividades
de uma associação que frequentamos —, mas não sabemos muito
bem como abordar a questão. Desejamos que este trabalho seja
útil e resulte em proposições concretas, mas temos a sensação de
nos perdermos nele ainda antes de o termos realmente começado.
Eis aproximadamente a forma como começa a maior parte dos
trabalhos de estudantes, mas também, por vezes, de investigado-
res, nos domínios que dizem respeito àquilo a que costumamos
chamar as «ciências sociais».
Este caos original não deve ser motivo de inquietação; pelo
contrário, é a marca de um espírito que não se alimenta de sim-
plismos e de certezas estabelecidas. O problema consiste em sair
dele sem demorar demasiado e em fazê-lo em nosso proveito.
Para o conseguirmos, vejamos primeiro aquilo que não deve-
mos de forma alguma fazer... mas que, infelizmente, fazemos com
frequência: a fuga para a frente. Esta pode tomar várias formas,
das quais só iremos aqui abordar as mais frequentes: a gula
livresca ou estatística, passar por cima das hipóteses e a ênfase
que obscurece. Se nos detemos aqui sobre o que não devemos
fazer, é por termos visto demasiados estudantes e investigadores
principiantes precipitarem-se desde o início para os piores cami-
nhos. Ao dedicar alguns minutos a ler estas primeiras páginas, o
leitor poupará talvez algumas semanas, ou mesmo alguns meses,
de trabalho extenuante e, em grande parte, inútil.

a) A gula livresca ou estatística


Como o nome indica, a gula livresca ou estatística consiste em
«encher a cabeça» com uma grande quantidade de livros, artigos
ou dados numéricos, esperando encontrar aí, ao virar de um
parágrafo ou de uma curva, a luz que permitirá enfim precisar,
OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 25

correctamente e de forma satisfatória, o objectivo e o tema do


trabalho que se deseja efectuar. Esta atitude conduz invariavel-
mente ao desalento, dado que a abundância de informações mal
integradas acaba por confundir as ideias.
Obviamente, a pesquisa em ciências sociais exige que o inves-
tigador leia muito, sobretudo para se apropriar das teorias e das
ferramentas de investigação indispensáveis e para dominar bem
o assunto em questão. Mas para que estas leituras sejam úteis e
as possa explorar, deve poder assimilar o seu conteúdo progres-
sivamente, «digeri-lo» aos poucos, por assim dizer.
Se tiver tendência para progredir muito depressa e dema-
siado superficialmente, para procurar a abundância em vez da
qualidade, terá de voltar atrás, reaprender a reflectir, em vez de
devorar, terá de descongestionar o cérebro da teia de números e
palavras que o asfixia e impede de funcionar de forma ordenada
e criativa. Num primeiro tempo, será de longe preferível ler
em profundidade poucos textos criteriosamente seleccionados e
interpretar de forma correcta alguns dados estatísticos particular-
mente eloquentes, daí retirando informações claras e ordenadas
antes de avançar. Trata-se, acima de tudo, de compreender o
próprio procedimento em cada etapa do trabalho, procurando
sempre tomar o caminho mais curto e o mais simples para obter
o melhor resultado.

b) Passar por cima das hipóteses


Passar por cima das hipóteses consiste precisamente em preci-
pitar-se sobre a recolha dos dados antes de ter formulado hipó-
teses de investigação — voltaremos adiante a esta noção — e em
preocupar-se com a escolha e a aplicação prática das técnicas de
investigação antes mesmo de saber bem aquilo que se procura e,
portanto, para o que irão servir.
Não é raro ouvir um estudante declarar que tenciona fazer um
inquérito por questionário junto de uma dada população quando
26 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

não tem nenhuma hipótese de trabalho e, para dizer a verdade,


nem sequer sabe o que procura. Só é possível escolher uma técnica
de pesquisa quando se tem uma ideia da natureza dos dados a
recolher, o que implica que se comece por definir bem o projecto.
Esta forma de fuga para a frente é corrente, sendo encorajada
pela crença segundo a qual a utilização de técnicas de investigação
consagradas determina o valor intelectual e o carácter científico
de um trabalho. Mas que utilidade tem a aplicação correcta de
técnicas experimentadas se estas estiverem ao serviço de um pro-
jecto vago e mal definido? Outros pensam que basta acumular um
máximo de informações sobre um assunto e submetê-las a várias
técnicas de análise estatística para descobrir a resposta às suas
perguntas. Afundam-se, assim, numa armadilha cujas consequên-
cias podem cobri-los de ridículo. Por exemplo, num trabalho de
fim de curso um estudante tentava descobrir quais os argumentos
mais frequentemente empregados por um conselho de turma
de fim de ano para avaliar a capacidade dos estudantes. Tinha
gravado todas as discussões dos docentes, submeteu tudo a um
programa de análise de conteúdo altamente sofisticado e obteve
resultados inesperados: segundo o computador, os termos mais
usados para julgar os alunos eram palavras como «e»... «de»...
«hein»... «capaz»... «mas»... etc.!

c) A ênfase que obscurece


Este terceiro defeito é frequente nos investigadores principiantes
que estão impressionados e intimidados pela sua recente frequência
de universidades ou escolas superiores e por aquilo que pensam
ser a ciência. Para assegurarem a sua credibilidade, julgam ser útil
exprimirem-se de forma pomposa e ininteligível e, na maior parte
das vezes, não conseguem evitar raciocinar da mesma maneira.
Duas características dominam os seus projectos de investigação
ou de trabalho: a ambição desmedida e a mais completa confu-
são. Umas vezes parece estar em causa a reestruturação industrial
OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 27

da sua região; outras, o futuro do ensino; outras ainda é nada


menos do que o destino do Terceiro Mundo que parece jogar-se
nos seus poderosos cérebros.
Estas declarações de intenção exprimem-se numa gíria, tão oca
quanto enfática, que mal esconde a ausência de um projecto de
investigação claro e interessante. A primeira tarefa do orientador
deste tipo de trabalho será ajudar o seu autor a assentar os pés
na terra e a mostrar mais simplicidade e clareza. Para vencer as
suas eventuais reticências, é necessário pedir-lhe sistematicamente
que defina todas as palavras que emprega e que explique todas
as frases que formula, de modo que rapidamente se dê conta de
que ele próprio não percebe nada da sua algaraviada.
Neste domínio que nos ocupa, mais do que em qualquer
outro, não há bom trabalho que não seja uma procura sincera
da verdade. Não a verdade absoluta, estabelecida de uma vez por
todas pelos dogmas, mas aquela que se repõe sempre em questão
e se aprofunda incessantemente pelo desejo de compreender com
mais justeza a realidade em que vivemos e para cuja produção
contribuímos.
Longe de se deixar guiar por ideias preconcebidas, tentando
demonstrá-las a qualquer custo, isto supõe que o investigador
principiante veja os seus esquemas de pensamento desconstruídos
ao longo do trabalho e se deixe surpreender pelas suas próprias
investigações. Este modo de pensar não é apenas uma questão
de boas intenções, é sobretudo uma questão de método. É res-
peitando alguns dos princípios metodológicos que o investigador
se colocará numa situação favorável à descoberta ou até mesmo
à surpresa. Regressaremos a este tema mais adiante.
Enquanto isso, desde o início da investigação, cada um deve
obrigar-se a um pequeno exercício, que consiste em explicar
claramente as palavras e as frases que já tenha eventualmente
redigido no âmbito do trabalho que inicia, assegurando-se de que
os seus textos não contêm expressões copiadas e declarações ocas
e presunçosas. Em suma, que se compreenda bem a si próprio.
28 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Depois de termos examinado várias maneiras de começar muito


mal, vejamos agora como é possível proceder de forma válida a
um trabalho de investigação e assegurar-lhe um bom começo.
Com a ajuda de esquemas, referiremos primeiro os princípios
mais importantes do procedimento científico e apresentaremos as
etapas da sua aplicação prática.

2.2 As etapas do procedimento


Um procedimento é uma forma de progredir em direcção a um
objectivo. Cada investigação é uma experiência única, um processo
de descoberta que se desenvolve num contexto particular ao longo
do qual o investigador encontra limitações, tem de ser flexível na
adaptação a situações inicialmente imprevistas e é levado a fazer
escolhas que acabarão por influenciar o seguimento do trabalho.
No entanto, não se pode proceder de qualquer maneira, seguindo
apenas a própria intuição ou as oportunidades do momento.
A partir do instante em que se inicia uma investigação em ciên-
cias sociais, é necessário «método». Isto significa essencialmente
duas coisas: por um lado, devem ser respeitados certos princípios
gerais do trabalho científico; por outro lado, devem distinguir-
-se e pôr em prática de forma coerente as diferentes etapas do
procedimento. Ao pôr a tónica no procedimento em detrimento
de métodos concretos, o nosso propósito ganha um alcance geral,
podendo aplicar-se a qualquer forma de trabalho científico em
ciências sociais. Mas quais são, então, os princípios e as etapas
de uma investigação em sociologia?
Na sua obra La Formation de Vesprit scientifique (Paris,
Librairie Philosophique J. Vrin, 1965), Gaston Bachelard resumiu
o processo científico em poucas palavras: «O facto científico é
conquistado, construído e verificado.» A mesma ideia estrutura
toda a obra Le Métier de sociologue, de P. Bourdieu, J.-C. Cham-
boredon e J.-C. Passeron (Paris, Mouton, Bordas, 1968). Nela os
OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 29

autores descrevem o procedimento como um processo em três


actos cuja ordem deve ser respeitada. É aquilo a que chamam
«hierarquia dos actos epistemológicos». Estes três actos são a
ruptura, a construção e a verificação (ou experimentação).
O objectivo deste manual é o de apresentar estes princípios do
procedimento científico em ciências sociais sob a forma de sete
etapas a percorrer. Em cada uma delas são descritas as operações
a empreender para atingir a seguinte e progredir de um acto para
o outro. Ou seja, este manual apresenta-se como uma peça de
teatro clássica, em três actos e sete cenas.
Esta apresentação do método como uma sucessão de etapas
corresponde a uma concepção dedutiva do procedimento meto-
dológico. Com efeito, num procedimento dedutivo, as observa-
ções no terreno e a recolha de dados são precedidas por uma
construção teórica elaborada. O particular deduz-se do geral.
Pelo contrário, num procedimento indutivo, os conceitos e as
hipóteses continuam a ser elaborados ao longo da observação,
num processo de generalização progressivo, em que o geral é
deduzido pelo particular.
Esta escolha não significa que o procedimento dedutivo seja
intrinsecamente superior ou mais «científico» do que o procedi-
mento indutivo, nem sequer que seja mais comum. Aliás, a maior
parte das investigações científicas combinam, de forma equilibrada,
uma parte de dedução e outra de indução. Em primeiro lugar, a
nossa escolha é essencialmente pedagógica. Formar-se numa pro-
fissão ou num ofício, seja ele qual for, por exemplo, carpintaria
ou música, pressupõe, antes de mais, a aprendizagem de gestos de
base, um a um, etapa por etapa, antes de estar apto a dominá-los
simultaneamente e em combinações variadas, o mesmo aconte-
cendo com a investigação em ciências sociais. Agir inicialmente
de acordo com o procedimento dedutivo obriga o investigador
principiante a ir explicitando as diferentes fases do seu trabalho
e dos seus progressos, sem misturar tudo e sem se perder. Isto
permitir-lhe-á compreender de que modo o que decide e faz em
30 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

cada uma das etapas compromete, muitas vezes irreversivelmente


(por exemplo, se usar um questionário de inquérito padronizado),
o prosseguimento do trabalho. Isto acaba por ajudar a aprender
a articular adequadamente a abordagem teórica e o trabalho de
observação ou no terreno, articulação que muitas vezes falha nas
investigações indutivas, levadas a cabo por investigadores com
pouca experiência.
Conforme estes gestos e operações de base se forem consoli-
dando, daremos lugar, nas páginas seguintes, ao procedimento
indutivo, aos seus princípios e à sua condução.
O esquema que se apresenta a seguir mostra a correspondência
entre as etapas e os actos do procedimento. Por razões didácticas,
os actos e as etapas são apresentados como operações separadas e
numa ordem sequencial. Na realidade, uma investigação concreta
não é tão mecânica, os diferentes actos e as diferentes etapas
interagem constantemente. Por isso, introduzimos no esquema cir-
cuitos de retroacção para simbolizar as interacções que realmente
existem entre as diferentes fases da investigação.

a) Os três actos do procedimento


Para compreender a articulação das etapas de uma investigação
com os três actos do procedimento científico, é necessário dizer
primeiro algumas palavras sobre os princípios que estes três actos
encerram e sobre a lógica que os une.

A ruptura
Se escolhemos estudar um determinado assunto, forçosamente,
é porque quase sempre nos interessa, porque temos dele um
conhecimento prévio e muitas vezes uma experiência concreta.
Talvez estejamos desejosos de levar a cabo a nossa investigação
para trazer à luz do dia um problema social ou para defender
uma causa que nos éZ cara. Um futuro investigador social que
OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 31

AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO

Etapa 1 — A pergunta de partida

Etapa 2 — A exploração

RUPTURA s
. As entrevistas
As leituras 2
exploratórias

Etapa 3 — A problemática

CONSTRUÇÃO

Etapa 4 — A construção do modelo de análise

[ Etapa 5 — A observação

VERIFICAÇÃO Etapa 6 — A análise das informações

À Etapa 7 — As conclusões

estagiou numa escola dita «difícil» poderá querer estudar a vio-


lência escolar com que se confrontou, contribuindo, assim, para a
pesquisa de métodos de intervenção adequados. Um estudante de
Sociologia voluntário numa associação de prevenção de VIH (vírus
da sida) poderá desejar analisar os processos de discriminação
32 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

aos quais estão expostas determinadas categorias de pessoas que


foram infectadas. Um aluno ou uma aluna que tem um dos pro-
genitores a trabalhar na área da justiça poderá aproveitar a sua
proximidade com este universo para elaborar o seu trabalho de
fim de curso. Também um futuro politólogo, comprometido com
um partido político dominado por homens, poderá interessar-se
pela maneira como as mulheres participam na vida partidária.
E os exemplos são infindáveis.
Este envolvimento pessoal no tema a investigar pode ir do
simples interesse a uma militância empenhada. Mesmo quando
o jovem investigador está comprometido com um trabalho cujo
assunto lhe era anteriormente indiferente, será muito pouco pro-
vável que não tenha já algumas «pequenas ideias» sobre o tema e
que o seu interesse por este não se desenvolva rapidamente. Além
disso, a particularidade das ciências sociais é estudarem fenómenos
(como a família, a escola, o trabalho, as relações interculturais, as
desigualdades sociais, o poder, etc.) sobre os quais cada um tem
já uma experiência anterior, senão directa pelo menos indirecta.
Este interesse, este conhecimento e experiência não são a
priori negativos, muito pelo contrário. Nada se começa do zero,
há sempre algumas ideias interessantes, por vezes sabem-se já
muitos pormenores sobre o assunto, conhecem-se pessoas que
nos podem dar informações e até ajudar a estabelecer contactos
úteis, talvez já se tenham lido textos interessantes sobre o assunto
e, sobretudo, estamos animados por uma motivação maior ou
menor. Mas, ao mesmo tempo, este interesse, este conhecimento
e esta experiência encerram alguns perigos e podem trazer alguns
inconvenientes.
Alguns destes perigos são inerentes ao envolvimento pessoal e
ao sistema de valores do próprio investigador. Todos os grupos
humanos, incluindo aqueles de que fazem parte estudantes e
investigadores em Sociologia (classes sociais, próximos e amigos,
colegas do mesmo curso superior, etc.), partilham um determinado
número de ideias sobre si próprios ou sobre os outros. Estas ideias
OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 33

são funcionais para estes «grupos de pertença», muitas vezes, são


ideias simplistas, que classificam as pessoas em categorias que não
devem tomar-se como certas, mas com base nas quais se tende
a explicar o comportamento de uns e de outros. Por exemplo,
explica-se com demasiada facilidade o comportamento colectivo
dos crentes pela natureza da sua religião, sem procurar os factores
socioeconómicos e políticos que explanam o uso que actualmente
se faz dela. Também se parte do preconceito de que determinado
comportamento é «anormal», porque à luz das finalidades e dos
valores que consideramos adequados não é «racional».
Quando abordamos o estudo de algum tema, a nossa mente
não é virgem: está preenchida por um amontoado de imagens,
crenças, aspirações, esquemas de explicação mais ou menos cons-
cientes, recordações de experiências agradáveis ou dolorosas, ora
colectivas ora pessoais, que pré-formatam a nossa abordagem a
esse assunto. De resto, esta pré-formatação já está presente no
simples facto de se ter escolhido aquele tema e não outro, sendo
susceptível de condicionar todas as etapas da investigação. Por
conseguinte, será necessário estar atento, pois há uma miríade de
memórias e teses de doutoramento em que o autor não conseguiu
distanciar-se o suficiente da sua própria experiência pessoal e das
suas próprias categorias de pensamento a priori.
É por insistir veementemente nesta necessidade de distan-
ciamento, tanto de ideias preconcebidas como de categorias de
pensamentos do senso comum, ou seja, das que são vulgarmente
aceites numa determinada colectividade (uma sociedade nacional,
uma comunidade confessional ou uma categoria profissional, por
exemplo) que alguns autores falam literalmente de ruptura epis-
temológica, ou seja, de ruptura no acto do conhecimento. Para
estes, nomeadamente G. Bachelard, a ruptura entre senso comum
e preconceitos, por um lado, e conhecimento científico, por outro,
deve ser radical.
Para outros autores, como A. Giddens ou J. Habermas, falar
de ruptura epistemológica tem o duplo inconveniente de desqua-
34 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

lificar injustamente o senso comum ou os conhecimentos comuns


e instaurar uma separação demasiado rígida entre a «não ciên-
cia» (dentro do social) e a «ciência» (do social). Para I. Stengers
(V'Invention des sciences modernes, Paris, Flammarion, 1995),
seria mais sensato falar de «demarcação» do que de ruptura e
actualmente muitos são os peritos em ciências sociais que con-
sideram existir mais continuidade do que ruptura entre o senso
comum e o conhecimento produzido pelos investigadores nestas
disciplinas. Aliás, aquilo a que chamamos «senso comum» é regu-
larmente fruto de pessoas e de grupos com muita instrução e bem
informados sobre algumas questões e há mesmo várias obras, que
os leitores podem consultar, que discutem esta problemática (ver,
nomeadamente, A. P. Pires, «De quelques enjeux épistémologiques
d'une méthodologie général pour les sciences sociales», in Pou-
part et al., La recherche qualitative, Montréal, Paris, Casablanca,
Gaêtan Morin Éditeur, 1977). E mais, alguns estudiosos, entre os
quais nos incluímos, consideram que o conhecimento científico,
nomeadamente a sociologia, tem todo o interesse em mobilizar
os conhecimentos e as competências intelectuais dos actores no
próprio processo de investigação, na condição de aplicar métodos
adequados e rigorosos (ver concretamente L. Van Campenhoudt,
J.-M. Chaumont e A. Franssen, La Méthode d'analyse en groupe,
Paris, Dunod, 2005).
Mesmo colocando-nos na óptica de uma continuidade entre
senso comum e conhecimento científico, não é menos verdade
que, para constituir conhecimento válido do ponto de vista das
ciências sociais, esse conhecimento deve ser produzido de acordo
com algumas regras e procedimentos rigorosos e aos quais o
senso comum não está obrigado (problemática argumentada,
definição exacta de conceitos, validação das hipóteses, constitui-
ção da amostra, observações sistemáticas, etc.). É este carácter
metodológico construído — veja-se mais adiante — que confere
ao conhecimento científico uma validade própria que o senso
comum não pode invocar nas ciências sociais como faz nas outras
OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 35

disciplinas. É por isso que alguns estudiosos preferem falar em


ruptura metodológica.
No entanto, nesta fase, lançados que estão os termos do debate,
e sendo geralmente a primeira vez que o leitor contacta com a
metodologia da investigação, conservámos o termo bastante literal
de ruptura, sem o qualificar, para marcar bem a importância deste
distanciamento reflexivo, a necessidade de tomar consciência do
peso enorme que os nossos preconceitos podem ter na qualidade
das investigações e a exigência de uma construção metodológica
rigorosa do procedimento do conhecimento. Trata-se, por isso, de
uma escolha essencialmente pedagógica.

A construção
À ruptura, ou se quisermos ser menos radicais, a demarca-
ção, não se obtém apenas graças ao distanciamento reflexivo.
Concretiza-se positivamente no segundo acto da investigação
em sociologia, o da construção, que consiste em reconsiderar o
fenómeno estudado a partir de categorias de pensamento incluí-
das nas ciências sociais, em reportar-se a um quadro conceptual
organizado susceptível de exprimir a lógica que o investigador
pensa estar na base do fenómeno. Trata-se de «reconstruir» os
fenómenos de um ângulo diferente, que é definido pelos conceitos
teóricos pertencentes às ciências sociais. É graças a esta teoria
que o investigador pode erguer as proposições explicativas do
fenómeno a estudar e prever qual o plano de pesquisa a definir,
as operações a aplicar e as consequências que logicamente devem
esperar-se no termo da observação. Não pode haver, em ciências
sociais, verificação frutuosa sem construção de um quadro teórico
de referência. Não se submete uma proposição qualquer à prova
dos factos. As proposições devem ser o produto de um trabalho
racional, fundamentado na lógica e numa bagagem conceptual
validamente constituída (cf. J.-M. Berthelot, L'Intelligence du
social, Paris, PUF, 1990, p. 39).
36 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

A verificação
Uma proposição só tem direito ao estatuto científico na medida
em que pode ser verificada pelos factos. Esta prova pelos factos
é designada por verificação ou experimentação. Corresponde ao
terceiro acto do processo.

b) As sete etapas do procedimento


Os três actos do procedimento científico não são independen-
tes uns dos outros. Pelo contrário, constituem-se mutuamente.
Assim, por exemplo, a ruptura não se realiza apenas no início da
investigação; completa-se na e pela construção. Esta: não pode,
em contrapartida, passar sem as etapas iniciais, principalmente
consagradas à ruptura. Por seu turno, a verificação vai buscar o
seu valor à qualidade da construção.
No desenvolvimento concreto de uma investigação dedutiva,
os três actos do procedimento científico são realizados ao longo
de uma sucessão de operações, que aqui são reagrupadas em
sete etapas. Por razões didácticas, o esquema anterior distin-
gue de forma precisa as etapas umas das outras. No entanto,
circuitos de retroacção lembram-nos que estas diferentes etapas
estão, na realidade, em permanente interacção. Não deixare-
mos, aliás, de mostrá-lo sempre que possível, uma vez que este
manual dará especial relevo ao encadeamento das operações e
à lógica que as liga.
Para servir como ferramenta de formação, um manual como
este deve apresentar os princípios e as etapas do procedimento
de forma tão clara quanto possível. Deve auxiliar o investigador
principiante a progredir na sua pesquisa sabendo para onde vai e
porque procede de determinada maneira. Ferramenta didáctica, um
manual fornece um fio condutor, pontos de referência e normas
de trabalho. Já aqui o dissemos: é preciso método e não pode ser
um qualquer. Sem isso, o trabalho dispersa-se na confusão e perde
todo o rigor. Precisamente, esse rigor consiste na correspondência
OBJECTIVOS E PROCEDIMENTO 37

entre aquilo que o investigador apresenta como conhecimentos


dos seus trabalhos e o que o habilita a apresentá-los: conceitos
exactos, um método não arbitrário, observações feitas «de acordo
com as regras do ofício» e, sobretudo, a coerência geral do pro-
cedimento de investigação posto em prática.
No entanto, rigor não significa rigidez, muito pelo contrário.
O procedimento que aqui apresentamos não deve ser posto em
prática de forma mecânica (como uma sucessão de normas espe-
cíficas cuja finalidade se perderia de vista) nem ritualista (como
uma repetição estereotipada de gestos consagrados). Uma inves-
tigação será sempre um processo de descoberta, uma aventura
intelectual realizada num contexto específico e imprevisível para
uma larga maioria, reservando sempre a sua quota de boas e más
surpresas. Para aproveitar os conhecimentos mais ricos de uma
pesquisa, o investigador deve ser flexível e mostrar boa capacidade
de adaptação. Regularmente, deverá voltar atrás, reformular uma
hipótese demasiado sucinta ou inadequada, redefinir um conceito
com maior rigor, simplificar ou tornar mais complexa a sua teoria,
regressar ao terreno e efectuar observações suplementares para
recolha de informações em falta ou que não estavam previstas
no plano de trabalho, ou mesmo fazer novas perguntas, impostas
pela própria observação. Uma aplicação rigorosa do procedimento
exposto neste livro poderá ser um sinal de medo e de falta de
autoconfiança, sentimentos perfeitamente naturais e compreensíveis
na mente de um neófito em investigação social. Depois de treinar
bem todos os movimentos de pernas e de braços, mais cedo ou
mais tarde, se quiser aprender a nadar, o aprendiz terá de deixar
a borda da piscina.
PRIMEIRA ETAPA

A PERGUNTA DE PARTIDA
AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO

Etapa 1 — A pergunta de partida

Etapa 2 — A exploração

»
p-
As entrevistas
As leituras ui
«< exploratórias

Etapa 3 — A problemática

Etapa 4 — A construção do modelo de análise


Gr

Etapa 5 — A observação
Gm

Etapa 6 — A análise das informações


Gees

Etapa 7 — As conclusões
1. OBJECTIVOS

O primeiro problema que se põe ao investigador é muito


simplesmente o de saber como começar bem o seu trabalho. De
facto, não é fácil conseguir traduzir o que vulgarmente se apre-
senta como um foco de interesse ou uma preocupação relativa-
mente vaga num projecto de investigação operacional. O receio
de iniciar mal o trabalho pode levar algumas pessoas a andarem
às voltas durante bastante tempo, a procurarem uma segurança
ilusória numa das formas de fuga para a frente que abordámos, ou
ainda a renunciarem pura e simplesmente ao projecto. Ao longo
desta etapa mostraremos que existe uma outra solução para este
problema do arranque do trabalho.
A dificuldade de começar de forma válida um trabalho tem,
com frequência, origem numa preocupação de fazê-lo demasiado
bem e de formular desde logo um projecto de investigação de
forma totalmente satisfatória. É um erro. Uma investigação é, por
definição, algo que se procura. É um caminhar para um melhor
conhecimento e deve ser aceite como tal, com todas as hesita-
ções, desvios e incertezas que isso implica. Muitos vivem esta
realidade como uma angústia paralisante; outros, pelo contrário,
reconhecem-na como um fenómeno normal e, numa palavra,
estimulante.
Por conseguinte, o investigador deve obrigar-se a escolher
rapidamente um primeiro fio condutor tão claro quanto possí-
vel, de forma que o seu trabalho possa iniciar-se sem demora e
estruturar-se com coerência. Pouco importa que este ponto de
partida pareça banal e que a reflexão do investigador não lhe
pareça ainda totalmente madura; pouco importa que, como é
provável, ele mude de perspectiva ao longo do caminho. Este
42 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ponto de partida é apenas provisório, como um acampamento-


2

-base que os alpinistas constroem para prepararem a escalada


de um cume e que abandonarão por outros acampamentos mais
avançados até iniciarem o assalto final. Resta saber como deve
ser apresentado este primeiro fio condutor e que critérios deve
preencher para desempenhar o melhor possível a função que dele
se espera. É este o objecto desta primeira etapa.

2. UMA BOA FORMA DE ACTUAR


Por várias razões que progressivamente se tornarão evidentes,
sugerimos a adopção de uma fórmula que a experiência revelou
ser muito eficaz. Consiste em procurar enunciar o projecto de
investigação na forma de uma pergunta de partida, por meio da
qual o investigador tenta exprimir o mais exactamente possível o
que procura saber, elucidar, compreender melhor. Para desempenhar
correctamente a sua função, este exercício deve, claro está, ser
efectuado segundo algumas regras que adiante serão especificadas
e abundantemente ilustradas.
Sem dúvida, muitos leitores manifestarão desde logo algumas
reticências em relação a tal proposta, mas gostaríamos que cada
um reservasse a sua opinião até ter apreendido bem a natureza
e o alcance exacto do exercício.
Em primeiro lugar, não é inútil assinalar que os autores mais
conceituados não hesitam em enunciar os seus projectos de inves-
tigação sob a forma de perguntas simples e claras, ainda que, na
realidade, essas perguntas tenham subjacente uma sólida reflexão
teórica. Eis três exemplos bem conhecidos dos sociólogos:
e A desigualdade de oportunidades em relação ao ensino tem
tendência a diminuir nas sociedades industriais?
Esta pergunta é feita por Raymond Boudon no início de uma
investigação cujos resultados foram publicados com o título
A PERGUNTA DE PARTIDA 43

LInégalité des chances: la mobilité sociale dans les sociétés


industrielles (Paris, Armand Colin, 1973). A esta primeira
questão central acrescenta Raymond Boudon uma outra que
tem por objectivo «a incidência das desigualdades em relação
ao ensino na mobilidade social». Mas a primeira pergunta
citada constitui verdadeiramente a interrogação de partida
do seu trabalho e aquela que lhe servirá de primeiro eixo
central.
e A luta estudantil (em França) é apenas uma agitação em que
se manifesta a crise da universidade, ou contém em si um
movimento social capaz de lutar em nome de objectivos gerais
contra uma dominação social?
Esta é a pergunta de partida formulada por Alain Touraine na
investigação em que utiliza pela primeira vez o seu método de
intervenção sociológica, cujos relatórios e análises foram publi-
cados com o título Lutte étudiante (com F. Dubet, Z. Hegedus
e M. Wieviorka, Paris, Seuil, 1978).
e O que predispõe algumas pessoas a frequentarem os museus,
ao contrário da grande maioria das que os não frequentam?
Reconstituída segundo os termos dos autores, esta é a pergunta
de partida da investigação efectuada por Pierre Bourdieu e
Alain Darbel sobre o público dos museus de arte europeus,
cujos resultados foram publicados com o título L'Amour de
Part (Paris, Éditions de Minuit, 1969).

Se os pilares da investigação social impõem a si mesmos o


esforço de precisarem o seu projecto de uma forma tão conscien-
ciosa, tem de se admitir que o investigador, principiante ou já
com alguma prática, amador ou profissional, ocasional ou regular,
não pode dar-se ao luxo de omitir este exercício, mesmo que as
suas pretensões teóricas sejam infinitamente mais modestas e o
seu campo de pesquisa mais restrito.
44 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

3. OS CRITÉRIOS DE UMA BOA PERGUNTA


DE PARTIDA
Traduzir um projecto de investigação sob a forma de uma
pergunta de partida só será útil se essa pergunta for correcta-
mente formulada. Isto não é necessariamente fácil, pois uma
boa pergunta de partida deve preencher várias condições. Em
vez de apresentar de imediato estas condições de forma abstracta,
é preferível partir de exemplos concretos. Procederemos, assim, ao
exame crítico de uma série de perguntas de partida, insatisfatórias,
mas com formas correntes. Este exame permitir-nos-á reflectir
sobre os critérios de uma boa pergunta e o significado profundo
desses critérios. O enunciado de cada pergunta será seguido de
um comentário crítico, mas seria preferível que cada um discutisse
por si mesmo estas perguntas, se possível em grupo, antes de ler,
mais ou menos passivamente, os nossos comentários.
Ainda que os exemplos de perguntas apresentados lhe pareçam
muito claros, até mesmo demasiado claros, e que as recomendações
propostas lhe pareçam evidentes e elementares, não deixe de levar
a sério esta primeira etapa. Aquilo que pode ser fácil quando um
critério é apresentado isoladamente sê-lo-á muito menos quando
se tratar de respeitar o conjunto destes critérios para uma única
pergunta de partida: a sua. Acrescentemos que estes exemplos não
são puras invenções da nossa parte. Ouvimo-los todos, por vezes
sob formas muito ligeiramente diferentes, da boca de estudantes.
Se, das centenas de perguntas insatisfatórias sobre as quais tra-
balhámos com eles, acabámos por reter aqui apenas sete, é por-
que elas são bastante representativas das falhas mais correntes e
porque, juntas, cobrem bem os objectivos pretendidos.
Veremos de forma gradual a que ponto este trabalho, longe
de ser estritamente técnico e formal, obriga o investigador a
uma clarificação, com frequência muito útil, das suas intenções
e perspectivas espontâneas. Neste sentido, a pergunta de partida
constitui normalmente um primeiro meio para pôr em prática
A PERGUNTA DE PARTIDA 45

uma das dimensões essenciais do processo científico: a ruptura


com os preconceitos e as noções prévias.
O conjunto das qualidades requeridas pode resumir-se em
algumas palavras: uma boa pergunta de partida deve poder ser
tratada. Isto significa que se deve poder trabalhar eficazmente a
partir dela e, em particular, deve ser possível fornecer elementos
para lhe responder. Estas qualidades têm de ser pormenorizadas.
Para esse efeito, procedamos ao exame crítico de sete exemplos
de perguntas.

3.1 As qualidades de clareza


As qualidades de clareza dizem essencialmente respeito à pre-
cisão e à concisão do modo de formular a pergunta de partida.

Pergunta 1
Em que medida o aumento das perdas de empregos no sector
da construção explica a manutenção de grandes projectos de
trabalhos públicos, destinados não só a manter este sector, mas
também a diminuir os riscos de conflitos sociais inerentes a esta
situação?

Comentário
Esta pergunta é demasiado longa e desordenada. Contém supo-
sições e desdobra-se no fim, de tal forma que é difícil perceber
bem o que se procura compreender prioritariamente. É preferível
formular a pergunta de partida de uma forma unívoca e concisa
para que possa ser compreendida sem dificuldade e ajudar o seu
autor a perceber claramente o objectivo que persegue.

Pergunta 2
Qual é o impacto das mudanças na organização do espaço
urbano sobre a vida dos habitantes?
46 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Comentário
Esta pergunta é demasiado vaga. Em que tipos de mudanças
se pensa? O que se entende por «vida dos habitantes»? Trata-se
da sua vida profissional, familiar, social, cultural? Alude-se às
suas facilidades de deslocação? Às suas disposições psicológicas?
Poderíamos facilmente alongar a lista das interpretações possíveis
desta pergunta demasiado vaga, que informa muito pouco acerca
das intenções precisas do seu autor, se é que estas o são.
Convirá, portanto, formular uma pergunta precisa cujo sentido
não se preste a confusões. Será muitas vezes indispensável definir
claramente os termos da pergunta de partida, mas é preciso pri-
meiro esforçar-se por ser o mais límpido possível na formulação
da própria pergunta.
Existe um meio muito simples de se assegurar de que uma
pergunta é bastante precisa. Consiste em formulá-la diante de
um pequeno grupo de pessoas, evitando comentá-la ou expor o
seu sentido. Cada pessoa do grupo é depois convidada a explicar
como compreendeu a pergunta. A pergunta será precisa se as inter-
pretações convergirem e corresponderem à intenção do seu autor.
Ao proceder a este pequeno teste em relação a várias perguntas
diferentes, depressa observará que uma pergunta pode ser precisa
e compreendida da mesma forma por todos sem estar por isso
limitada a um problema insignificante ou muito marginal. Consi-
deremos a seguinte pergunta: «Quais são as causas da diminuição
dos empregos na indústria valã no decurso dos anos 80?» Esta
pergunta é precisa no sentido de que cada um a compreenderá
da mesma forma, mas cobre, no entanto, um campo de análise
muito vasto (o que, como veremos mais à frente, apresentará
outros problemas).
Uma pergunta precisa não é, assim, o contrário de uma per-
gunta ampla ou muito aberta, mas sim de uma pergunta vaga ou
imprecisa. Não encerra imediatamente o trabalho numa perspec-
tiva restritiva e sem possibilidades de generalização. Permite-nos
simplesmente saber aonde nos dirigimos e comunicá-lo aos outros.
A PERGUNTA DE PARTIDA 47

Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de par-


tida terá de ser precisa.

Pergunta 3
Quais as causas do subdesenvolvimento?

Comentário
Esta pergunta é demasiado vaga e tememos que o investigador
principiante apenas consiga responder-lhe com generalidades.
Aquilo a que chamamos subdesenvolvimento abrange uma grande
diversidade de realidades e de processos, de tal forma que, na
maior parte das vezes, os contributos científicos mais úteis sobre
o assunto abordam ou situações específicas (por exemplo, um
conjunto de aldeias que enfrentam determinadas condições num
país do Terceiro Mundo) ou mecanismos concretos (por exemplo,
certos aspectos dos processos de endividamento que compreendem
dimensões sociais e/ou técnicas). Em contrapartida, as dissertações
gerais não apresentam o mínimo interesse. Só depois de terem
conseguido reunir os resultados de muitos trabalhos especializados
é que alguns investigadores, detentores de uma longa experiência
em investigação, são capazes de elaborar sínteses sobre o subde-
senvolvimento em geral e até, mais frequentemente, sobre apenas
alguns dos seus únicos aspectos que apresentam uma verdadeira
utilidade científica. O investigador principiante tem todo o inte-
resse em conhecer estes trabalhos antes de, eventualmente, se
lançar ele próprio numa investigação com ambições claramente
mais modestas.

3.2 As qualidades de exequibilidade


As qualidades de exequibilidade estão essencialmente ligadas
ao carácter realista ou irrealista do trabalho que a pergunta deixa
48 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

entrever. O investigador será efectivamente capaz de fazer tudo o


que é preciso para levar a sua investigação a bom termo?

Pergunta 4
Os dirigentes empresariais dos diferentes países da União Euro-
peia têm uma percepção idêntica da concorrência económica da
América do Norte e da Ásia?

Comentário
Se puder dedicar pelo menos dois anos inteiros a esta investiga-
ção, se dispuser de um orçamento de vários milhões de euros, de
uma boa rede de colegas noutros países europeus que se disponham
a cooperar e uma equipa de colaboradores competentes, eficazes
e poliglotas, terá, sem dúvida, algumas hipóteses de realizar este
tipo de projecto e de obter resultados suficientemente pormeno-
rizados para terem alguma utilidade. Caso contrário, é preferível
restringir as suas ambições.
As condições de exequibilidade são de ordens diversas, devendo
ser todas consideradas pelo investigador: os seus conhecimen-
tos principais sobre a questão, as suas competências técnicas, a
possibilidade de recolher material indispensável (neste caso, sem
dúvida alguma, um inquérito por questionário ou entrevistas aos
directores das empresas) e de tomar medidas prévias, a capaci-
dade para convencer as pessoas-chave a dar o seu contributo e,
eventualmente, organizar reuniões preparatórias, a capacidade
de encontrar documentos úteis, o orçamento necessário (nomea-
damente, despesas de deslocação), os meios logísticos (como o
suporte informático para o tratamento dos dados), mas também,
em alguns casos, a capacidade para ultrapassar obstáculos de
ordem psicológica ou ética que possam surgir no decorrer do
trabalho no terreno.
O investigador deve assegurar-se de que estão reunidas todas
estas condições desde a formulação da pergunta de partida, sob
pena de rapidamente se ver ultrapassado pelas suas próprias
A PERGUNTA DE PARTIDA 49

ambições. De facto, os investigadores principiantes, mas por vezes


também os profissionais, subestimam quase sempre as restrições
concretas que os seus trabalhos de investigação implicam. Por con-
sequência, além de uma possível desmotivação, uma boa parte
das informações necessárias não são recolhidas, as informações
obtidas são subexploradas e a investigação termina num sprint
angustiante, durante o qual nos expomos a erros e negligências.
Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de
partida deve ser realista, isto é, adequada aos recursos pessoais,
materiais e técnicos, em cuja necessidade podemos de imediato
pensar e com que podemos razoavelmente contar.

3.3 As qualidades de pertinência


As qualidades de pertinência dizem respeito ao registo (des-
critivo, explicativo, normativo, preditivo...) em que se enquadra
a pergunta de partida.
Procedamos, também aqui, ao exame crítico de exemplos de
perguntas semelhantes às que encontramos muitas vezes no início
de trabalhos de estudantes.

Pergunta 5
O que fazem os jovens da região de Bordéus nos seus tempos
livres?

Comentário
Numa primeira abordagem, podemos recear que tal pergunta
não exija mais que uma resposta puramente descritiva, cujo único
objectivo seria informar sobre os dados de uma situação. Um
perigo suplementar consiste em manter-se numa «vivência» sem
sentido, sem chegar a compreender os processos sociais subjacentes
aos modos de vida e aos comportamentos descritos.
50 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

No entanto, não será necessário traçar uma fronteira demasiado


nítida entre a descrição dos fenómenos sociais e a sua explicação
(a este propósito, consultar J.-P. Olivier de Sardan, La Rigueur
du qualitatif, Lovaina-a-Nova, Bruylant-Academia, 2008). Com
efeito, muitas das perguntas que à primeira vista se apresentam
como descritivas implicam uma intenção de compreensão dos
fenómenos sociais estudados. Descrever as relações de poder numa
determinada organização, ou situações socialmente problemáti-
cas, mostrando exactamente em que é que são «problemáticas»,
descrever a evolução das condições de vida de uma parte da
população, ou o modo como se ocupa um espaço público e que
actividades aí se desenvolvem, implica a reflexão sobre aquilo que
é essencial destacar, uma selecção de informações a recolher, uma
classificação dessas informações com o objectivo de identificar
linhas orientadoras e ensinamentos pertinentes.
Apesar das aparências, trata-se de algo mais do que uma «sim-
ples descrição», no mínimo será uma «descrição construída», que
se encaixa perfeitamente na investigação em ciências sociais e
que requer a concepção e a aplicação de um dispositivo concep-
tual e metodológico. Uma «descrição» assim concebida poderá
constituir uma excelente investigação e uma boa maneira de se
empenhar nela. De certo modo, muitas das investigações conhe-
cidas começam por apresentar-se como descrições construídas a
partir de critérios que rompem com as categorias de pensamento
geralmente aceites e que conduzem, por isso, à reavaliação dos
fenómenos sob uma nova perspectiva. La Distinction, critique
social do jugement, de Pierre Bourdieu (Paris, Edições Minuit,
1979), é um bom exemplo disso: a descrição das práticas e dispo-
sições culturais é desenvolvida da perspectiva de habitus e de um
sistema de disparidades entre as diferentes classes sociais.
Mas estamos ainda muito afastados da simples intenção de
recolha não crítica de dados e informações existentes ou produ-
zidas por nós próprios. Convém que a intenção de ultrapassar
esta fase transpareça na pergunta de partida.
A PERGUNTA DE PARTIDA 51

Resumindo, uma boa pergunta de partida procura não só des-


crever, mas, também, compreender melhor os fenómenos estudados.
Sem entrar em desenvolvimentos inutilmente complexos nesta
fase, entendemos por «compreender fenómenos»: «reconstituir, no
espaço do pensamento, os processos reais através dos quais os
fenómenos acontecem» (Ladriere, J., «La casualité dans les sciences
de la nature et dans les sciences humaines», in Frank (dir.), Faut-
«il chercher aux causes une raison? V'éxplication causale dans les
sciences sociales, Paris, Institut Interdisciplinaire d'Études Épisté-
mológiques, 1994, pp. 248-274). As perguntas de partida correctas
podem pedir respostas em termos de, por exemplo, processos de
interacção, estratégias, acções colectivas, modos de organização,
conflitos sociais, relações de poder, criação, difusão ou integração
cultural, e isto para citar apenas alguns exemplos clássicos, entre
muitos outros que se incluem na análise em ciências sociais e aos
quais teremos ocasião de regressar.

Pergunta 6
Que mudanças afectarão a organização do ensino nos próxi-
mos vinte anos?

Comentário
O autor de uma pergunta como esta tem, na realidade, como
projecto proceder a um conjunto de previsões sobre a evolução
de um sector da vida social. Alimenta, assim, as mais ingénuas
ilusões sobre o alcance de um trabalho de investigação social.
Um astrónomo pode prever com muita antecedência a passagem
de um cometa nas proximidades do sistema solar, porque a sua
trajectória responde a leis estáveis, às quais não pode furtar-se
por si próprio. Isto não acontece no que respeita às actividades
humanas, cujas orientações nunca podem ser previstas com certeza.
Podemos, sem dúvida, afirmar, sem grande risco de nos enganar-
mos, que as novas tecnologias ocuparão um lugar cada vez maior
na organização das escolas e no conteúdo dos programas, mas
52 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

somos incapazes de formular previsões seguras que transcendam


este tipo de banalidades.
Alguns cientistas particularmente clarividentes e informados
conseguem prever os acontecimentos e pressagiar o sentido prová-
vel de transformações próximas melhor do que o faria o comum
dos mortais. Mas estes pressentimentos raramente se referem a
acontecimentos precisos e apenas são concebidos como eventua-
lidades. Baseiam-se no seu profundo conhecimento da sociedade,
tal como hoje funciona, e não em prognósticos fantasistas que
nunca se verificam, a não ser por acaso.
Significará isto que a investigação em ciências sociais nada
tem a dizer quanto ao futuro? Certamente que não, mas o que
ela tem a dizer depende de outro registo. Com efeito, uma inves-
tigação bem conduzida permite captar os constrangimentos e as
lógicas que determinam uma situação ou um problema, assim
como discernir a margem de manobra dos «actores sociais», e
evidencia os desafios das suas decisões e relações sociais. Além
disso, um bom investigador que se interesse pela problemática
da mudança social (ou política ou cultural) tentará discernir no
que já existe a realidade prestes a acontecer, a realidade que, de
alguma forma, se está a desenvolver, como formas emergentes
de acção colectiva (por exemplo, através do funcionamento e da
evolução das redes sociais), bem como os novos temas e desafios
que surgem no debate social. Por último, um investigador que
adopte uma perspectiva histórica poderá confrontar o presente
com o passado e tentar perceber as evoluções, mas também as
rupturas do processo em curso. Em suma, a investigação em
ciências sociais interpela directamente o futuro de várias manei-
ras e adquire uma dimensão prospectiva, embora não se trate de
previsão no sentido estrito do termo. Fora destas perspectivas,
as previsões feitas com ligeireza arriscam-se fortemente a ter
pouco interesse e consistência. Deixam os seus autores desarma-
dos perante interlocutores que, por seu lado, não sonham, mas
conhecem os seus dossiês.
A PERGUNTA DE PARTIDA 53

Resumindo, uma boa pergunta de partida não estudará a


mudança sem se apoiar no exame daquilo que existe. Não visa
prever o futuro, mas pode contribuir para compreender o que
está para acontecer, para delimitar um campo de possibilidades
e compreender as evoluções ou rupturas históricas.

Pergunta 7
O novo regime fiscal aprovado pelo governo é socialmente justo?

Comentário
O que se entende por «socialmente justo»? A resposta será
radicalmente diferente conforme se ache que a justiça consiste em
fazer cada um pagar uma quota-parte igual à dos outros, sejam
quais forem os seus rendimentos (como é o caso dos impostos
indirectos sobre o consumo), uma quota-parte proporcional aos
seus rendimentos ou uma quota-parte proporcionalmente mais
importante conforme forem aumentando os seus rendimentos
(a taxa progressiva geralmente aplicada nos impostos directos).
Esta última fórmula, que alguns considerarão justa por contribuir
para atenuar as desigualdades económicas, será julgada absoluta-
mente injusta por quem considere que, assim, o fisco lhe extorque
bastante mais do que aos outros do fruto do seu trabalho, da sua
habilidade ou dos riscos que ousou correr.
O projecto de quem pretenda estudar esta questão será essencial-
mente crítico. Embora do ponto de vista das ciências sociais esteja
mal apresentado, torna-se legítimo na medida em que o objectivo
destas não é produzir conhecimento por si próprias, numa pers-
pectiva puramente especulativa, mas sim produzir conhecimentos
que permitam melhorar as coisas para cada um individualmente e
para a colectividade. É legítimo na medida em que a investigação
em sociologia é indissociável das preocupações de carácter ético
e político (como contribuir para resolver problemas sociais, para
instaurar mais justiça e menos desigualdades, para lutar contra
54 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

a marginalidade ou contra a violência, para aumentar a moti-


vação do pessoal de uma empresa, para ajudar a conceber um
plano de renovação urbana...). Longe de dever ser evitada, esta
preocupação de pertinência prática com uma intenção ética deve
ser encorajada, sob pena de produzir investigações desprovidas
de sentido e que constituiriam tão-somente «exercícios de estilo»
mais ou menos brilhantes.
Mas, ainda assim, será necessário considerar de forma adequada
estas preocupações de carácter ético e político. Na verdade, o
projecto está mal apresentado na medida em que só é possível
responder à pergunta com referências a critérios normativos e
simultaneamente relativos, estabelecidos a priori e na maior parte
das vezes implícitos. Será então de temer que já não se trate
verdadeiramente de uma «investigação» e que em vez disso esta
se tenha transformado numa demonstração, em que serão sobre-
tudo seleccionados e destacados argumentos a favor ou contra,
consoante os critérios.
Como conjugar estas preocupações morais ou políticas legí-
timas, e até necessárias, por um lado, com as exigências de um
trabalho rigoroso em ciências sociais, por outro? Sem entrar aqui
numa discussão sobre as ligações complexas entre as dimensões
científicas e morais da investigação em sociologia, limitamo-nos
a duas recomendações essenciais.
A primeira é formular a pergunta de tal modo que o rigor do
trabalho não fique imediatamente comprometido. O investigador
deve construir o seu plano de investigação de modo que esta não
seja uma demonstração em que a resposta à pergunta que faz é
conhecida antecipadamente. Deve conceber e construir o seu plano
como uma investigação susceptível de produzir conhecimentos
que não sejam uma confirmação das suas ideias preconcebidas
e, sobretudo, que o obriguem a considerar esses conhecimentos
com tanta atenção como aqueles que podiam confirmar essas
ideias. Nas etapas seguintes do procedimento, regressaremos a este
ponto, nomeadamente, à exigência de refutabilidade da hipótese
A PERGUNTA DE PARTIDA 55

e da abertura ao factor surpresa. A pergunta de partida constitui


a primeira etapa deste plano e por isso deverá ser formulada de
modo a não incentivar a análise dos fenómenos sociais em função
dos resultados desejados. Por outras palavras, uma boa pergunta
de partida deve ser «aberta», o que significa que, a priori, deve
poder prever várias respostas diferentes.
A segunda recomendação é explicitar bem os critérios a partir
dos quais se poderá efectuar uma avaliação de carácter normativo
durante ou no fim do trabalho. Por exemplo, os resultados de uma
análise sociológica das consequências concretas dos programas
aplicados pelas autoridades municipais com vista à redução da
insegurança podem ser comparados com os objectivos definidos
para essas medidas, no sentido de verificar se os efeitos concre-
tos correspondem, ou não, às promessas iniciais. De modo geral,
comparar os actos e os seus efeitos com o discurso dos que os
defendem é uma forma de os avaliar a partir de critérios não
subjectivos.
No entanto, no que respeita às ciências sociais, a relação entre a
dimensão científica e a dimensão moral (no sentido lato do termo:
envolvimento moral e político do investigador) é mais complexa
e, em certa medida, mais específica. Também aqui vários grandes
autores expõem os seus exemplos. Mas basta-nos um. Quando
Erving Goffman (Asiles. Études sur la condition social des malades
mentaux, Paris, Minuit, 1968) estuda a vida nos hospitais psiquiá-
tricos e mostra que os comportamentos dos doentes mentais são,
para uma grande maioria, modos de adaptação à estrutura e ao
funcionamento daquilo a que ele chama a instituição global, ao
mesmo tempo mostra também a sua dimensão trágica e profun-
damente humana. Ao incluir na sua análise a acção dos médicos
e dos enfermeiros, que tratam e vigiam os pacientes, a escolha de
Goffman é primeiramente científica, pois ele considera impossível
compreender a conduta dos internados sem compreender a do
pessoal responsável por eles. Mas esta escolha tem grandes impli-
cações morais sobretudo porque, ao fazê-lo, Goffman transgride
56 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

aquilo a que se chama a hierarquia da credibilidade, segundo a


qual se atribui um crédito superior às pessoas que ocupam uma
posição de poder (por exemplo, um ministro da Justiça ou um
médico) em detrimento das pessoas submetidas a esse poder (por
exemplo, os reclusos e os pacientes). No entanto, Goffman não
precisa de proferir grandes declarações moralizadoras: a dimensão
ética e política do seu trabalho reside tanto nas opções teóricas
e metodológicas do seu trabalho como, e sobretudo sem dúvida
alguma, na qualidade do seu trabalho de campo, que mostra com
exactidão a vida real das pessoas que vivem em reclusão. Uma
investigação em ciências sociais que compreenda um trabalho
empírico (ou seja, um trabalho de observação, de entrevista, de
recolha de dados...) minucioso, consistente e honesto, tem, em si
mesmo, uma dimensão moral forte porque mostra a rica com-
plexidade da vida real e a maneira como as pessoas estudadas
conduzem a sua própria existência perante as dificuldades. É uma
particularidade e um manancial das ciências sociais, que são dis-
ciplinas de investigação e não apenas de especulação.
Acresce que uma investigação realizada com rigor e cuja pro-
blemática é construída com inventividade (ver quarta etapa) evi-
dencia os desafios éticos e normativos dos fenómenos estudados,
de maneira análoga aos trabalhos dos biólogos, que podem revelar
desafios ecológicos. Enfim, tal como foi bem demonstrado por
Marx (L'Idéologie allemande), Durkheim (Les Formes élémentaires
de la vie religicuse) ou Weber (L'Éthique protestante et Vesprit
du capitalisme), os sistemas de valores fazem parte dos objectos
privilegiados das ciências sociais, porquanto a vida colectiva é
incompreensível fora deles.

Alguns exemplos de boas perguntas de partida


Nesta obra, as sucessivas etapas da investigação em ciências
sociais serão ilustradas com vários exemplos retirados de pesqui-
A PERGUNTA DE PARTIDA 57

sas reais. Retomamos aqui algumas dessas perguntas de partida,


sem comentários ou explicações, posto que serão desenvolvidas
posteriormente.

— Como é que os indivíduos que frequentam regularmente as


redes sociais na internet se apresentam nelas?
— Quais as expectativas dos cidadãos em relação à justiça?
— Nas relações sexuais, o que leva os parceiros a correr, ou não,
riscos de infecção pelo vírus da sida?
— Como se explica que a taxa de suicídio seja mais elevada em
algumas sociedades do que noutras?
— Que significado atribuem ao Movimento Branco aqueles que
nele participaram? (Trata-se de um movimento de massa de
cidadãos na sequência do caso Dutroux, na Bélgica.)
— Quais as relações de poder que existem entre os profissionais
(nomeadamente da justiça e da medicina psiquiátrica) que
intervêm no tratamento judiciário de justiçáveis que sofrem
de perturbações mentais?

Conclusão
Embora o objectivo da primeira etapa de formulação da per-
gunta de partida seja, antes de mais, permitir ao investigador
iniciar o seu trabalho e dispor de um primeiro fio condutor, este
exercício também constitui para ele uma oportunidade para cla-
rificar e definir o seu projecto e as suas expectativas. Aquele que
decide consagrar uma parte importante do seu tempo à inves-
tigação de um tema particular, no âmbito dos seus estudos, de
um trabalho de fim de curso ou até de um doutoramento, não
escolhe esse assunto por acaso. Para ele, o tema escolhido tem
de ser importante e tem de valer a pena estudá-lo por razões que
ultrapassam considerações puramente escolares ou académicas.
Podem ser razões pessoais, ligadas a uma experiência do passado,
ao amor a uma causa, a um fenómeno concreto ou até um projecto
58 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

de vida. Podem também existir razões ligadas ao envolvimento


num projecto colectivo de carácter social, cultural ou político, ou
poderá ainda constituir uma oportunidade que seria uma pena
desperdiçar. Tudo isto é perfeitamente legítimo e até gratificante,
conquanto o investigador seja honesto consigo próprio. Em vez de
se refugiar numa neutralidade ilusória, o investigador em ciências
sociais deve ser capaz de explicitar reflexivamente as dimensões
morais e políticas do seu trabalho, muitas vezes abafadas, e se
necessário mudar de orientação caso verifique que as suas razões
para tratar este ou aquele assunto não são as melhores e que
o podem cegar ou comprometer a sua imparcialidade. O esforço
para evitar formulações tendenciosas da pergunta de partida e as
discussões que podem existir sobre esse assunto podem contribuir
eficazmente para nos distanciarmos de ideias preconcebidas ou
más razões.
Poderíamos ainda discutir muitos outros casos exemplares
e salientar outros defeitos e qualidades, mas o que foi dito até
aqui é mais do que suficiente para fazer perceber claramente os
três níveis de exigência que uma boa pergunta de partida deve
respeitar: primeiro, exigências de clareza; segundo, exigências
de exequibilidade; terceiro, exigências de pertinência, de modo
a servir de primeiro fio condutor a um trabalho do domínio da
investigação em ciências sociais.

RESUMO DA PRIMEIRA ETAPA


À PERGUNTA DE PARTIDA

A melhor forma de começar um trabalho de investigação em ciên-


cias sociais consiste em esforçar-se por enunciar o projecto sob a
forma de uma pergunta de partida. Com esta pergunta, o investiga-
dor tenta exprimir o mais exactamente possível aquilo que procura
saber, elucidar, compreender melhor. A pergunta de partida servirá
de primeiro fio condutor da investigação.
A PERGUNTA DE PARTIDA 59

Para desempenhar correctamente a sua função, a pergunta de par-


tida deve apresentar qualidades de clareza, de exequibilidade e de
pertinência:
e As qualidades de clareza: ser precisa, concisa e unívoca, e com
uma amplitude razoável;
e As qualidades de exequibilidade: ser realista;
e As qualidades de pertinência: ser uma verdadeira pergunta; abor-
dar o estudo do que existe, basear o estudo da mudança no do
funcionamento; ter uma intenção de compreensão dos fenómenos
estudados.

Além de permitir ao investigador iniciar o seu trabalho facultando-


-Jhe um primeiro fio condutor, o trabalho de formulação da per-
gunta de partida deve constituir para ele uma oportunidade para
clarificar as suas próprias expectativas e intenções, avaliando-as de
maneira reflexiva e autocrítica.

TRABALHO DE APLICAÇÃO N.º 1


FORMULAÇÃO DE UMA PERGUNTA DE PARTIDA

Se vai iniciar um trabalho de investigação social sozinho ou em


grupo, ou se tenciona começá-lo em breve, pode considerar este
exercício a primeira etapa desse trabalho. Mesmo no caso de o
seu estudo já estar iniciado, este exercício pode ajudá-lo a enfocar
melhor as suas preocupações.
Para quem começa uma investigação seria muito imprudente cum-
prir atabalhoadamente esta etapa. Dedique-lhe uma hora, um dia
ou uma semana de trabalho. Realize este exercício sozinho ou em
grupo, com a ajuda crítica de colegas, amigos, professores ou for-
madores. Vá trabalhando a sua pergunta de partida até obter uma
formulação satisfatória e correcta. Efectue este exercício com todo o
cuidado que merece. Despachar rapidamente esta etapa do trabalho
seria o seu primeiro erro, e o mais caro, pois nenhum trabalho pode
ser bem-sucedido se for incapaz de decidir à partida e com clareza,
mesmo que provisoriamente, aquilo que deseja conhecer melhor.
O resultado deste precioso exercício não ocupará mais de duas a
três linhas numa folha de papel, mas constituirá o verdadeiro ponto
de partida do seu trabalho.
60 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

4. E SE AINDA TIVER RETICÊNCIAS...


Talvez ainda tenha reticências. Conhecemos as mais frequentes.
e O meu projecto ainda não está suficientemente afinado para
proceder a este exercício.

Neste caso, ele convém-lhe perfeitamente, porque tem precisa-


mente como objectivo ajudá-lo — e obrigá-lo — a tornar o seu
projecto mais preciso.

e A problemática ainda só está no início. Apenas poderia formular


uma pergunta banal.

Isto não tem importância porque a pergunta não é definitiva.


Por outro lado, que pretende «problematizar», se é incapaz de
formular claramente o seu objectivo de partida? Pelo contrário,
este exercício ajudá-lo-á a organizar melhor as suas reflexões, que
de momento se dispersam em demasiadas direcções diferentes.
e Uma formulação tão lacónica do meu projecto de trabalho não
passaria de uma grosseira redução das minhas interrogações e
das minhas reflexões teóricas.
A PERGUNTA DE PARTIDA 61

Sem dúvida, mas as suas reflexões não se perderão por isso.


Irão reaparecer mais tarde e serão exploradas mais depressa do
que pensa. O que é necessário neste momento é uma primeira
chave que permita canalizar o seu trabalho e evite dispersar as
suas preciosas reflexões.
e Não me interessa apenas uma coisa. Desejo abordar várias
facetas do meu objecto de estudo.

Se é essa a sua intenção, ela é respeitável, mas já está a pensar


em «problemática». Passou por cima da pergunta de partida.
O exercício de tentar precisar o que poderia constituir a per-
gunta central do seu trabalho vai fazer-lhe muito bem, porque
qualquer investigação coerente possui uma pergunta que lhe
assegura unidade.
Se insistimos na pergunta de partida, é porque a evitamos
com demasiada frequência, seja porque parece evidente (implici-
tamente!) ao investigador, seja porque este pensa que verá mais
claro à medida que avança. É um erro. Ao desempenhar as funções
de primeiro fio condutor, a pergunta de partida deve ajudá-lo a
progredir nas suas leituras e nas suas entrevistas exploratórias.
Quanto mais preciso for este «guia», melhor progredirá o inves-
tigador. Além disso, é «moldando» a sua pergunta de partida que
o investigador inicia o processo de ruptura. Por fim, existe uma
última razão decisiva para efectuar cuidadosamente este exercício:
as hipóteses de trabalho, que constituem os eixos centrais de uma
investigação, apresentam-se como proposições que respondem à
pergunta de partida.
SEGUNDA ETAPA

A EXPLORAÇÃO
AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO

Etapa 1 — A pergunta de partida

Etapa 3 — A problemática

Etapa 4 — A construção do modelo de análise


Grs

Etapa 5 — A observação
Ge

Etapa 6 — A análise das informações


4—

Etapa 7 — As conclusões
1. OBJECTIVOS
Ao longo do capítulo anterior, aprendemos a formular um
projecto de investigação sob a forma de uma pergunta de par-
tida apropriada. Até nova ordem, esta constitui o fio condutor
do trabalho. O problema é agora o de saber como proceder para
conseguir uma certa qualidade de informação; como explorar o
terreno para conceber uma problemática de investigação. É este
o objecto deste capítulo.
A exploração comporta as operações de leitura, as entrevistas
exploratórias e alguns métodos de exploração complementares. As
operações de leitura visam essencialmente assegurar a qualidade
da problematização, ao passo que as entrevistas e os métodos
complementares ajudam especialmente o investigador a ter um
contacto com a realidade vivida pelos actores sociais.
Iremos aqui estudar métodos de trabalho precisos e directa-
mente aplicáveis por todos, qualquer que seja o tipo de trabalho
em que se empenhem. Estes métodos são concebidos para ajuda-
rem o investigador a adoptar uma abordagem penetrante do seu
objecto de estudo e, assim, encontrar ideias e pistas de reflexão
esclarecedoras.

2. A LEITURA
O que é válido para a sociologia deveria sê-lo para qualquer
trabalho intelectual: ultrapassar as interpretações estabelecidas,
que contribuem para reproduzir a ordem das coisas, a fim de
fazer aparecer novas significações dos fenómenos estudados, mais
esclarecedoras e mais perspicazes do que as precedentes.
Esta capacidade de ultrapassagem não cai do céu. Depende,
em certa medida, da formação teórica do investigador e, de uma
66 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

maneira mais ampla, daquilo a que poderíamos chamar a sua


cultura intelectual, seja ela com predominância sociológica, eco-
nómica, política, histórica ou outra. Um longo convívio com o
pensamento sociológico antigo e actual, por exemplo, contribui
consideravelmente para alargar o campo das ideias e ultrapassar
as interpretações já gastas. Predispõe a pôr boas questões, a adi-
vinhar o que não é evidente.
Desiludam-se, pois, os que crêem poder aprender a fazer
investigação social contentando-se com o estudo das técnicas de
investigação: terão também de explorar as teorias, de ler e reler
as investigações exemplares (será proposta uma lista no segui-
mento deste livro) e de adquirir o hábito de reflectir antes de se
precipitarem sobre a recolha de dados, ainda que seja com as
técnicas de análise mais sofisticadas.
Quando um investigador inicia um trabalho, é pouco prová-
vel que o assunto tratado nunca tenha sido abordado por outra
pessoa, pelo menos em parte ou de forma indirecta. Tem-se fre-
quentemente a impressão de que não há «nada sobre o assunto»,
mas esta opinião resulta, em regra, de uma má informação. Todo
o trabalho de investigação se inscreve num continuum e pode ser
situado dentro de, ou em relação a, correntes de pensamento que
o precedem e influenciam. É, portanto, normal que um investiga-
dor tome conhecimento dos trabalhos anteriores que se debruçam
sobre objectos comparáveis e que explicite o que aproxima ou
distingue o seu trabalho destas correntes de pensamento.
Ainda que a sua preocupação não seja fazer investigação cien-
tífica em sentido estrito, mas sim apresentar um estudo honesto
sobre uma questão particular, continua a ser indispensável tomar
conhecimento de um mínimo de trabalhos de referência sobre o
mesmo tema ou, de modo mais geral, sobre problemáticas que
lhe estão ligadas. Seria ao mesmo tempo absurdo e presunçoso
acreditar que podemos pura e simplesmente passar sem esses
contributos, como se estivéssemos em condições de reinventar
tudo por nós próprios.
A EXPLORAÇÃO 67

Na maior parte dos casos, porém, o estudante que inicia


uma dissertação de fim de curso, o trabalhador que deseja
realizar um trabalho de dimensão modesta ou o investigador
a quem é pedida uma análise rápida não dispõem do tempo
necessário para empreenderem a leitura de dezenas de obras
diferentes. Além disso, como já vimos, a bulimia livresca é uma
forma muito má de iniciar uma investigação. Como proceder
nestas situações?
Tratar-se-á, concretizando, de proceder por levas sucessivas,
começando por seleccionar muito cuidadosamente um pequeno
número de leituras e de se organizar para delas retirar o máximo
proveito, o que implica um método de trabalho correctamente
elaborado. É, portanto, um método de organização, de realização
e de tratamento das leituras que começaremos por estudar. Este
é indicado para qualquer tipo de trabalho, seja qual for o seu
nível. Já foi experimentado com êxito em múltiplas ocasiões por
dezenas de estudantes que nele confiaram. Visa obter os melhores
resultados com o menor custo em meios de todo o tipo, a começar
pelo nosso precioso tempo.

2.1 A escolha e a organização das leituras

a) Os critérios de escolha
A escolha das leituras deve ser realizada com muito cuidado.
Qualquer que seja o tipo e a amplitude do trabalho, um investi-
gador dispõe sempre de um tempo de leitura limitado. Há quem
só possa consagrar-lhe algumas dezenas de horas, outros várias
centenas, mas, para uns como para outros, este tempo será sempre
de certa forma demasiado curto em relação às suas ambições. Não
há então nada mais desesperante do que verificar, após várias
semanas de leitura, que não se está muito mais avançado do que
no início. O objectivo é, portanto, fazer o ponto da situação acerca
68 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

dos conhecimentos que interessam para a pergunta de partida,


explorando ao máximo cada minuto de leitura.
Como proceder? Que critérios reter? Só podemos aqui propor,
bem entendido, princípios e critérios gerais, que cada um deverá
adaptar com flexibilidade e pertinência.

Primeiro princípio
Começar pela pergunta de partida. A melhor forma de não se
perder na escolha das leituras é, com efeito, ter uma boa pergunta
de partida. Todo o trabalho deve ter um fio condutor e, até nova
ordem, é a pergunta de partida que desempenha esta função. Será,
sem dúvida, levado a modificá-la no fim do trabalho exploratório
e tentará formulá-la de uma maneira mais judiciosa, mas, por
enquanto, é dela que deve partir.

Segundo princípio
2
Evitar sobrecarregar o programa de leituras. Não é necessá-
rio — nem, aliás, na maior parte das vezes, possível — ler tudo
sobre um assunto, pois, em certa medida, as obras e os artigos
de referência repetem-se mutuamente e um leitor assíduo depressa
se dá conta destas repetições. Assim, num primeiro momento,
evitar-se-á o mais possível começar logo a ler calhamaços enormes
e indigestos antes de se ter a certeza de não poder passar sem
eles. Orientar-nos-emos mais para as obras e artigos de revistas
de sociologia que apresentam referências teóricas e uma reflexão
de síntese no domínio da investigação em causa. É preferível,
com efeito, ler de modo aprofundado e crítico alguns textos bem
escolhidos a ler superficialmente milhares de páginas.

Terceiro princípio
Procurar, na medida do possível, documentos cujos autores não
se limitem a apresentar dados, mas incluam também elementos
de análise e de interpretação.
A EXPLORAÇÃO 69

Abordaremos muito em breve a análise de um texto de Émile


Durkheim, extraído de O Suicídio. Veremos que este texto inclui
dados que, neste caso, até são dados estatísticos. No entanto, não
são apresentados isoladamente. A análise de Durkheim dá-lhes
sentido e permite ao leitor apreciar melhor o seu significado.
Ainda que estudemos um problema que, a priori, exigirá a
utilização de abundantes dados estatísticos, tal como as causas
do aumento do desemprego ou a evolução demográfica de uma
região, é, mesmo assim, preferível procurar textos que nos ajudem
a perceber as dinâmicas e os processos, em vez de listas de núme-
ros, que nunca querem dizer grande coisa por si mesmos. A maior
parte dos textos que incitam à reflexão contêm dados suficientes,
numéricos ou não, para nos permitirem tomar consciência da
amplitude, da distribuição ou da evolução do fenómeno a que se
referem. Mas, além disso, permitem «ler» inteligentemente estes
dados e estimulam a reflexão crítica e a imaginação do investigador.
No estado presente do trabalho, isto chega perfeitamente. Se for
útil uma grande quantidade de dados, haverá sempre oportunidade
de os recolher mais tarde, quando o investigador tiver delimitado
pistas mais precisas.

Quarto princípio
Ter o cuidado de recolher textos que apresentem abordagens
diversificadas do fenómeno estudado. Não só não serve de nada
ler dez vezes a mesma coisa, como, além disso, a preocupação
de abordar o objecto de estudo de um ponto de vista esclare-
cedor implica que possam confrontar-se perspectivas diferentes.
Esta preocupação deve incluir, pelo menos nas investigações de
um certo nível, a consideração de textos mais teóricos que, não
se debruçando necessariamente, de forma directa, sobre o fenó-
meno estudado, apresentem problemáticas e modelos de análise
susceptíveis de inspirarem hipóteses particularmente interessantes.
70 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

(Voltaremos mais à frente à problemática, aos modelos de análise


e às hipóteses.)
A par de livros e artigos científicos, poderá também ser neces-
sário reunir aquilo a que chamamos «documentação cinzenta»,
como notas de trabalho, actas de reuniões ou assembleias gerais,
relatórios internos de uma dada organização, documentos de
informação ou de apresentação de serviços públicos ou de uma
empresa, destinados aos seus utilizadores ou clientes. Podemos
encontrar muitas informações úteis neste tipo de documentos, ainda
que não possuam as características de uma publicação científica.
Além disso, antes de iniciar a sua própria pesquisa, graças a estes
textos, o investigador conhecerá melhor o seu «dossiê» e ganhará
credibilidade junto dos seus interlocutores e informadores.

Quinto princípio
Oferecer-se, a intervalos regulares, períodos de tempo consagra-
dos à reflexão pessoal e às trocas de pontos de vista com colegas
ou com pessoas experientes. Um espírito atulhado nunca é criativo.
As sugestões anteriores dizem principalmente respeito às pri-
meiras fases do trabalho de leitura. Conforme for avançando,
impor-se-ão progressivamente por si mesmos critérios mais preci-
sos e específicos, na condição, precisamente, de que a leitura seja
entrecortada de períodos de reflexão e, se possível, de debate e
discussões.
Uma forma de se organizar consiste em ler levas sucessivas
de dois ou três textos (obras, capítulos ou artigos) de cada vez.
Após cada leva, pára-se de ler durante algum tempo para reflectir,
tomar notas e falar com pessoas conhecidas que se julga poderem
ajudar-nos a progredir. Eventualmente, poderá reformular-se de
forma mais adequada a pergunta de partida. É só após esta pausa
nas leituras que se decidirá o conteúdo exacto da leva seguinte,
estando as orientações gerais que se tinham fixado no início
sempre sujeitas a correcções.
A EXPLORAÇÃO 71

Decidir de imediato o conteúdo preciso de um programa de


leitura importante é geralmente um erro: a amplitude do trabalho
depressa desencoraja; a rigidez do programa presta-se mal à sua
função exploratória e os eventuais erros iniciais de orientação
seriam mais difíceis de corrigir. Por outro lado, este dispositivo
por levas sucessivas adequa-se tanto aos trabalhos modestos como
às investigações de grande envergadura: os primeiros porão fim
ao trabalho de leitura preparatória após duas ou três levas; as
segundas, após uma dezena ou mais.
Em suma, respeite os seguintes critérios de escolha:
— Ligações com a pergunta de partida;
— Dimensão razoável do programa de leitura;
— Elementos de análise e de interpretação;
— Abordagens diversificadas.

Leia por levas sucessivas, entrecortadas por pausas consagradas


à reflexão pessoal, às trocas de pontos de vista e, se necessário,
à reformulação da pergunta de partida.

b) Onde encontrar estes textos?


Antes de se precipitar para uma biblioteca física ou mais prova-
velmente ainda para uma biblioteca digital (ou virtual), é preciso
recordar que o objectivo não é elaborar uma bibliografia exaus-
tiva, mas sim fazer rapidamente um balanço dos conhecimentos
relativos à pergunta de partida. Assim, importa, antes de mais,
saber o que se procura. Sejam físicas ou digitais, as bibliotecas
de ciências sociais dignas desse nome possuem milhares de obras.
Sem afastar completamente a aprendizagem por tentativa e erro,
convenhamos que é inútil esperar descobrir por acaso, ao sabor
de um passeio por entre as estantes ou de uma navegação pela
internet, a referência ideal, aquela que corresponde exactamente
às nossas expectativas. Também aqui é preciso um método de
72 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

trabalho cuja primeira etapa consiste em precisar claramente o


tipo de textos procurado. Neste domínio, como noutros, a preci-
pitação pode custar muito caro.
Não abordaremos aqui o trabalho de pesquisa bibliográfica
propriamente dito, visto que isso nos levaria demasiado longe e
não faríamos mais do que repetir o que qualquer um pode ler
em várias obras especializadas neste domínio (por exemplo, em
Bernard Pochet, Comprendre et mattriser la littérature scientifique,
Gembloux, Presses Agronomiques de Gembloux, 2015) ou apren-
der em tutoriais de formação em pesquisa documental, desenvol-
vidos por fornecedores de recursos científicos e, cada vez mais,
por bibliotecas como, por exemplo, o ABCdoc (da Universidade
Toulouse 3), o ARBRAdoc (da Universidade Paris 8), o Cersise
(da Sorbona), o InfoSphere (da UQAM) ou o InfoTRACK (da
Universidade de Genebra). Eis, no entanto, algumas ideias que
podem ajudar a encontrar facilmente os textos adequados sem
despender demasiado tempo:
e As bibliotecas contam com uma grande quantidade de publica-
ções científicas (livros e revistas) e oferecem através dos seus
recursos online várias opções de pesquisa baseadas em resumos,
índices temáticos e até conjuntos de palavras, pois actualmente
há cada vez mais bases de dados, de livros e de revistas cientí-
ficas directamente acessíveis online na internet. Além disso, as
bibliotecas modernizaram-se e oferecem aos seus utilizadores
técnicas de pesquisa bibliográfica bastante poderosas: além dos
motores de busca eficientes para as obras e revistas que enchem
as suas prateleiras, dispõem geralmente de bases de dados e de
um sistema de intranet que permite o acesso rápido a fontes
variadas, incluindo as mais raras e preciosas.
e Em alguns países, existem catálogos que inventariam os fundos
das principais bibliotecas universitárias nacionais, como é o
caso, por exemplo, do «Sudoc», em França, ou do «Unicat», na
Bélgica. Estes catálogos são particularmente úteis quando quere-
mos aceder a uma fonte rara. As bibliotecas científicas ou aca-
démicas também possuem repertórios especializados, em geral
igualmente disponíveis na internet, como o Academic Search
A EXPLORAÇÃO 73

Premier, o International Political Sciences Abstracts, o Interna-


tional Bibliography of Social Sciences, a SAGE Encyclopedia of
Science Researche Methods ou a Sociology Database, todas elas
bases de dados bibliográficas que repertoriam as publicações
editadas num determinado domínio, possibilitando algumas o
acesso directo aos conteúdos em função das assinaturas subscri-
tas por cada instituição. No que respeita às revistas em que são
publicados os artigos dos investigadores, essas bibliotecas subs-
crevem ainda assinaturas de plataformas editoriais, como Cairn,
JSTOR ou Sage Journals Online, que gerem leques de revistas
científicas, tal como Revues.org (cujas revistas estão integra-
das na plataforma OpenEdition Freemium, que também tem
e-books) e Persée. Estas plataformas apresentam ainda a vanta-
gem de serem de livre acesso. Assim, as bibliotecas oferecem um
acesso fácil a uma grande panóplia de revistas e os seus utiliza-
dores não têm de se preocupar com as formalidades da assina-
tura. Em função das assinaturas institucionais contratualizadas,
o acesso a essas ferramentas através de um site universitário
(ou de casa, via proxy ou VPN da universidade) oferece, geral-
mente, muito mais possibilidades do que uma ligação privada
e em regra o acesso online às revistas mais antigas é gratuito.
O Google Scholar é outra ferramenta, também muito utilizada,
mas importa salientar que o grau de fiabilidade das suas refe-
rências nem sempre é o mesmo das bases de dados académicas,
sendo que nem sempre é validado por peritos no domínio da
investigação.
As revistas especializadas no seu campo de investigação são par-
ticularmente interessantes, por duas razões. Primeiro, porque o
seu conteúdo traz os conhecimentos mais recentes na matéria ou
um olhar crítico sobre os conhecimentos anteriormente adqui-
ridos. Num e noutro caso, os artigos fazem com frequência o
balanço da questão que tratam e, assim, citam publicações a ter
em consideração. A segunda razão é que as revistas publicam
recensões e resumos sobre as obras mais recentes, graças aos
quais poderá fazer uma escolha acertada de leituras.
Não negligencie os artigos de revistas generalistas ou de divulga-
ção, os dossiês de síntese e as entrevistas de especialistas publi-
cadas na imprensa para um grande público instruído, as publi-
cações de organismos especializados e muitos outros documentos
74 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

que, não sendo relatórios científicos em sentido estrito, não


deixam por isso de conter elementos de reflexão e informação
que podem ser preciosos, seja porque são uma boa introdução
para um neófito que se empenha num terreno de investigação
específico ou porque dão acesso ao ponto de vista de um actor
em particular.
e As obras comportam sempre uma bibliografia final que retoma
os textos a que os autores se referem. Como nela só se encon-
tram forçosamente referências anteriores à própria obra, focare-
mos a nossa atenção sobretudo nas bibliografias das obras mais
recentes ligadas à pergunta de partida.
e Não se assuste logo com a espessura de alguns livros. Nem
sempre é indispensável lê-los integralmente. Aliás, muitos são
obras colectivas que retomam os contributos de vários autores
diferentes sobre um mesmo tema, mas nem todas as perspecti-
vas desenvolvidas lhe interessarão necessariamente. Outros são
apenas meras miscelâneas de textos relativamente diferentes
que o autor reuniu para fazer uma obra à qual se empenha
em dar uma aparência de unidade. Os índices, os sumários, as
primeiras e as últimas linhas de cada capítulo permitirão iden-
tificar rapidamente o assunto principal das obras e das suas
diferentes partes.
e Peça conselhos a especialistas que conheçam bem o seu campo
de pesquisa: investigadores, docentes, responsáveis de organiza-
ções, etc. Antes de se lhes dirigir, prepare com precisão o seu
pedido de informação, de forma que o compreendam imediata-
mente e possam recomendar-lhe o que, segundo eles, mais lhe
convém. Compare as sugestões de uns e de outros e faça, por
fim, a sua escolha em função dos critérios que tiver definido.

Se consultar estas diferentes fontes, depressa cobrirá um campo


de publicações bastante vasto e poderá considerar que abarcou
o problema a partir do momento em que volte sistematicamente
a referências já conhecidas.
A EXPLORAÇÃO 75

TRABALHO DE APLICAÇÃO N.º 2


ESCOLHA DAS PRIMEIRAS LEITURAS

Se a leitura desta obra for acompanhada da realização de um


trabalho, chegou a altura de aplicar as sugestões aqui propostas.
O exercício consiste em escolher os dois ou três textos que consti-
tuirão a sua primeira leva de leituras. Para o conseguir, proceda do
seguinte modo:
Comece pela sua pergunta de partida;
Lembre-se dos critérios de escolha das leituras acima enunciados;
Identifique em conformidade os temas de leitura que lhe parecem
mais relacionados com a pergunta de partida;
Proceda à pesquisa de documentos valendo-se das técnicas de pes-
quisa bibliográfica disponíveis nas bibliotecas e na internet.
Consulte algumas pessoas informadas.

2.2 Como ler?


O principal objectivo da leitura é retirar dela ideias para o
nosso próprio trabalho. Isto implica que o leitor seja capaz de
fazer surgir essas ideias, de as compreender em profundidade
e de as articular entre si de forma coerente. Com a experiência,
isto não levanta geralmente muitos problemas. Mas este exercício
pode apresentar grandes dificuldades àqueles cuja formação técnica
seja fraca e que não estejam habituados ao vocabulário (há quem
diga ao jargão) das ciências sociais. É a eles que são destinadas
as páginas que se seguem.
Ler um texto é uma coisa, compreendê-lo e reter o essencial é
outra. Saber encurtar um texto não é um dom do céu, mas uma
capacidade que só se adquire com o exercício. Para ser totalmente
rendível, esta aprendizagem precisa de ser sustentada por um
método de leitura. Infelizmente, poucas vezes é este o caso. Os
neófitos são geralmente abandonados a si mesmos e lêem muitas
vezes de qualquer maneira, isto é, com prejuízo. O resultado é
76 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

invariavelmente o desânimo, acompanhado de um sentimento de


incapacidade.
Para progredir na aprendizagem da leitura e dela retirar o
máximo proveito, propomos que seja adoptado, de início, um
método de leitura muito rigoroso e preciso, mas que cada
um poderá depois tornar mais flexível durante a sua formação
e em função das suas exigências. Este método é composto por duas
etapas indissociáveis: o emprego de uma grelha de leitura (para
ler em profundidade e com ordem) e a redacção de um resumo
(para destacar as ideias principais que merecem ser retidas).

a) A grelha de leitura
Para tomar consciência do seu modo de utilização, propomos-lhe
que a aplique desde já a um texto de Durkheim sobre o suicídio
e compare o seu trabalho com o que nós próprios realizámos. As
indicações para o uso desta grelha de leitura são apresentadas no
trabalho de aplicação que se segue.

TRABALHO DE APLICAÇÃO N.º 3


LEITURA DE UM TEXTO COM A AJUDA DE UMA GRELHA
DE LEITURA
x
Divida uma folha de papel em duas colunas: dois terços à
esquerda, um terço à direita. Intitule a coluna da esquerda «Ideias-
-conteúdo» e a da direita «Tópicos para a estrutura do texto».
Leia o texto de Durkheim secção por secção. Uma secção é um
parágrafo ou um conjunto de frases que constituem um todo coe-
rente. Após a leitura de cada secção, escreva na coluna da esquerda
da sua folha a ideia principal do texto original. Dê-lhe o número de
ordem da secção lida. Continue assim, de secção em secção, sem se
preocupar com a coluna da direita.
Concluído este trabalho, dispõe, na coluna da esquerda, das prin-
cipais ideias do texto original. Releia-a de forma a apreender as
suas articulações e a discernir a estrutura global do pensamento do
A EXPLORAÇÃO 77

Texto de Durkheim (extractos!)


DSe dermos uma vista de olhos pelo mapa dos suicídios euro-
peus, notaremos logo que nos países puramente católicos, como a
Espanha, Portugal, a Itália, o suicídio se encontra muito pouco alas-
trado, ao passo que atinge o seu máximo nos países protestantes,
como a Prússia, a Saxónia, a Dinamarca [...]
Q No entanto, esta primeira comparação é ainda demasiado sumá-
ria. Apesar de incontestáveis semelhanças, os meios sociais em que
vivem os habitantes destes diferentes países não são exactamente os
mesmos. A civilização da Espanha e a de Portugal são muito infe-
riores à da Alemanha; então talvez esta inferioridade seja a razão
daquela que acabámos de verificar no desenvolvimento do suicídio.
Se quisermos evitar esta causa de erro e determinar com maior pre-
cisão a influência do catolicismo e do protestantismo na tendência
para o suicídio, é preciso comparar as duas religiões no seio de
uma mesma sociedade.
Q De todos os grandes Estados da Alemanha, é a Baviera que soma,
de longe, o menor número de suicídios. Não há anualmente, desde
1874, mais de 90 por cada milhão de habitantes, enquanto a Prússia
tem 133 (1871-1875), o Ducado de Bade 156, Vurtemberga 162, a
Saxónia 300. Ora é também aí que os católicos são mais numerosos:

1 E. Durkheim, Le suicide, Paris, PUF, 1983 (1930), pp. 149-159 [trad.


portuguesa: O Suicídio, Lisboa, Presença, col. «Biblioteca de Textos Uni-
versitários», 1992, pp. 135-144 (1.º ed. francesa, 1897)].
78 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

são 713,2 por cada 1000 habitantes. Se, por outro lado, comparar-
mos as diferentes províncias deste reino, observamos que os suicí-
dios estão na razão directa do número de protestantes e na razão
inversa do número de católicos. Não são apenas as relações entre as
médias que confirmam a lei; todos os números da primeira coluna
são superiores aos da segunda, e os da segunda aos da terceira, sem
que haja nenhuma irregularidade. O mesmo acontece na Prússia [...]

Províncias Suicídio por Províncias Suicídio por Províncias Suicídio por


com minoria milhão de com maioria milhão de com mais milhão de
católica (menos | habitantes católica, habitantes de 90 % de habitantes
de 50 %) (50 % a 90 %) católicos
Palatinato do Reno ......... 187 | Baixa Francónia............... 157 | Alto Palatinado.................. 64
Francónia Central ........... 207 | Suávia........eeereeeees 118 | Alta Baviera............c..... 114

Províncias bávaras (1867-1875)

& Contra semelhante unanimidade de factos concordantes é inútil


invocar, como o faz Mayr, o caso único da Noruega e da Suécia,
que, apesar de protestantes, não ultrapassam um número médio de
suicídios. Em primeiro lugar, tal como observámos no início deste
capítulo, estas comparações internacionais não são demonstrativas,
a não ser que tenham por objecto um número bastante elevado de
países, e mesmo neste caso não são concludentes. Há diferenças
suficientemente grandes entre as populações da península escandi-
nava e as da Europa Central para podermos compreender que o
protestantismo não produz exactamente os mesmos efeitos numas e
noutras. Mas, além disso, se, tomada isoladamente, a taxa de suicí-
dios não é muito considerável nestes dois países, torna-se relativa-
mente elevada se tivermos em conta o lugar modesto que ocupam
entre os povos civilizados da Europa. Não há razão para crermos
que tenham alcançado um nível intelectual superior ao da Itália,
longe disso, e, no entanto, as pessoas matam-se lá duas a três vezes
mais (de 90 a 100 suicídios por milhão de habitantes, em vez de
40). Não será o protestantismo a causa deste agravamento relativo?
Assim, não só o facto não infirma a lei que acaba de ser estabele-
cida sobre um tão grande número de observações, como tende antes
a confirmá-la.
A EXPLORAÇÃO 79

&No que diz respeito aos judeus, a sua tendência para o suicí-
dio é sempre menor do que a dos protestantes: de maneira muito
geral, é também inferior, ainda que em menor proporção, à dos
católicos. Contudo, acontece que esta última relação se inverte;
é sobretudo em tempos mais recentes que se encontram estes casos
de inversão [...] Se pensarmos que, em todo o lado, os judeus são
um número ínfimo e que na maior parte das sociedades onde foram
feitas as anteriores observações os católicos estão em minoria, sere-
mos tentados a ver neste facto a causa que explica a relativa rari-
dade das mortes voluntárias nestes dois cultos. Com efeito, é per-
feitamente concebível que as confissões menos numerosas, tendo de
lutar contra a hostilidade das populações envolventes, sejam obri-
gadas, para se manterem, a exercer sobre si mesmas um controlo
severo e a sujeitar-se a uma disciplina particularmente rigorosa.
Para justificarem a tolerância, sempre precária, que lhes é concedida
são obrigadas a uma maior moralidade. Além destas considerações,
alguns factos parecem realmente implicar que este factor específico
tem alguma influência [...].
6 Mas, de qualquer forma, esta explicação não bastaria para dar
conta da situação respectiva dos protestantes e dos católicos. Por-
que, ainda que na Áustria e na Baviera, onde o catolicismo é maiori-
tário, a sua influência preservadora seja menor, ela é ainda bastante
considerável. Não é, portanto, apenas à sua situação minoritária que
ele a deve. De maneira mais geral, seja qual for a proporção des-
tes dois cultos no conjunto da população, verificou-se em todos os
lugares onde foi possível compará-los do ponto de vista do suicídio
que os protestantes se matam muito mais do que os católicos. Exis-
tem mesmo Estados, como o Alto Palatinado e a Alta Baviera, onde
quase toda a população é católica (92 % e 96 %) e, no entanto, há
300 e 423 suicídios protestantes para cada 100 católicos. A relação
eleva-se mesmo a 528 % na Baixa Baviera, onde a religião refor-
mada não chega a contar um fiel em 100 habitantes. Assim, mesmo
que que prudência obrigatória das minorias possa ter algo que ver
com a diferença tão considerável que apresentam estas duas reli-
giões, a maior parte desta é certamente devida a outras causas.
DÉ na natureza destes dois sistemas religiosos que as encontrare-
mos. No entanto, ambos proíbem o suicídio com a mesma clareza;
não só o castigam com penas morais extremamente severas, como
ensinam igualmente que além-túmulo começa uma vida nova em
80 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

que os homens serão castigados pelas suas más acções, e o protes-


tantismo, tal como o catolicismo, inclui nestas o suicídio. Final-
mente, num e noutro culto estas proibições têm carácter divino: não
são apresentadas como a conclusão lógica de um raciocínio bem
conduzido, mas a sua autoridade é a do próprio Deus. Portanto, se
o protestantismo favorece o desenvolvimento do suicídio, não é por
tratá-lo de forma diferente da do catolicismo. Mas então, se, nesta
questão particular, as duas religiões têm os mesmos preceitos, a sua
acção desigual sobre o suicídio deverá ter como causa alguma das
características mais gerais que as distinguem.
BOra, a única diferença essencial entre o catolicismo e o protes-
tantismo reside no facto de o segundo admitir o livre exame numa
proporção muito mais elevada do que o primeiro. Sem dúvida, o
catolicismo, pelo simples facto de ser uma religião idealista, dá ao
pensamento e à reflexão um lugar muito menor do que o politeísmo
greco-latino ou o monoteísmo judaico. Já não se contenta com actos
maquinais, sendo antes sobre as consciências que aspira a reinar. É,
portanto, a elas que se dirige; e, mesmo quando pede à razão uma
submissão cega, fá-lo na linguagem da razão. Nem por isso deixa
de ser verdade que o católico recebe a sua fé já feita, sem exame.
Nem mesmo pode submetê-la a um controlo histórico, dado que os
textos originais sobre que ela se apoia lhe são interditos. Há todo
um sistema hierárquico de autoridades, organizado com maravilhosa
perícia, para tornar a tradição invariável. O pensamento católico
tem horror a tudo o que seja variação. O protestante é mais autor
da sua crença. A Bíblia é-lhe posta nas mãos e nenhuma interpre-
tação dela lhe é imposta. A própria estrutura do culto reformado
revela este estado de individualismo religioso. Em lado nenhum,
excepto em Inglaterra, o clero protestante está hierarquizado; tal
como o fiel, o padre depende apenas de si próprio e da sua cons-
ciência. É um guia mais instruído do que o comum dos crentes,
mas sem autoridade especial para fixar o dogma. Mas o que melhor
atesta que esta liberdade de exame, proclamada pelos fundadores
da Reforma, não ficou no estado de afirmação platónica é essa
crescente multiplicidade de seitas de todo o tipo, que contrasta tão
energicamente com a unidade indivisível da Igreja Católica [...]
O Assim, se é verdade que o livre exame, uma vez proclamado,
multiplica os cismas, é preciso acrescentar que os pressupõe e
Z
que deles deriva, dado que, se é reclamado e instituído como um
A EXPLORAÇÃO 81

princípio, é para permitir que cismas latentes ou semideclarados


se desenvolvam mais livremente. Por conseguinte, se o protestan-
tismo atribui um lugar mais importante ao pensamento individual
do que o catolicismo, é porque contém menos crenças e práticas
comuns. Ora uma sociedade religiosa não existe sem um credo
colectivo e é tanto mais una e tanto mais forte quanto mais amplo
for esse credo. Isto porque ela não une os homens pela troca e
pela reciprocidade dos serviços, laço temporal que contém e supõe
mesmo diferenças, mas que ela é incapaz de criar. Só os socializa,
ligando-os todos a um mesmo corpo de doutrina, e socializa-os
tanto melhor quanto mais vasto e mais solidamente constituído for
este corpo de doutrinas. Quantas mais maneiras houver de agir e
de pensar marcadas por um carácter religioso e, por conseguinte,
subtraídas ao livre exame, mais a ideia de Deus estará presente
em todos os pormenores da existência e fará convergir para um só
e mesmo objectivo as vontades individuais. Inversamente, quanto
mais um grupo confessional se abandonar ao julgamento dos par-
ticulares, mais ausente estará das suas vidas, menores serão a sua
coesão e a sua vitalidade. Chegamos, portanto, à conclusão de que
a superioridade do protestantismo do ponto de vista do suicídio
resulta do facto de ele ser uma igreja menos fortemente integrada
do que a Igreja Católica.

b) O resumo
Fazer o resumo de um texto consiste em destacar as suas prin-
cipais ideias e articulações, de modo que faça surgir a unidade do
pensamento do autor. É o objectivo principal das leituras explora-
tórias, sendo, portanto, o resultado normal do trabalho de leitura.
Ouve-se por vezes dizer que há quem tenha espírito de síntese,
como se se tratasse de uma qualidade inata. É, evidentemente,
absurdo. A capacidade para redigir bons resumos é, também
ela, uma questão de formação e de trabalho. A qualidade de um
resumo está directamente ligada à qualidade da leitura que o pre-
cedeu. E, o que é mais importante, o método de realização de um
resumo deveria constituir a sequência lógica do método de leitura.
Será desta forma que iremos aqui proceder.
Tópicos para
Ideias-conteúdo Grelha de leitura
a estrutura do texto
O suicídio está pouco desenvolvido nos países católicos e atinge o seu máximo nos países protestantes.
No entanto, o contexto socioeconómico destes países é diferente; para evitar qualquer erro e especificar o Projecto: precisar a influência
melhor possível a influência destas religiões, é preciso compará-las no seio de uma mesma sociedade. das religiões sobre o suicídio
Quer se comparem entre si os diferentes Estados de um mesmo país (Alemanha), quer as diferentes
Estabelecimento dos factos com
províncias de um mesmo Estado (Baviera), observa-se que os suicídios estão na razão directa do número de
a ajuda de dados estatísticos:
protestantes e na razão inversa do número dos católicos.
o protestantismo é a religião
A Noruega e a Suécia parecem ser excepções. Mas existem demasiadas diferenças entre estes países cujos crentes mais se suicidam
escandinavos e os países da Europa Central para que o protestantismo aí produza os mesmos efeitos.
Se compararmos estes dois países com os que têm o mesmo nível de civilização, a Itália, por exemplo, Falsa excepção
observamos que nos primeiros as pessoas se matam duas vezes mais. Estas duas «excepções» tendem, assim, que confirma a regra
a confirmar a regra.
Primeira explicação possível:
Entre os judeus os suicídios situam-se ao mesmo nível que nos católicos, por vezes abaixo. Os judeus são
o carácter minoritário da religião
minoritários. Nos países protestantes, os católicos também o são. O facto de ser minoritário tem, portanto,
alguma influência.
= explicação insuficiente
O facto de ser minoritário apenas explica uma parte da diferença de influência das religiões sobre o suicídio.
Com efeito, quando os protestantes são minoritários, suicidam-se mais do que os católicos maioritários. Segunda explicação: a natureza
É na natureza dos sistemas religiosos que devemos procurar a explicação, e não nos princípios respeitantes dos sistemas religiosos
ao suicídio, dado que são idênticos.
Diferença importante: o livre
A única diferença é o livre exame. Enquanto o catolicismo dita o dogma e exige uma fé cega, o exame...
protestantismo admite que o indivíduo elabore a sua crença. Isto favorece o individualismo religioso e a
multiplicação das seitas. ... que leva a uma integração
Além de resultar do enfraquecimento das antigas crenças e de dar mais importância ao pensamento mais fraca, o que favorece
individual, o protestantismo conta com menos crenças e práticas comuns para unir os seus membros. É esta o suicídio
falta de integração que faz a diferença e explica o nível mais elevado dos suicídios nos protestantes.
A EXPLORAÇÃO 83

Regressemos então à nossa grelha de leitura e voltemos a ler o


conteúdo da coluna da esquerda, que se refere às ideias do texto.
Postos em sequência, estes nove pequenos textos formam um
resumo fiel do texto de Durkheim. Mas, neste resumo, as ideias
centrais do texto não se distinguem das outras. Qualquer que
seja a sua importância relativa, cada uma beneficia, por assim
dizer, do mesmo estatuto que as suas vizinhas. Além disso, as
articulações que Durkheim estabelece entre elas não aparecem
claramente. Em suma, falta uma estruturação das ideias, impres-
cindível para reconstituir a unidade do pensamento do autor e
a coerência do seu raciocínio. O verdadeiro trabalho de resumo
consiste precisamente em restituir esta unidade, acentuando as
ideias mais importantes e mostrando as principais ligações que
o autor estabelece entre elas.
Para o conseguir, é preciso considerar igualmente o conteúdo
da coluna da direita, onde anotámos explicitamente informações
relativas à importância e à articulação das ideias, como, por
exemplo: «Projecto:...»; «Estabelecimento dos factos»; «Primeira
explicação possível»; etc. Com base nestas indicações, estamos em
condições de distinguir imediatamente as secções do texto onde se
encontram as ideias centrais das que contêm as ideias secundárias,
os dados ilustrativos ou os desenvolvimentos da argumentação.
Além disso, essas ideias podem ser facilmente encontradas e
ordenadas graças ao conteúdo da coluna da esquerda, onde são
retomadas numa forma condensada.
Qualquer um pode fazer este trabalho por si próprio sem
grandes dificuldades, visto que a grelha de leitura fornece os
meios para tanto e obriga, ao mesmo tempo, a assimilar ver-
dadeiramente o texto estudado. Falta apenas redigir o resumo
de forma suficientemente clara para que alguém que não tenha
lido o texto de Durkheim possa ter dele uma boa ideia global
pela simples leitura do resultado do seu trabalho. Mesmo que
não tenha intenção de o comunicar, este esforço de clareza é
importante. Constitui ao mesmo tempo um exercício e um teste
84 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

de compreensão, dado que, se não conseguir tornar o seu texto


compreensível para os outros, é muito provável que ainda não
o seja totalmente para si.
Eis um exemplo de resumo deste texto, redigido no seguimento
do exercício de leitura:

Durkheim analisa a influência das religiões sobre o suicídio. Graças


ao exame de dados estatísticos que se referem principalmente à taxa
de suicídio de diferentes populações europeias de religião protestante
ou católica, chega à conclusão de que, quanto mais fraca é a coesão
religiosa, mais forte é a tendência para o suicídio.
De facto, uma religião fortemente integrada, como o catolicismo,
cujos fiéis partilham numerosas práticas e crenças comuns, protege-os
mais do suicídio do que uma religião fracamente integrada, como o
protestantismo, que dá grande importância ao livre exame.

Uma tal síntese literária pode ser vantajosamente comple-


tada por um esquema que, neste caso, representa as relações
causais que Durkheim estabelece entre os diferentes fenómenos
considerados:

Livre exime —————» Enfraquecimento ——»> Aumento


da coesão da tendência
da religião para o suicídio

Enfraquecimento
das crenças
tradicionais
A EXPLORAÇÃO 85

No fim deste exemplo de trabalho de leitura e de resumo,


damos conta, sem dúvida, mais facilmente do proveito que dele
podemos esperar. É claro que quem leva até ao fim este trabalho
melhora as suas aptidões para a leitura, para a compreensão dos
textos e para a realização de resumos, o que é útil para qual-
quer trabalho intelectual. Mas o mais importante é que, pelo
seu trabalho activo, inscreve profundamente as ideias do texto
no seu espírito. Graças ao resumo, poderá comparar muito mais
facilmente dois textos diferentes e salientar as suas convergências
e as suas divergências. O que lhe parecia uma tarefa impossível
torna-se um trabalho de facto sério, até mesmo difícil, mas, no
fim de contas, acessível.
É claro que o modelo de grelha de leitura apresentado é par-
ticularmente preciso e rigoroso. Exige que se lhe consagre tempo
e, portanto, que os textos não sejam demasiado longos nem
demasiado numerosos. Por conseguinte, em muitos casos devem
poder ser imaginadas outras grelhas de leitura mais flexíveis e mais
adaptadas a cada projecto particular. No entanto, é necessário
desconfiar das falsas economias de tempo. Ler mal 2000 páginas
não serve rigorosamente para nada; ler bem um bom texto de
10 páginas pode ajudar a fazer arrancar verdadeiramente uma
investigação ou um trabalho. Aqui, mais do que em qualquer
outro caso, é verdade que devagar se vai ao longe, e não devemos
deixar-nos iludir pelas intermináveis bibliografias que encontramos
no fim de algumas obras.
Sem dúvida um longo hábito de trabalho intelectual convida
à dispensa de uma grelha de leitura explícita, ainda que os lei-
tores experimentados raramente leiam ao acaso. Quando as suas
leituras se enquadram numa investigação, têm sempre uma ideia
clara dos seus objectivos e lêem, de facto, com método, ainda
que isso não apareça formalmente. Em compensação, estamos
convencidos de que muitos leitores menos formados têm todo
o interesse em modificar os seus hábitos e em ler melhor textos
mais cuidadosamente escolhidos.
86 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Será o método acima apresentado para extractos também


indicado para obras inteiras? Sim, com ligeiras adaptações. Por
um lado, as secções de leitura podem ser muito mais longas
quando o texto está «diluído» e inclui numerosos dados e múl-
tiplos exemplos. Por outro lado, raramente é necessário proceder
a uma leitura sistemática de todos os capítulos do livro. Tendo
em conta os seus objectivos precisos, é muito provável que só
algumas partes tenham de ser aprofundadas e que uma simples
leitura atenta chegue para o resto.
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SIvIDOS SVIONGIO WI OYÍVOILSIANI JA TVANVIA
A EXPLORAÇÃO 89

entrevistas contribuem para descobrir os aspectos a ter em conta,


permitem encontrar novas pistas e alargam ou rectificam o campo
de investigação das leituras. Umas e outras são complementares
e enriquecem-se mutuamente. As leituras dão um enquadramento
às entrevistas exploratórias e estas esclarecem-nos quanto à per-
tinência desse enquadramento. Portanto, a função das entrevistas
exploratórias não é verificar as hipóteses preestabelecidas, mas sim
encontrar ideias para hipóteses susceptíveis de guiar a continuação
do trabalho. Além do mais, permitem economizar perdas inúteis
de energia e de tempo na leitura, na construção de hipóteses e
na observação. Trata-se, de certa forma, de uma primeira volta
à pista, antes de pôr em jogo meios mais importantes.
Por esta razão, é essencial que a entrevista decorra de uma forma
muito aberta e flexível e que o investigador evite fazer perguntas
demasiado numerosas e demasiado precisas, de modo que não
limite a priori os aspectos do problema a ter em consideração.
Bem conduzidas, as entrevistas exploratórias devem levar o inves-
tigador a pôr os seus preconceitos em causa em vez de os apoiar.
A entrevista exploratória é uma ajuda inestimável, em especial
por evitar que o investigador mergulhe sem pensar numa pista
errada, ou negligencie aspectos essenciais do problema, por estar
pouco familiarizado com ele. A entrevista exploratória permite
sempre ganho de tempo e economia de meios. Além disso, e não
é o menor dos seus atractivos, constitui uma das fases mais agra-
dáveis da investigação: a da descoberta, a das ideias que surgem
e dos contactos humanos mais ricos com as pessoas que viveram
concretamente, na sua vida profissional, social ou pessoal, os
fenómenos que a investigação pretende estudar. Estes primeiros
contactos serão bastante úteis mais tarde, podendo, se necessário,
ser mobilizados novamente.
Fase interessante e útil, portanto, mas também muito perigosa,
se O investigador principiante a empreender à laia de turista.
O contacto com o terreno, a expressão do vivido e a aparente
convergência dos discursos (produtos dos estereótipos sociocul-
90 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

turais) levá-lo-ão, muito provavelmente, a acreditar que percebe


tudo muito melhor assim do que com as suas leituras e que as
ideias mais ou menos inconscientes que tinha da questão corres-
pondem de facto àquilo que descobre no terreno. É uma tentação
frequente. Muitos principiantes não lhe resistem, negligenciam as
leituras e orientam o seguimento da sua investigação por impres-
sões semelhantes às de um turista que passou alguns dias num
país estrangeiro. Levado pela ilusão da transparência, afunda-se
na armadilha da confirmação superficial de ideias preconcebidas.
Para desempenharem esta função de ruptura e abertura a
perspectivas de investigação válidas, as entrevistas exploratórias
devem preencher certas condições, que são apresentadas sob a
forma de respostas às três perguntas seguintes:
2,
e Com quem é útil ter uma entrevista?
e Em que consistem as entrevistas e como realizá-las?
e Como explorá-las para que permitam uma verdadeira ruptura
com os preconceitos e abram caminhos de investigação o mais
interessantes possível?

3.1 Com quem é útil ter uma entrevista?


2, 2

Há três categorias de pessoas que podem ser interlocutores


válidos.
e Primeiro, investigadores especializados e peritos no domínio
de investigação implicado pela pergunta de partida. Já evocámos a
sua utilidade a propósito da escolha das leituras. Podem também
ajudar-nos a melhorar o nosso conhecimento do terreno, expondo-
-nos não só os resultados dos seus trabalhos, mas também os
procedimentos que utilizaram, os problemas que encontraram e
os escolhos a evitar. Este tipo de entrevista não exige uma técnica
específica, mas será tanto mais frutuosa quanto mais bem formu-
lada estiver a pergunta de partida, permitindo ao seu interlocu-
A EXPLORAÇÃO 91

tor delimitar com precisão o que lhe interessa. Para aquele cuja
pergunta de partida esteja ainda hesitante, este tipo de entrevista
também pode ajudar a clarificá-la, na condição de o interlocutor
estar disposto a ajudá-lo, o que não é frequente.
e A segunda categoria de interlocutores recomendados para as
entrevistas exploratórias é a das testemunhas privilegiadas. Trata-
-se de pessoas que, pela sua posição, acção ou responsabilidades,
têm um bom conhecimento do problema. Essas testemunhas
podem pertencer ao público sobre que incide o estudo ou ser-
-lhe exteriores, mas muito relacionadas com esse público. Assim,
num estudo sobre os valores dos jovens tanto podemos encontrar
jovens responsáveis por organizações de juventude como adultos
(educadores, docentes, autoridades religiosas ou filosóficas, traba-
lhadores sociais, juízes de menores) cuja actividade profissional os
põe directamente em contacto com os problemas da juventude.
e Finalmente, terceira categoria de interlocutores úteis: os que
constituem o público a que o estudo diz directamente respeito, ou
seja, no exemplo anterior, os próprios jovens. Neste caso é impor-
tante que as entrevistas cubram a diversidade do público envolvido.
As entrevistas com os interlocutores da segunda e da terceira
categorias são as que oferecem os maiores riscos de desvio devido
à ilusão de transparência. Directamente envolvidos na acção,
tanto uns como outros são geralmente levados a explicar as suas
acções, justificando-as. A subjectividade, a falta de distância, a
visão parcelar e parcial são inerentes a este tipo de entrevista.
É indispensável uma boa dose de espírito crítico e um mínimo
de técnica para evitar as armadilhas que encerram.

3.2 Em que consistem as entrevistas e como


realizá-las?
Os fundamentos metodológicos da entrevista exploratória
devem ser procurados principalmente na obra de Carl Rogers
92 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

sobre psicoterapia. Começaremos por dizer algumas palavras


acerca dela, para apreendermos bem os princípios e o espírito
deste método, e depois abordaremos apenas os problemas da sua
aplicação à investigação social.
O que se segue aplica-se principalmente às entrevistas com
as duas últimas categorias de interlocutores acima apresentadas.

a) Os fundamentos do método
2
Rogers é psicoterapeuta. O seu objectivo prático é, portanto,
ajudar as pessoas que se lhe dirigem a resolver os seus problemas
de ordem psicológica. No entanto, o método proposto por Rogers
distancia-se de todos os que atribuem ao terapeuta um papel
mais ou menos importante na análise do problema. Para Rogers,
a análise só pode dar todos os seus frutos se for inteiramente
dirigida pelo próprio paciente. Ao aprender a reconhecer-se a si
próprio por meio da análise das suas dificuldades, ele adquire,
segundo Rogers, uma maturidade e uma autonomia pessoal que
o beneficiam muito para lá do problema mais ou menos especí-
fico pelo qual se dirigiu ao terapeuta. Para atingir este objectivo,
Rogers concebeu e experimentou um método terapêutico centrado
na não-directividade, que o tornou famoso e que aplicou depois
ao ensino.
O princípio deste processo consiste em deixar ao paciente
a escolha do tema das entrevistas, tal como o domínio do seu
desenvolvimento. A tarefa do terapeuta ou do «ajudante» não é,
no entanto, simples.
Consiste esta em ajudar o paciente a aceder a um melhor conhe-
cimento e a uma melhor aceitação de si próprio, funcionando de
certa forma como um espelho que lhe reenvia sem parar a sua
própria imagem e lhe permite, assim, aprofundá-la e assumi-la.
Este método é explicado de forma muito pormenorizada por
Rogers em La relation d'aide et la psychothérapie (Paris, ESE,
1980, [1942]). Esta versão francesa apresenta-se em dois volu-
A EXPLORAÇÃO 93

mes. O primeiro descreve o método e o segundo apresenta uma


aplicação real deste com o exame sistemático das intervenções do
ajudante e do seu paciente.
Depois da de Rogers, foram publicadas numerosas obras
sobre a entrevista de ajuda, tentando cada autor trazer um ou
outro melhoramento sugerido pela sua prática ou adaptar o
método a campos de análise e de intervenção mais vastos. No
entanto, referem-se todos explícita ou implicitamente a Rogers
e ao próprio fundamento do seu processo: a não-directividade.
Contudo, e paradoxalmente, é este princípio que constitui tanto
o interesse como a ambiguidade da utilização deste método em
investigação social.

b) A aplicação em investigação social


No seu livro Orientation non-directive en psychothérapie et
en psychologie sociale (Paris, Dunod, 1970, p. 112), Max Pagês
explica-a da seguinte forma: «a contradição entre a orientação
não directiva e o emprego de entrevistas não directivas como
instrumento de investigação social [...] É fácil revelá-la. Num
caso, o objectivo da entrevista é fixado pelo próprio paciente e o
terapeuta não procura influenciá-lo. No outro, é o entrevistador
que fixa o objectivo, seja ele qual for: fornecer informações a
um determinado grupo, cooperar numa investigação, favorecer
o desenvolvimento comercial de uma empresa, a propaganda de
um governo, etc.»
Neste sentido, nunca podemos dizer que as entrevistas explorató-
rias em investigação social são rigorosamente não directivas e que
o entrevistador é absolutamente neutro. Com efeito, a entrevista é
sempre pedida pelo investigador, e não pelo interlocutor. Refere-se
mais ou menos directamente ao tema imposto pelo investigador,
e não àquilo de que o interlocutor deseja falar. Por fim, o seu
objectivo está ligado aos objectivos da investigação, e não ao
desenvolvimento pessoal da pessoa entrevistada. Tudo isto soma
94 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

muitas diferenças, e não são pequenas. É por isso que se fala cada
vez mais de entrevista semidirectiva ou semiestruturada.
No entanto, e sem se iludir quanto ao carácter não directivo das
entrevistas exploratórias que solicita, o investigador em ciências
sociais pode, com grande proveito, inspirar-se em certas caracte-
rísticas fundamentais do método de Rogers e, sob alguns pontos
de vista, copiar o comportamento do psicoterapeuta não directivo.
De facto, à parte evitar que o seu interlocutor fale durante muito
tempo sobre assuntos que não têm nenhuma relação com o tema
inicialmente previsto, esforçar-se-á por adoptar uma atitude tão
pouco directiva e tão facilitadora quanto possível. Na prática, os
principais traços desta atitude são os seguintes:
1. O entrevistador deve esforçar-se por fazer o menor número
possível de perguntas. A entrevista não é um interrogatório nem
um inquérito por questionário. O excesso de perguntas conduz
sempre ao mesmo resultado: o entrevistado depressa adquire
a impressão de que lhe é simplesmente pedido que responda a
uma série de perguntas precisas e dispensar-se-á de comunicar
o mais fundo do seu pensamento e da sua experiência. As res-
postas tornar-se-ão cada vez mais breves e menos interessantes.
Depois de ter sumariamente respondido à anterior, esperará
pura e simplesmente a seguinte como se esperasse uma nova
instrução. Uma breve exposição introdutória acerca dos objec-
tivos da entrevista e do que dela se espera basta geralmente
para lhe dar o tom geral da conversa, livre e muito aberta;
2. Na medida em que um mínimo de intervenções é, contudo,
necessário para reconduzir a entrevista aos seus objectivos,
para recuperar a sua dinâmica ou para incitar o entrevistado
a aprofundar certos aspectos particularmente importantes do
tema abordado, o entrevistador deve esforçar-se por formular
as suas intervenções da forma mais aberta possível. Ao longo
das entrevistas exploratórias é importante que o entrevistado
possa exprimir a própria «realidade» na sua linguagem, com
os seus próprios quadros de referência. Com intervenções
A EXPLORAÇÃO 95

demasiado precisas e autoritárias, o entrevistador impõe as


suas categorias mentais. A entrevista deixa então de cum-
prir a sua função exploratória, dado que o interlocutor já
não tem outra escolha senão responder no interior dessas
categorias, ou seja, confirmar ou infirmar as ideias em que
o investigador já tinha previamente pensado. Com efeito, é
raro o interlocutor rejeitar a forma como o problema lhe
é proposto, seja porque nele reflecte pela primeira vez, seja
porque fica impressionado com o estatuto do investigador ou
com a situação de entrevista.
A fortiori, o entrevistador deve abster-se de se implicar no
conteúdo da entrevista, nomeadamente envolvendo-se em
debates de ideias ou tomando posição sobre afirmações do
entrevistado. Mesmo a aquiescência deve ser evitada, dado
que, se o interlocutor se habitua a ela e lhe toma o gosto,
interpretará depois qualquer atitude de reserva como um sinal
de desaprovação.
Em suma, as principais características da atitude a adoptar no
decorrer de uma entrevista exploratória são as seguintes (neste
ponto, como nos que se seguem, baseamo-nos sobretudo em
D. Ruquoy, «Situation d'entretien et stratégie de Pinterviewer»,
in Albarello et al., Pratiques et méthodes de recherche en scien-
ces sociales, Paris, Armand Colin, 1995, pp. 59-82):

e Adoptar uma atitude neutra atenciosa;


e Ser o menos directivo possível, esforçando-se, assim, por
fazer o menor número de perguntas possível, assegurando
a prossecução dos objectivos da entrevista;
e Reconhecer a competência real do entrevistado, mostrando-
-lhe que pretende aprender com ele, deixando-o ser o mestre
das suas escolhas e das suas palavras, em suma, colocá-lo
numa «posição mais elevada» (a este respeito, ver P. Grell,
«Les récits de vie», in D. Desmarais e P. Grell (dir.), Les
Récits de vie. Théorie, méthode et trajectoires types, Mon-
tréal, Edições Saint-Martin, 1986, pp. 151-176);
96 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

e Aceitar incondicionalmente as suas afirmações como uma


percepção legítima dos problemas e das situações estudadas,
sem lhe impor as categorias mentais do entrevistador nem
entrar num debate de ideias com ele.

Mais adiante, veremos como concretizar estes princípios gerais


da entrevista exploratória.

c) O contexto da entrevista
O contexto em que a entrevista decorre pode influenciar con-
sideravelmente o seu desenrolar e o seu conteúdo.
O contexto espaciotemporal deve favorecer a expressão do
entrevistado, o que pressupõe que seja o mais adequado ao tema
em estudo e obedeça a algumas exigências técnicas como o iso-
lamento, a calma e a discrição, de modo que o entrevistado se
sinta confortável. O momento da entrevista deve ser escolhido
com cuidado para que não falte tempo. É importante informar
o entrevistado sobre estes aspectos e avisá-lo sobre a provável
duração da entrevista, para evitar ser interrompido por visitas
indesejáveis e telefonemas, e apressar as coisas por falta de tempo.
Uma entrevista exploratória dura facilmente uma hora, muitas
vezes até mais, e não é invulgar que, apaixonado pelo assunto e
sentindo-se à vontade com o entrevistador, o entrevistado aceite
ou manifeste o seu desejo de a prolongar além do limite combi-
nado à partida.
Também muito importante é a relação social entre entrevista-
dor e entrevistado. As diferenças quanto à classe social (se um
pertencer à burguesia e outro a uma classe popular), de estatuto
hierárquico e de função (por exemplo, se um for estudante de
Gestão e o outro o director de uma grande empresa), de género
(se um for homem e o outro mulher e entres eles se estabelecer
uma atracção, mútua ou de sentido único), de idade (se um for
jovem e o outro mais velho), de convicção filosófica (se um for um
crente muito fervoroso e outro for militante da laicidade), quando
A EXPLORAÇÃO 97

são grandes, afectam a relação de entrevista com consequências


potencialmente determinantes como, entre outras, a autocensura
do entrevistado ou, pelo contrário, a sua vontade de mostrar com
condescendência a sua vida pessoal, ser mais discreto ou querer
dar uma lição ao entrevistador. Tendo em conta o que estes parã-
metros possam induzir, o investigador deve manter-se lúcido e
esforçar-se por proporcionar ao entrevistado uma atitude de escuta
serena e de neutralidade atenciosa, favorável a um ambiente de
trabalho baseado na confiança e na honestidade. Quanto maior
for a diferença entre o entrevistador e o entrevistado, melhor
devem explicitar as respectivas ideias, de forma que sejam bem
compreendidos (Ruquoy, op. cit., pp. 70-71).
Última dimensão do contexto a ter em conta: a entrevista
representa uma interacção fora do comum e muito específica que
necessita de criar um modo de comunicação adaptado no qual
o entrevistado se sinta à vontade. Neste ponto, pôem-se duas
questões práticas: gravar e tomar notas.
À gravação das entrevistas é indispensável. Sem isso, o entre-
vistador rapidamente perderia a maior parte do seu conteúdo
e não teria cabeça para as conduzir correctamente, com toda a
concentração que é necessária. Um pequeno gravador impres-
siona pouco os entrevistados, que, após alguns minutos, deixam
de lhe prestar atenção. É claro que a gravação está subordinada
à autorização prévia dos interlocutores. Mas esta é geralmente
dada sem reticências quando os objectivos da entrevista são cla-
ramente apresentados e o entrevistador se compromete, primeiro,
a respeitar o seu anonimato, segundo, a conservar ele próprio
as fitas magnéticas e, terceiro, a apagar as gravações logo que
tenham sido analisadas.
Tomar sistematicamente notas durante a entrevista parece-nos,
pelo contrário, ser de evitar tanto quanto possível. Distraem não
só o entrevistador, como o entrevistado, que não pode deixar de
considerar a intensidade da anotação como um indicador do inte-
resse que o interlocutor atribui às suas palavras. Pelo contrário,
98 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

é muito útil e não apresenta inconvenientes anotar, de tempos a


tempos, algumas palavras destinadas simplesmente a estruturar
a entrevista: pontos a esclarecer, questões a que é preciso voltar,
temas que falta tratar, etc.

d) O primeiro contacto
A primeira dificuldade que o investigador encontra é convencer
os potenciais entrevistados a aceitar participar na entrevista e ven-
cer as suas eventuais reticências. Como vimos no ponto anterior,
a distância cultural e social entre investigador e entrevistado pode
constituir logo de início um obstáculo difícil de ultrapassar. Se
a pessoa recusar a entrevista, será sempre útil averiguar as suas
razões, que podem ter origem em diversos registos: antipatia ou
desconfiança para com o entrevistador, desinteresse pelo tema ou
receios a seu respeito, rumores que circulam no seu meio acerca
da pesquisa iniciada pelo investigador... Estas indicações podem
revelar-se preciosas para o seguimento do trabalho, tanto para o
êxito dos processos metodológicos posteriores (nomeadamente,
as entrevistas seguintes) como para o conteúdo do próprio tra-
balho. Com efeito, as reacções das pessoas solicitadas podem
revelar aspectos interessantes e significativos acerca dos fenóme-
nos estudados, por exemplo, sobre as representações dos actores
envolvidos ou sobre as tensões existentes entre eles (Ruquoy, op.
cit., pp. 73-76).
Para ser convincente, o próprio entrevistador tem de acreditar
no estudo que está a conduzir e demonstrá-lo. Deve apresentar
as razões para a escolha daquela pessoa entre os entrevistados e
explicar em que é que o seu contributo é particularmente valioso.
Também deve especificar o uso que será dado aos resultados e
responder a eventuais questões e objecções do seu interlocutor.
De facto, as pessoas entrevistadas têm todo o direito a sentirem-
-se reticentes e a receber explicações claras e honestas sobre a
investigação em curso. Por fim, o entrevistador tem de pedir
A EXPLORAÇÃO 99

autorização para gravar a entrevista, explicitando o uso que será


feito desse registo. Em suma, deve criar um clima de confiança.
O investigador aumentará as suas hipóteses de ser bem-sucedido
se preparar as suas explicações cuidadosamente e se souber
apresentar-se e comportar-se de forma a mostrar a sua imparcia-
lidade e o seu respeito pelo potencial entrevistado (em especial,
sendo pontual e recebendo correctamente a pessoa, caso a entre-
vista decorra no seu próprio gabinete; Ruquoy, op. cit., p. 76).

e) A condução da entrevista
Depois de ter apreendido bem os princípios e os objectivos da
entrevista exploratória e de ter conseguido convencer o poten-
cial entrevistado a aceitá-la, resta passar à acção. Antes disso,
o entrevistador já deverá ter elaborado um guião da entrevista,
retomando, não as perguntas concretas — já vimos porquê —,
mas apenas o conjunto dos pontos a abordar. Estes pontos não
devem ser abordados numa ordem preestabelecida, porque, em
grande parte, será a pessoa entrevistada a conduzir a sua própria
entrevista. No decorrer do seu discurso, falará espontaneamente
sobre alguns pontos sem que o entrevistador tenha de lhos per-
guntar. O guião da entrevista é essencialmente um memorando,
para que, de vez em quando, o entrevistador possa verificar que
pontos estão ainda por abordar (Ruquoy, op. cit., pp. 76-78).
Como é preciso começar por uma primeira pergunta, esta será
sobre o tema e/ou a situação da pessoa entrevistada. Exigirá desde
logo uma «resposta» de carácter narrativo e/ou que implique
algum desenvolvimento. Por exemplo:
— «Poderá falar-me da sua função nesta associação (ou empresa
ou instituição)?»
— «Em que consiste o seu trabalho? Como decorre a colaboração
com os seus colegas?»
— «Quando é que se confrontou pela primeira vez com este ou
aquele problema? Poderá explicar-me o que aconteceu?»
100 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

— «Quando a câmara municipal tomou esta decisão, quais foram


as reacções no seu bairro?»

A pergunta inicial determina o seguimento da entrevista e dá


o tom. A partir dela, o entrevistado perceberá se esperam que
fale sobretudo das suas acções concretas ou das suas ideias, do
modo como uma situação pode ser objectivamente descrita ou do
modo como é subjectivamente vivida pelos que a experimentaram
(Ruquoy, op. cit., p. 78).
Logo que se inicia a entrevista, as intervenções que o entrevis-
tador fizer a seguir deverão ser de modo a facilitar a livre expres-
são do entrevistado. Por esta razão designam-se frequentemente
por «empurrões»:

— «Se bem percebo, quer dizer que...» ou «O que quer dizer


exactamente com...» (para incentivar o entrevistado a especificar
uma ideia);
— «Hum... sim...» (para manifestar a atenção e o interesse pelo
que diz o entrevistado e para o incentivar a prosseguir);
— «Dizia há pouco que..., pode especificar?» (para retomar um
ponto que merece ser aprofundado);
— «Referiu a existência de dois aspectos deste problema. Desen-
volveu o primeiro. Qual é o segundo?» (para voltar a um
«esquecimento», voluntário ou não);
— «Ainda não falámos de...; pode dizer-me como vê...? (para
abordar um outro aspecto do assunto).

Na mesma ordem de ideias, não devem temer-se os silêncios.


Estes assustam sempre o entrevistador principiante, para o qual
alguns segundos parecem uma eternidade. Algumas pequenas
pausas na entrevista podem permitir ao entrevistado reflectir mais
calmamente, reunir as suas recordações, dominar uma emoção e,
sobretudo, perceber que dispõe de uma importante margem de
liberdade. Querer freneticamente preencher o mais pequeno silên-
cio é um reflexo de medo e uma tentação tão frequente como
2
A EXPLORAÇÃO 101

perigosa, pois incita a multiplicar as perguntas e a abafar a livre


expressão. Estes silêncios não são vazios e passam-se muitas coisas
na cabeça da pessoa que interrogamos, sobretudo se o tema a
afecta de perto e de forma íntima. Muitas vezes hesita em dizer
mais. Encoraje-a então com um sorriso, ou qualquer outra atitude
muito receptiva, porque o que ela dirá pode ser fundamental
(Ruquoy, op. cit. p. 79).
Os silêncios também são uma oportunidade para o próprio
investigador reflectir sobre o que acabou de ouvir, para fazer
a si próprio as perguntas certas e para pensar numa ou noutra
hipótese que tentará testar na sequência de perguntas posteriores,
como as que se seguem:
— «Se eu resumisse o seu ponto de vista, diria que... Percebi bem?»
— «Parece-me que há pouco dizia uma coisa diferente da que
afirma agora sobre este assunto. Não percebi. Não haverá aí
uma contradição?»
— «Há qualquer coisa que me está a escapar na sua análise,
nomeadamente... Poderia elucidar-me?»
— «Verifico que a sua análise é bastante coincidente com a de um
determinado tipo de actor, mas que se opõe também fortemente
à de um outro. Tem alguma explicação para isso?»

Conforme se aproxima o fim da entrevista, o investigador deve


consultar o seu guião para verificar se os pontos importantes foram
todos abordados. Deve igualmente interrogar-se se o entrevistado
terá conseguido exprimir-se como desejava e, se tiver a sensação
de que não foi esse o caso, deve redobrar a sua inventividade
para que ele o possa fazer.
Se o investigador precisa de informações factuais mais concretas
ou mais pessoais, por exemplo, sobre a idade do entrevistado, as
suas práticas religiosas, os seus rendimentos, as suas convicções
íntimas ou a sua vida privada, será melhor fazer as perguntas
necessárias no final da entrevista, pois feitas no início podem pare-
cer intrusivas e constrangedoras, ou até bloquear o entrevistado.
102 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Já no final da entrevista, é um bom hábito perguntar ao entre-


vistado se ele recorda algum aspecto do problema ou alguma
informação que não tenha sido abordada. Depois de agradecer,
se necessário, pode igualmente perguntar-lhe se aceitaria, em caso
de necessidade, um segundo encontro numa fase mais avançada
da investigação (Ruquoy, op. cit., pp. 80-81).

f) A aprendizagem da entrevista exploratória


A aprendizagem da técnica da entrevista exploratória deve,
com efeito, passar obrigatoriamente pela experiência concreta. Se
é sua intenção utilizar esta técnica e nela adquirir formação, a
melhor maneira é analisar de forma minuciosa as suas primeiras
entrevistas, de preferência com alguns colegas, que terão sobre
o seu trabalho um olhar menos parcial do que o seu. Eis uma
forma de proceder a esta auto-avaliação:
e Oiça a gravação e interrompa-a após cada uma das suas inter-
venções.
e Analise cada intervenção: era indispensável? Não terá inter-
rompido o seu interlocutor sem nenhum motivo importante
quando este estava bastante animado com a entrevista? Não
terá procurado pôr termo um pouco depressa de mais a um
silêncio de apenas alguns segundos?
e Depois de ter discutido cada intervenção, prossiga a audição
da gravação para examinar a forma como o seu interlocutor
reagiu a cada uma das suas intervenções. Terão estas contribuído
para ele aprofundar as suas reflexões ou o seu testemunho,
ou levaram, pelo contrário, a uma resposta curta e técnica?
As suas intervenções não terão suscitado um debate de ideias
entre o seu interlocutor e você mesmo e, assim, comprometido
as hipóteses de uma reflexão e de um testemunho autênticos
da parte do seu interlocutor?
e No fim da audição, avalie o seu comportamento geral. As suas
intervenções não terão sido demasiado frequentes ou dema-
A EXPLORAÇÃO 103

siado estruturantes? Fica com a impressão de uma entrevista


flexível, aberta e rica de conteúdo? Qual é, finalmente, o seu
balanço global e quais são, na prática, os pontos fracos que
é preciso corrigir?

Depressa observará que o mesmo comportamento da sua parte


perante interlocutores diferentes não conduz forçosamente ao
mesmo resultado. O êxito de uma entrevista depende da maneira
como funciona a interacção entre os dois parceiros. Num dia,
o seu interlocutor será muito reservado; no dia seguinte será
particularmente falador e ser-lhe-á muitíssimo difícil impedi-lo
de falar sobre tudo e mais alguma coisa. Noutro dia, terá muita
sorte e, talvez sem razão, pensará que a entrevista exploratória é
uma técnica que domina bem. Seja como for, não se apresse
a atribuir ao seu interlocutor a responsabilidade do êxito ou do
fracasso da entrevista.
As recomendações anteriores são regras gerais que deve esforçar-
-se por respeitar. Mas cada entrevista não deixa por isso de ser
um caso específico e, enquanto decorre, o entrevistador deve
adaptar o seu comportamento com flexibilidade e pertinência.
Só a prática pode trazer o «faro» e a sensibilidade que fazem o
bom entrevistador. Por fim, deve sublinhar-se que uma atitude de
bloqueamento sistemático ou selectivo por parte do seu interlo-
cutor constitui com frequência, em si mesma, uma indicação que
deve ser interpretada como tal.

3.3 A exploração das entrevistas exploratórias


Devem ser aqui tidos em consideração três pontos de vista:
o discurso enquanto fonte de informação, o discurso enquanto
processo e o discurso enquanto interacção.
104 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

a) O discurso enquanto fonte de informação


As entrevistas exploratórias não têm como função verificar
hipóteses nem recolher ou analisar dados específicos, mas sim abrir
pistas de reflexão, alargar e precisar os horizontes de leitura, tomar
consciência das dimensões e dos aspectos de um dado problema,
nos quais o investigador não teria decerto pensado espontanea-
mente com base no conhecimento e nas representações que os
intervenientes têm dos fenómenos estudados. Permitem também
não nos lançarmos em falsos problemas, produtos inconscientes
dos nossos pressupostos e prenoções. As divergências de pontos de
vista entre os interlocutores são sempre interessantes e fáceis
de detectar. Podem fazer surgir questões insuspeitadas no início
e, portanto, ajudar o investigador a alargar o seu horizonte e a
equacionar o problema da forma mais correcta possível. As diver-
gências e contradições impõem-se-nos como dados objectivos. Não
somos nós que as inventamos.
Por conseguinte, compreender-se-á que a exploração das entre-
vistas exploratórias possa ser conduzida de forma muito aberta,
sem utilização de uma grelha de análise precisa. A melhor forma
de actuar é, sem dúvida, ouvir repetidamente as gravações, umas
após outras, anotar as pistas e as ideias, pôr em evidência as con-
tradições internas e as divergências de pontos de vista e reflectir
sobre o que podem revelar. Ao longo deste trabalho é preciso estar
atento ao mais pequeno pormenor que, relacionado com outros,
possa revelar aspectos ocultos, mas importantes, do problema.

b) O discurso enquanto processo


À entrevista não directiva visa levar o interlocutor a exprimir
a sua vivência ou a percepção que tem do problema que interessa
ao investigador. Este deve tentar perceber tão minuciosamente
quanto possível as representações dos entrevistados, assim como
os meandros das suas acções e comportamentos. Muitas vezes,
é a primeira vez que é levado a exprimir-se acerca desse assunto.
A EXPLORAÇÃO 105

Terá, portanto, de reflectir, de reunir as suas ideias, de as pôr em


ordem e de encontrar as palavras (mais ou menos) adequadas
para, finalmente, exprimir o seu ponto de vista. Há quem consiga
fazê-lo com bastante facilidade, por estar habituado a este tipo
de exercício; para outros será mais difícil. Começarão frases que
ficarão incompletas por múltiplas razões: falta de vocabulário,
pontos de vista contraditórios que se confrontam no seu espírito,
informações cuja revelação julgam ser perigosa, a sensação de
que o entrevistador não vai compreender ou que reagirá nega-
tivamente, etc. Neste caso, a resposta será caótica, desconexa e,
por vezes, marcada por viragens que a lógica tem dificuldade em
seguir, mas que podem ser reveladoras. Isto leva-nos a considerar
a comunicação resultante da entrevista como um processo (mais
ou menos penoso) de elaboração de um pensamento e não como
um simples dado.
«O discurso não é a transposição transparente de opiniões, de
atitudes, de representações existentes de maneira acabada antes
de a linguagem lhes dar forma. O discurso não é um produto
acabado, mas sim um momento num processo de elaboração,
com tudo o que isso implica de contradições, incoerências e
lacunas. O locutor exprime-se com toda a sua ambivalência, os
seus conflitos, a incoerência do seu inconsciente, mas, na presença
de um terceiro, a sua palavra deve submeter-se à exigência da
lógica socializada. Torna-se discurso “melhor ou pior”» (L. Bardin,
L' Analyse de contenu, Paris, PUF, Coll. Quadrigue, 2007, p. 224.)
Existem métodos de análise de conteúdo especialmente concebi-
dos para o exame do discurso enquanto processo, nomeadamente
a «análise da enunciação» proposta por M.-C. d”Unrug (Analyse
de contenu, Paris, Delarge, 1975; igualmente apresentado em L.
Bardin, op. cit., pp. 223-242). Tem a vantagem de ser bem adap-
tada à entrevista exploratória, ser flexível e acessível sem o apoio
de formação específica. A maioria dos leitores poderá, no entanto,
limitar-se a interrogar-se sobre o que revelam as repetições e as
transformações observadas na forma das respostas: mudanças de
106 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

estilo, de humor ou de tom, regresso constante às mesmas ideias,


quase obsessivas, contradições entre fases diferentes do discurso,
etc. Na impossibilidade de obter informações seguras, o investi-
gador poderá tomar nota do que o surpreende e daí retirar as
perguntas adequadas para o seguimento do seu trabalho.

c) O discurso enquanto interacção


Este processo do discurso desenvolve-se por meio da interacção
entre duas pessoas: o entrevistado e o investigador. Este último
não é um elemento neutro, que grava as palavras do seu inter-
locutor como se fosse uma máquina. Se o entrevistado estivesse
perante outro investigador, com uma personalidade diferente e
outras reacções, o seu discurso não seria o mesmo. Ainda que
tente manter-se tão respeitador e neutro quanto possível, o inves-
tigador que conduz a entrevista continua, fundamentalmente, a ser
parte interessada. Fará o seu melhor para que a entrevista decorra
numa atmosfera agradável, chegue ao fim e lhe permita avançar
no seu próprio projecto de investigação. Ao longo da entrevista,
ao ouvir o seu interlocutor, faz novas perguntas a si próprio,
elabora mentalmente outras hipóteses, equaciona pistas em que
não pensara antes, procura saber a opinião do entrevistado e
atraí-lo para os temas que lhe parecem mais fecundos para a sua
própria investigação.
O entrevistado retribui ao tentar desviar a conversa para o seu
próprio terreno, aquele em que se sente mais à vontade e até mais
valorizado. Por vezes, tenta agradar ao investigador dizendo-lhe
aquilo que acredita que ele gostaria de ouvir, ou então, em busca
de alguma compreensão para os seus problemas pessoais, pode
comportar-se como se o investigador fosse um ouvinte atencioso
a quem pode confiar a sua angústia. Ou, por último, sentindo-
-se numa posição de força, o entrevistado também pode tentar
«impor-se» ao seu interlocutor, impressioná-lo e puxá-lo para as
suas próprias convicções e interesses.
A EXPLORAÇÃO 107

Uma entrevista de inquérito é um processo de interacção com-


plexo. Muitas vezes, por detrás da aparência de uma conversa
amigável, decorre entre os dois interlocutores uma partida rica de
jogos de influência e de poder, de sedução e antipatia, de desejos
e medos, de mal-entendidos, também.
Na prática, significa que o investigador não pode analisar o
conteúdo e o desenrolar de uma entrevista sem descodificar o
que estava em jogo e o que se passou na sua interacção com o
entrevistado. Para ser honesto com os outros, tem de ser honesto
consigo próprio. E é sem dúvida aqui que o trabalho de equipa
adquire todo o interesse, porque os colegas, melhor que o próprio
entrevistador, podem apreender, com o distanciamento necessário,
o que estava em jogo numa interacção na qual eles próprios não
estavam envolvidos, daí retirando conhecimentos valiosos sobre
o próprio objectivo da investigação.
No entanto, é necessário ter presente que, na fase explo-
ratória de uma investigação, a análise de conteúdo tem uma
função essencialmente heurística, isto é, serve para a descoberta
de ideias e de pistas de trabalho (que virão a ser concretizadas
pelas hipóteses). Ajuda o investigador a evitar as armadilhas da
ilusão de transparência e a descobrir o que se diz por detrás
das palavras, nas entrelinhas e para lá dos estereótipos. Permite
ultrapassar, pelo menos em certa medida, a subjectividade das
nossas interpretações.
Nem todas as investigações exploratórias necessitam de uma
análise de conteúdo, longe disso. Para mais, não há nenhum
método de análise de conteúdo adequado a todos os tipos de
investigação. Dependendo do objecto de estudo, a entrevista
produzirá discursos ou comunicações cujos conteúdos podem
ser de tal modo diferentes que a sua exploração exigirá métodos
igualmente diferentes. O essencial aqui é não esquecer que pro-
pomos as entrevistas como meio de ruptura e como recurso para
construir a problemática da investigação, mas que estas também
podem conduzir ao reforço dos preconceitos, se forem efectuadas
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A EXPLORAÇÃO 109

4. O PAPEL DOS MÉTODOS EXPLORATÓRIOS


NO PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO
A leitura e a entrevista exploratória são os dois principais
dispositivos preliminares. No esquema clássico do processo de
investigação, devem preceder as etapas dedicadas à investigação
mais aprofundada e sistemática do objectivo da investigação.
Trata-se, com efeito, de não se precipitar na execução das etapas
seguintes, como a escolha de uma amostra, a aplicação de um
dispositivo metodológico mais complexo e a recolha de um mate-
rial empírico claramente mais importante. Com alguns métodos,
como, por exemplo, o inquérito por questionário, logo que o
dispositivo é iniciado, torna-se impossível voltar atrás e os erros
e esquecimentos pagam-se caro.
A abordagem que consiste em distinguir claramente a fase
exploratória das etapas seguintes da investigação e associar-lhe
leituras e entrevistas deve ser matizada em dois pontos.

4.1 Métodos exploratórios complementares


Na prática, é raro as entrevistas exploratórias não serem
acompanhadas por um trabalho de observação ou de análise de
documentos. Por exemplo, por ocasião de um trabalho sobre a
situação dos museus: em Bruxelas e na Valónia, um de nós teve
de se encontrar com vários conservadores. Como as entrevistas
decorriam geralmente nos próprios museus, não lhe faltou, evi-
110 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

dentemente, ensejo de os visitar e, por vezes, de lá voltar para se


dar conta pessoalmente da respectiva atmosfera, da sua concepção
didáctica ou da maneira como os visitantes lá se comportavam.
Além disso, os seus interlocutores entregavam-lhe quase sempre
um ou outro documento sobre os seus próprios museus ou sobre
os problemas gerais que os preocupavam.
Resumindo: entrevistas, observações e consultas de documentos
diversos coexistem muitas vezes durante o trabalho exploratório.
Nos três casos, os princípios metodológicos são fundamental-
mente os mesmos: deixar correr o olhar sem se fixar só numa
pista, escutar tudo em redor sem se contentar só com uma men-
sagem, apreender os ambientes e, finalmente, procurar discernir
as dimensões essenciais do problema estudado, as suas facetas
mais reveladoras e, em seguida, os modos de abordagem mais
esclarecedores. A exploração deste trabalho consiste então em
ler e reler estas notas para retirar as pistas de investigação mais
interessantes.
Regressaremos a estes métodos de observação mais adiante.
O interesse de conjugar vários métodos está em estabelecer ligações
entre os factos ou as afirmações que cada um fornece e cruzá-los
com o objectivo de evidenciar as perspectivas de investigação
mais valiosas.

4.2 Continuidade entre a fase exploratória e as


etapas seguintes
Num processo dedutivo, como o que aqui apresentamos, a
exploração constitui uma etapa em si, com um conteúdo subs-
tancial que não devemos economizar, sobretudo quando a seguir
se pretende aplicar um dispositivo de investigação em que é difi-
cil voltar atrás, por exemplo, se for apoiado num inquérito por
questionário.
A EXPLORAÇÃO 111

Num procedimento indutivo, esta etapa tende a limitar-se ao


mínimo dos mínimos (algumas leituras prévias, um esboço de
amostragem, algumas entrevistas à laia de testes...), de modo que
o investigador entre o mais rapidamente possível no cerne do seu
trabalho. Evidentemente, esta opção é menos problemática quando
o dispositivo metodológico é flexível e reversível, como é o caso,
por exemplo, da entrevista compreensiva, tal como concebida por
].-C. Kaufmann (V'Entretien compréhensif, Paris, Nathan, 1996,
pp. 38-39). É por isso que este autor sugere que não se prolongue
demasiado a fase exploratória.
A investigação de Howard Becker sobre os músicos de jazz e
os fumadores de marijuana (Outsiders, Études de sociologie de la
déviance, Paris, Métaillié, 1985) é um exemplo clássico de processo
indutivo, em que não há uma fase exploratória propriamente dita.
Becker aplica aqui o que apelida de indução analítica (p. 67). Este
método consiste em formular, após algumas entrevistas individuais,
uma hipótese capaz de explicar os fenómenos observados (por
exemplo, as mudanças que ocorrem na experiência dos fumadores
novatos e que os leva ou não a continuar a fumar). Cada vez
que um caso novo, surgido numa nova entrevista, não confirma a
hipótese, Becker reformula-a para que ela concorde com esse novo
caso problemático. Assim, há um ir e vir constante entre o traba-
lho empírico (as entrevistas) e o trabalho teórico (as hipóteses).
Contudo, outros autores, que optam igualmente por um pro-
cedimento indutivo (nomeadamente R. Sauvayre, Les Méthodes
d'entretien en sciences sociales, Paris, Dunod, 2013) insistem na
importância das entrevistas exploratórias por diversas razões: a
necessária familiarização com o terreno, o treino na prática da
entrevista, o teste das pistas de investigação, a elaboração pro-
gressiva da problemática...
Regressaremos mais tarde a estes cenários de investigação não
linear, que exemplificaremos na segunda aplicação concreta, no
final do livro.
112 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

A decisão de atribuir, ou não, um lugar de destaque à explo-


ração depende, para uma grande maioria, da experiência do
investigador. No momento em que inicia uma nova pesquisa, um
investigador experiente parte de um patamar muito diferente do
de um principiante; domina na perfeição um conjunto de recursos
teóricos, leu muitíssimo ao longo da sua carreira, já fez cente-
nas de entrevistas... Tem, como se costuma dizer, «calo», o que,
eventualmente, lhe permite dispensar com maior facilidade uma
etapa exploratória consistente. Ora, o mesmo não se aplica a um
investigador principiante, que inicia a sua investigação comple-
tamente desarmado. Não é demais aconselhá-lo a ser prudente,
a informar-se correctamente, a ter um primeiro contacto com o
terreno, se de início o conhecer mal, a proceder a uma primeira
avaliação, a reflectir sobre a sua problemática e a avaliar esta
experiência antes de comprometer mais ainda todos os seus
esforços e recursos nesta aventura, e talvez lhe evite ir logo para
a frente de batalha.
Por fim, as informações da fase exploratória podem ser
determinantes para a escolha dos métodos de recolha e análise
das informações postos em prática nas etapas seguintes. Com
efeito, em muitos casos, uma exploração prévia do assunto evita
optar apressadamente e em exclusivo por um método como a
entrevista compreensiva, por exemplo, que pode não ser forço-
samente a mais adequada nem suficiente por si só (ver a quinta
e a sexta etapas).
Em suma, num manual de formação, por razões pedagógicas
e práticas, preferimos ater-nos a uma espécie de «classicismo
metodológico», que implica a distinção clara entre as diferen-
tes etapas e a insistência na importância de não atamancar
a fase exploratória. Somente depois de aprender a dominar
as diferentes etapas e as regras de base é que o investigador
poderá, por sua conta e risco, tomar uma maior liberdade em
relação a elas.
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TERCEIRA ETAPA

A PROBLEMÁTICA
AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO

Etapa 1 — A pergunta de partida

Etapa 2 — A exploração

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As entrevistas
As leituras
-« exploratórias

Etapa 4 — A construção do modelo de análise


Etapa 5 — A observação
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Etapa 6 — A análise das informações


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Etapa 7 — As conclusões
1. OBJECTIVOS
No capítulo anterior, vimos como proceder à exploração. Trata-
-se agora de nos distanciarmos ou libertarmos das informações
recolhidas e de dominarmos as ideias reunidas para precisarmos
as grandes orientações da investigação e definirmos uma proble-
mática relacionada com a pergunta de partida.
A problemática é a abordagem ou a perspectiva teórica que
decidimos adoptar para tratarmos o problema formulado pela
pergunta de partida. É o ponto de vista do qual os fenómenos
serão estudados, o modo como iremos interpelá-los. As pistas
teóricas definidas pela problemática devem ser operacionalizadas
de forma precisa na etapa seguinte de construção do modelo de
análise. Nesta fase, o importante é a maneira como se olha para
o objecto, ainda não é a mecânica e as ferramentas concretas
desse olhar. Nesse sentido, a problemática constitui uma etapa de
charneira entre a ruptura e a construção e muitas vezes levará à
reformulação da pergunta de partida que, reelaborada ao longo
do trabalho, se transformará progressivamente na pergunta de
partida efectiva.
Não se trata de colar ao fenómeno estudado, de forma artificial
e dogmática, uma teoria geral aprendida no ensino teórico de Socio-
logia, Antropologia, Ciências Políticas, Ciências da Comunicação
ou de qualquer outra disciplina. A definição de uma problemática
de investigação tem a sua origem na exploração e prossegue na sua
continuidade. Ao longo das várias levas de leitura, foram sendo
comparados os conteúdos dos diferentes textos e dos pontos de
vista por eles defendidos. As entrevistas completaram as leituras,
permitindo que o investigador tomasse consciência de aspectos
do problema a que não era forçosamente sensível à partida. As
leituras e as entrevistas levam-no a abordar o problema de um
118 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ponto de vista que, à luz dos seus próprios objectivos, lhe parece
o mais interessante e o mais pertinente. É a este ângulo que se
chama problemática.
Para apreender bem a sua natureza e para construir a proble-
mática, passaremos por três etapas. Primeiro, explicitaremos em
que consiste, partindo de vários exemplos concretos. De seguida,
mostraremos de que modo os conceitos constituem as principais
fontes para a sua elaboração. Por último, proporemos pontos de
referência para proceder concreta e eficazmente.

2. EXEMPLOS DE PROBLEMÁTICAS
Para estudar a mesma pergunta de partida, há diferentes
problemáticas possíveis e o primeiro exemplo mostra que é
preciso começar por descobri-las para depois se escolher com
conhecimento de causa. É importante saber isso agora, porque
é o que vai servir de base a uma das principais aplicações que
ilustram a etapa seguinte, dedicada à construção do modelo
de análise.

2.1 Os comportamentos sexuais perante o risco


de sida
A partir dos anos 1980, a sida tornou-se um problema de
saúde pública à escala planetária. No mundo, cerca de 40 milhões
de pessoas vivem com o VIH, o vírus responsável pela doença
e, de acordo com as estimativas da ONUSIDA, já morreram perto
de 35 milhões de pessoas. Para combater esta doença, ainda
pouco conhecida na época, lançaram-se vastos programas de
investigação, tanto no domínio das ciências biológicas e médicas
como no domínio das ciências sociais. As primeiras tentavam
compreender a natureza da doença, os processos biológicos em
A PROBLEMÁTICA 119

curso nos organismos infectados pelo vírus, assim como as suas


vias de transmissão, e procuraram desenvolver respostas médicas.
Logo que ficou claro que, além da transmissão da mãe para o
feto durante a gravidez, o VIH se transmitia essencialmente pelo
uso de seringas infectadas e pelas relações sexuais, passaram a
mobilizar-se também as ciências sociais, para compreender melhor
os comportamentos de risco no sentido de os evitar. Foi em
grande parte com base nestes trabalhos que, particularmente ao
longo dos anos 1990, se lançaram em muitos países campanhas
de prevenção.
Aqui, a pergunta de partida diz respeito apenas aos compor-
tamentos sexuais e poderia ser formulada da seguinte maneira:
nas relações sexuais, o que leva os parceiros a arriscar, ou não,
a infecção pelo VIH?
O estudo da assunção de riscos nas práticas sexuais esbarrou
numa dupla dificuldade: por um lado, porque ao longo dos anos
que precederam o surgimento da sida, a questão da sexualidade
da população foi longamente negligenciada pelas ciências sociais,
não existindo inquéritos modernos e de grande envergadura sobre
o assunto; por outro lado, porque a sida representava uma rea-
lidade nova que dizia respeito às representações da sexualidade,
do amor, e em especial da morte, aos valores e às sensibilidades
mais profundamente enraizadas. Partia-se quase do zero, num
assunto complexo e difícil de abordar. Mas era preciso começar.
Foi por isso que, a nível europeu (ao qual nos limitaremos, sem
nenhum inconveniente, posto que o essencial é perceber bem em
que consiste uma problemática), várias dezenas de investigadores,
de psicologia social, sociologia, epidemiologia, antropologia, e
mesmo economia, representando uma dúzia de países diferentes,
se uniram para falar sobre as suas abordagens teóricas, os seus
métodos de investigação e os resultados dos seus trabalhos, com
vista à produção de conhecimentos fiáveis sobre o assunto com
base em inquéritos quantitativos e qualitativos. Esta experiência
colectiva constituiu um exercício de problematização à escala
120 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

real; retomaremos aqui alguns dos principais pontos de referência,


que permitirão aos leitores perceber bem em que consiste cada
etapa. No seguimento da obra serão retomadas várias aplicações
de algumas vertentes desta experiência de investigação.

a) Conhecimentos, crenças e atitudes


A maior parte dos primeiros inquéritos realizados adoptaram
uma problemática que parecia impor-se pelo bom senso. Baseava-se
na ideia de que o indivíduo se comporta de maneira racional, em
função dos seus interesses. Se tiver um conhecimento correcto dos
riscos e modos de transmissão, se adoptar uma atitude responsável
(não se expondo inutilmente a situações de risco para a saúde) e
se não tiver crenças ingénuas perigosas (por exemplo, que a sua
fé em Deus o protegerá de qualquer risco), adoptará forçosamente
práticas conformes ao seu interesse, como limitar-se a um parceiro
seguro ou usar preservativo. Conhecimento, atitudes, crenças e
práticas... em inglês Knowledge, Attitudes, Beliefs and Practices,
e por essa razão se chamou KABP a estes inquéritos. A problemá-
tica insere-se naquilo que designaremos por «paradigma» (ou seja,
no âmbito do pensamento) do indivíduo racional. Os inquéritos
inspirados nesta problemática têm como objectivo apreender os
conhecimentos, as atitudes e as crenças que explicam os compor-
tamentos (ou as práticas) e compreender o perfil dos indivíduos
que as adoptam (idade, género, profissão, modo de vida, etc.).
Por conseguinte, a prevenção consiste em informar a população
o melhor possível, visando alcançar sobretudo os seus elementos
mais vulneráveis, como os jovens adultos, que têm vários parceiros
ao mesmo tempo ou uns a seguir aos outros.
À argumentação parece inesgotável e a problemática puro bom
senso. No entanto, as coisas não são assim tão simples. Com
efeito, os inquéritos mostraram que em algumas circunstâncias
concretas (como no início de uma nova relação, após uma ruptura,
por altura de um encontro ocasional...) não era por estarem mais
A PROBLEMÁTICA 121

conscientes dos riscos de infecção que muitas pessoas se arrisca-


vam menos, mesmo com conhecimento de causa. As campanhas
de prevenção geral, que consistiam essencialmente em fornecer
à população em geral uma informação correcta sobre as vias de
transmissão do VIH, pareciam ter pouco impacto na atitude de
pessoas com comportamentos considerados de alto risco e que,
em princípio, não seriam o alvo principal dessas acções. Alguns
defensores desta abordagem, convencidos que estavam da sua
pertinência, recusaram-se a pô-la em causa, preferindo atribuir os
comportamentos de risco que não se enquadravam na sua visão
das coisas a uma fraqueza passageira ou, caso se repetissem, a
uma crise das normas morais (que Émile Durkheim designou por
anomia) de alguns indivíduos, considerados bastante minoritários
e «irrecuperáveis». Mas isto é um pouco redutor.
De facto, os inquéritos revelaram que entre os indivíduos que
regularmente ou ocasionalmente corriam riscos se encontravam
muitos com afirmações ou respostas bastante sensatas e que
pareciam ter boas razões pessoais para se comportarem de modo
a correr um risco de infecção que julgavam ser aceitável. Um
determinado número de observações surpreendeu igualmente os
investigadores, como, por exemplo, o facto de os comportamentos
de uma mesma pessoa perante o risco poderem variar radicalmente
consoante o ponto em que se encontrava na sua trajectória de vida,
segundo o parceiro com quem estava, ou ainda de acordo com
a fase em que se encontrava a relação. Ora, isto não se encaixa
muito bem na imagem do indivíduo racional.

b) A trajectória de vida
Foi por isso que, ao verificarem a instabilidade dos comporta-
mentos da mesma pessoa perante o risco, os investigadores julga-
ram ser impossível percebê-la sem ter em consideração tanto a sua
trajectória como algumas circunstâncias da vida durante as quais
o indivíduo está particularmente vulnerável (em particular Peto,
122 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

D., Remy, J., Van Campenhoudt, L., Hubert, M., Sida: "amour
face à la peur, Paris, LHarmattan, 1992; Delor F e Hubert M,,
«Revisiting the concept of “vulnerability'», Social Science and
Medicine, 2000, n.º 50, pp. 1557-1570). Falamos, por exemplo,
de fases da vida íntima ou de circunstâncias em que o indivíduo
descobre a sexualidade, inicia uma nova relação, passa por uma
ruptura dolorosa, vive uma situação afectiva muito instável por
diversas razões, atravessa uma crise existencial, é forçado a uma
relação ou são-lhe impostas práticas sexuais por um parceiro
dominador e/ou violento, ou então está em plena fase de saída do
armário, durante a qual uma pessoa decide assumir abertamente
a sua homossexualidade.
Os inquéritos destes investigadores consistiram, assim, em
identificar precisamente as situações críticas, em compreender o
melhor possível o que estava em jogo para as pessoas em questão
e em que é que estas situações eram problemáticas do ponto de
vista do risco. Por exemplo, por ocasião do primeiro encontro
amoroso, jovens muito apaixonados podem renunciar ao uso de
preservativo por temerem que o parceiro interprete essa atitude
como uma falta de amor ou de confiança.
Esta problemática da trajectória de vida será retomada numa
aplicação no final do livro.

c) A dinâmica da relação
O exemplo anterior ilustra bem a fragilidade de uma problemá-
tica que tentava explicar os comportamentos sexuais, esquecendo-se
de que estes se enquadram numa relação, que um indivíduo não
actua sozinho, que está envolvido numa relação, ainda por cima
íntima, com outra pessoa. Em princípio, num relacionamento, cada
parceiro tem uma palavra a dizer e ambos investem muito mais do
que apenas uma razão: esperança (por exemplo, de que a relação
seja eterna ou apenas efémera), receios (nomeadamente, o de fazer
má figura), emoções (como o desejo, o amor, a paixão), etc.
A PROBLEMÁTICA 123

Pelos seus comportamentos, os parceiros trocam mensagens


por meio das quais constroem (ou destroem) a sua relação. Por
exemplo, para alguns, renunciar a usar preservativo numa nova
relação poderá ser um sinal de confiança e de amor. Do seu ponto
de vista, haverá prova de amor mais bela do que correr riscos,
arriscar até a própria vida, por amor? Pelo contrário, aquele que
tenta conquistar o amor de outro pode temer que o desejo de lhe
impor o preservativo seja interpretado como falta de confiança
e um sinal de distância. Estes exemplos mostram que, longe de
serem apenas consequências de causas externas à própria relação
(como os conhecimentos e as crenças), os comportamentos fazem
parte da relação. Por conseguinte, a problemática consiste em
considerar «desempenhos relacionais» os comportamentos adop-
tados perante o risco e cujos significados é preciso identificar,
por exemplo, querer seduzir, agradar, prender o amor do outro,
dar-lhe prazer, fazer boa figura ou não ser rejeitado.
Foi por isso que os investigadores tentaram elaborar proble-
máticas no centro das quais estivesse a relação entre os parceiros.

d) A rede social dos parceiros


Embora cada relação íntima tenha as suas próprias característi-
cas e a sua própria dinâmica, não é completamente independente
do conjunto das relações dos dois parceiros, ou ainda das suas
respectivas redes sociais, longe disso. À influência deste círculo de
pessoas próximas é decisiva, sobretudo para as oportunidades de
encontros, de escolha dos parceiros com quem se pensa ter uma
relação duradoura e das normas de comportamento em matéria
de sexualidade. Acerca deste último ponto, várias investigações
mostraram claramente que os indivíduos tendiam a adoptar para
si próprios as normas de conduta que vigoravam efectivamente
na sua rede de próximos. Como tal, para compreender os com-
portamentos dos indivíduos perante o risco de infecção pelo
VIH, é necessário estudar de que forma é que o seu modelo de
124 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

sexualidade é influenciado pelas normas em vigor nesses círculos


e pelo controlo social que aí é exercido. Estas ideias encontram-se
desenvolvidas em Marquet, J., Huynen, Ph., Ferrand, A., «Modêles
de sexualité conjugale. De [influence normative du réseau social»,
Population, 6, 1997, 1401-1438. Esta problemática da influência
do círculo de próximos será retomada por uma das aplicações
que servirá de exemplo às três etapas seguintes.

e) A dimensão simbólica da sexualidade


Às relações sexuais está associado um conjunto de representações
(sobre as imagens do homem e da mulher e dos seus respectivos
papéis, sobre o corpo, sobre o que é certo e o que é errado, sobre
o que é belo e o que é feio, sobre o que é permitido e o que é
proibido, sobre a vida e a morte...) que variam de acordo com as
culturas e as subculturas. É aquilo a que chamamos a dimensão
simbólica da sexualidade. A estas representações está ligado um
conjunto de emoções, sentimentos, fantasias que eventualmente
incitam a alguns comportamentos de risco. Esta dimensão simbó-
lica da sexualidade foi particularmente estudada por antropólogos
(ver, a título de exemplo, I. L. Reisse, «A sociological journey into
sexuality», Journal of Marriage and Family, 1986, n.º 48, 2233-242).
Estas representações da sexualidade estão associadas a posições
desiguais mais ou menos legítimas ou ilegítimas e a relações de
poder (entre homem e mulher, casados e solteiros, entre adultos
e jovens, adultos e idosos, heterossexuais e homossexuais, entre
classes sociais...) bem como, consequentemente, a processos de
controlo social explícitos ou implícitos. Neste caso, falamos de
dominação simbólica.
Estes processos simbólicos podem exercer uma grande influência
nos comportamentos, nomeadamente naqueles que nos interessam
aqui, ou seja, os comportamentos perante o risco de infecção pelo
VIH, e favorecer a assunção desses riscos. Eis alguns exemplos
entre muitos outros possíveis: num contexto sociocultural de
A PROBLEMÁTICA 125

“dominação masculina, homens que têm cada vez mais parceiras


impõem às mulheres relações sem protecção; se as autoridades
religiosas mais influentes condenarem o uso do preservativo, no
pressuposto de uma fidelidade conjugal mais do que incerta,
o risco de relações desprotegidas poderá aumentar; um controlo
social severo, até mesmo um clima de repressão, relativamente à
homossexualidade também pode encorajar práticas clandestinas
desprotegidas. É por isso que alguns investigadores escolheram
como problemática o impacto destes processos simbólicos sobre
os comportamentos de risco.
Em suma, é possível estudar os comportamentos perante o risco
de infecção pelo VIH nas relações sexuais a partir dos conhecimentos
e das crenças dos indivíduos, das sucessivas fases e das situações mais
ou menos problemáticas que atravessam ao longo do seu percurso
de vida, ou da dinâmica da relação entre parceiros sexuais, ou da
influência normativa do seu círculo de proximidade. Esse estudo
é ainda possível a partir de processos simbólicos, nomeadamente
de dominação, que incitam a adoptar para si próprio, ou a impor
ao parceiro, determinados comportamentos e práticas. Esta lista
de possíveis problemáticas não é exaustiva.
Confrontados com a grande variedade de problemáticas pos-
síveis, como escolher? O primeiro passo é conhecer as possíveis
problemáticas. Em princípio, será essa a função da fase explorató-
ria. Em quase todos os domínios da investigação existem obras e
artigos que sintetizam as abordagens existentes (por exemplo, no
que respeita à nossa questão: Van Campenhoudt, L., Cohen, M.,
Guizzardi, G., Hausser, D., Eds, Sexual Interaction and HIV-Risk.
New Conceptual Perspectives in European Research, Londres,
Inglaterra, e Bristol, Estados Unidos, Taylor & Francis, 1997).
Seguidamente, entre as problemáticas possíveis, será necessário
escolher aquela que é a mais susceptível de fornecer uma perspec-
tiva interessante e útil acerca do fenómeno estudado (neste caso,
os comportamentos perante o risco), tendo em conta o contexto
concreto e as razões que nos levaram a iniciar esta investigação.
126 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Por exemplo, não será indiferente estudar os comportamentos de


uma população ou de um grupo em particular (como jovens adultos
celibatários), em geral ou numa situação concreta (designadamente
após uma ruptura), num ou noutro contexto (no decorrer de um
festival ou num campus universitário). A problemática deve adaptar-
-se à situação concreta e aos objectivos de cada projecto particular.
Podemos igualmente construir a nossa própria problemática a
partir de elementos retirados de outras. Por exemplo, na segunda
aplicação escolhida para ilustrar o procedimento no final desta
obra, os investigadores combinaram três problemáticas: a trajectó-
ria individual dos parceiros, a interacção entre eles e o respectivo
círculo social.
No contexto particular do início dos anos 1990, a prevenção
do risco de infecção pelo VIH exigia um conhecimento profundo
e rigoroso da sexualidade de todos os cidadãos, um conhecimento
de base que faltava, nomeadamente, na Europa. É verdade que
em muitas revistas e livros se falava bastante de sexualidade, de
práticas sexuais e até, a partir dos anos 1960, de liberação sexual,
mas, ao longo dos últimos anos, não tinha sido feito nenhum
estudo sério que abarcasse a totalidade da população. De repente,
o conhecimento da sexualidade da população passava a ser urgente
e indispensável a qualquer política preventiva, ao mesmo tempo
sistemática e bem direccionada. Era preciso preencher esta lacuna
rapidamente. A maior parte dos países europeus mobilizaram
então os recursos necessários para realizar inquéritos sobre os
comportamentos sexuais da população em geral, nomeadamente
a França, onde no início dos anos 1990 foi lançado um grande
inquérito por uma vasta equipa de investigadores (Spira, A., Bajos,
N., Grupo ACFS, Les Comportements sexuels en France, Paris,
La Documentation Française, 1993). Embora o inquérito fosse
relativo a comportamentos sexuais enquanto tal e de um modo
geral, Alain Giami («Le questionnaire de Penquête ACSF. Influence
d'une representation épidémiologique de la sexualité», Population,
5, 1993, 1229-1256), um dos investigadores que participou no
A PROBLEMÁTICA 127

inquérito, mostrou que as problemáticas ligadas à sida tinham


influenciado profundamente a concepção e a elaboração do
questionário. Numa perspectiva epidemiológica, os investigadores
interessaram-se sobretudo pelas práticas susceptíveis de expor os
indivíduos ao risco. Além disso, algumas práticas sexuais foram
analisadas apenas superficialmente, porque o desenvolvimento do
tema podia parecer inconveniente aos olhos de alguns inquiridos.
Finalmente, a redacção do questionário foi o resultado de um
conjunto de compromissos: científicos (entre investigadores que,
em certa medida, tinham interesses científicos diferentes), políticos
(dependendo do que parecia politicamente admissível e do que
podia ser útil para as campanhas de prevenção), económicos (de
acordo com os custos de algumas investigações, em especial no
que respeita à constituição da amostra) e psicológicos (em função
da sensibilidade dos inquiridos, tal como antecipado).
Tudo isto se percebe facilmente; era necessário que o questio-
nário fosse eficaz do ponto de vista técnico, mas também acei-
tável socialmente e psicologicamente. Faltava também convencer
os decisores pela atribuição do orçamento que o problema da
sida era efectivamente tido em conta. Este exemplo mostra bem
que uma problemática de investigação não se define apenas em
função de critérios científicos. Por conseguinte, é importante que
o investigador perceba as escolhas que faz, implícita ou explici-
tamente, e que meça bem os limites que essas escolhas impõem
à sua investigação e aos seus resultados.
A etapa seguinte (A construção do modelo de análise) começará
com este exemplo dos comportamentos perante o risco de VIH.

2.2 As expectativas dos cidadãos em relação


à Justiça
Este segundo exemplo pretende ilustrar a forma como os
investigadores elaboram uma problemática passo a passo a partir
128 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

da exploração (segunda etapa), rompendo com as interpretações


comuns do fenómeno estudado. Este trabalho real foi efectuado
em equipa e em condições ideais, de que um estudante ou um
investigador principiante não dispõem; no entanto, expomos esse
trabalho aqui, porque permite compreender bem a lógica do pro-
cesso de construção de uma problemática.
Bélgica, finais dos anos 1990. O caso Dutroux, que confessou
ter raptado, violado e assassinado várias raparigas, chocou o país
e ficou mundialmente conhecido. Na mesma época, outros aconte-
cimentos abalaram a Bélgica, em especial, o caso dos «assassinos
do Brabante», um grupo de criminosos que semearam o terror
e assassinaram cerca de quarenta pessoas em várias superfícies
comerciais e que continua por resolver. Estes casos, tal como
outros de menor importância, consequências da delinquência
normal, vieram lançar a confusão no funcionamento da justiça
e das polícias, duramente criticadas por aquilo a que se chamou
as suas «disfunções».
Neste contexto, foram realizadas e publicadas nos meios de
comunicação muitas sondagens sobre a opinião dos cidadãos rela-
tivamente à justiça. As perguntas eram essencialmente sobre o seu
funcionamento, o modo e a rapidez como eram tratados os pro-
cessos, bem como sobre a sua imparcialidade, como, por exemplo:

— A justiça não funciona.


— À justiça é demasiado lenta.
— À justiça protege os poderosos.
Concorda totalmente, concorda, discorda ou discorda totalmente?

O mínimo que se pode dizer é que, tendo em conta a atmosfera


que se vivia, as respostas eram «evidentes». Quando se repete
constantemente, em todas as ondas e em todos os jornais, que a
Justiça funciona mal, que é demasiado lenta e que sem dúvida
protege os poderosos, quem, a não ser uma pequena minoria de
cidadãos, vai discordar de tais afirmações? As respostas a estas
A PROBLEMÁTICA 129

perguntas superficiais só podem ser, também elas, superficiais, cada


uma não fazendo mais do que repetir as mesmas banalidades.
Além disso, as opiniões que exprimem são directamente muito
influenciadas pela actualidade imediata e por isso são efémeras.
Por outro lado, as noções utilizadas são muito vagas: o que sig-
nifica «disfuncionamento»? O que poderá ser demasiado lento no
funcionamento da Justiça: os atrasos na atribuição dos processos,
que se acumulam, ou o tratamento destes logo que são distribuí-
dos? Outro problema é que aqui a Justiça é tida como um todo
homogéneo, mas ao mesmo tempo é feita de muitas componentes.
Finalmente, estas perguntas não nos explicam como é que os
cidadãos têm esta ou aquela opinião, como é que pensam isto
ou aquilo. Estas sondagens (e estas perguntas) apenas retomam
ideias preconcebidas e estereótipos, atribuindo-lhes um estatuto
de temas supostamente científicos. Não há aqui uma verdadeira
«problemática» nem a mínima ruptura.
Perante a multiplicação de sondagens superficiais e tendenciosas,
por ordem do Governo belga, os Serviços Federais de Investigação
Científica pediram a um grupo de investigadores que concebes-
sem um projecto de inquérito rigoroso sobre as expectativas dos
cidadãos em relação à Justiça. Nesta fase, não se tratava ainda
de elaborar efectivamente um inquérito, mas tão-somente de o
conceber idealmente.
A pergunta de partida foi formulada da seguinte maneira:
«Quais as expectativas dos cidadãos relativamente à Justiça?»
A fase exploratória foi levada a cabo por uma pequena equipa
pluridisciplinar, criada para o efeito, e composta por especialistas
em Sociologia, Direito, Filosofia do Direito e Criminologia. De
seguida, o comando foi assumido por uma equipa de sociólogos
especializados em métodos qualitativos e quantitativos.
A fase exploratória incluiu três partes, conduzidas em paralelo:
e Primeiro, o exame dos principais trabalhos históricos, filosóficos
e sociológicos feitos sobre a Justiça e as suas ligações com a
130 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

sociedade, sobre as relações entre os cidadãos e a Justiça, por


forma a contextualizar o problema e a considerar as grandes
evoluções da sociedade. Perante a abundância dos trabalhos dis-
poníveis, houve necessidade de seleccionar os que apresentavam
uma perspectiva sintética e eram mais pertinentes, atendendo
ao contexto e ao objectivo pretendido. Este exame permitiu
avaliar bem a dimensão dos fenómenos a ter em conta. Sem
pretendermos ser exaustivos, vejamos alguns exemplos:
O recurso cada vez mais sistemático ao direito e à justiça
para regular as relações e resolver os conflitos que outrora
se solucionavam de outra maneira (aquilo a que chamámos a
regulação das relações interpessoais);
A pluralidade dos modelos de justiça: justiça de imposição, em
que a decisão é baseada na aplicação de uma norma justificada
a priori, justiça comunicacional, em que a decisão justa se cons-
trói a partir do saber dos actores, justiça distante ou justiça de
proximidade, justiça feita com base em procedimentos legais
e administrativos formais ou com base em modos de gestão
informais, como a multa...;
A dessacralização das instituições em geral (veja-se nomeada-
mente a obra de François Dubet, Le déclin de Pinstituition,
Paris, Le Seuil, 2002), para com as quais o cidadão tem cada
vez mais uma atitude de consumidor e que sente cada vez mais
afastadas da sua própria vivência;
A importância das questões de reconhecimento (ver Axel
Honneth, The Struggle for Recognition, Cambridge, Polity
Press, 1995), nomeadamente para as vítimas, com o sistema
penal a fazer de grande restaurador simbólico;
A influência dos meios de comunicação (incluindo a ficção) e
dos líderes de opinião (políticos, jornalistas, intelectuais...), que
elaboram e propõem aos cidadãos representações da justiça
amplamente difundidas no espaço público.

Seguidamente, a recolha dos principais dados disponíveis sobre


a organização, o funcionamento e o trabalho concreto da
A PROBLEMÁTICA 131

Justiça, nomeadamente, estatísticas sobre a sua actividade nas


diferentes instâncias (civil, penal...). Era preciso estar atento
ao modo como a organização e o funcionamento da Justiça
condicionavam as experiências que os cidadãos tinham dela
e, consequentemente, as suas representações e expectativas,
identificar as principais questões que relacionavam o cidadão
com a instituição judicial (por exemplo, queixas por assalto e
agressão, multas por excesso de velocidade ou estacionamento
indevido, regimes matrimoniais, casamentos e divórcios, pater-
nidade e adopção, assuntos patrimoniais, bens e propriedades,
sucessões, relações e operações comerciais, falências, contratos,
trabalho, seguros, segurança social, infracções cometidas por
menores, recursos, crimes julgados em tribunais criminais). Por
exemplo, a representação da justiça pode variar, consoante se
sai vencedor ou derrotado, reconhecido como vítima ou não;
a própria Justiça será considerada justa ou injusta, parcial ou
imparcial, severa ou laxista, etc., e estas representações são, sem
dúvida, relativamente duradouras e estão firmemente enraizadas.
Tratava-se, pois, de ter em conta a diversidade das questões e
das experiências de justiça que, no seio da população, põem
em prática uma grande diversidade de modelos, em vez de
pedirem opiniões sobre a justiça em geral.
Finalmente, o levantamento dos recursos teóricos da socio-
logia e da psicologia sobre o modo como são elaboradas
estas representações nas interacções sociais. Com efeito, os
indivíduos (neste caso os justiçáveis) não são átomos isolados
uns dos outros; comunicam entre si, discutem com os que os
rodeiam, influenciam-se mutuamente. Por exemplo, na cha-
mada teoria two-step-flow of comunication (ou «comunicação
de duplo nível», desenvolvida por E. Katz e P. Lazarsfeld, em
Influence personnelle, Paris, Armand Colin, 2008 [1955]), as
mensagens dos meios de comunicação apenas têm impacto
na opinião dos indivíduos depois de serem retransmitidas
pelos grupos de próximos, onde algumas pessoas exercem
liderança.
132 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Resumindo, para explicarem as representações duráveis e


profundas da Justiça, em vez das opiniões efémeras e superfi-
ciais, os investigadores elaboraram uma problemática que tem
em consideração, primeiro, o contexto macrossocial e as suas
transformações, nomeadamente a evolução das relações entre a
Justiça, a sociedade e os cidadãos; segundo, as experiências con-
cretas que os cidadãos têm da Justiça, e que estão relacionadas
com o funcionamento desta instituição; terceiro, as interacções
microssociais entre os próprios cidadãos. Longe de se limitarem
a registar as opiniões como se estas caíssem do céu, os investi-
gadores quiseram estudar a forma como as representações e as
expectativas se construíam, se transformavam e evoluíam nas
experiências concretas da vida.
O resultado deste trabalho traduziu-se num relatório: Franssen,
A., Genard, J.-L., Van Campenhoudt, L., Cartuyvels, Y., Marquet, J.,
2000, La Justice en questions. Concept d'enquête sur les aattentes
des citoyens à Végard de la Justice, Bruxelas, Services Fédéraux
des Affaires Scientifiques, Techniques et Culturelles. Foi a partir
desta base que, mais tarde, se realizou um vasto inquérito.

2.3 A exposição de si na internet


As problemáticas de investigação evoluem a par das transfor-
mações da sociedade, sobretudo as transformações tecnológicas e
as suas consequências nas interacções sociais. Estas problemáticas
novas têm consequências sobre os métodos de recolha de dados.
É o que este terceiro exemplo pretende mostrar.
Desde o seu aparecimento, a internet suscitou opiniões e críticas,
muitas vezes até alarmistas, relativamente ao risco de exposição
de si na rede. Os perigos que ameaçam os utilizadores da Web
são infindáveis: perda da intimidade, aumento do controlo social
tanto institucional como privado, perseguição, roubo, falsificação
e usurpação da identidade, utilização maliciosa de informações
A PROBLEMÁTICA 133

pessoais e ataques à reputação, perenidade das informações,


impossibilidade de eliminação e, portanto, de esquecimento...
Estas reacções lembram os movimentos de «pânico moral»
que parecem ter acompanhado o crescimento dos novos meios
de comunicação, como aconteceu com os folhetins, a fotografia
ou o telefone no século xIX, O cinema, a televisão, os telemóveis
ou os videojogos no século xx. Entre estes, se nos focarmos na
questão da exposição de si, o caso da fotografia é, sem dúvida, o
que mais se aproxima do das páginas de redes sociais na internet
(Social Network Sites — SNS). De facto, é motivo de preocupação
relativamente à publicação de fotografias de cada um na imprensa
e ao uso que lhes pode ser dado a seguir. Claramente, coloca-se
já o problema da protecção da vida pessoal perante a visibilidade
e a publicidade crescentes daquela. No entanto, um investigador
minimamente sério não pode limitar-se a uma postura moral de
condenação baseada numa divisão dos utilizadores entre vítimas e
culpados e nem a uma leitura que impute às próprias tecnologias
a responsabilidade pelos erros denunciados.
Pelo contrário, alguns inquéritos sobre as modalidades de
encenação de si nas páginas de Web 2.0 mostram toda a diversi-
dade das estratégias desenvolvidas pelos utilizadores. O inquérito
Sociogeek, o nome do colectivo (consultores do Faber Novel,
peritos da Fondation Internet Nouvelle Géneration, sociólogos do
Laboratoire de Sciences Sociales d'Orange Labs) que o conduziu,
inscreve-se nesta perspectiva (Aguiton, C. et al., «Does showing
off help to make friends? Experimenting a sociological game on
self-exhibition and social networks», International Conference on
Weblog and Social media *09, São José, Califórnia, de 17 a 20
de Maio de 2009). O inquérito incidiu principalmente sobre as
formas de se exibir aceites pelos utilizadores, sobre as utilizações
da internet e dos SNS, sobre as práticas de sociabilidade e as suas
estratégias de selecção de amigos na Web.
Esta investigação salienta uma pluralidade de modos de
encenação e de construção da identidade digital em páginas de
134 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

socialização: selecção de fotografias que remetem para situações


tradicionais (refeições, férias...) ou nas quais o rosto não se reco-
nhece bem; divulgação de fotos muito ritualizadas na fotografia
amadora, como as fotos de família ou de casamento; publicação
de fotografias de nudes, eróticas ou de carácter sexual; escolha de
imagens que apresentam uma visão encenada de si ou situações
fora do comum; exibição de fotos trash cujo principal objectivo
é provocar.
Nem todos os utilizadores expõem na Net a mesma faceta de
si próprios; claramente, seleccionam os traços identitários que
escolhem revelar ou dissimular. Esta investigação mostra ainda
que as várias modalidades de exposição de si remetem para
características sociodemográficas específicas. Assim, a título de
exemplo, as mulheres e os altamente diplomados estão fortemente
representados entre os que privilegiam fotos relacionadas com os
temas ritualizados há muito em fotografia. As diferentes formas
de apresentação de si também estão distribuídas de acordo com
o número de amigos que se tem nas redes sociais, a preferência
por uma socialização virada para pessoas que se conhecem da
vida real ou para desconhecidos, ou o tipo de plataforma usada
pelos utilizadores...
Os modos de selecção de amigos na Web também são muito
variados: os critérios mobilizados para ser diferente, a ordem e a
importância destes são variáveis; algumas estratégias de selecção
estão em consonância com variáveis sociodemográficas específi-
cas (homens/mulheres, orientação homo /heterossexual, nível de
diploma elevado/mais baixo...), mas também com o modo de se
expor pessoalmente na internet. Neste sentido, a apresentação de
si surge como um elemento de definição daqueles com quem se
quer estabelecer relações.
Esta investigação mostra utilizadores muito estratégicos, que
revelam grande ponderação nas suas práticas, seleccionando cui-
dadosamente as informações que divulgam sobre si próprios, em
função do modo como se projectam nos espaços onde se joga uma
A PROBLEMÁTICA 135

parte da sua identidade, em função dos objectivos relacionais que


são os seus. Podemos ver que esta perspectiva dá aos utilizadores
um estatuto de actores que permite, desde logo, apreender os
desafios sociais e culturais destas novas práticas.
Antecipando de certa forma o que se segue, esta investigação
permite igualmente compreender que a problemática também se
joga ao nível da recolha de dados; e o que é original é incidir
sobre a internet, mobilizá-la como instrumento de recolha de
dados, mas também inscrever-se firmemente na cultura deste
meio de comunicação, adoptando os seus principais elementos de
comunicação, nomeadamente, a imagem e o jogo. Esta opção não
é fruto do acaso ou de uma simples preferência por esta cultura
emergente, que podia ser partilhada pelo grupo de investigadores,
mas que decorre de questões de investigação identificadas como
primordiais. Assim, contrastando com a entrevista individual ou
o questionário padronizado, que induzem um compromisso mais
sério, o jogo sociológico sugere uma postura mais lúdica, com
os responsáveis pela concepção do inquérito a apostar que este
pode alargar grandemente a base de inquiridos.
Em vez da sequência clássica pergunta /resposta, oral ou escrita,
os investigadores podem pedir aos inquiridos que classifiquem
fotografias. Deste modo, a verbalização é afastada; os entrevista-
dos não são obrigados a explicar nem a justificar explicitamente
as suas escolhas, por vezes confusas e pouco consistentes, e são
colocados num contexto de avaliação mais próximo das situações
da vida diária. É preciso aproximar-se, tanto quanto possível, das
experiências e dos usos concretos da internet. A postura adoptada
afasta-se, assim, da perspectiva que apreende os actores sociais
como indivíduos conscientes e racionais, capazes de prestar con-
tas dos seus actos em qualquer circunstância, e volta a atribuir
importância à observação das práticas.
A pergunta de partida poderá então ser formulada da seguinte
maneira: «Quais são as estratégias de exposição de si usadas pelos
utilizadores nas redes sociais da internet?» Podem ser mobilizados
136 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

conceitos como sociabilidade, apresentação de si, rede social (no


sentido sociológico do termo), actor-rede, actante, partilha social
e sistema sociotécnico.

2.4 O suicídio
Encerramos esta série de problemáticas com o exemplo do
suicídio, tal como foi concebido por Durkheim, no texto que
serviu de exercício de aplicação à grelha de leitura. Este exemplo
também será útil na etapa seguinte, a de construção do modelo
de análise.
Como vimos, Durkeim consegue encarar o seu objecto de
investigação de uma forma que sai decididamente dos caminhos
já percorridos. Fazendo o balanço das informações obtidas pela
sua exploração das estatísticas, Durkheim verifica a existência de
regularidades acerca das quais intui que o suicídio tem não só
uma dimensão individual, como também uma dimensão social.
Onde se concebia o suicídio como o resultado de um processo
de desestruturação psicológica, que pode estar ligado a um sen-
timento opressivo de culpa, vê Durkheim o sintoma e o produto
de um enfraquecimento da coesão da sociedade, cujos membros
se tornaram menos solidários e mais individualistas. Na realidade,
Durkheim escolhe como objecto de investigação o suicídio conce-
bido, não como a infeliz conclusão de um processo de desespero,
mas sim como um «facto social» específico. Do seu ponto de
vista, a taxa dos suicídios não podia ser explicada pela soma dos
suicídios individuais, que derivavam, cada um deles, de motiva-
ções próprias, mas sim pelo que constituía o seu substrato social
profundo: o estado da sociedade, cuja coesão na época era em
grande parte influenciada pelo sistema religioso que a animava.
A pergunta de partida muito geral «Quais são as causas sociais
do suicídio?» podia ser reformulada de maneira mais precisa e
«reproblematizada» como se segue: «Em que medida e como é
2
A PROBLEMÁTICA 137

que o nível de coesão social de uma sociedade (particularmente


a religiosa) influencia a taxa de suicídio?».
É claro que isto não significa que o suicídio não possa ser vali-
damente estudado sob uma perspectiva psicológica, mas é a essa
forma sociológica inédita de equacionar o problema que Durkheim
vai dedicar-se. Efectivamente, a noção de problemática é aqui
apresentada de uma maneira que corresponde quase (para
Durkheim pelo menos) à abordagem específica de uma disciplina
(a sociologia) por oposição a uma outra (a psicologia), mas os
exemplos anteriores mostram que problemáticas diferentes podem
ser pensadas no seio do mesmo campo disciplinar.
Antes de avançarmos mais profunda e sistematicamente, pode-
mos já retirar desta fase alguns ensinamentos importantes que estes
exemplos nos fornecem. Para conseguir definir uma problemática
interessante, não há segredos nem milagres: precisamos de tempo
para ler e consultar pessoas qualificadas e de manter os olhos
bem abertos durante a fase exploratória; é preciso ser curioso e
desejar descobrir as pistas mais interessantes.
Para isso, é importante ser claro consigo próprio, com as suas
motivações e preconceitos relativamente ao fenómeno estudado.
É preciso evitar que a própria reflexão fique aprisionada em cate-
gorias de pensamento, que parecem óbvias por se terem tornado
evidências, e se deixe enganar por palavras utilizadas a toda a
hora, como «disfunção», «integrismo», «integração», «governança»,
«exclusão social», «crise», etc., sem lucidez e espírito crítico sobre o
que significa utilizá-las. Quando se estudam opiniões, representações
ou práticas, tem de se evitar estudá-las por si só, como se caíssem do
céu; pelo contrário, é importante voltar a situá-las no seu contexto,
percebê-las na sua génese e nas suas funções, mostrar como estão
ligadas a posições sociais, a relações de força e nomeadamente a
interesses específicos. Um comportamento ou uma opinião não devem
ser associados logo a uma categoria que seria substantificada como
tal, independentemente da inclusão das pessoas e dos grupos visados
num sistema e numa dinâmica de acções e de relações mais vasto.
138 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

3. O CONCEITO ENQUANTO FERRAMENTA


DE PROBLEMATIZAÇÃO
Explicar um fenómeno consiste em relacioná-lo com outra coisa.
Por exemplo, para explicar os comportamentos perante o risco
de infecção pelo VIH, os investigadores propuseram relacionar
uns com os conhecimentos e as crenças dos indivíduos, outros,
com o seu percurso de vida, e outros ainda com a dinâmica da
relação entre os parceiros, etc. No projecto de inquérito sobre as
expectativas dos cidadãos relativamente à Justiça, essas expectativas
foram relacionadas com as experiências reais de casos de justiça
vividos pelos cidadãos. Já Durkheim explica a taxa de suicídio
relacionando-o com a coesão social. Podíamos multiplicar aqui os
exemplos. No sentido mais vasto do termo, explicar um fenómeno
consiste, assim, em estabelecer uma ligação entre esse fenómeno e
outra coisa que possa ter tido uma intervenção na sua ocorrência.
Podem ser características individuais, um conjunto de fenómenos
anteriores, uma dinâmica relacional, um modo de organização,
funções que são asseguradas pelo próprio fenómeno em questão,
pode ser o sistema de valores ou de interesses dos indivíduos visa-
dos, jogos estratégicos ou seja lá o que for. O fenómeno é assim
retirado «da sua instantaneidade e do isolamento que esta implica»
(J. Ladriêre, «La causalité dans les sciences de la nature et dans
les sciences humaines», in R. Franck, dir., Faut-il chercher aux
causes une raison? Vexplication causale dans les sciences humaines,
Paris, Institut Interdisciplinaire d'Études Epistémologiques, 1994,
pp. 248-274). Aquilo com que o fenómeno é relacionado é, em
sentido mais lato, uma causa, e esta faz parte da fenomenalização,
ou seja, do processo que conduz a esse fenómeno. É esta interli-
gação que torna o fenómeno inteligível. As teorias são conjuntos
estruturados de conceitos e hipóteses que permitem conceber e
construir essas ligações e assim explicar os fenómenos estudados,
cada uma propondo uma determinada «concepção» do fenómeno
nas suas ligações com essa «outra coisa».
A PROBLEMÁTICA 139

Em ciências sociais, distinguimos vários níveis de teorias.


Ao nível teórico mais geral, aquilo a que chamamos os «para-
digmas» (como o funcionalismo, o interaccionismo ou a sociolo-
gia da acção) propõem um conjunto de conceitos e de hipóteses
gerais destinados a poder ser usados com êxito no estudo de todos
os fenómenos sociais, sejam eles quais forem. Os paradigmas
constituem, de certo modo, os pontos cardeais da teoria geral.
As teorias mais específicas, como a teoria dos campos, tal como
desenvolvida por Pierre Bourdieu, mantêm um carácter geral, por-
que o seu terreno de aplicação não se limita a um tipo de tema
empírico particular (por exemplo, podem aplicar-se tanto à esfera
económica como à esfera judicial, escolar, científica, artística...).
Geralmente, dependem de um paradigma ou de uma combinação
de paradigmas. Menos ambiciosas, as «teorias de médio alcance»
(R. K. Merton, Élements de théorie et de méthode sociologique,
Paris, Armand Colin, 1997 [1953)] são concebidas para explicar
determinadas ordens particulares dos fenómenos (por exemplo, a
teoria da burocracia, de Weber, Blau ou Crozier, ou a teoria do
desvio, de Merton ou Becker). Para Merton, estas teorias permi-
tem estabelecer uma relação mais estreita entre as hipóteses e os
dados da observação. Procurando acima de tudo ser tão pertinentes
quanto possível relativamente ao tema estudado (a burocracia ou
o desvio nos nossos exemplos), muitas vezes combinam vários
paradigmas.
Na fase da problematização, a estruturação interna das teorias
(que pode ser bastante sofisticada) ainda não nos interessa, mas
será o tema da etapa seguinte. Neste momento, o que importa
é a maneira específica com que uma teoria «põe o problema»,
interpela os fenómenos, permite, a propósito destes, fazer perguntas
de investigação que prolongam a pergunta de partida. Nesta fase,
a explicação que está aqui em causa deve limitar-se a assumir a
forma de um «questionamento»: para tornar o fenómeno inteli-
gível, vou relacioná-lo com quê? Ao nível mais simples e simul-
taneamente mais fundamental da problemática (que é suficiente
140 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

nesta fase), teorizar consiste, simplesmente, em fazer as perguntas


certas com a ajuda de conceitos bem escolhidos. É precisamente
por isso que, por vezes, usamos o termo «questionamento» como
sinónimo de problemática, distinguindo bem este questionamento
tanto da pergunta de partida (em relação à qual é mais elaborado
teoricamente) como das perguntas precisas feitas num inquérito
(em relação às quais é mais vasto).
A maioria das teorias organiza-se em torno de um conceito
central que constitui um pivô. De facto, um conceito é bem mais
do que uma simples definição ou noção; implica uma concepção
particular da realidade estudada, um modo de a considerar e de
a interrogar e, consequentemente, de a «problematizar». É por
isso que uma maneira eficaz de definir a problemática da investi-
gação consiste em precisar o conceito ou os conceitos que podem
orientar o trabalho.
Para o provar, partiremos de uma pergunta de partida con-
creta sobre o modo como a justiça e a medicina psiquiátrica
colaboram no tratamento judicial dos processos dos justiçáveis
que sofrem de perturbações mentais e, mais concretamente,
sobre as relações de poder ou de forças entre os profissionais
que intervêm nesse tratamento. Este exemplo é inspirado numa
investigação colectiva sobre esta pergunta (Brandon, I. e Cartuy-
vels, Y., (dir.), Judiciare et thérapeutique: quelles articulations?
Bruxelas, La Charte, 2004).
Quando a Justiça tem de lidar com arguidos e justiçáveis que
sofrem de perturbações mentais, o juiz tem de socorrer-se de
psiquiatras que devem determinar que patologia afecta a pessoa,
qual o impacto dessa patologia nos seus comportamentos e qual
o seu grau de responsabilidade. Esta perícia médica permitirá ao
juiz tomar as suas decisões com conhecimento de causa e decidir
que tipo de pena e/ou de cuidados devem ser contemplados. Na
prática, as coisas não são assim tão simples. Magistrados e médicos
não estão forçosamente em sintonia. Os sistemas de referência das
respectivas profissões são diferentes e nem sempre perfeitamente
A PROBLEMÁTICA 141

compatíveis. Além disso, em interacção mais ou menos estreita


com o juiz e o psiquiatra, há outros profissionais a intervir no
tratamento judicial dos justiçáveis que sofrem de perturbações
mentais: advogados, assistentes sociais, psicólogos, responsáveis
por instituições prisionais e, em especial, instituições de saúde.
Entre estes diferentes intervenientes, estabelecem-se relações de
poder, formais ou informais, que não deixam de ter consequências
no destino reservado aos indivíduos.
No caso vertente, que conceitos poderiam ajudar o investi-
gador a problematizar esta questão das relações de poder, mais
concretamente, entre a justiça e a medicina?

3.1 Interacção
Este conceito foi já abordado, superficialmente, no exemplo
sobre os comportamentos perante o risco de infecção pelo VIH.
Um estudante ou um investigador que tenha lido autores como
Becker ou Goffman já terá percebido o interesse do conceito de
interacção. Estritamente falando, uma interacção é uma situação
cara a cara, em que os envolvidos se influenciam num processo
dinâmico que se transforma no tempo. Cada comportamento (por
exemplo, de um juiz) induz um comportamento no outro (por
exemplo, no psiquiatra) e assim por diante. É uma perspectiva
microssociológica. Utilizar este conceito equivale a considerar a
situação estudada, no caso, o tratamento dos justiçáveis e a relação
de forças entre os profissionais, como o resultado das interacções
entre o conjunto dos protagonistas, incluindo os justiçáveis em
questão, que não é previamente determinado. No decorrer dessas
interacções, estes protagonistas aprendem uns com os outros, des-
cobrem afinidades, ou desenvolvem animosidades, e, neste processo
de interacção, reelaboram permanentemente a sua percepção das
coisas. Isto traz uma grande variedade de resultados em função
do modo como decorrem essas interacções.
142 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

O investigador começará por identificar quais os intervenien-


tes que «interagem» nestes dossiês, questionará a forma como
decorrem as interacções entre eles e o modo como originam as
situações que determinam o destino dos justiçáveis.

3.2 Zona de incerteza


Se o investigador já teve algum contacto com a análise estratégica
das organizações, tal como elaborada por M. Crozier e G. Friedberg
(V'Acteur et le systême. Les contraintes de Paction collective, Paris,
Seuil, 1977), sem dúvida considerará o conceito de zona de incerteza
interessante. Com efeito, nas suas interacções, alguns profissionais
que dominam questões importantes para os outros encontram nestas
uma fonte de poder sobre aqueles, precisamente pela incerteza em
que os deixam. Por exemplo, o juiz domina uma zona de incerteza
importante para o justiçável, que tem que ver com o facto de este
não saber se o magistrado o vai condenar ou não, ou se lhe vai
aplicar, ou não, uma pena de privação de liberdade, na prisão ou
numa instituição psiquiátrica. Relativamente aos advogados das
diferentes partes e para o justiçável, o psiquiatra também domina
uma zona de incerteza no que toca às conclusões da sua avaliação:
a imputabilidade ou a inimputabilidade do justiçável aos olhos da
medicina. Para o médico, o juiz domina uma zona de incerteza na
medida em que é livre de seguir ou não as conclusões do perito.
Num jogo de poder, uma zona de incerteza corresponde, assim,
a uma questão relativamente importante para um protagonista, mas
que é controlada por outro, cujo poder reside, precisamente, na
incerteza que deixa pairar sobre o primeiro. O investigador, que
constrói a sua problemática à volta deste conceito, tentará perceber
as diferentes zonas de incerteza de cada protagonista e identificar
que outros protagonistas as controlam. A partir daqui, tentará
reconstituir o jogo das relações de poder com as limitações e os
recursos de cada um e com as alianças e as estratégias possíveis.
A PROBLEMÁTICA 143

3.3 Sistema
Prosseguindo a sua reflexão, o nosso investigador ficará indu-
bitavelmente surpreendido com o facto de os comportamentos de
cada profissional terem um impacto directo ou indirecto sobre o
comportamento do conjunto dos outros, de tal forma que, a cada
mudança no comportamento de um deles, o conjunto do «sistema»
reajusta-se mais ou menos significativamente. E vai comprovar
que, à força de trabalharem em interacção, estes profissionais
elaboraram progressivamente, formal ou informalmente, um «sis-
tema» de colaboração que funciona bastante bem e ao qual se
adaptaram o suficiente para querer protegê-lo das perturbações
externas, quer estas venham dos justiçáveis, de outras instituições
ou até de outros profissionais. Além disso, qualquer recém-chegado
que aí pretenda ocupar uma posição depressa perceberá com que
«sistema» está a lidar e como poderá adaptar-se a ele.
Estudar fenómenos sociais com base no conceito de sistema
implica interrogar-se sobre as relações de interdependência e os
ajustamentos constantes entre as suas diferentes componentes (neste
caso, o tratamento dos justiçáveis em questão), bem como sobre a
maneira como regula as suas relações com o seu ambiente. Nesta
perspectiva, o poder é uma propriedade do próprio sistema e não
daqueles que nele participam, mesmo que alguns deles ocupem
lugares mais estratégicos ao nível da sua regulação.

3.4 Campo
A visão sistémica permite compreender determinados pro-
cessos, mas dá pouca importância às relações de força entre os
intervenientes. Pelo contrário, para a teoria dos campos, tal como
elaborada por Pierre Bourdieu, juntos, os agentes formam um
espaço social de posições desiguais (um campo) — por exemplo,
o juiz ocupa uma posição mais elevada que o oficial de justiça e
144 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

no hospital o médico especialista ocupa um posto mais alto que


o enfermeiro — devido à distribuição desigual dos capitais (ou
seja, dos recursos económicos, sociais, culturais e/ou simbólicos
que cada um pode mobilizar) valorizados neste campo (neste
caso, os diplomas universitários e as competências especializadas,
por exemplo). Os agentes do campo lutam para manter as suas
posições ou para conquistar uma melhor graças às vantagens
associadas a essas posições.
Se considerarmos o espaço social onde se tratam judicialmente
os casos dos justiçáveis que sofrem de perturbações mentais como
um subcampo da justiça, os seus agentes são aqueles que inter-
vêm nesse tratamento, ou seja, os magistrados, os psiquiatras,
os psicólogos, os advogados, etc. Para aí estudar as relações de
poder, o investigador vai interessar-se pelas condições de acesso
e de reconhecimento neste campo (por exemplo, as competências
jurídicas e médicas prevalecem indubitavelmente sobre as com-
petências psicológicas ou sociais), por meio de acções específicas
desse campo (como o género de argumentos que aí são valori-
zados, os modos de pressão, as habilitações para tomar decisões
importantes...), pelas instâncias de controlo e de sanção específicas
(como as autoridades judiciais superiores), etc.
Mas, se tivermos em conta que este tratamento judicial dos
justiçáveis que sofrem de perturbações mentais liga agentes
de campos diferentes (justiça, medicina, trabalho social, apoio
psicológico...) as relações de poder entre os profissionais serão
estudadas através das forças que se estabelecem entre esses dife-
rentes campos. O investigador questionar-se-á, então, sobre o
grau de autonomia de cada campo que depende, nomeadamente,
da sua capacidade para recusar ou não solicitações oriundas de
campos vizinhos (por exemplo, os médicos podem dar-se ao luxo
de recusar um pedido de perícia de um juiz? Inversamente, os
juízes podem dar-se ao luxo de não seguir as recomendações de
um psiquiatra?). Uma análise em termos de campo põe a hipótese
de uma relativa autonomia dos diferentes campos, mesmo que
A PROBLEMÁTICA 145

os respectivos agentes tenham de colaborar uns com os outros, e


apresenta as relações de poder em termos das respectivas posições
e de lutas de posições.

3.5 Redes de actores sociais


Uma das características actuais da acção pública, social e
cultural é a sua tendência para transgredir as fronteiras entre os
campos tradicionais. A palavra de ordem é o trabalho em rede.
Passa-se de um modelo centrado na diferenciação entre as insti-
tuições para um modelo centrado na desdiferenciação. Acordos de
cidade, de bairro ou de segurança, mediação em justiça, mediação
de dívidas fazem parte destes múltiplos «dispositivos» onde pro-
fissionais de campos diferentes (o campo social, o da educação,
o da prevenção, o da saúde) têm de trabalhar em estreita colabo-
ração. Esta tendência abrange igualmente o tratamento judiciário
dos processos dos justiçáveis que sofrem de perturbações mentais
e o investigador dar-se-á conta disso no decorrer das entrevistas
exploratórias. Pensará, então, que outro conceito poderá também
ser utilizado com proveito: o da rede de actores sociais.
Uma rede de actores sociais consiste num conjunto de fluxos ou
de comunicações (mensagens, indivíduos, objectos...) entre pessoas
interligadas. Com base no conceito de rede, podemos estudar o
tratamento judiciário de processos de justiçáveis que sofrem de
perturbações mentais como um sistema de fluxos (de pedidos
de perícias, de relatórios periciais, de diagnósticos, de actas, de
mensagens telefónicas, e-mails, informações diversas...) entre os
diferentes profissionais que intervêm no mesmo processo. O inves-
tigador deverá então fazer três perguntas: o que é que circula?
Entre quem e quem? E com que lógicas?
O respectivo poder dos profissionais intervenientes dependerá,
então, das correspondentes posições estruturais nessa rede. Estão
em contacto com muitos outros ou com poucos intervenientes?
146 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

São pontos de passagem obrigatórios para determinadas comuni-


cações? Têm capacidade para bloquear ou difundir uma informa-
ção como bem entenderem? Estão em condições de mobilizar os
outros profissionais e podem ou não recusar deixar-se mobilizar
quando tal não lhes convém? Estas são algumas das perguntas
que um investigador que aborda este tema de estudo a partir do
conceito de rede poderá fazer.

3.6 Função
Não são apenas os documentos que circulam na rede de pro-
fissionais, são também os justiçáveis que sofrem de perturbações
mentais que passam de mão em mão: num dia estão com o juiz,
na semana a seguir com o psiquiatra, alguns dias mais tarde com
o médico e os enfermeiros de um hospital psiquiátrico, para serem
avaliados, pouco depois estão na sala do terapeuta, do assistente
social ou do advogado, indo deles para o psicólogo, para um
acompanhamento terapêutico, antes de voltar a estar com o
médico ou o juiz, sem esquecer algumas passagens pela polícia
e também, possivelmente, pela prisão. A partir desta observação,
o conceito de função poderá também ter algum interesse. Em
sociologia, a função traduz-se no contributo objectivo de um
elemento do sistema social (por exemplo, um costume, um modo
de funcionamento que é usual ou, no caso vertente, um modo de
tratamento judiciário) para a estabilidade e a reprodução desse
sistema e, no fim de contas, da sociedade. É uma consequência
efectiva da presença ou da acção desse elemento. O funcionalismo
parte da ideia de que se uma instituição ou uma prática repetida
existe e perdura, é porque é funcional.
Para estudar o tratamento judiciário de processos de justiçáveis
que sofrem de perturbações mentais, um investigador que se tenha
inspirado no conceito de função fará a seguinte pergunta: qual é
ou quais são as funções deste modo de tramitação que consiste
A PROBLEMÁTICA 147

em tratar um caso fazendo-o circular constantemente entre um


grande número de profissionais e de instituições? Baseando-se na
obra de Robert K. Merton, o investigador interessar-se-á sobre-
tudo pelas ditas funções «latentes», ou seja, aquelas que não são
desejadas nem apreendidas. Imaginamos várias possibilidades de
respostas que teríamos de cruzar: evitar os custos (humanos, sociais
e financeiros) de um internamento, dar trabalho a uma série de
profissionais, proporcionar a oportunidade de reinserção social
a pessoas em dificuldades psicológicas, medicalizar os problemas
sociais e de delinquência, gerir os indivíduos aos quais a sociedade
não sabe o que fazer, fazendo-os circular como se fossem uma
«batata quente». Ainda assim, posteriormente, será necessário dar
uma consistência empírica e conseguir operacionalizar tais pistas.

3.7 Acção colectiva


Nos domínios da acção pública e social, como o tratamento
judiciário dos justiçáveis que sofrem de perturbações mentais, não
é invulgar que grupos de actores se organizem e se mobilizem de
modo formal ou informal para tentar influenciar a maneira como
são geridos os problemas. Estes grupos podem reunir profissionais
de uma mesma corporação (por exemplo, magistrados progressistas
militantes) ou congregar representantes de diversas profissões, mas
que partilham os mesmos valores (como a igualdade de todos no
acesso à justiça ou à saúde) ou os mesmos interesses (designa-
damente, os interesses de uma instituição local). A acção destes
grupos é susceptível de influenciar o tratamento dos problemas,
muitas vezes de modo informal, pelo menos quando constituem
redes fortemente mobilizadas, cujos membros são muito solidários.
Neste caso, podemos falar de movimento social (no sentido
em que o conceito foi teorizado por Alain Touraine, nomeada-
mente na obra La Voix et le Regard, Paris, Seuil, 1978), mas
poderíamos também utilizar adequadamente conceitos como
148 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

grupo de pressão ou microcontexto de mobilização. Um grupo


de pressão reúne pessoas que pretendem «exercer pressão» sobre
os decisores para conseguirem alcançar os seus fins. Por vezes,
estes grupos são tão poderosos que, de facto, participam quase
formalmente na decisão (é o caso das associações patronais e
sindicais, de grandes lóbis industriais e de certas organizações não
governamentais). Considerados os átomos sociais base de toda a
acção colectiva, os microcontextos de mobilização representam
«qualquer situação em pequeno grupo na qual os processos
de atribuição colectiva se combinam com formas rudimentares de
organização para produzir uma mobilização para uma acção
colectiva» (McAdam, McCarthy e Zald, «Social movements»,
in N. J. Smelser (ed.), Handbook of Sociology, Newsbury Park,
Londres, Nova Deli, Sage, 1988, 695-737, p. 709). A atribui-
ção colectiva consiste em imputar uma situação, por exemplo,
condições de vida precárias ou um tratamento doloroso, não a
si mesmo, mas a uma causa colectiva como, por exemplo, uma
injustiça social ou uma discriminação geral da sociedade. As
formas rudimentares de organização englobam tudo aquilo que
permite a um grupo activista trabalhar: planificação das reu-
niões e das acções, partilha do trabalho, regras de colaboração,
modos de decisão. Tais conceitos levam a problemática para o
terreno dos valores e das ideologias partilhadas, o modo como
os grupos se posicionam nos sistemas de acção (em relação a
que desafios e a que adversários) e, em especial, as modalidades
de acção colectiva.
Alguns destes conceitos foram já evocados atrás, nos exem-
plos de problemáticas propostos. Os conceitos de interacção,
sistema social e rede já tinham sido utilizados nas problemáticas
previstas para estudar os comportamentos perante o risco de
infecção pelo VIH. Isto mostra que estes conceitos podem ser
usados proveitosamente para estudar uma grande variedade de
fenómenos e que o investigador principiante tem todo o interesse
em dominá-los bem.
A PROBLEMÁTICA 149

Gérard Mauger mostrou que uma grande parte dos trabalhos de


Pierre Bourdieu (nomeadamente sobre a cultura, o meio académico
e o da arte) assentava em três conceitos principais que, em con-
junto, constituem a espinha dorsal da sua teoria: os conceitos de
capital, de campo e de habitus (ou seja, um conjunto de disposições
para pensar, sentir e agir ligadas à posição social). Foi a partir
destes conceitos que o autor formulou um conjunto coerente de
questões de investigação que formam a sua problemática (Mauger,
G., «Champ, habitus et capital» em Bourdieu P., Les Champs de
la critique, Paris, BPI/Centro Pompidou, 2004, pp. 61-74). Com
base no conceito de campo, Mauger propôs questões relativas à
génese de um campo e ao modo como este se autonomiza com
o passar do tempo, à sua posição relativamente a outros campos
e o seu grau de autonomia, à sua estrutura de relações entre as
posições em concorrência no seu seio, às condições de acesso a
ele ou às estratégias desenvolvidas pelos agentes para aí melho-
rarem a sua posição.
A lista de conceitos com os quais poderíamos prosseguir este
exercício é longa; por exemplo, socialização, hierarquia de credi-
bilidade, interdependência, estatuto e função, violência simbólica,
adaptação secundária, burocracia, carreira moral, contradição,
controlo social... Alguns conceitos são centrais de uma disciplina
(nos nossos exemplos, a sociologia), mas outros foram desenvolvi-
dos no seio da teoria particular de uma disciplina. O importante
é perceber o quanto estes conceitos ultrapassam as definições
do dicionário de sociologia; eles implicam uma «concepção» da
realidade, uma forma de a interrogar e de a construir como pro-
blema de conhecimento, em suma, uma forma de a problematizar.
É essencial compreender que, muitas vezes, cada conceito se
inscreve numa teoria que não se reduz apenas a ele, mesmo que aí
ocupe um lugar crucial. Como acabámos de ver, em Bourdieu, mas
não forçosamente noutros autores, o conceito de campo inscreve-
-se numa teoria em que está ligado aos conceitos de capital e de
habitus. Outro exemplo, o conceito de zona de incerteza inscreve-se
150 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

na análise estratégica das organizações de Michel Crozier, onde


está ligado a outras noções como a racionalidade limitada dos
actores. Não devemos, pois, utilizar um conceito isoladamente,
como se fosse uma chave mágica que sozinha abrirá a porta do
conhecimento, mas sim no contexto teórico que é o seu.
Por último, adivinha-se já que as opções metodológicas depen-
derão parcialmente das problemáticas. Por exemplo, uma proble-
mática construída em torno de um conceito de interacção exige,
em geral, um procedimento qualitativo que permita perceber bem
a subtileza da realidade dos processos concretos de interacção,
enquanto uma problemática construída em torno de um conceito
de função, pelo menos tal como considerada no exemplo exposto,
implicará identificar um conjunto de fluxos de processos e de
justiçáveis que circulam entre os vários profissionais. Mas, depois
da escolha da problemática, e antes da selecção dos métodos de
recolha das informações, é necessário, em primeiro lugar, construir
o modelo de análise. Este será o tema da etapa seguinte, mas ainda
não chegámos até lá. O primeiro problema que se apresenta nesta
fase é o de saber como proceder concretamente para determinar
a problemática da sua própria investigação.

4. OS DOIS MOMENTOS DE UMA


PROBLEMÁTICA
A problemática constrói-se progressivamente a partir da fase
exploratória. Conforme vai realizando as suas leituras e entrevistas,
o investigador tira notas, compara-as, organiza as suas reflexões
de modo que as linhas mestras da sua investigação comecem a
desenhar-se, passo a passo. Os conhecimentos teóricos podem então
ser estudados noutros contextos, podem ser mobilizados. De súbito,
o investigador percebe que os autores e as teorias estudados um
pouco abstractamente ao longo das aulas se revelam úteis para
formular uma problemática aliciante. Todavia, nesta fase, pode ser
A PROBLEMÁTICA 151

interessante formalizar melhor a maneira de proceder no termo da


fase exploratória, para ajudar o investigador que agora se inicia
a organizar melhor as suas ideias. Este procedimento comporta
dois momentos.

4.1 O primeiro momento: fazer o balanço


e elucidar as problemáticas possíveis
Este primeiro momento consiste em avaliar e comparar as
diferentes abordagens do problema tal como se manifestaram a
partir da fase exploratória, como fizemos anteriormente, no exem-
plo dos comportamentos sexuais perante o risco de infecção pelo
VIH. Esta avaliação pode revelar diversas lacunas na exploração,
nomeadamente em matéria de leituras teóricas. Nesse caso, para
colmatar estas omissões, poderá ser feito um pequeno complemento
do trabalho exploratório.
Para organizar de forma ordenada as pistas descobertas durante
a fase exploratória, o estudante ou o investigador pode começar
por recorrer às referências conceptuais fornecidas anteriormente e,
se puder ir mais além, socorrer-se das aulas e das obras teóricas
a que teve acesso.
Para poderem ser úteis a todos os leitores, seja qual for o seu
tema, as referências teóricas propostas previamente revestem-se
de carácter geral. Mas estas leituras exploratórias terão forçosa-
mente conduzido o investigador para uma leitura específica do
domínio particular que lhe interessa, por exemplo, a sociologia
da família, a psicossociologia das empresas ou a análise da par-
ticipação política.
Por exemplo, o investigador principiante que inicia uma inves-
tigação sobre o insucesso escolar rapidamente descobrirá que este
tema já foi abordado a partir de várias problemáticas, nomeada-
mente: os mecanismos de reprodução de desigualdades, ligados
aos recursos financeiros e culturais dos pais; a diferença mais
152 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ou menos importante entre a cultura da escola (os seus valores,


normas comportamentais, linguagem...) e a cultura do meio social
do aluno; o questionamento da autoridade da instituição escolar
que tem dificuldades em obter a lealdade e a confiança de alguns
meios sociais; o crescente poder das novas fontes de informação
e dos novos espaços de socialização (como a internet) e o seu
embate com a escola, enquanto fonte tradicionalmente dominante
de saberes; as deficiências no funcionamento e na organização
do sistema educativo, com a sua rigidez e tradição burocrática;
o fosso entre o projecto da escola e o dos jovens, que podem
deliberadamente decidir ser expulsos para marcar o seu repúdio
pela instituição e seguir outro projecto; as interacções entre os
jovens que se encorajam mutuamente nas suas atitudes em relação
à escola e aos adultos. E esta lista não é exaustiva.
No decorrer da fase exploratória, o investigador deve informar-
-se sobre as principais orientações da investigação neste domínio
e ser capaz de situar o seu trabalho em relação a elas e na con-
tinuidade dos debates sobre o assunto. À sua pergunta de partida
poderá então tornar-se mais precisa. Por exemplo, a pergunta
muito geral «Quais são as causas do insucesso escolar?» poderá
ser substituída por «Em que medida é que a organização da escola
influencia o sucesso ou fracasso dos seus alunos?» ou ainda «Qual
a visão dos alunos acerca da instituição escolar e quais os efeitos
dessa visão no seu sucesso ou no seu fracasso escolar?».
Em contrapartida, alguns fenómenos sociais relativamente recen-
tes e as investigações que deles se ocupam podem ser consideradas
pioneiras, pois abordam um domínio pouco explorado e partem
quase do zero. É o caso do exemplo da representação de si na
Net. Mas, mesmo neste caso, é preciso ter a certeza de que não
existem já trabalhos interessantes e, nesse caso, tomar conheci-
mento dessa informação.
Quando se aborda uma questão no contexto de um trabalho
de fim de curso ou de uma investigação, no mínimo, temos de
nos informar acerca das orientações gerais do campo científico
A PROBLEMÁTICA 153

em que esse trabalho ou essa investigação se inscreve. O campo


de possibilidades de disciplinas como a Sociologia, as Ciências
Políticas, a Comunicação, a Antropologia, a Psicologia Social ou
a Economia (com os seus muitos domínios especializados) é muito
vasto e nenhum investigador o poderá dominar na totalidade.
Mas podemos exigir aos que se comprometem com um trabalho
de investigação que sejam capazes de estabelecer os limites da
abordagem que pensam adoptar. A particularidade do cientista,
que se formou na sistemática e nos fundamentos da sua disciplina,
não é saber tudo acerca dessa disciplina ou subdisciplina, é não
ignorar a existência daquilo que não domina e poder, desde logo,
situar correctamente a sua abordagem na esfera das abordagens
possíveis.

4.2 Segundo momento: atribuir-se


uma problemática
Quer se trate de uma investigação de teorias gerais ou de
teorias aplicadas a um campo concreto, é necessário evitar que-
rer ir «demasiado longe» no plano teórico. Não é invulgar que
estudantes, investigadores ou doutorandos perfeccionistas, que
querem explorar e dominar as profundezas das abordagens teóricas
possíveis, ou até de apenas uma entre elas, e que os apaixona, se
fechem numa reflexão puramente teórica da qual nunca conse-
guem sair porque nunca estão satisfeitos. A cada nova leitura, seja
de um livro ou de um artigo interessante, põem em causa todo
o seu trabalho anterior e nunca conseguem decidir-se. Quantas
teses por acabar repousam, assim, nos gabinetes de investigadores
demasiado ansiosos e demasiado perfeccionistas e aos quais falta
uma qualidade essencial: saber tomar uma decisão no momento
certo, limitar as suas ambições e avançar?
Tomar uma decisão não significa fechar-se numa visão
obtusa. Tudo o que foi lido, visto e ouvido no decurso de uma
154 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

etapa exploratória acabará, mais cedo ou mais tarde, por ser


explorado de uma ou outra maneira. Contudo, as perspectivas
teóricas não escolhidas explicitamente para a problemática não
serão esquecidas; ficarão como que em repouso, em reserva, nas
anotações feitas e na mente, prontas para serem reactivadas
quando chegar a hora. Mas não podemos abarcar tudo nem
de todas as maneiras possíveis; é necessário um fio condutor
que dê sentido e coerência ao trabalho. É um fio que começa
a ser tecido primeiro com a pergunta de partida, depois com a
problemática e por fim com as hipóteses de investigação... que
se entrelaçam continuamente.

Que critérios reter para escolher a sua problemática?


Há essencialmente cinco critérios.

1. Argumentos de razão. Se diferentes abordagens são clarificadas


e comparadas, não é para nos mantermos num relativismo
estéril segundo o qual todas as abordagens seriam equivalentes.
O campo científico é um campo conflituoso constituído por
correntes de pensamento concorrentes ou até rivais e que são
discutidas. Isto tem a sua fecundidade. Embora não exista a
abordagem teórica ideal, tal como não existe a verdade absoluta,
nem todas se assemelham e algumas estão ultrapassadas e são
mesmo francamente prejudiciais (como o darwinismo social que
justifica a lei do mais forte). A coerência do campo científico
tem origem na própria dinâmica do debate interno nesse campo.
Por isso, é necessário escolher uma problemática que resista
ao debate e a favor da qual se possam avançar argumentos
fortes. Entre esses argumentos podemos citar, por exemplo, o
facto de a problemática escolhida permitir considerar aspectos
particularmente importantes do problema, envolver na análise a
maioria dos actores visados e as relações entre eles ou, ainda,
atribuir um lugar à dimensão histórica do problema. Tudo
depende, evidentemente, do tema do estudo e dos objectivos da
A PROBLEMÁTICA 155

investigação. Por exemplo, em determinados casos a dimensão


histórica é essencial, mas noutros já o será menos.
. Um argumento de razão merece uma atenção particular. Estudar
pela enésima vez um fenómeno que já foi analisado com toda a
atenção não terá muito interesse. O que é que a problemática
escolhida trouxe à luz que não se tenha conseguido ver tão
claramente sem ela? Esta é a pergunta que deve ser feita. Sem
procurar ser original por si só e a qualquer custo, é importante
que o trabalho constitua um novo contributo relativamente aos
conhecimentos já adquiridos. Além disso, dos investigadores
experientes e que dominam bem o campo científico do seu
próprio domínio, e sobretudo daqueles que iniciam uma tese de
doutoramento, espera-se que, com o seu trabalho, preencham
lacunas nos conhecimentos e na literatura científica.
. Como é evidente, embora os argumentos de razão devam pre-
valecer, não devem constituir o único critério a ter em consi-
deração. A pertinência relativamente aos objectivos do próprio
investigador também é importante. A investigação pertence,
antes de mais, àquele que a realiza e, acima de tudo, a perspec-
tiva adoptada tem de lhe interessar e fazer sentido em relação
aos seus objectivos. Só fazemos bem aquilo que tem sentido
para nós, que nos interessa ou até que nos dá prazer. Quando
o investigador pretende que o seu trabalho seja socialmente
útil, os seus objectivos podem corresponder a questões societais.
É de louvar que se deseje conjugar o interesse científico com
o benefício social. Na verdade, há muitas investigações que
se inscrevem numa óptica de melhoria da sociedade e numa
perspectiva de militância e é vantajoso se encontraram exigên-
cias de cientificidade. Esta escolha pode trazer ao investigador
um acréscimo de motivação. No entanto, pode acontecer que
este opte por um tema e por uma problemática por razões
pessoais discutíveis, como o entusiasmo não dominado por
uma corrente de pensamento perante a qual poderá ter per-
dido todo o seu sentido crítico, a admiração por um mestre a
cuja teoria atribui o estatuto de um dogma, a vontade de se
156 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

impor como pioneiro no seu domínio, ou o desejo incontido


de exorcizar uma experiência pessoal dolorosa. Seja qual for
o caso, o investigador deve manter-se lúcido acerca das suas
próprias motivações.
O realismo relativamente aos recursos deve ser tido em conside-
ração. O critério indicado para a pergunta de partida também
é válido neste caso. Empenhar-se num trabalho que ultrapassa
os seus próprios limites quanto a tempo, meios materiais,
competências intelectuais e experiência na matéria só poderá
conduzir ao desencorajamento e a um resultado de qualidade
medíocre.
Sem confundir esta etapa com a próxima, poderá ser igual-
mente útil ter em consideração as perspectivas da problemática
em termos de operacionalização. Algumas abordagens, muito
aliciantes intelectualmente, podem não se prestar facilmente
à construção precisa de um modelo de análise operacional.
Portanto, o risco seria ficar-se por considerações abstractas ou
não conseguir articular correctamente as especulações teóricas
e as observações no terreno, realizadas de maneira confusa.

Concretamente, existem duas maneiras de realizá-lo:

— À primeira consiste em conservar uma abordagem teórica


existente, adaptada ao problema estudado e cujos conceitos e
ideias principais tenham sido bem apreendidos. Por exemplo,
podemos estudar a posição dos principais partidos políticos
sobre uma questão da actualidade a partir do conceito de
campo, inspirando-nos directamente nas noções utilizadas por
P. Bourdieu e que encontramos quer em trabalhos pedagógicos,
que expõem a sua teoria, quer numa das suas próprias obras,
neste caso, Propos sur le champ politique (Lião, Presses Uni-
versitaires de Lião, 2000). Outro exemplo: podemos estudar
problemas encontrados em organizações ou empresas (como
um conflito sobre a implementação de um novo organigrama
ou de uma inovação tecnológica) com a ajuda de ferramentas
A PROBLEMÁTICA 157

conceptuais e hipóteses de análise estratégica das organizações


desenvolvida por Crozier e Friedberg (op. cit.). Outro exemplo
ainda: para estudar a propagação de uma informação numa
colectividade, podemos mobilizar a análise das redes sociais
e tentar reconstituir os fluxos de informação e os diferentes
transmissores por que aquela passou. Ou, ainda, para estudar
os comportamentos de revolta nos bairros populares, podemos
trabalhar a partir da abordagem do actor social, tal como foi
desenvolvida por Dubet em La Galêre. Jeunes en survie (Paris,
Le Seuil, 1987). Para perceber como se forma uma acção colec-
tiva, podemos recorrer ao quadro conceptual elaborado por
McAdam et al. (op. cit.) com o conceito-chave do contexto de
micromobilização. Este primeiro cenário consiste, assim, em
explorar de forma flexível as ferramentas teóricas que já pro-
varam a sua utilidade, trazendo-lhes adaptações ou correcções
que as tornarão mais apropriadas ao novo tema de estudo;
— À segunda maneira consiste em fabricar uma problemática ad
hoc com base em elementos (conceitos, hipóteses, perguntas
de investigação) retirados das diferentes abordagens teóricas
existentes. Mais adiante, encontraremos vários exemplos disso.
Explicitar a sua problemática é uma oportunidade para refor-
mular a pergunta de partida, tendo em consideração a pro-
blemática escolhida. Por exemplo, a pergunta formulada por
Alain Touraine a propósito da luta estudantil (ver a primeira
etapa) está ligada à sua abordagem teórica accional, centrada
no conceito de movimento social.
Por meio destas clarificações, modificações e aprofundamentos
sucessivos, a pergunta de partida tornar-se-á verdadeiramente a
pergunta central da investigação, na qual se resumirá o objec-
tivo do trabalho.

Como se verifica, a formulação da pergunta de partida, as lei-


turas e as entrevistas exploratórias e, por fim, a explicitação da
sua problemática estão em estreita interacção. Estas etapas estão
sempre a reflectir-se umas nas outras num processo que é mais
158 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

circular ou em espiral do que estritamente linear. O processo só


foi decomposto em etapas distintas por uma questão de clareza
da exposição e de progressividade da formação, e não porque as
etapas fossem realmente autónomas. Os circuitos de retroacção
que, no esquema seguinte, retrocedem de uma etapa para a ante-
rior representam esse processo circular.

Etapa 1 — A pergunta de partida

Etapa 2 — A exploração


P| As entrevistas
As leituras
« exploratórias

Etapa 3 — A problemática

A interacção que se manifesta entre estas três primeiras etapas


encontra-se também nas etapas seguintes. Assim, a montante, a
problemática só chega realmente ao ffm com a construção do
modelo de análise (quarta etapa). A construção distingue-se da
problematização pelo seu carácter operacional, porquanto esta
construção deve servir de guia à observação (quinta etapa).
Estas interacções entre as diferentes etapas da investigação
implicam que a problemática se mantenha aberta durante todo
o processo. A problemática fornece uma orientação sem a qual
o investigador não saberia como avançar, confere uma coerência
intelectual ao seu trabalho e convida-o a explorar aspectos do fenó-
meno aos quais, claramente, não tinha prestado atenção. Mesmo
A PROBLEMÁTICA 159

no caso das investigações que adoptam uma abordagem indutiva,


onde se parte das observações para generalizar (ou teorizar) passo
a passo (ver mais adiante o field research), o investigador tem à
partida uma ideia, mesmo que relativamente imprecisa, do modo
como equaciona o problema, por isso terá pelo menos alguns
fragmentos da problemática. Mais vale explicitá-los. De qualquer
forma, a problemática nunca está verdadeiramente fechada, por-
que ao longo das observações e das análises a sua pertinência
será constantemente posta à prova, cada nova informação trará
novos conhecimentos que darão origem a novas interrogações, e
a problemática definida ao longo desta etapa será aperfeiçoada,
por vezes até seriamente abalada. E ainda bem que assim é, pois
uma investigação é uma investigação, não é uma demonstração.

RESUMO DA TERCEIRA ETAPA


A PROBLEMÁTICA

A problemática é a abordagem ou a perspectiva teórica que se


decide adoptar para tratar o problema posto pela pergunta de par-
tida. É uma maneira de interrogar os fenómenos estudados. Cons-
truir a sua problemática quer dizer responder à pergunta «como
vou abordar este fenómeno?».
Conceber uma problemática pode fazer-se em dois momentos:

e Num primeiro momento, faz-se o balanço das problemáticas pos-


síveis, elucidam-se e comparam-se as suas características. Para
esse efeito, parte-se dos resultados do trabalho exploratório.
Com a ajuda de pontos de referência fornecidos pelas aulas teó-
ricas, por obras e/ou artigos de referência, tenta-se esclarecer as
perspectivas teóricas que subtendem as abordagens encontradas e
podem descobrir-se outras.
e Num segundo momento, escolhe-se e explicita-se a sua própria
problemática com conhecimento de causa. Escolher é adoptar
um quadro teórico que convenha ao problema e sobre o qual se
tenha um domínio suficiente. Para explicitar a sua problemática,
redefine-se o melhor possível o objecto da investigação, preci-
sz
>
Zz
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|

O
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=
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QUARTA ETAPA
A CONSTRUÇÃO DO
MODELO DE ANÁLISE
AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO

Etapa 1 — A pergunta de partida

Etapa 2 — A exploração

>
?| As entrevistas
As leituras
« exploratórias

Etapa 3 — A problemática

Etapa 4 — A construção do modelo de análise


G==,

Etapa 5 — A observação
Greem

Etapa 6 — A análise das informações


Ge

Etapa 7 — As conclusões

|
1. OBJECTIVOS
O trabalho exploratório tem como função alargar as perspecti-
vas de análise, travar conhecimento com o pensamento de autores
cujas investigações e reflexões podem inspirar as do investigador,
revelar facetas do problema nas quais não teria decerto pensado
por si próprio e, por fim, optar por uma problemática apropriada.
Contudo, estas perspectivas e estas ideias novas devem poder
ser exploradas o melhor possível para compreender e estudar de
forma precisa os fenómenos concretos que preocupam o inves-
tigador, sem o que não servem para grande coisa. É necessário,
portanto, traduzi-las numa linguagem e em formas que as habi-
litem a conduzir o trabalho sistemático de recolha e análise de
dados de observação que deve seguir-se. É este o objecto desta
fase de construção do modelo de análise. Constitui a charneira
entre a problemática fixada pelo investigador, por um lado, e o seu
trabalho de elucidação sobre um campo de análise forçosamente
restrito e preciso, por outro.
A exposição desta etapa será feita em três momentos:

1. No primeiro momento, veremos em que consiste o modelo de


análise. Mostraremos como elaborar conceitos para assim os tor-
nar operacionais para as investigações concretas. Analisaremos
também a função das hipóteses no processo de investigação.
Como habitualmente, partiremos de exemplos concretos: por
um lado, a investigação de Émile Durkheim sobre o suicídio;
por outro, um trabalho de teorização do poder a partir de
uma abordagem em termos de rede de actores sociais.
2. No segundo momento, indicaremos dois caminhos possíveis
para construir o modelo de análise da sua própria investiga-
ção. O primeiro consiste em pedir emprestados os conceitos e
as hipóteses gerais a uma teoria que já existe, adaptando-os
164 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

de forma pertinente ao fenómeno estudado. Geralmente, este


primeiro caminho está em consonância com um procedimento
dedutivo e falaremos de conceitos sistémicos no sentido em
que se inscrevem num sistema teórico já existente. O segundo
caminho, com maior afinidade com um procedimento indutivo,
consiste em «produzir» os seus próprios conceitos e hipóteses
e neste caso falaremos em conceitos operatórios isolados.
3. Por último, no terceiro momento, mostraremos de que forma foi
construído o modelo de análise, tanto com base em conceitos
emprestados, como em conceitos produzidos, em investigações
reais sobre questões concretas: a dos comportamentos perante
o risco de infecção pelo VIH e a do significado da partici-
pação dos cidadãos numa acção colectiva. Estas duas aplica-
ções serão retomadas nas duas etapas seguintes: a observação
(quinta etapa) e a análise (sexta etapa), de forma a permitir
ao leitor apreender o processo de investigação no seu conjunto
e na sua continuidade, apreendendo bem as articulações entre
as diferentes etapas.

2. EM QUE CONSISTE O MODELO


DE ANALISE?
Para explicar em que consiste o modelo de análise, partiremos
de dois exemplos. Depois de expostos, retiraremos deles um deter-
minado número de conhecimentos essenciais sobre a construção
dos conceitos, em primeiro lugar, e depois sobre a formulação e
as funções das hipóteses.

2.1 O suicídio
Como vimos acima, Durkheim vê no suicídio um fenómeno
social ligado, nomeadamente, ao estado de coesão da sociedade.
Segundo ele, cada sociedade predispõe em maior ou menor grau
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 165

os seus membros para o suicídio, ainda que este último não deixe
de ser um acto voluntário e, a maior parte das vezes, individual.
Por mais genial que seja, esta intuição tem de ser desenvolvida e
confrontada com a realidade.
Isto implica, primeiro, que as noções de suicídio e de taxa de
suicídio sejam definidas de forma precisa. É o que Durkheim faz
na introdução da sua obra: «Chama-se suicídio a todo o caso de
morte que resulte directa ou indirectamente de um acto positivo
ou negativo realizado pela própria vítima e que esta sabia que
deveria produzir esse resultado.»
Com esta definição precisa, Durkheim pretende evitar as con-
fusões que levariam a incluir o que não deve ser incluído — por
exemplo, os casos de pessoas que se matam acidentalmente — e
a omitir aquilo que deve ser incluído — por exemplo, os casos
de pessoas que procuram e aceitam a sua morte sem a provoca-
rem materialmente elas próprias, como o soldado que se sacrifica
voluntariamente num campo de batalha ou o mártir que, já na
arena, recusa abjurar a sua fé. Ao reduzir ao máximo os riscos
de confusão, esta definição da noção de suicídio permitirá a
Durkheim comparar validamente as taxas de suicídio de várias
regiões da Europa. Quanto à taxa de suicídio, é igual ao número
de casos que correspondem a esta definição ocorridos ao longo de
um determinado período, numa determinada sociedade, por cada
milhão ou 100 000 habitantes.
Estas duas noções representam mais do que simples definições
do tipo que podemos encontrar aos milhares nos dicionários.
Inspiram-se numa ideia teórica (a dimensão social do suicídio),
traduzindo-a numa linguagem precisa e operacional que permite,
no caso presente, reunir e comparar os dados estatísticos. Estando
ligadas à mesma ideia central, estas duas noções são, além disso,
complementares; juntamente com a noção de coesão social, expri-
mem uma problemática e delimitam de forma clara o objecto
da investigação. Além disso, a ideia de taxa de suicídio faculta
a unidade de análise dos dados recolhidos dentro desses limites.
166 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Estas qualidades de tradução de uma ideia teórica, de comple-


mentaridade e de operacionalidade, que estas noções possuem
justificam o facto de as distinguirmos nitidamente das simples
definições, atribuindo-lhes o estatuto de conceito.
A elaboração dos conceitos chama-se conceptualização. Cons-
titui uma das dimensões principais da construção do modelo de
análise. De facto, sem ela é impossível imaginar um trabalho que
não se torne vago, impreciso e arbitrário.
Graças aos conceitos de suicídio e de taxa de suicídio, Durkheim
sabe que categorias de fenómenos toma em consideração. Mas, em
si mesmos, estes conceitos não lhe dizem nada sobre a maneira
de estudar estes fenómenos. Esta importante função é assegurada
pelas hipóteses. Estas apresentam-se sob a forma de proposições
de resposta às perguntas postas pelo investigador. Constituem, de
algum modo, respostas provisórias e relativamente sumárias que
guiarão o trabalho de recolha e análise dos dados e que terão,
por sua vez, de ser testadas, corrigidas e aprofundadas por ele.
Para entendermos bem o que são e para que servem, comecemos
por voltar ao nosso exemplo.
Num primeiro momento, Durkheim levanta a questão das
causas do suicídio e exprime a sua intuição segundo a qual este
fenómeno está ligado ao funcionamento da própria sociedade.
Procurará, portanto, as causas sociais do suicídio. Ao fazer isto,
define a problemática da sua investigação.
Num segundo momento, põe a hipótese de a taxa de suicídio
de uma sociedade estar ligada ao grau de coesão dessa sociedade:
quanto menos forte for a coesão social, mais elevada deverá ser a
taxa de suicídio. Esta proposição constitui uma hipótese, porque
se apresenta sob a forma de uma proposição de resposta à per-
gunta sobre as causas sociais do suicídio. Esta hipótese inspirará
a selecção e a análise dos dados estatísticos e, reciprocamente,
estas últimas permitirão aprofundá-la e matizá-la.
Mas, antes de chegarmos a esse ponto, verificamos que esta
hipótese estabelece uma relação entre dois conceitos: o de taxa
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 167

social de suicídio, que já foi definido, e o de coesão social, que


deve ser precisado.
O grau de coesão de uma sociedade pode, com efeito, ser
estudado sob vários ângulos e avaliado em função de múltiplos
critérios. Num tal nível de generalização ainda não se vê exac-
tamente que tipos de dados podem ser considerados para testar
uma tal hipótese.
Como critério para avaliar o grau de coesão de uma sociedade,
Durkheim toma primeiro a religião. A função da religião relativa-
mente à coesão social parece-lhe, de facto, incontestável ao longo
do século x1x. Dir-se-á, portanto, que a coesão religiosa constitui
uma dimensão da coesão social. Durkheim usará igualmente uma
outra dimensão: a coesão familiar. Mas, para o que aqui nos
interessa, limitar-nos-emos à coesão religiosa.
Esta pode ser medida de modo relativamente fácil com a ajuda
daquilo a que chamamos indicadores. Com efeito, a importância
relativa da solidariedade ou, pelo contrário, do individualismo
dos fiéis manifesta-se concretamente, segundo Durkheim, pela
importância dada ao livre exame na religião considerada, pela
importância numérica do clero, pelo facto de numerosas pres-
crições religiosas terem ou não um carácter legal, pela influência
da religião na vida quotidiana, ou ainda pela prática em comum
de numerosos ritos. Graças a estes indicadores, que são traços
facilmente observáveis, Durkheim torna operacional o conceito de
coesão social. À sua hipótese poderá, em seguida, ser confrontada
com dados de observação.
As relações entre os elementos que têm vindo a ser tratados
são representadas esquematicamente na Figura 4.1.
Neste primeiro exemplo observamos que:

1. Esta hipótese estabelece uma relação entre dois conceitos:


por um lado, o conceito de taxa de suicídio, por outro lado,
o conceito de coesão social. Cada um destes conceitos cor-
responde a um fenómeno, ou seja, a qualquer coisa que se
x . Hipótese Taxa de suicídio
Coesão social ———————+> ;
como facto social
noOnN=mHo Zoo

Coesão religiosa Coesão familiar


ZH
nHOnZm

Importância
dada ao Carácter legal ou
livre exame não de numerosas
'Zm

prescrições religiosas
ron

Importância Taxa de suicídio


numérica como dado
do clero estatístico
OD

Prática em comum
de numerosos ritos
Influência da
nm

religião na vida
quotidiana

Figura 4.1. — A taxa de suicídio em função do grau de coesão social


A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 169

manifesta, que se vê (ouve ou sente...), susceptível, portanto,


de ser objecto de observação: respectivamente, por um lado,
o facto de as pessoas se matarem e de esses suicídios serem
mais ou menos numerosos na sociedade e, por outro lado, o
facto de os membros de uma sociedade serem mais ou menos
individualistas.
2. São os indicadores que permitem esta observação. Uma vez
associados aos respectivos indicadores, os dois conceitos que
constituem a hipótese são apresentados de tal forma que per-
cebemos facilmente o tipo de informações que será preciso
recolher para a testar. Com efeito, a taxa de suicídio é o seu
próprio indicador, ao passo que a coesão social (aqui estudada
na sua dimensão de coesão religiosa) poderá ser medida graças
aos cinco indicadores definidos.
3. Graças aos indicadores e ao relacionamento dos dois conceitos
por meio de uma hipótese, será possível observar se as taxas
de suicídio de diferentes sociedades variam, de facto, com
o seu grau de coesão social. Por estarem assim relacionadas e
operacionalizadas, poderemos designar a taxa de suicídio
e a coesão social como variáveis. (Note-se que em análise de
dados é frequente designar por «variável» aquilo a que aqui
chamamos «indicador».)

A coesão social, cujas variações supomos, por hipótese, que


explicam as variações da taxa de suicídio, chamar-se-á variável
explicativa, enquanto a taxa de suicídio, cujas variações, por
hipótese, dependem das variações da coesão social, se chamará
variável dependente. Esta relação é simbolizada por uma seta
horizontal no esquema anterior.
Nos capítulos seguintes da sua obra, Durkheim formula uma
outra hipótese. Além do suicídio ligado a uma fraca coesão social,
a que chama suicídio egoísta, considera que, inversamente, uma
coesão social muito forte pode igualmente favorecer o suicídio.
É este o caso quando, em certas sociedades, os velhos se aban-
donam à morte ou se matam para não sobrecarregarem os seus
170 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

descendentes com um peso inútil e para, segundo pensam, termi-


narem assim a sua vida com dignidade. Durkheim falará então
de suicídio altruísta.

Hip. 1: Fraca
coesão
social

Hip. 2: Coesão
social Suicídio
muito forte

Hip. 3: Anomia

Figura 4.2. — O sistema de hipóteses de Durkheim

Considera, por fim, uma terceira forma, o suicídio anómico,


que resultaria de um enfraquecimento da consciência moral que
acompanha frequentemente as grandes crises sociais, económicas ou
políticas, ou períodos de prosperidade muito rápidos. Com efeito,
em tais contextos, aumenta o fosso entre as finalidades fixadas
ou o que a sociedade valoriza (como melhorar a sua condição
material, por exemplo) e os recursos de que podemos dispor para
os alcançar. Nestas condições, as regras morais deixam de fun-
cionar como indicações válidas para estruturar as condutas dos
indivíduos. Este desequilíbrio entre as ambições e os meios para
as satisfazer provoca inevitavelmente graves conflitos internos que
podem levar ao suicídio.
Este conjunto estruturado e coerente, composto por conceitos,
com as suas dimensões, os seus indicadores e hipóteses articuladas
entre si, constitui aquilo a que se chama o modelo de análise de
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 171

uma investigação. Construí-lo equivale, portanto, a elaborar um


sistema coerente de conceitos e de hipóteses operacionais.

2.2 Poder e rede social


Vimos anteriormente que as relações de poder entre profissionais
intervenientes em dispositivos de gestão de alguns problemas (como
o tratamento judiciário de justiçáveis que sofrem de perturbações
mentais, o sobreendividamento, a delinquência e o insucesso esco-
lar) podiam ser estudadas a partir de uma problemática baseada
no conceito de rede de actores sociais. Isto é igualmente válido
para uma série de outros de fenómenos, ligados às mais variadas
questões, quer na distribuição de notas entre os alunos de uma
turma da escola, por exemplo, como nas relações de vizinhança,
nas relações de poder no seio de um partido político, ou mesmo
à escala do universo político, a nível local ou nacional. Evidente-
mente, não devemos confundir, por um lado, o conceito de rede
de actores sociais, que é uma ferramenta de análise sociológica
potencialmente útil para o estudo de uma infinidade de fenómenos
sociais e de situações sociais caracterizadas por múltiplas trocas
horizontais e, por outro, o que designamos pelo termo «rede» ou
«rede social» na linguagem corrente (como o Facebook ou uma
rede de tráfico humano), que são «objectos» susceptíveis de serem
estudados com diferentes conceitos e não apenas com o de rede
de actores sociais.
No entanto, abordar o estudo de um determinado número de
fenómenos a partir do conceito de rede de actores sociais pode ser
particularmente pertinente em situações nas quais se multiplicam
as trocas horizontais, formalmente pouco hierarquizadas, num con-
texto de desenvolvimento rápido das tecnologias de informação e
comunicação. O estudo dos fenómenos de poder é particularmente
interessante na medida em que, nas redes de actores sociais, o poder
passa através das muitas malhas que esta apresenta e, portanto,
172 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

é menos aparente e até ocultado sob uma torrente de termos de


conotação semelhante (como partenariado, sinergia, participação,
comunicação, governança, etc.) que muitas vezes acompanham
uma visão do mundo em rede (ou ainda «ligacionista»). Longe
de considerar que o poder se tornaria mais fraco, uma análise
sociológica baseada neste conceito de rede deve, pelo contrário,
partir da ideia claramente expressa pelo filósofo francês Michel
Foucault de que «quanto mais escondido, mais eficiente é o poder».
Em sociologia, aquilo a que se chama a «análise das redes
sociais» (muitas vezes conhecido pela denominação inglesa:
social network analysis) consiste, antes de mais, e sobretudo,
num conjunto de ferramentas metodológicas que visam explicar
rigorosamente a estrutura de trocas entre diferentes actores sociais
interligados. Estas ferramentas recorrem nomeadamente à teoria
de grafos e ao cálculo matricial. Todavia, há muitos trabalhos
que adoptam uma abordagem dos fenómenos sociais em termos
de rede sem apelar necessariamente a formalizações matemáticas
mais ou menos avançadas.
À questão que se põe é esta: como funciona o poder no seio de
uma rede de actores sociais? Por poder entende-se, num sentido
bastante lato, a capacidade de influenciar eficazmente as acções dos
outros. Neste caso, limitar-nos-emos a um modelo de análise de
alcance limitado, que combina um pequeno número de hipóteses
e conceitos. (Para um desenvolvimento mais elaborado, consul-
tar L. Van Campenhoudt, «Pouvoir et réseau social: une matrice
théorique», Cahiers du CIRTES, n.º 2, Presses Universitaires de
Lovaina, pp. 5-41, 2010).
Todos podem aplicar este modelo a uma situação que preten-
dam estudar, por exemplo, um grupo de estudantes activos no
seio de uma faculdade, um conjunto de responsáveis políticos e
institucionais próximos de um partido político, uma associação
de directores e quadros de uma empresa que partilham os mes-
mos valores e se reúnem regularmente, ou um grupo de vizinhos
dinâmicos no seu bairro.
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 173

Por vezes, a delimitação do perímetro de uma rede poderá


parecer arbitrária. Embora seja fácil definir quem faz e quem
não faz parte de uma determinada turma numa escola, menos
simples será identificar quem faz parte ou não de um grupo de
conhecimentos, de uma associação cultural ou de um bairro.
A decisão resulta sempre de uma integração conjunta da reali-
dade do terreno e do que ela impõe (não é porque os limites de
um conjunto social são vagos e instáveis que podemos fazer a
primeira coisa que nos vem à cabeça), por um lado, e do objec-
tivo e da problemática da investigação, por outro. Além disso,
muitas vezes os «dados» do problema alteram-se no decorrer da
investigação, conforme o investigador vai descobrindo actores
e relações entre eles que de início nem sequer imaginava. Este
problema da delimitação do objecto vai ao encontro de qual-
quer conceito destinado a representar conjuntos sociais como,
por exemplo, os de campo ou de sistema. Com o conceito de
rede, o problema é sem dúvida mais agudo, na medida em que,
a priori e salvo excepção, uma rede é aberta e extensível, sendo
exemplo disso os afiliados de um partido político ou as redes
construídas na Net.
A pergunta feita é abordada de acordo com uma distinção
teórica clássica em sociologia: a dimensão estrutural e a dimen-
são actancial. À primeira diz respeito ao modo como os actores
visados se ligam uns aos outros. A segunda refere-se à capacidade
de mobilização dos actores no seio da rede. Cada uma destas
dimensões será objecto de uma hipótese.

Dimensão estrutural Dimensão actancial


Hipótese 1: o poder depende da posição | Hipótese 2: o poder depende da capacidade para
de centralidade na rede. mobilizar dos outros e de não se deixar mobilizar
a si próprio pelos outros.

Quadro 4.1 — O poder na rede: hipóteses


174 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Começamos por desenvolver a primeira hipótese, que respeita


à dimensão estrutural do poder na rede. Na concepção clássica
iniciada por Max Weber, o poder é uma relação binária desigual
entre duas partes, A e B, em que A, de acordo com os seus pró-
prios interesses, é capaz de levar B a agir, apesar da resistência
deste. Em contrapartida, numa abordagem em termos de rede, A
e B estão envolvidos com C, D, E, etc., num conjunto de trocas
multidireccionais onde cada um ocupa uma posição mais ou menos
vantajosa ou desvantajosa e da qual depende a sua capacidade
de influenciar as acções dos outros. Para estudar as relações de
poder, não podemos limitar-nos a estudar as relações entre duas
pessoas, tomadas duas a duas; pelo contrário, é necessário des-
crever o esquema do conjunto das trocas entre elas (ou seja, a
estrutura da rede) e comparar as respectivas posições de umas e
de outras neste esquema.
Freeman propõe apreender esta posição estrutural do poder a
partir da noção de centralidade (para uma explicação em por-
menor, com as observações, ver Mercklé, Sociologie des réseaux
sociaux, Paris, La Découverte, 2004) e distingue três formas
fundamentais de centralidade, que correspondem a outras tantas
dimensões ou componentes:
— A centralidade de grau correspondente ao número de contactos
de um actor, digamos, A;
— A centralidade de proximidade correspondendo à distância
entre um actor, por exemplo, A, e os outros actores da rede
B, C, D, E, etc.;
— A centralidade de intermediação correspondente ao facto de
um actor À constituir uma passagem obrigatória entre outros
actores, por exemplo, entre C e E, que apenas podem entrar
em contacto um com o outro passando por A.

A hipótese segundo a qual o poder depende da centralidade


numa rede poderá, então, ser formulada de uma maneira mais
operacional: o poder de um actor no seio de uma rede é tanto
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 175

maior quanto mais numerosos forem os seus contactos, quanto


mais próximos estiverem dele, e ainda se for um acesso obriga-
tório entre esses contactos, que têm de passar por ele para se
relacionarem.
Para cada uma destas subdimensões, facilmente se podem definir
indicadores, que serão retomados no Quadro 4.2.
Esta abordagem de Freeman não esgota decerto a explicação
do que é o poder, mas traz uma perspectiva simples, eficaz e
relativamente fácil de transpor para um trabalho de observação.
Revela e permite perceber os «mecanismos» do poder, não os que
operam verticalmente, de cima para baixo, mas sim os que operam
horizontalmente. Uma teoria estrutural do poder na rede explicará
o poder de um dirigente como, por exemplo, um ministro, não
pela sua posição superior na hierarquia, mas pela sua posição
de centralidade. E mostra sobretudo em que é que um actor, que
não tem forçosamente um poder formal instituído e de grande
visibilidade como, por exemplo, um membro do gabinete desse
ministro, pode ter um poder efectivo importante, porque tudo ou
quase tudo passa por ele e porque é um acesso obrigatório para
os que querem entrar em contacto com o ministro que ele serve.
A segunda hipótese encontra uma das suas inspirações na con-
cepção «positiva» do poder tal como criada por Michel Foucault
(Dits et écrits IV, 1980-1988, Paris, Gallimard, 1994, «Les mailles
du pouvoir», pp. 182-201, e «Le sujet du pouvoir», pp. 222-
-243). Numa concepção «negativa», o poder consiste em proibir
ou impor, por exemplo, por meio da lei penal. Numa concepção
positiva, o poder consiste em «fazer fazer», em mobilizar. O inte-
resse do director de uma empresa consiste menos em impor uma
disciplina severa ao seu pessoal (concepção negativa) do que em
fazê-lo produzir bens ou serviços (concepção positiva), em suma,
levá-los a produzir valor. Numa concepção positiva do poder, a
acção sobre o outro não se exerce directamente sobre a própria
pessoa, mas sim sobre a sua acção, permitindo-lhe uma diversi-
dade de respostas possíveis. Por exemplo, um professor que impõe
176 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

um trabalho aos seus alunos não pode, e geralmente não quer,


controlar quando é que eles se vão dedicar a essa tarefa, durante
quanto tempo e com que intensidade. Farão o seu trabalho, sem
dúvida, mas à sua maneira. O seu poder será uma «acção sobre
a acção».
Se transpusermos esta concepção para um modelo de análise
em termos de rede, o poder de A consistirá, por um lado, na sua
capacidade de mobilizar os outros actores da rede de uma maneira
coerente com a sua vontade, e, por outro lado, na sua própria
capacidade para não se deixar mobilizar, se não for esse o seu
desejo. Por exemplo, o director de uma empresa, que frequente-
mente goza de uma liberdade de movimentos relativamente maior
e não tem de «picar o ponto», em função dos seus projectos pode
mobilizar um operário ou um trabalhador ligado ao seu posto de
trabalho, mas o contrário já não será possível. (Encontramos esta
concepção de poder em L. Boltanski e E. Chiapello, Le Nouvel
Esprit du Capitalisme, Paris, Gallimard, 1999). Estas capacidades
de mobilizar e de se deixar mobilizar constituem subdimensões
da dimensão actancial do conceito de poder.
Estas dimensões não estão forçosamente ligadas à posição
hierárquica. Numa organização que funciona em rede, dependem
grandemente da capacidade de controlar os fluxos (de informação,
de mensagens, de dossiês, de recursos...) que circulam normal-
mente na rede. Acelerar ou retardar a transferência de informação,
seleccionar astutamente a quem se transmite e a quem não se quer
transmitir, ou guardar para si uma informação crucial, são acções
que permitem mobilizar os outros e não se deixar mobilizar a si
próprio, a não ser que se pretenda. Isto mostra que as dimensões
estrutural e actancial são indissociáveis de uma única e mesma
realidade: o poder na rede.
Sem a pretensão de sermos exaustivos, em especial no que res-
peita aos indicadores que importa reter em função de cada situação
concreta de investigação, podemos apresentar a conceptualização
própria a este modelo de análise como se segue:
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 177

Conceito Dimensões Subdimensões ou componentes Indicadores


Poder Centralidade Centralidade de grau Número de contactos de A
(dimensão (idem para B, C, D, etc.)
estrutural . = RE
ii nã Centralidade de proximidade | Frequência de contactos entre A
e os outros actores da rede
Centralidade de intermediação | Número de caminhos (como o
que há entre C e E) da rede aos
quais À pertence
Capacidade Capacidade de mobilizar Proporção de pedidos que A faz
de mobilização os outros actores a outros actores seguidos/não
(dimensão seguidos de consequências
actancial : ” ] a :
) Capacidade para não se deixar | Proporção de pedidos de outros
mobilizar actores a À seguidos/não
seguidos de consequências

Quadro 4.2 — Dimensões, subdimensões e indicadores do conceito de poder

2.3 A construção de conceitos


Com base nestes dois exemplos, podemos obter alguns ensina-
mentos de carácter geral a propósito do modelo de análise. Os
primeiros dizem respeito àquilo a que se chama a conceptualização;
os segundos estão relacionados com as formas que assumem e as
funções das hipóteses.
Como acabámos de ver, um modelo de análise é composto por
conceitos e hipóteses que estão articulados entre si para, em con-
junto, formarem um quadro de análise coerente. Sem este esforço
de coerência, a investigação dispersar-se-ia em várias direcções
e o investigador depressa se veria incapaz de estruturar o seu
trabalho. É por isso que o número de conceitos e de hipóteses
que compõem o modelo de análise deve manter-se relativamente
limitado. Muitas vezes até estrutura-se em torno de uma única
hipótese central e de um conceito-chave, do mesmo modo que no
início o trabalho se estruturou em torno de uma única pergunta de
partida. Como é natural, ao longo da investigação, muitas vezes
será necessário definir claramente outros conceitos auxiliares ou
formular hipóteses complementares.
178 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

No entanto, será necessário evitar que a riqueza e os cam-


biantes do pensamento comprometam de imediato a unidade do
conjunto do trabalho. Pode acontecer também que, a partir de
um modelo relativamente grande, que englobe variados aspectos
de um problema, como aquele que intitulámos «Rede social e
poder», o investigador decida limitar-se a uma das componentes
do modelo, neste caso, aquela que é apresentada na primeira
linha do esquema (Hipótese 1). Por outro lado, não devemos
confundir os conceitos constitutivos de um modelo de análise
com aqueles que usamos simplesmente num trabalho e que fazem
parte do vocabulário comum das ciências sociais. Se o sentido
que lhes atribuímos se afasta do sentido mais geralmente aceite,
será sempre possível defini-los no momento em que os utilizar-
mos pela primeira vez. À conceptualização é mais do que uma
simples definição ou convenção terminológica. É uma construção
abstracta que visa dar conta do real. Para isso, não retém todos
os aspectos da realidade em questão, mas somente o que exprime
o essencial dessa realidade, do ponto de vista do investigador.
Trata-se, portanto, de uma construção-selecção.
Como vimos, construir um conceito consiste primeiro em
determinar as dimensões que o constituem e por meio das quais
dá conta do real. Assim, para fazer uma analogia, um mamífero
é um vertebrado com pulmões que respira fora da água, cuja
gestação ocorre no corpo da mãe e cujas crias são amamentadas.
Desta definição do conceito de mamífero e das suas dimensões,
conclui-se que a baleia é um mamífero, tal como o morcego, mas
o tubarão não, apesar de exteriormente ser semelhante à baleia.
Construir um conceito é, em seguida, precisar os indicado-
res graças aos quais as dimensões poderão ser medidas. Muitas
vezes, em ciências sociais, os conceitos e suas dimensões não são
expressos em termos directamente observáveis. Ora, no trabalho
de investigação, a construção não é pura especulação. O seu
objectivo é conduzir-nos ao real e confrontar-nos com ele. É este
o papel dos indicadores. Os indicadores são manifestações objec-
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 179

tivamente observáveis e mensuráveis das dimensões do conceito.


Se nos interessarmos pelo tema do envelhecimento, nos países
que têm um registo civil, a data de nascimento é um indicador
pertinente, que permite uma medida precisa do estado de velhice.
Nos países em que esse registo não existe, o investigador deverá
recorrer a indicadores menos evidentes, tal como o cabelo branco
ou a falta dele, o mau estado da dentição ou a pele enrugada.
A noção de indicador torna-se, então, muito mais imprecisa. Este
pode ser apenas uma marca, um sinal, uma expressão, uma opi-
nião ou qualquer fenómeno que nos informe acerca do objecto
da nossa construção.
O número de dimensões, de componentes e de indicadores
varia de acordo com os conceitos. Por fim, a decomposição do
conceito poderá apresentar, por exemplo, uma forma semelhante
à que se vê na Figura 4.3.

r— Dimensão 1 Indicador 111


Indicador 211
componente 21 <<
Indicador 212
Zoo

-— Dimensão 2 componente 22 ————— Indicador 221


Indicador 231
ONnma

componente 23 «— Indicador 232


Indicador 233
componente 31 Indicador 311
-—— Dimensão 3 << Indicador 321
componente 32 « Indicador 322
Indicador 323

(Em vez do termo «indicador», alguns autores usam o termo «atributo»; outros ainda
falam de «característica». Estes termos diferentes são equivalentes.)

Figura 4.3 — A decomposição de um conceito


180 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

2.4 A formulação e as funções das hipóteses

a) Porquê as hipóteses?
A organização de uma investigação em torno de hipóteses de
trabalho constitui a melhor forma de a conduzir com ordem e
rigor, sem por isso sacrificar o espírito de descoberta e de curio-
sidade. Porquê?
Em primeiro lugar, porque a hipótese traduz, por definição, este
espírito de descoberta que caracteriza qualquer trabalho científico.
Alicerçada numa reflexão teórica e num conhecimento preparatório
do fenómeno estudado (fase exploratória), representa como que
uma pressuposição, que não é gratuita, sobre o comportamento
dos objectos reais estudados. O investigador que a formula diz,
de facto: «Penso que é nesta direcção que é necessário procurar,
que esta pista será a mais fecunda.»
Mas, ao mesmo tempo, a hipótese fornece à investigação um
fio condutor particularmente eficaz que, a partir do momento em
que ela é formulada, substitui nessa função a questão da pesquisa,
mesmo que esta deva permanecer presente na nossa mente. O segui-
mento do trabalho consistirá, de facto, em testar as hipóteses,
confrontando-as com dados da observação. A hipótese fornece o
critério para seleccionar, de entre a infinidade de dados que um
investigador pode, em princípio, recolher sobre um determinado
assunto, os dados ditos «pertinentes». Assim, Durkheim não se
embaraça com estatísticas intermináveis sobre o suicídio. Contenta-
-se com as que lhe parecem indispensáveis para testar e matizar
as suas hipóteses, o que, no caso, já não é pouco.
Apresentando-se como critério de selecção dos dados, as
hipóteses são, por isso mesmo, confrontadas com estes dados.
O modelo de análise que exprimem pode assim ser testado. Ainda
que se inspire no comportamento dos objectos reais, deve, por
seu turno, ser confrontado com esse comportamento. Se é verdade
que as hipóteses contribuem para uma melhor compreensão dos
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 181

fenómenos observáveis, devem, por sua vez, concordar com o que


deles podemos apreender pela observação. Esta não é a simples
transposição do modelo de análise; por isso, procura ao mesmo
tempo um meio de o corrigir, de o matizar e de decidir a longo
prazo se é necessário aprofundá-lo futuramente ou se, pelo con-
trário, será preferível desistir dele.
Sob as formas e processos mais variados, as investigações
apresentam-se sempre como movimentos de vaivém entre uma
reflexão teórica (a problemática e o modelo de análise) e um
trabalho empírico (a observação e a análise das informações).
As hipóteses constituem as charneiras deste movimento; dão-lhe
a amplitude e asseguram a coerência entre as partes do trabalho.

b) As diferentes formas de hipóteses


Uma hipótese é uma proposição que prevê uma relação entre
dois termos, que, segundo os casos, podem ser conceitos ou fenó-
menos. Uma hipótese é, portanto, uma proposição provisória,
uma pressuposição que deve ser verificada. Pode assumir formas
diferentes, sendo as seguintes as mais comuns:

Primeira forma

A hipótese apresenta-se como a antecipação de uma relação


entre um fenómeno e um conceito capaz de o explicar.
A hipótese que Pasteur formulou acerca da existência dos
microorganismos é deste tipo, tal como a apresentada pelos físicos
sobre a composição do átomo na época em que era considerado a
unidade mais pequena e irredutível da matéria. Quando o soció-
logo Alain Touraine põe a hipótese de que a agitação estudantil
em França «contém em si um movimento social capaz de lutar,
em nome de objectivos gerais, contra uma dominação social»
(Lutte étudiante, Paris, Seuil, 1978), pressupõe uma relação entre
o fenómeno da agitação estudantil e o conceito de movimento
182 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

social, que definiu no seu modelo de análise. O confronto da


forma como militantes estudantis entendem e vivem a sua luta
com as características teóricas do conceito de movimento social
permitirá testar a hipótese e, assim, compreender melhor a natu-
reza profunda da acção dos estudantes.

Segunda forma
Nesta segunda forma, certamente a mais frequente em investi-
gação social, a hipótese apresenta-se como a antecipação de uma
relação entre dois conceitos ou, o que equivale ao mesmo, entre
os dois tipos de fenómenos que designam.
A relação presumida entre a presença do bacilo de Koch e a
doença dos tuberculosos é uma hipótese deste tipo. Em investigação
social, os dois exemplos estudados acima correspondem igualmente
a esta forma. Por exemplo, a hipótese formulada por Durkheim
segundo a qual a taxa de suicídio depende do grau de coesão da
sociedade antecipa de facto uma relação entre dois conceitos e,
por consequência, entre os dois tipos de fenómenos que cobrem.

c) A «refutabilidade» da hipótese
Sob estas duas formas, a hipótese apresenta-se como uma res-
posta provisória à pergunta de partida da investigação (progres-
sivamente revista e corrigida ao longo do trabalho exploratório
e da elaboração da problemática). Para conhecer o valor desta
resposta, é necessário confrontá-la com dados de observação ou, o
que é mais raro em ciências sociais, de experimentação. É preciso,
de alguma forma, submetê-la ao teste dos factos.
A hipótese deve, pois, ser formulada sob uma forma obser-
vável. Isto significa que deve indicar, directa ou indirectamente,
o tipo de observações a recolher, bem como as relações a veri-
ficar entre estas observações, para averiguar em que medida a
hipótese é confirmada ou infirmada pelos factos. Esta fase de
2
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 183

confrontação da hipótese e dos dados de observação chama-se


verificação empírica.
Quando se trata de hipóteses, encontramos os mesmos obs-
táculos que na conceptualização. Algumas hipóteses não são
mais do que relações baseadas em preconceitos ou estereótipos
da cultura ambiente. Assim, hipóteses como «o absentismo nas
empresas aumenta com o crescimento do número de mulheres
empregadas», «a taxa de criminalidade numa cidade está ligada
à taxa de imigrantes que nela vivem» são hipóteses baseadas em
preconceitos, ou, para sermos mais exactos, são preconceitos dis-
farçados de hipóteses. Ainda que seja possível reunir estatísticas
que lhes dêem uma aparência de confirmação, estas hipóteses
correspondem ao nível zero da construção porque implicam uma
«explicação» extremamente superficial e perigosa destes fenómenos
sociais que não ajuda a perceber os mecanismos do absentismo
e da criminalidade. Em vez de tentarem elucidar os mecanismos
complexos da realidade social, conduzem a uma compreensão
medíocre e deformada dessa realidade, a partir da qual reforçam
artificialmente algumas clivagens sociais.
Uma hipótese pode ser posta à prova quando existe uma pos-
sibilidade de decidir, a partir da análise de dados, em que medida
é verdadeira ou falsa. Todavia, ainda que o investigador conclua
pela confirmação da sua hipótese ao cabo de um trabalho empí-
rico conduzido com cuidado, precaução e boa-fé, a sua hipótese
não pode, ainda assim, ser considerada absoluta e definitivamente
verdadeira.
Por mais brilhantes que sejam, as conclusões das análises de
Durkheim sobre o suicídio não deixaram de ser amplamente postas
em causa por outros autores. Com base em análises complemen-
tares, M. Halbwachs (Les causes du suicide, Paris, F. Alcan, 1930)
sublinhou a fragilidade de algumas das suas análises. Este autor
critica nomeadamente a Durkheim o não ter tido em conta um
número suficiente de variáveis ditas «de controlo», destinadas a
avaliar mais correctamente a importância específica da variável
184 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

explicativa principal. Assim, por exemplo, o impacto da religião


sobre a taxa de suicídio poderia ter sido medido com mais exacti-
dão se Durkheim o tivesse confrontado mais sistematicamente com
o das profissões. Outros autores, como H. C. Selvin («Durkheim's
“suicide” and problems of empirical research», in American Journal
of Sociology, LXIII, 6, 1958, pp. 607-619), realçaram as fraquezas
metodológicas da investigação de Durkheim e os enviesamentos que
introduziram na análise. No Dictionnaire critique de la sociologie,
de Raymond Boudon e François Bourricaud, encontra-se uma
síntese das principais críticas que foram formuladas em relação
a esta investigação de Durkheim (Paris, PUF, 1982, na entrada
«Suicide», pp. 534-539).
Com estas observações, não é tanto o valor próprio do traba-
lho de Durkheim que é aqui posto em causa. São os limites e o
destino de qualquer investigação, seja ela qual for. A complexidade
e a mutabilidade do real são tão grandes como a imprecisão e a
rigidez dos métodos de investigação destinados a compreendê-lo
melhor. Só o podemos ir apreendendo cada vez melhor por meio
de tentativas sucessivas e imperfeitas, que devem ser constante-
mente corrigidas. Neste sentido, um progresso do conhecimento
nunca é mais do que uma vitória parcial e efémera sobre a igno-
rância humana.
Assim, nunca demonstraremos a veracidade absoluta e definitiva
de uma hipótese. A sorte de cada uma delas é ser infirmada mais
cedo ou mais tarde, no todo ou em parte, e ser substituída por
outras proposições mais minuciosas, que correspondam melhor ao
que é revelado por observações cada vez mais precisas e penetran-
tes. Se a realidade não pára de se transformar e se os modelos e
os métodos de observação e de análise progridem realmente, as
coisas não podem, de facto, passar-se de outra maneira.
Não são pequenas as implicações práticas destas considerações
epistemológicas (sobre a natureza e as condições de validação do
conhecimento científico). Sabendo que o conhecimento resulta de
sucessivas correcções, o verdadeiro investigador nunca se esfor-
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 185

çará por provar a todo o custo o valor da objectividade das suas


hipóteses. Procurará, pelo contrário, delimitar o mais exactamente
possível os contornos destas, na esperança, não de as estabelecer,
mas sim de as aperfeiçoar, o que implica, de facto, que as ponha
de novo em causa. É evidente que só podemos procurar fazê-lo
se o investigador formular as suas hipóteses empíricas de tal
forma que a sua invalidação seja efectivamente possível, ou, para
retomar a expressão de Karl R. Popper (La logique de la décou-
verte scientifique, Paris, Payot, 1982), se as suas hipóteses forem
«refutáveis». Esta qualidade postula, pelo menos, duas condições.

Primeira condição
Para ser refutável, uma hipótese deve ter um carácter de gene-
ralidade. Assim, as hipóteses de Durkheim sobre o suicídio podem
ainda hoje ser testadas a partir de dados actuais ou recentes.
Isto não seria possível se Durkheim tivesse formulado as suas
hipóteses segundo o seguinte modelo: «A taxa de suicídio par-
ticularmente elevada na Saxónia entre os anos de 1866 e 1878
é devida à fraca coesão da religião protestante» (a partir de um
quadro de Durkheim, op. cit., p. 14). Não só tal hipótese nos não
teria ensinado grande coisa sobre o suicídio enquanto fenómeno
social, como não teríamos julgado útil testá-la ainda hoje. Mas,
ainda que essa fosse a nossa intenção, teríamos tido as maiores
dificuldades em realizá-la, por se tratar de um fenómeno local e
singular, em relação ao qual nos é, aliás, difícil recolher novos
dados mais dignos de confiança do que aqueles de que Durkheim
dispunha no seu tempo.
Este exemplo mostra-nos uma distinção essencial. A taxa de
suicídio na Saxónia foi um dado útil para verificar uma hipótese
de carácter mais geral sobre o elo que Durkheim estabelece entre
a taxa de suicídio e a coesão da sociedade; em contrapartida, essa
hipótese tem a função de esclarecer melhor as situações parti-
culares. Mas vemos que a hipótese e a taxa de suicídio na Saxónia
186 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

dependem de dois níveis diferentes: a primeira é uma proposição


que possui um carácter de generalidade; a segunda constitui um
dado relativo a uma situação particular e não reproduzível.
Compreender-se-á facilmente que uma proposição que não tenha
este carácter de generalidade não pode ser testada repetidamente
e, não sendo refutável, não pode ser considerada uma hipótese
científica, em sentido estrito. Assim, a proposição «a firma Tal
faliu devido à concorrência estrangeira» é uma interpretação de
um acontecimento particular. Talvez se inspire numa hipótese
relativa à reestruturação mundial da produção, que já apresenta
um certo grau de generalidade, mas, em si mesma, não constitui
uma hipótese científica.
Este problema da articulação entre o geral e o particular põe-
-se de forma muito diferente, consoante a disciplina e as ambi-
ções do investigador. O historiador, que trabalha, por definição,
com base em acontecimentos únicos, não pode, como o químico,
reproduzir indefinidamente a mesma experiência no seu labora-
tório. Por outro lado, quem pretender trabalhar «para a ciência»
impor-se-á restrições metodológicas mais rigorosas do que quem
procura «simplesmente» compreender melhor um acontecimento
presente, mas deseja para isso utilizar um procedimento de análise
reflectido, inspirado na prática dos investigadores. Quando Popper
escreve que «os acontecimentos particulares não reproduzíveis não
têm significado para a ciência» (p. 85), refere-se principalmente
ao procedimento científico em ciências naturais, cujo modelo não
pode, evidentemente, ser aplicado tal qual às ciências humanas,
que não têm os mesmos objectivos nem objectos de estudo de
natureza comparável.

Segunda condição
Uma hipótese só pode ser refutada se admitir enunciados
contrários que sejam teoricamente susceptíveis de verificação.
A proposição «quanto mais forte é a coesão social, mais fraca
2
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 187

é a taxa de suicídio» admite pelo menos um contrário, «quanto


mais forte é a coesão social, mais elevada é a taxa de suicídio».
A verificação, por muito parcial e local que fosse, desta proposição
levaria a infirmar, no todo ou em parte, a hipótese de partida.
Para que esta hipótese seja refutável é, pois, indispensável que
esses enunciados contrários possam ser formulados.
Foi, aliás, o que aconteceu, de certa forma, com a hipótese de
Durkheim, dado que ele foi levado a considerar o suicídio altruísta
como o resultado de uma coesão social muito forte: «Se uma
individualização excessiva conduz ao suicídio, uma individuali-
zação insuficiente produz os mesmos efeitos. Quando o homem
está desligado da sociedade, mata-se facilmente; mata-se também
quando está demasiado integrado nela» (op. cit., p. 233).
Esta segunda condição permite compreender o critério de veri-
ficação de uma hipótese sugerido por Popper: uma hipótese pode
ser tida por verdadeira (provisoriamente) enquanto todos os seus
contrários forem falsos. O que implica, bem entendido, que este-
jam reunidas as duas condições que sublinhámos: primeira, que a
hipótese tenha um carácter de generalidade; segunda, que aceite
enunciados contrários teoricamente susceptíveis de verificação.
Como já observámos, os critérios de cientificidade sugeridos
por Popper não podem ser aplicados da mesma forma nas ciências
naturais e nas ciências humanas. O facto de aqui lhes termos dado
relevo não significa de forma alguma que, do nosso ponto de vista,
as segundas devam tomar as primeiras por modelo. O debate é
infinitamente mais complexo. Achamos simplesmente que esta
breve e muito sumária introdução ao significado e aos limites da
verificação empírica, do ponto de vista de um dos mais ilustres
epistemólogos do século xx, poderia ajudar a apreender melhor
a essência profunda do espírito de investigação.
Regressaremos a este assunto no momento oportuno, quando
apresentarmos os objectivos da etapa de observação seguinte.
Nesta fase, podemos já salientar que este espírito de investigação
se caracteriza pelo perpétuo questionar das aquisições provisórias
188 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

e pela preocupação em impor a si próprio regras metodológicas


que obrigam a concretizar esta disposição em cada etapa do tra-
balho. Indubitavelmente, o investigador em ciências sociais deve,
em grande medida, impor a si próprio restrições diferentes das
do seu colega médico. No entanto, as características inerentes ao
seu procedimento não o dispensam de proceder com precaução,
no mais elementar respeito pelo espírito de investigação.

3. DOIS CAMINHOS PARA PROCEDER


CONCRETAMENTE
Cada investigação é uma experiência única, que utiliza caminhos
próprios ligados a numerosos critérios, como sejam a interrogação
de partida, a formação do investigador, os meios de que dispõe
ou o contexto institucional em que se inscreve o seu trabalho. No
entanto, é possível fazer sugestões ao mesmo tempo abertas e pre-
cisas a quem inicia esta importante e difícil etapa da investigação.
À partida, existem duas maneiras de construir os conceitos
e as hipóteses que constituem o modelo de análise da sua pró-
pria investigação. À primeira, geralmente em consonância com
o procedimento dedutivo, consiste em ir buscar a uma teoria já
existente os seus conceitos e hipóteses gerais, adaptando-os com
pertinência ao fenómeno estudado. Chamar-lhe-emos «teorização
emprestada» e falaremos de «conceitos sistémicos», no sentido em
que se inscrevem num sistema teórico existente (P. Bourdieu, J.-C.
Chamboredon e J.-C. Passeron, op. cit.). O segundo caminho, mais
de acordo com um procedimento indutivo, consiste em «produzir»
os seus próprios conceitos e hipóteses, logo no início da investi-
gação ou à medida que esta vai progredindo. Vamos chamar-lhe
teorização emprestada e falaremos então de conceitos operacionais
isolados. Na realidade de uma investigação concreta, em que se
tem de conjugar a exigência de coerência teórica com a flexibi-
lidade e a inventividade em contextos sempre diferentes, muitas
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 189

vezes, o investigador combina estas duas formas de teorização:


constrói o seu próprio caminho indo buscar elementos a teorias
já existentes ou a investigações anteriores de qualidade sobre a
mesma ordem de fenómenos. No entanto, vamos separar os dois
caminhos, para realçar as respectivas características, determinar as
suas vantagens e limites e provar que não se excluem mutuamente.

3.1 A teorização emprestada


Um investigador que queira analisar certos fenómenos ou acon-
tecimentos que ocorrem num sector particular da vida colectiva,
por exemplo, no universo da justiça, ou que queira estudar as
relações entre este sector e um outro (nomeadamente, entre a
justiça e a escola, na gestão do absentismo escolar) poderá decidir
adoptar uma perspectiva teórica directamente inspirada na teoria
de campos de P. Bourdieu. Neste caso, forçosamente, impõe-se o
conceito de campo, mas também o de habitus e de capital, aos
quais o conceito de campo está estreitamente associado na abor-
dagem deste autor. O conceito de campo, tal como concebido por
Bourdieu, é sistémico no sentido em que é construído de maneira
lógica a partir de um conjunto de invariáveis abstractas (um
espaço de posições desiguais em função da repartição desigual
dos capitais, um espaço de forças e lutas definido por um desafio,
uma autonomia relativa em relação a outros campos, de condições
de acesso e de reconhecimento específicas, etc.) que vão servir de
enquadramento a toda a investigação que se inscreva nesta pers-
pectiva teórica, seja qual for o domínio concreto de actividade a
que será aplicada. A construção do modelo de análise consistirá,
então, em definir correctamente estes conceitos bem como os seus
componentes (como as diferentes formas de capital: económico,
social, cultural e simbólico) e indicadores (como os diplomas,
para o capital cultural), e em formular as principais hipóteses
que vão orientar a observação (por exemplo, a recolha de dados
190 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

sobre as práticas dos diferentes agentes da justiça). Neste caso,


o investigador poderá inspirar-se nas perguntas formuladas por
Gérard Mauger — expostas na etapa anterior (A problemática)
— para definir aquilo a que chama o «programa de investigação»
proposto por esta teoria.
Os conceitos de interacção, sistema, função e rede, vistos mais
acima, são igualmente conceitos sistémicos. Não são induzidos
directamente pela experiência; são construídos por raciocínio abs-
tracto — dedução, analogia, oposição, implicação, etc. —, ainda
que se inspirem forçosamente no comportamento dos objectos
reais e dos conhecimentos anteriormente adquiridos acerca des-
tes objectos. Na maior parte dos casos, este trabalho abstracto
articula-se com um quadro de pensamento mais geral, que desig-
namos como teoria geral ou paradigma, como o interaccionismo
e o funcionalismo.
Outro exemplo visto mais atrás, o conceito de centralidade
de Freeman, decorre de um paradigma que aborda a sociedade
como uma estrutura de trocas horizontais e pólos interligados,
ou seja, como uma rede ou um conjunto de redes de actores
sociais. Logicamente, desta perspectiva teórica resulta a ideia de
que o poder advém de uma estruturação particular das trocas
que Freeman sintetiza por meio do conceito de centralidade. Uma
dedução lógica leva à caracterização da centralidade através de
três dimensões: o número de contactos, a proximidade com esses
contactos e o facto de ser um intermediário obrigatório entre
eles. Tudo isto se mantém unido de maneira coerente e pode ser
transposto para múltiplas situações concretas. Estamos, assim, na
presença de um conceito sistémico cuja construção se caracteriza
pelo rigor dedutivo e sintético.
A hipótese segundo a qual «Quanto mais contactos, e quanto
mais isolados são esses contactos, maior é o poder de um indiví-
duo» resulta directamente desta ideia de centralidade e, portanto,
também ela se inscreve neste paradigma. Podemos deduzir hipóteses
deste tipo a partir de qualquer teoria e aplicá-las a uma grande
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 191

diversidade de domínios. Seja qual for o domínio estudado, em


qualquer teoria geral, por exemplo, a teoria dos campos de Bour-
dieu, pode deduzir-se um certo número de hipóteses antes mesmo
de proceder a observações concretas nesse domínio. Por exemplo,
para explicar as escolhas editoriais de um semanário político e
cultural francês, importará menos a sua estrutura financeira, ou
a ideologia dos seus jornalistas, do que a sua posição no âmbito
da imprensa semanal francesa e aventaremos a hipótese de essas
escolhas serem determinadas essencialmente em relação às da
concorrência, de que o semanário em questão se pretende destacar
e pela qual não quer ser ultrapassado. Esta hipótese é deduzida
da teoria. Tem a vantagem de instaurar um distanciamento rela-
tivamente às impressões espontâneas que poderíamos tirar de
uma leitura superficial ou de preconceitos acerca do semanário
em causa. Mas esta hipótese exige, evidentemente, ser verificada
pelo trabalho de observação (quinta etapa) e pela análise de dados
(sexta etapa) que se seguirá.
No entanto, o empréstimo de um conceito preexistente não
está isento de riscos, sobretudo quando se trata de um conceito
sistémico, ou seja, quando é um elemento pertencente a um quadro
de pensamento teórico mais alargado. A mobilização adequada
de tal conceito requer que se tenham em conta os pressupostos
da teoria a que ele se refere, as articulações lógicas com outros
conceitos dessa teoria e as implicações metodológicas próprias
dessa corrente de pensamento. No mínimo, o investigador deverá
efectuar uma adaptação, tanto no próprio conceito como no dis-
positivo de recolha de dados, que permita manter a coerência do
conjunto dos procedimentos de investigação.
Se tal enquadramento teórico for adoptado de forma acadé-
mica, dogmática e sem distanciamento crítico, existe o perigo de
o investigador principiante ser de imediato arrastado para um
caminho unilateral que se assemelharia mais à demonstração de
uma ideia feita do que a uma verdadeira investigação. Mas se for
seguido de forma flexível, e com o devido distanciamento crítico,
192 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

este enquadramento vai permitir-lhe distanciar-se relativamente às


categorias espontâneas e aos preconceitos, estruturar a investigação
e organizar as observações feitas na etapa seguinte.

3.2 À teorização produzida


Imagine uma investigação cuja pergunta de partida fosse a
seguinte: «Quais são os factores de sucesso na escola primária?»
(Evidentemente, esta pergunta só fará sentido num sistema de
ensino onde o insucesso é possível, o que não acontece em todos
os países. Na pergunta, podemos, então, substituir «sucesso» por
«desempenho escolar».)
Após a leitura de algumas obras e artigos sobre o assunto, o
investigador dá-se conta de que poderá formular várias hipóteses.
O sucesso seria mais frequente nos meios favorecidos, isto é, nas
famílias com rendimentos elevados, ou quando o pai ocupa uma
posição social elevada. Outros autores sublinham a importância
da disponibilidade dos pais para com a criança. Se ambos têm
uma ocupação profissional que não lhes deixa muito tempo para
darem atenção às crianças, os resultados escolares podem sofrer
com isso. Finalmente, outras investigações realçam a importância
do nível de educação dos pais. Quanto mais elevado é este nível,
mais os pais estão conscientes do papel que têm de desempenhar
e mais o contexto cultural (conversas, leituras, jogos, filmes...) é
favorável ao desenvolvimento intelectual da criança.
Todas estas ideias podem produzir hipóteses que poderiam ser
confrontadas com a observação, mas que, tratadas independente-
mente umas das outras, como no esquema seguinte, não permitiriam
compreender a interacção entre os factores do sucesso escolar.
Neste caso, não podemos falar de um modelo. Se, pelo contrário,
raciocinarmos um pouco com base nos resultados de investigações
anteriores ou de um trabalho exploratório, é possível construir
um sistema de relações muito mais esclarecedor.
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 193

Rendimento

Estudos Profissão

Interesse — »y Sucesso qHH Contexto


escolar cultural

Figura 4.4 — Factores potencialmente influenciadores do sucesso escolar

Quanto mais elevado for o nível de escolaridade dos pais, mais


a sua posição profissional será importante (H1) e mais elevados
serão os seus rendimentos (H5). Ao mesmo tempo, o nível de
instrução, associado a este nível de escolaridade, deveria aumentar
a consciência das necessidades da criança, bem como o interesse
prestado aos seus estudos (H2). Além disso, deveria fornecer
um contexto cultural propício ao desenvolvimento intelectual da
criança (H3).
Por conseguinte, quando o rendimento (H6), o interesse pelos
estudos (H7) e o contexto cultural (H8) são realmente elevados
nas famílias em questão, a taxa de sucesso das crianças deveria
ser mais elevada do que noutras famílias que não apresentem
estas características.
Mas isto não é tudo. A hipótese (H4) introduz uma outra
condição. Podemos supor que uma profissão elevada esteja sujeita
a obrigações que efectivamente reduzem as possibilidades de se
interessar pelo trabalho escolar das crianças. Por fim, é ainda
preciso conceber hipóteses alternativas para as famílias em que
os níveis de escolaridade dos pais são diferentes.
194 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Nível de estudos do pai e da mãe


E H2 Bs
2 V Ho >
H4
Profissão | Interesse Contexto
cultural

Hs H7
Y H8
Rendimentos
[sa e

Sucesso escolar

Figura 4.5 — O sucesso escolar — modelo de análise

Para que o modelo fosse confirmado seria necessário, além da


confirmação de cada uma das hipóteses, que os resultados das
observações mostrassem que a taxa de sucesso escolar atinge
o máximo quando estão presentes todas as relações associadas
a um nível de estudos superior e o mínimo quando o nível de
escolaridade dos pais não ultrapassa o mínimo obrigatório. Seria
também necessário que os casos intermédios apresentassem taxas
de sucesso significativamente diferentes das dos precedentes. Caso
contrário, o modelo seria nulo. Tratar-se-ia, na realidade, de outros
processos não previstos pelo modelo, quer no que diz respeito às
variáveis utilizadas, quer nas suas relações, quer nos dois planos
ao mesmo tempo.
O interesse da construção de um modelo deste tipo é duplo.
Primeiro, torna todo o sistema vulnerável pela deficiência de apenas
um dos seus elementos e só aceita como verdadeiro aquilo que
está totalmente confirmado. Em contrapartida, é relativamente
fácil localizar as falhas do modelo e rever a sua construção à luz
dos resultados obtidos. Este duplo interesse desaparece quando
as hipóteses são concebidas separadamente e testadas sem arti-
culação entre si.
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 195

Neste exemplo, o investigador «produziu» o seu modelo de


análise em função daquilo que lhe parecia ser importante ter em
consideração depois de feitas as leituras exploratórias. Esta cons-
trução não deixa de contribuir para um modelo coerente, bem
diferente de uma miscelânea em que diversas hipóteses sem ligação
entre si apenas se sobreporiam. Todavia, os conceitos mantêm-se
relativamente próximos de categorias do senso comum (nível de
escolaridade, interesse, contexto cultural...) e não se referem a
uma teoria geral particular. São, portanto, conceitos operatórios
isolados e, no mínimo, devem ser claramente definidos e opera-
cionalizados com as suas principais dimensões e os seus principais
indicadores. Por exemplo, no que respeita ao nível de escolaridade
dos pais, Oo investigador terá em conta o do pai, o da mãe ou o
de ambos? Limitar-se-á a considerar o nível do último diploma
obtido (primária, secundária ou superior) ou também vai ponde-
rar os tipos de diploma e os graus obtidos pelos pais? Quer se
trate do conceito operatório isolado, quer do conceito sistémico,
a construção implica necessariamente a elaboração de dimensões,
componentes e indicadores. Mas nem todos os conceitos têm uma
composição tão elaborada. Alguns conceitos podem ter apenas
uma dimensão ou uma componente, correspondendo a um só
indicador, como, por exemplo, a taxa de suicídio.
A atitude do investigador que constrói o seu modelo de análise
a partir de conceitos operatórios está mais em consonância com
um procedimento indutivo. Com efeito, muitas vezes, O investi-
gador elabora, desenvolve e aperfeiçoa o seu modelo ao longo
das observações que faz.
O interesse de uma construção produzida é precisamente o de
evitar fechar-se logo, de chave na porta, num modelo teórico, mas
também existe o risco de proceder a uma construção com base
nas observações parciais e de informações muitas vezes truncadas
ou alteradas que se nos apresentam ou nos preconceitos em que
o mundo é concebido com base no que se apreende com os olhos
e os ouvidos do homem comum.
196 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

3.3 Teorização emprestada ou teorização


produzida?
As duas concepções opõem-se. A primeira, defendida nomeada-
mente por P. Bourdieu, que aqui se inscreve na linha de Durkheim,
consiste em pensar que um único modelo teórico, previamente bem
pensado, possui um poder explicativo real, porque sozinho pode
garantir distanciamento em relação ao senso comum. Uma teoria
produzida é fundamentalmente mimética em relação ao modo
como o senso comum apreende a realidade, impedindo logo à
partida que o investigador se distancie suficientemente das ideias
preconcebidas e da percepção imediata dos fenómenos (Bourdieu,
Chamboredon e Passeron, op. cit.).
Esta distinção radical é contestada por alguns autores que pri-
vilegiam uma teoria produzida ao longo da investigação, por meio
de um procedimento indutivo, para evitar orientar demasiado
e limitar de imediato as investigações.
Na realidade, as coisas são bem mais complexas e matizadas.
Uma abordagem dedutiva, baseada em conceitos emprestados,
não cai do céu e não se decide inteiramente logo de início. Em
vez disso, muitas vezes, prepara-se ao longo da fase exploratória,
que deve ser caracterizada por uma preocupação de abertura e de
questionamento. Além disso, e acima de tudo, quando conduzida
correctamente, a observação impõe a sua própria «lei» ao investiga-
dor, ou seja, a da actualização de uma realidade que por vezes sabe
resistir aos esquemas mais bem construídos. (Na próxima etapa,
regressaremos ao papel do elemento surpresa numa investigação
bem conduzida.) Inversamente, aquele que adopta uma abordagem
indutiva e produz o seu modelo progressivamente não está menos
armado de um conjunto de conhecimentos teóricos implícitos que
mobilizará pouco ou muito ao longo da investigação. Uma estrutu-
ração e uma formalização mínimas do seu procedimento ajudá-lo-ão
a encontrar o caminho quando, ao vaguear propositadamente no
terreno das observações, se sentir um pouco perdido.
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 197

Com efeito, nem o rigorismo teórico nem o espontaneísmo se


recomendam, porque é da dialéctica da teoria e da observação que
muitas vezes derivam os conhecimentos novos mais interessantes.
Os dois procedimentos articulam-se, mais do que se opõem. Todo
o modelo comporta inevitavelmente elementos emprestados e
elementos produzidos e provém de um procedimento pelo menos
em parte dedutivo e em parte indutivo (por exemplo, na escolha
de dimensões e indicadores ou na formulação de hipóteses com-
plementares).
Em qualquer dos casos, o essencial é que a lógica da investi-
gação em sociologia se mantenha igual: confrontar as observações
concretas e as hipóteses teóricas, de modo que umas e outras se
elucidem e se alimentem mutuamente. Por fim, o que dá valor a
um conceito é também a sua capacidade heurística, isto é, aquilo
que nos ajuda a descobrir e a compreender.
Em suma, um modelo de análise não estará sedimentado no
termo desta quarta etapa. No seguimento das orientações for-
necidas pela problemática, confere à investigação um enquadra-
mento operacional, sem constituir uma conclusão antecipada. Por
conseguinte, é possível, e até provável, que as hipóteses tenham
de ser repensadas ao longo do caminho em função de sucessivas
descobertas e que as ferramentas conceptuais tenham o mesmo
destino. É o sentido dos círculos de retroacção no esquema das
etapas.
Seja como for, antes de ultimar um modelo de análise, não
será demais especificar uma última vez a questão central da
investigação. Este exercício constitui uma garantia de estruturação
coerente de conceitos e hipóteses, pois estas últimas apresentam-
-se como enunciados de resposta à pergunta da investigação.
Em seguida, e situando-nos ainda a montante do modelo de
análise propriamente dito, a qualidade do trabalho exploratório
tem uma enorme importância. Se os diferentes textos estudados
foram objecto de leituras aprofundadas e de sínteses cuidadas, se
estas foram confrontadas com atenção umas com as outras, se
198 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

as entrevistas e as observações exploratórias foram devidamente


exploradas, então o investigador dispõe normalmente de abun-
dantes notas de trabalho que o ajudarão consideravelmente na
elaboração do modelo de análise. Conforme for avançando no
trabalho de exploração, irão sobressaindo progressivamente
conceitos-chave e hipóteses importantes, bem como as relações
que seria interessante estabelecer entre eles. Na realidade, tal
como a problemática, o modelo de análise prepara-se ao longo
de toda a fase exploratória.

4. DUAS APLICAÇÕES... PARA SEGUIR


A vocação do modelo de análise é orientar e organizar tanto
as observações no terreno (quinta etapa) como a sua análise
(sexta etapa). Nesta última parte, prepararemos o terreno para
compreender a continuidade entre estas três etapas, apresentando
duas aplicações que serão retomadas nas etapas seguintes.
Estas duas aplicações são propositadamente muito divergen-
tes. À primeira, sobre os comportamentos sexuais e as atitudes
perante o risco de sida, ilustra a teorização por empréstimo e a
utilização de conceitos sistémicos e aplica métodos quantitativos.
Com efeito, comporta duas vertentes de investigação, de modo
a mostrar claramente como o estudo do mesmo fenómeno pode
ser construído de várias maneiras. À segunda aplicação, sobre o
significado da participação dos cidadãos numa acção colectiva,
ilustra a teorização produzida, a utilização de conceitos operató-
rios isolados e põe em prática métodos qualitativos. Devido ao
seu carácter produzido e ao seu objectivo mais indutivo, a sua
apresentação será, forçosamente, mais breve.
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 199

4.1 Comportamentos sexuais e atitudes perante o


risco de sida
Quando da revisão da literatura por si consultada, um inves-
tigador que trabalhe nesta questão descobrirá um conjunto de
conceitos mais ou menos apropriados para aplicar a sua proble-
mática. No entanto, como vimos atrás, para usar estes conceitos
de modo pertinente, muitas vezes, o investigador deve ter em
conta o conjunto do sistema teórico a que estes conceitos se
referem e quais as implicações metodológicas daí decorrentes. Por
exemplo, um modelo de análise baseado nas interacções sociais
(conceito), idealmente, precisa de poder observar directamente
os espaços de encontro entre os actores (modo de observação).
Na impossibilidade de o poder fazer, o investigador podia ser
tentado a lançar-se sobre a recolha de dados por meio de entre-
vistas sucessivas com os diferentes actores. Ao fazê-lo, arrisca-se
a afastar-se do paradigma interaccionista para adoptar, ainda
que de forma inconsciente, um pensamento mais centrado nos
indivíduos do que nas interacções.
O enquadramento escolhido é o das investigações sobre os
comportamentos sexuais e atitudes perante o risco de sida. Serão
expostos, sucessivamente, dois exemplos de conceptualização que
remetem para as problemáticas abordadas na etapa anterior e
que foram alvo de muitas investigações concretas: o primeiro é a
explicação dos comportamentos através de conhecimentos, crenças
e atitudes; o segundo é a influência da rede social. Os exemplos
concentram-se na conceptualização das determinantes dos com-
portamentos.
Isto não significa, de modo algum, que a própria definição
de comportamento sexual seja óbvia. Embora certas actividades
sexuais tenham fortes probabilidades de se incluírem na catego-
ria de comportamentos sexuais de cada pessoa, outras há que se
prestariam, indubitavelmente, a uma discussão. Da definição do
conceito resulta a lista dos comportamentos que serão analisa-
200 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

dos. Por exemplo, se o investigador se interessa sobretudo pela


transmissão do vírus da sida, pode, legitimamente, limitar-se a
estudar os comportamentos sexuais que comportam um risco
deste ponto de vista e adoptar, então, uma definição que elimine
todas as práticas auto-eróticas. Inversamente, se o investigador
julgar necessário estudar um leque mais alargado de práticas,
com o objectivo de analisar aquelas que eventualmente poderiam
substituir-se às práticas que comportam risco de transmissão do
vírus, não poderá ignorar as práticas auto-eróticas e optará então
por outra definição.
Além disso, não é certo que um comportamento sexual possa
ser definido por referência exclusiva aos actos, sem ter em conta
as intenções e o estatuto dos parceiros. Segundo o contexto, por
exemplo, médico ou conjugal, ou ainda de acordo com os parcei-
ros, que podem consentir ou não, o mesmo acto poderá ter um
significado completamente diferente. Mas as intenções dos actores
continuam a estar muitas vezes fora do alcance do investigador...
e a definição de um parceiro sexual não se impõe mais do que a
do comportamento sexual. Em última instância, a conceptualização
deverá levar sempre o investigador a questionar-se.

a) O modelo de análise KABP


Este termo significa knowledge, attitudes, beliefs and practices,
ou seja, em português: conhecimentos, atitudes, crenças e prá-
ticas. A Organização Mundial de Saúde (OMS) foi a principal
impulsionadora dos inquéritos KABP no mundo, através do «Pro-
grama Global de Luta contra a SIDA», implementado em 1987,
e denominado ONUSIDA. A abordagem KABP inspira-se muito
directamente num modelo de análise anterior chamado Health
Belief Model (HBM, em português: modelo de crenças relativas
à saúde), teorizado desde os anos 1950 pelos psicossociólogos
americanos que procuravam prever e explicar os comportamentos
em matéria de saúde.
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 201

Tal como o HBM, o modelo KABP tende a privilegiar a expli-


cação dos comportamentos individuais por meio dos processos
cognitivos. Com base em diversas investigações que se inscre-
vem neste modelo, podemos distinguir três processos cognitivos
correspondentes a outros tantos conceitos: os conhecimentos, as
crenças e as atitudes.
— O termo «conhecimento» é usado quando se trata de con-
siderar as respostas das pessoas inquiridas quanto a factos
cientificamente provados. Por exemplo, logo que ficou cien-
tificamente provado que o vírus da sida não se transmite
pela picada de mosquitos, tem de se verificar se os inguiridos
têm conhecimento disso. Neste sentido, o conhecimento diz
respeito ao verdadeiro ou falso. Nas investigações sobre os
comportamentos perante o risco de infecção pelo VIH/sida,
as dimensões estudadas mais frequentemente são as vias de
transmissão do vírus, os modos de protecção contra a infecção
e, mais recentemente, os tratamentos anti-retrovirais.
— O termo «crença» reserva-se de forma privilegiada para classifi-
car as respostas dos inquiridos perante situações de incerteza e
ambiguidade das mensagens de prevenção, por exemplo, quando
a transmissão do vírus parece teoricamente possível, mas não
foi registado nem documentado nenhum caso que corresponda
a essa situação, ou quando a eficácia do preservativo como
meio de prevenção depende da maneira como é utilizado. As
respostas registadas são interpretadas como um misto composto
por informações captadas, reinterpretações dessas informações
e representações da doença (Moatti, J.-P., Beltzer, N. e Dab, W.,
«Les modêles d'analyse des comportements à risque face à Pin-
fection du VIH: une conception trop étroite de la rationalité»,
Population, 5, 1993, pp. 1505-1534). As dimensões estudadas
nos inquéritos são sensivelmente as mesmas dos conhecimentos,
embora os indicadores digam respeito a situações de incerteza
e/ou ambiguidade.
202 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

— O conceito «atitude», tal como utilizado em muitas investi-


gações KABP, corresponde à definição dada por Maisonneuve
(Introduction à la psychosociologie, Paris, PUF, 1973), a saber,
«uma posição (mais ou menos cristalizada) de um agente (indi-
vidual ou colectivo) relativamente a um objecto (pessoa, grupo,
situação, valor)». As atitudes não são directamente observáveis
e só podem ser inferidas a partir do grau de sensibilidade de
pessoas ou grupos perante situações que supostamente as reve-
lam. As dimensões estudadas são principalmente as atitudes
perante: a doença e o risco de contrair o VIH/sida, e mais
recentemente as hepatites Be C, os meios de protecção (sobre-
tudo o preservativo e o diagnóstico), as pessoas seropositivas
ou infectadas pela sida e os toxicodependentes.

O Quadro 4.3 retoma estes três conceitos e uma selecção das


dimensões, assim como alguns exemplos de indicadores para cada
dimensão.
O exemplo apresentado antes, construído a partir de uma lite-
ratura científica abundante, ilustra perfeitamente as vantagens e
os riscos de um empréstimo conceptual evocados acima. Do lado
das vantagens, está incontestavelmente a possibilidade de comparar
os resultados com os que foram produzidos por outras equipas
de investigação. Por conseguinte, os resultados podem ser deba-
tidos com os de outros trabalhos; o investigador compreende e
participa efectivamente no fenómeno de acumulação de saberes.
Mas esta harmonização comporta o risco de desenvolver aná-
lises de maneira mecânica, demasiado estereotipada, em que o
investigador deixa de se interrogar sobre os pressupostos da sua
perspectiva. Ao concentrar-se nos processos cognitivos individuais,
o modelo negligencia os processos de interacção entre os parcei-
ros, bem como as consequências do contexto social e cultural da
exposição ao risco. No plano dos conceitos, a passagem do modelo
HBM para o modelo KABP traduziu-se também por uma relativa
interferência conceptual. Assim, a fronteira entre conhecimentos e
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 203

crenças é particularmente fluida. Por um lado, é comum que um


mesmo indicador — por exemplo, a resposta à questão de saber
se o VIH é transmissível pela picada de um mosquito — seja
integrado tanto num índice de síntese de conhecimento das vias
de transmissão do vírus, como estudado enquanto «falsa crença»;
por outro lado, ao longo dos avanços das investigações científicas
uma situação inicialmente classificada como incerta do ponto de
vista científico poderá perder esse estatuto — como foi o caso
do risco de transmissão do VIH nas relações bucogenitais — e
como consequência o indicador pode oscilar entre o registo das
crenças e o dos conhecimentos. Em conclusão, a distinção entre
conhecimentos e crenças baseia-se essencialmente no estatuto espe-
cífico atribuído aos saberes científicos e ignora o facto de, longe
de ser um mero reflexo da difusão de uma informação, todo o
conhecimento é fruto de um trabalho psíquico.

Conceitos Dimensões Indicadores


Vias de transmissão do vírus | — Relações sexuais
Conhecimentos (possibilidade) — Picadas de mosquitos
— Injecção de droga por via intravenosa
Meios de protecção contra — Coito interrompido
o VIH (eficácia) — Higiene após as relações sexuais
— Pílula contraceptiva
Vias de transmissão do vírus | — Beijar qualquer pessoa na boca
Crenças (possibilidade) — Receber sangue
— Doar sangue
Meios de protecção (eficácia) | — Fidelidade mútua
— Teste de diagnóstico
— Preservativo masculino
O VIH/sida (apreensão) — O risco de infecção
Atitudes — Sentimento de controlo versus fatalidade
Os meios de protecção — Preservativo
(predisposição — Teste de diagnóstico
para a utilização)

Os seropositivos — Perto de casa


(grau de aceitação) — No local de trabalho ou de estudo
— Como baby-sitter

Quadro 4.3 — Conceitos, dimensões e indicadores do modelo KABP


204 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Finalmente, no plano da análise e da interpretação dos resul-


tados, o modelo postula que os comportamentos são determina-
dos sobretudo pelos conhecimentos. Esta causalidade de sentido
único não é evidente. De facto, as experiências comportamentais
podem modificar os conhecimentos dos parceiros, levando-os a
reinterpretar de forma diferente as situações vividas e os riscos
associados ou a gerar novos conhecimentos.

b) O modelo de análise da rede social


Ao contrário do modelo KABP, os trabalhos que abordam a
sexualidade dos indivíduos a partir das respectivas redes sociais
(também chamadas redes de actores sociais) apreendem os compor-
tamentos como fenómenos fundamentalmente sociais, efectuados
em função de outras pessoas, além do único parceiro. O mesmo
acontece com as normas a que os indivíduos aderem. Uma relação
social de um indivíduo — de carácter sexual ou não — é vista
como um elemento do sistema composto pelo conjunto das suas
relações parcialmente interdependentes entre si.
O trabalho de conceptualização apresentado a seguir inscreve-se
nesta linha; baseia-se na hipótese de que as normas dos membros
da rede a que um indivíduo pertence constituem para ele referên-
cias (Marquet, J., Huynen, P. e Ferrand, A., 1997 «Modeles de
sexualité conjugale. De Pinfluence normative du réseau social»,
Population, 6, pp. 1401-1438), que influenciam fortemente o seu
comportamento. Em geral, distinguem-se as normas ideais e as
normas práticas ou efectivas. As primeiras constituem os ideais
ligados à cultura, habitualmente partilhados numa determinada
rede e que contribuem para a sua coesão (por exemplo, a fideli-
dade, a honestidade, a igualdade entre os parceiros). As segundas
correspondem à percepção que os indivíduos têm dos comporta-
mentos efectivos dos membros da sua rede e podem incidir, por
exemplo, no que, em matéria de conjugalidade e de vida sexual
deve ser mostrado, pode ser mostrado, não deve ser mostrado ou
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 205

deve absolutamente manter-se em segredo. A hipótese é que as


normas práticas sejam as mais determinantes.
A rede social de uma pessoa (o chamado «actor» no paradigma
de rede) representa o conceito central do modelo. É definida como
o conjunto de relações que ligam essa pessoa a outras. A rede é
apreendida tanto de forma global como pela distinção de círculo
familiar, círculo de amizades, círculo de colegas e, em alguns
casos, parceiro principal.
A hipótese da influência normativa da rede sobre as normas
ideais dos indivíduos pressupõe, nomeadamente, que essa rede
(sobretudo o círculo dos próximos e o seu eventual parceiro) esteja
em condições de exercer sobre eles um controlo social, ou seja,
uma vigilância relativamente às suas relações sexuais. Do grau de
controlo dependerão parcialmente as sanções pelo afastamento das
normas; da percepção do controlo dependem, em parte, as liber-
dades que os indivíduos tomam relativamente às normas ideais.
Como vimos, o conceito de estrutura está no centro de toda a
análise das redes sociais. Apreender a rede social a partir da sua
estrutura equivale a sublinhar a potencial influência das interde-
pendências dos actores que dela fazem parte. Por outras palavras,
algumas características estruturais reais da rede terão uma influên-
cia directa ou indirecta (através das potenciais modalidades de
controlo social) sobre as normas dos indivíduos. As características
estruturais consideradas são as seguintes: o tamanho, o grau de
homogeneidade social, o grau de conhecimento mútuo dos seus
membros, o grau de inclusão do parceiro principal. No modelo
de análise, estas características correspondem aos indicadores.
Para esta investigação, as normas práticas da rede, a sua estru-
tura e o controlo social que aí é exercido constituem as dimensões
do conceito. No que respeita à sua estrutura, por uma questão
de economia, uma grande parte dos indicadores incidem apenas
sobre o círculo de amigos, ou seja, aquele em que o poder do
ego para o moldar é supostamente o maior; contudo, tanto na
teoria como na prática, tais indicadores são igualmente pertinentes
206 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

para os dois outros círculos e para a rede no seu conjunto. Estas


dimensões são retomadas com os seus indicadores no Quadro 4.4.
Passemos agora aos limites desta conceptualização. Ainda que
se inscreva na linha de trabalhos sobre as redes sociais, afasta-se
da teoria das redes em alguns pontos essenciais. A maior parte
desses desvios resulta da impossibilidade de aplicar um dispositivo
de recolha de dados necessário à análise matemática da estrutura
da rede dos indivíduos. As dimensões e os conceitos apresentados
foram construídos na perspectiva de uma operacionalização para
um inquérito por questionário aplicado a uma amostra aleatória
da chamada população geral. Ora, este quadro de aplicação não
permite mobilizar todas as potencialidades de análise das redes
sociais (as chamadas social network analysis), o que idealmente
requer que sejam estudadas todas as ligações significativas entre os
indivíduos. Nesta teoria, a estrutura da rede resulta das relações
que os indivíduos mantêm entre si, por outras palavras, da sua
posição no seio da estrutura. Esta estrutura não é dada a priori,
emerge da análise das ligações e é o seu papel de determinante das
opiniões e dos comportamentos que é equacionado como hipótese.

Conceito Dimensões Indicadores


Rede social A estrutura da rede Tamanho e diversidade da rede (quanto à pertença
aos vários círculos)
Grau de conhecimento mútuo dos amigos
Grau de homogeneidade social do círculo de amigos
Grau de inclusão do parceiro principal no círculo
de amigos
O controlo social da Controlo social exercido pelo círculo familiar
rede (percepção)
Controlo social exercido pelo círculo de amigos
Controlo social exercido pelo círculo de colegas
Controlo social exercido pelo parceiro principal
As normas práticas Normas práticas do círculo familiar
da rede (percepção)
Normas práticas do círculo de amigos
Normas práticas do círculo de colegas

Quadro 4.4 — As dimensões e os indicadores do conceito de rede social


A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 207

Tratando-se de estudar os comportamentos sexuais e as atitu-


des perante o risco de sida, a análise do conjunto das ligações
significativas de várias redes de actores é impensável, tanto por
razões económicas como éticas.
Como interrogar todos os indivíduos que mantêm relações
significativas com nem que seja uma centena de pessoas tiradas à
sorte? Como suportar os custos de tal inquérito? E uma vez que
se aborda a vida íntima das pessoas, como evitar as distorções
ligadas a encobrimentos e a segredos? Ora, dado que nem todas
as ligações podem ser estudadas, devemos também esquecer as
análises matemáticas em termos de grau de centralidade, de grau
de coesão da rede ou de vazio estrutural.
No dispositivo de inquérito por questionário, os indivíduos
tirados à sorte estão isolados, não pertencem à mesma rede. São
eles que ocupam uma posição central no dispositivo de recolha de
informação aplicado e fornecem informações sobre a rede social
a que pertencem. Em relação ao quadro de referência, esta é uma
inflexão com algum significado.
Assim, as restrições de acesso ao terreno têm consequências
em cadeia a diferentes níveis. De forma indirecta, os processos
cognitivos individuais encontram um lugar na explicação dos
fenómenos observados, uma vez que a informação recolhida acerca
da rede passa pelo filtro das percepções individuais. Esta passa-
gem obrigatória pela percepção dos actores afecta directamente
a construção conceptual: em vez de poderem estudar o controlo
social, os inquéritos viram-se para a percepção do controlo social
exercido; em vez de estudarem as normas práticas da rede, abordam
as normas práticas percebidas; mais do que estudar o tamanho
da rede ou o seu grau de homogeneidade, são os indivíduos que
são levados a avaliar uma e outra... Além disso, como se dispõe
de apenas um informador por cada rede, as interpretações quanto
às consequências da rede devem ser prudentes. As análises e as
interpretações oscilam, assim, entre perspectiva individual e con-
sequências do contexto.
208 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Quando o investigador tem plena consciência destas limitações,


o seu inquérito pode ainda, assim, produzir conhecimentos muito
interessantes, como se verá nas etapas seguintes.

4.2 O Movimento Branco

Entre as muitas investigações que estudaram as expectativas


dos cidadãos em relação à Justiça (ver a etapa anterior, A proble-
mática), uma delas visava analisar as motivações do Movimento
Branco. Este movimento foi criado na Bélgica nos anos 1990 na
sequência de uma série de raptos e assassínios de crianças que se
tornaram muito mediáticos, entre os quais o tristemente célebre
«caso Dutroux». Durante meses, o Movimento Branco mobilizou
centenas de milhares de pessoas em torno de temas relacionados
com a protecção das crianças e daquilo a que na época se con-
vencionou chamar as disfunções da Justiça. A cor branca, exibida
por todos os participantes nas manifestações, simbolizava a pureza
das crianças vítimas.
Como interpretar as reacções colectivas (petições, marchas
brancas, cartas dos leitores, discursos de actores, manifestações,
etc.) resultantes dos acontecimentos do Verão de 1996? Quais as
razões para tantas pessoas fazerem parte delas? Qual era, na sua
perspectiva, o sentido da sua participação? Que mensagem que-
riam fazer chegar aos responsáveis políticos? Qual o destino deste
movimento? Estas perguntas fizeram correr muita tinta durante
vários anos. O modo como foram formuladas pressupunha uma
grande homogeneidade do movimento, tanto do ponto de vista
das motivações como dos valores de milhares de pessoas que se
juntaram a ele. No entanto, várias investigações levadas a cabo
sobre esta acção colectiva rapidamente contrariaram esta impressão
e puseram em causa aquilo que parecia uma evidência.
É o caso dos trabalhos conduzidos por J. Marquet e Y. Cartuy-
vels (Attentes sociales et demandes de justice. Les mobilisations
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 209

blanches et aprês?, Bruxelas, Publications des Facultés Universi-


taires Saint-Louis, 2001), cujo modelo de análise se organizou em
torno do conceito de denúncia social. Este conceito operatório
isolado foi adoptado no seguimento de uma investigação quali-
tativa apresentada nesta obra, «Les formes de la plainte social:
entre émotions et revendications» (J. Marquet, T. Périlleux, L. Van
Campenhoudt, pp. 15-59).
A ideia de que era necessário voltar-se para os participantes
nesta acção colectiva para perceber o sentido que atribuíam às
suas acções rapidamente se impôs aos investigadores. Por con-
seguinte, a pergunta de partida escolhida foi desde logo: «Qual
o significado deste movimento para os que nele participaram?»
Para responder a esta pergunta, os investigadores optaram por
uma abordagem compreensiva (que consistia em decifrar o sentido
que os actores atribuíam à sua participação) e sobretudo intui-
tiva que dá um estatuto forte ao terreno. Esta opção requer que,
pelo menos no início do processo, o modelo de análise não seja
demasiado elaborado e que os conceitos escolhidos tenham um
cunho de abertura para poderem acolher a diversidade de vivên-
cias subjectivas. Como no caso do conceito de denúncia social.
Assim, paradoxalmente, a expressão «denúncia social» foi
seleccionada sobretudo pela sua polissemia, característica que
permite dar lugar à hipótese de diversidade de reacções e das suas
motivações. A denúncia tanto pode ser um lamento ou a expres-
são de um sofrimento, como pode ser um descontentamento ou
uma reivindicação, ou pode, ainda, numa aceitação legal, remeter
para uma infracção denunciada em sede de justiça. Sem abarcar
a totalidade do objecto da investigação, a expressão «denúncia
social» concretiza aquilo que os investigadores tentam apreender,
recusando ao mesmo tempo atribuir-lhe à partida uma interpreta-
ção unívoca. Com efeito, nesta fase da investigação são incapazes
de saber que emoções, protestos ou denúncias alimentam o con-
junto diversificado de reacções; além disso, a expressão «denúncia
social» não é ainda verdadeiramente um conceito analítico, estatuto
210 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

que só deverá adquirir ao longo do trabalho. Nesta fase, permite


sobretudo clarificar o assunto da investigação. «Na perspectiva
adoptada, a denúncia pode ser um grito de raiva ou de desprezo,
uma forma de nomeação, um acto de vontade, a expressão de
um descontentamento ou de uma afronta, a denúncia de uma
injustiça, uma reivindicação política, ou uma amálgama de tudo
isto, urdida de afecções e emoções diversas» (ibidem).
As diversas formas de reacções colectivas — que nesta abor-
dagem continuam por identificar sistematicamente — recebem o
estatuto de dimensões do contexto de denúncia social.
Nesta perspectiva, foram formuladas quatro hipóteses que
correspondem a quatro objectivos complementares. Numa óptica
mais indutiva, as hipóteses são formuladas de uma maneira que
abre cada uma a vasta paleta de possibilidades.

Objectivo e hipótese 1
O primeiro objectivo é registar a denúncia social na sua diver-
sidade e complexidade. A hipótese que lhe corresponde é que,
longe da evidência de homogeneidade do movimento, se está a
lidar com uma denúncia social complexa e diversificada. Encarar
esta hipótese com seriedade implica libertar a denúncia do seu
enquadramento puramente jurídico — a questão do justo e do
injusto não se limita a «fazer justiça» — e dar lugar às realidades
sociais dinâmicas em que se enraíza o jurídico (os afectos colec-
tivos, as desigualdades sociais, violência física ou simbólica, etc.).

Objectivo e hipótese 2
O segundo objectivo é estudar as características sociais das
2

populações que apresentam a denúncia. A hipótese correspondente


é que existe uma relação entre as diversas formas da denúncia
e as características sociais dos grupos que as apresentam. Esta
hipótese implica um interesse pelas eventuais ligações entre as
A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE 211

diversas variantes da denúncia e as condições de vida específicas


das populações que as manifestam.

Objectivo e hipótese 3
O terceiro objectivo é compreender a organização das diversas
denúncias. A hipótese que lhe diz respeito é que se constituiu
uma grande aliança de exigências sociais diversificadas em torno
da questão unificadora das crianças desaparecidas. Esta hipótese
leva-nos a perguntar em que é que as pessoas se reconheceram
nos dramas que originaram o Movimento Branco.

Objectivo e hipótese 4
O quarto objectivo é estudar a notoriedade e o crédito dos
retransmissores individuais e institucionais chamados a traduzir
a denúncia. A hipótese correspondente é a emergência de novos
actores na cena pública (como alguns dos pais de algumas vítimas,
alguns jornalistas, intelectuais e responsáveis políticos). Esta hipó-
tese convida a estudar a notoriedade e o crédito de que gozam,
junto da população, os diversos retransmissores — emergentes e
tradicionais — chamados a traduzir a denúncia e a convertê-la
num quadro político-jurídico.
Contrariamente ao exemplo anterior, não se trata aqui de trans-
formar os conceitos em indicadores e construir um questionário
padronizado. Continua por descobrir a maneira como o problema
se apresenta aos indivíduos e esse é um dos desafios da inves-
tigação, o que justifica um procedimento mais flexível e aberto.

RESUMO DA QUARTA ETAPA


A CONSTRUÇÃO DO MODELO DE ANÁLISE

O modelo de análise é o prolongamento natural da problemática,


articulando de forma operacional os marcos e as pistas que serão
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QUINTA ETAPA

A OBSERVAÇÃO
AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO

Etapa 1 — A pergunta de partida

Etapa 2 — A exploração

|
*| As entrevistas
As leituras
« exploratórias

Etapa 3 — A problemática

Etapa 4 — A construção do modelo de análise


4—

Etapa 5 — A observação
+—

Etapa 6 — A análise das informações


€—

Etapa 7 — As conclusões
1. OBJECTIVOS
À observação compreende o conjunto das operações pelas quais
o modelo de análise (constituído por hipóteses e por conceitos
com as suas dimensões e os seus indicadores) é submetido ao teste
dos factos e confrontado com dados observáveis. Ao longo desta
fase, são reunidas numerosas informações. Serão sistematicamente
analisadas no decurso da próxima etapa. Tal como na física ou
na química, a observação pode tomar a forma da experimentação;
mas não falaremos dela aqui, porque as condições de aplicação
da experimentação só muito raramente estão reunidas em inves-
tigação social.
A observação — por vezes designada por «trabalho de
campo» — é uma etapa essencial em qualquer investigação em
ciências sociais. Estas disciplinas são consideradas disciplinas
«empíricas» no sentido em que pressupõem sempre uma investiga-
ção que consiste na recolha e análise de um material «concreto»,
como as respostas às perguntas feitas num questionário, os dados
estatísticos, as informações recolhidas no contexto das entrevistas,
os documentos produzidos por uma determinada organização
(como uma empresa, uma administração ou um jornal), docu-
mentos audiovisuais ou digitais, ou ainda as observações feitas
directamente nos espaços de vida das pessoas estudadas.
Este material «concreto» não é, por isso, um material «bruto»,
porque não pode ser apreendido independentemente das ferramen-
tas utilizadas para esse fim (conceitos, métodos e técnicas). Por
exemplo, uma taxa de suicídio não é uma realidade em bruto,
mas sim uma informação ou um dado construído com a ajuda de
ferramentas metodológicas (essencialmente é uma definição pre-
cisa da noção de suicídio, um dispositivo relativamente complexo
218 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

de contagem dos casos de suicídio e uma forma de cálculo das


respectivas taxas), mas que nem por isso deixa de dar conta da
realidade e que deve concordar com ela. No caso, esta realidade
«bruta» é na verdade o facto de, em cada ano, numa determi-
nada população, vários milhares de pessoas, deliberadamente,
executarem uma acção que conduz à sua própria morte. Nem
realidade bruta, nem pura abstracção, um material de investigação
«concreto» é uma informação sobre a realidade que é produzida
pelo dispositivo de investigação.
Antes de entrar a fundo nesta etapa, tem de se perceber bem
o significado da observação na investigação social, significado
esse que é triplo:
— Primeiramente, a observação visa testar as hipóteses. Como tal,
ocupa uma posição necessária no conjunto do dispositivo de
investigação e contribui para a sua coerência em geral. É essen-
cialmente nesta coerência geral que reside a validade do pro-
cedimento. Mais precisamente, o rigor consiste na adequação
entre os conhecimentos apresentados no fim da investigação
e aquilo que permite mostrá-los: conceitos criteriosamente
escolhidos e definidos com precisão, hipóteses explícitas e
bem construídas e, naquilo que a esta etapa diz respeito,
dispositivos de recolha de material empírico correctamente
concebidos e aplicados. Como teremos ocasião de recordar
mais adiante (sexta etapa: «Um cenário de investigação não
linear»), a articulação entre as hipóteses e a observação não
tem forçosamente de ser linear. Por razões pedagógicas, privile-
giamos em geral os exemplos em que a sequência das etapas é
relativamente linear (mas não sem insistir na importância dos
círculos de retroacção, bem visíveis no esquema das etapas).
No entanto, em determinados dispositivos metodológicos há
um vaivém constante entre as hipóteses e as observações, de
tal modo que se fecundam mutuamente;
— Em segundo lugar, a observação confere à investigação um
princípio de realidade. Embora a especulação teórica ocupe
A OBSERVAÇÃO 219

um lugar importante nas ciências sociais, como em pratica-


mente todas as disciplinas científicas, deve «manter os pés bem
assentes na terra». As ideias do investigador devem estar em
consonância com o que a realidade social mostra de si própria
e poderem ligar-se ao que as pessoas visadas pensam e vivem,
como explicam A. Strauss e J. Corbin, representantes da «teoria
enraizada» — mais conhecida pela sua denominação inglesa de
Grounded Theory — (Les Fondements de la recherche qualita-
tive, Academic Press, Friburgo, 2004, p. 22). Isto não significa
que seja preciso tomar qualquer assunto como garantido, mas
sim que, para compreender qualquer fenómeno social, é preciso
perceber a sua incidência na consciência daqueles que o vivem;
Terceiro, finalmente, e sem qualquer dúvida, o sentido profundo
da empiria é colocar-se deliberada e sistematicamente em posição
de ser surpreendido. Longe de o levarem a fechar-se numa con-
vicção, a construção e o formalismo do método devem obrigar
o investigador a explorar aspectos do fenómeno estudado que
não coincidem forçosamente com as intuições iniciais. Quando
correctamente concebidas, as dificuldades metodológicas não
são um espartilho; muito pelo contrário, servem para obrigar
o investigador a ver aquilo que não conseguia. Porque, para
se posicionar sistematicamente em condições de ser surpreen-
dido, é necessário adoptar um procedimento sistemático que
obrigue a «vasculhar» em sítios e de acordo com meios que,
mais que plausível, tornem a surpresa provável. As regras em
matéria de construção do modelo de análise, de construção da
amostra, da análise de dados, da conduta a adoptar ao longo
de uma entrevista ou de uma observação são apenas alguns
exemplos desta sistematização do procedimento. Estas descober-
tas surpreendentes, tornadas assim possíveis, tanto estimulam
o investigador porque o levam a novas explorações, como lhe
levantam problemas, porque reclamam um questionamento
mais ou menos profundo das hipóteses. Mas é mesmo assim.
Daí que uma boa hipótese não seja aquela que se pode veri-
ficar, mas sim aquela que favorece a descoberta. Considerar
220 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

a observação como a recolha oportunista de dados favoráveis


às hipóteses de pesquisa, que o «investigador» se obstinaria
em verificar, está nos antípodas do espírito da investigação e
desqualifica o seu trabalho. Uma hipótese não é uma ideia
fixa e o trabalho empírico não é uma manipulação de dados
em função de um preconceito ou até de uma causa, por mais
nobre que esta seja.

Não há dúvida de que é aconselhável alguma flexibilidade e


que as directivas e conselhos apresentados neste livro não devem
ser aplicados como um fetiche ou um ritual. No entanto, não quer
dizer que em nome da flexibilidade e da inventividade se faça
qualquer coisa e de qualquer maneira. Porque, paradoxalmente,
será a própria inventividade a sair prejudicada. O substantivo
«disciplina» na expressão «disciplina científica», tão ancorado no
vocabulário que deixamos de lhe prestar atenção, assume aqui
todo o sentido.
Isto significa que, seja qual for o método de recolha e de análise
das informações que utilizar (atente-se nos panoramas apresen-
tados mais adiante), o investigador deve estar em condições de
explicitar a sua maneira de proceder, de mostrar que não é uma
maneira arbitrária e que a põe em prática concretamente com rigor
e constância (por exemplo, utilizando sempre, como se verá na
etapa seguinte, da mesma maneira a mesma grelha para analisar
as entrevistas e os documentos), baseando-se, se necessário, nos
manuais propostos pelos especialistas.
No que diz respeito à etapa de observação, esta sistematização
do procedimento pode estruturar-se em torno de três perguntas
às quais o investigador tem de responder antes de avançar para
o terreno ou para a recolha de dados:
— Observar o quê?
— Em quem?
— Como?
A OBSERVAÇÃO 221

2. OBSERVAR O QUÊ? A DEFINIÇÃO DOS


DADOS PERTINENTES
De que dados necessita um investigador para testar as suas
hipóteses?
Dos que são definidos pelo modelo de análise e, em particular,
pelos indicadores. Para ilustrarmos esta resposta, retomemos o
exemplo da investigação de Durkheim sobre o suicídio. Quais são
os dados necessários para testar a sua hipótese sobre a relação
entre a coesão religiosa e a taxa de suicídio? Qualquer um pode
facilmente responder: por um lado, dados que lhe permitam calcu-
lar as taxas de suicídio de várias regiões tão semelhantes quanto
possível, excepto, é claro, no que respeita à religião, e, por outro
lado, dados relativos à coesão religiosa.
Como a coesão religiosa não é directamente observável,
Durkheim orientou as suas observações para indicadores como a
importância numérica do clero, o número de ritos ou de crenças
partilhadas em comum ou a importância dada ao livre exame.
Na realidade, Durkheim teve, pois, de reunir dados relativos, não
a uma simples variável enquanto tal, mas sim a vários indicado-
res desta variável. Esta indispensável decomposição da variável
multiplica, portanto, os dados a recolher e exige um trabalho
cuidadosamente estruturado e organizado. Foi, aliás, criticado a
Durkheim o carácter pouco operativo e bastante vago do indicador
«importância do livre exame».
Além disso, a observação também deve incidir sobre os indica-
dores das hipóteses complementares. Para avaliar correctamente
o impacto de um fenómeno (a coesão da sociedade) sobre outro
(o suicídio), não basta estudar as relações entre as duas variáveis
definidas pela hipótese. É indispensável tomar em consideração
variáveis de controlo, dado que as correlações observadas, longe
de traduzirem ligações de causa a efeito, podem resultar de
outros factores implicados no mesmo sistema de interacção. Por
222 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

exemplo, para podermos estabelecer o impacto da religião sobre


o suicídio, será necessário verificar se a variável socioeconómica,
concretamente a profissão, não será mais determinante do que a
religião, sendo que encontramos mais protestantes do que cató-
licos em funções de direcção ligadas à indústria e aos negócios,
onde os valores individualistas (responsabilidade pessoal, liberdade
de pensamento, empreendedorismo...) estão mais presentes. Será
então necessário recolher um certo número de dados relativos a
outras variáveis, além das que estão explicitamente previstas nas
hipóteses principais.
Para evitar que o investigador fique submerso por uma massa
demasiado volumosa de dados dificilmente controláveis, este
alargamento da recolha dos dados deve, todavia, fazer-se com
parcimónia. É possível produzir ou recolher uma infinidade de
dados sobre qualquer fenómeno. Mas que significado atribuir-lhes
se não se inscreverem no âmbito de um modelo de análise? Em
investigação social, trata-se, pelo contrário, de recolher apenas os
dados úteis à verificação das hipóteses. Estes dados necessários
chamam-se, muito justamente, dados pertinentes.
O problema da definição dos dados necessários para testar as
hipóteses não é tão simples como parece à primeira vista. Não
existe nenhum processo técnico que permita resolver esta questão
de forma padronizada. Deste ponto de vista, como de muitos
outros, cada investigação é um caso único que o investigador só
pode resolver recorrendo à própria reflexão, tendo em conside-
ração algumas restrições práticas.
Para o ajudar nesta tarefa dispõe de guias — as hipóteses —
e de pontos de referência — os indicadores. O melhor meio de
definir o mais correctamente possível os dados pertinentes e úteis
ao trabalho empírico é, portanto, a elaboração de um modelo de
análise tão claro, preciso e explícito quanto possível.
A OBSERVAÇÃO 223

3. OBSERVAR QUEM? O CAMPO


DE ANÁLISE E A SELECÇÃO DAS UNIDADES
DE OBSERVAÇÃO
3.1 O campo de análise
Não basta saber que tipos de dados deverão ser recolhidos.
É também preciso circunscrever o campo das análises empíricas
no espaço, geográfico e social, e no tempo. À este respeito podem
apresentar-se duas situações:
e À primeira situação: o trabalho tem por objecto um fenómeno
ou um acontecimento particular — por exemplo, as redes de
comunicação no interior de um determinado serviço hospitalar,
o recrutamento de uma escola ou o fracasso de uma confe-
rência internacional. Neste caso, o objecto do trabalho define,
ele próprio, de facto, os limites da análise e o investigador
não terá dificuldades a este respeito. Para evitar equívocos
e trabalhar sem se dispersar, será, ainda assim, necessário
precisar explicitamente os limites do campo de análise, ainda
que pareçam evidentes: período de tempo tido em conta, zona
geográfica considerada, organizações e actores aos quais será
dado relevo, etc.
e A segunda situação é a do suicídio, de Durkheim: o investi-
gador não dá relevo a fenómenos singulares, mas a proces-
sos sociais. Neste caso tem de fazer escolhas. Por exemplo,
Durkheim teve de escolher os países sobre os quais incidiu a
análise. Estas escolhas devem ser ponderadas em função de
vários critérios.

Entre os mais importantes encontram-se as próprias hipóteses


de trabalho e o que elas ditam ao bom senso. Como vimos, as
hipóteses de Durkheim obrigavam-no quase a escolher, como
campo de análise principal, países tão pouco diferentes uns dos
outros quanto possível, excepto a respeito da religião. Na rea-
224 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

lidade, é muito frequente implicações como esta imporem-se de


forma bastante natural aos investigadores.
Um segundo critério muito importante na prática é simples-
mente a margem de manobra do investigador: os prazos e os
recursos de que dispõe, os contactos e as informações com que
pode razoavelmente contar, as suas próprias aptidões, por exem-
plo, em línguas estrangeiras, etc. Não é de estranhar que, a maior
parte das vezes, o campo de investigação se situe na sociedade
onde vive o próprio investigador. Isso não constitui, a priori, um
inconveniente nem uma vantagem.
De qualquer maneira, o campo de análise deve ser muito cla-
ramente circunscrito. Um erro muito frequente nos investigadores
principiantes consiste em escolherem um campo demasiado amplo.
Um estudante realizará de boa vontade um trabalho sobre o sub-
desenvolvimento a partir de um exame sumário de vários dados
relativos a uma boa dezena de países diferentes, enquanto, por
seu turno, um investigador que prepara uma tese concentrará as
suas análises sobre uma comunidade de dimensão muito redu-
zida, cuja história, funcionamento político, estruturas sociais e
económicas e representações culturais e religiosas, por exemplo,
estudará cuidadosamente. Paradoxalmente, é muito frequente que
o trabalho empírico só forneça elementos dignos de confiança
para o controlo de hipóteses de carácter geral, se esse trabalho
revestir, ao invés, o aspecto de uma análise precisa e aprofundada
de situações singulares.

3.2 A amostra
Em princípio, o que caracteriza os especialistas em ciências
sociais, e os sociólogos em particular, é estudarem os conjuntos
sociais (por exemplo, uma sociedade global ou organizações
concretas dentro de uma sociedade global) enquanto totalidades
específicas diferentes da soma das suas partes. São os comporta-
A OBSERVAÇÃO 225

mentos de conjunto que lhes interessam em primeiro lugar, as suas


estruturas e os sistemas de relações sociais que os fazem funcionar
e mudar, e não os comportamentos, por si próprios, das unidades
que os constituem. Contudo, o estudo de um conjunto precisa
de passar primeiro pelo estudo dos seus elementos constitutivos.
Para conhecer as tendências presentes numa determinada popu-
lação, no que respeita, por exemplo, às suas opiniões políticas, é
indispensável analisar as opiniões de uma amostra de indivíduos
que compõem essa população. Para conhecer o modo de funcio-
namento de uma empresa, será necessário, na maior parte das
vezes, interrogar os que dela fazem parte, ainda que o objecto
de estudo seja constituído pela própria empresa, e não pelo seu
pessoal. Para estudar a ideologia de um jornal, será necessário
analisar os artigos publicados, ainda que estes artigos não cons-
tituam, em si mesmos, o objecto da análise.
À totalidade destes elementos, ou das «unidades» constitutivas
do conjunto considerado, chama-se «população», podendo este
termo designar tanto um conjunto de pessoas como de organiza-
ções ou de objectos de qualquer natureza.
Uma vez delimitada uma população (por exemplo, a popula-
ção activa de uma região, o conjunto das empresas de um sector
industrial ou os artigos publicados na imprensa escrita sobre
determinado assunto ao longo de um ano), nem sempre é possível,
ou sequer útil, reunir informações sobre cada uma das unidades
que a compõem. A banalização das sondagens de opinião ensinou
ao grande público que é possível obter uma informação digna de
confiança sobre uma população de várias dezenas de milhões de
habitantes interrogando apenas alguns milhares deles.
No entanto, o recurso às técnicas de amostragem não é exclusivo
das sondagens de opinião, que, aliás, quando efectuadas indepen-
dentemente de uma problemática teórica, como é habitualmente
o caso, não se incluem na investigação social propriamente dita.
Estas técnicas podem ser utilizadas com os mais variados fins.
Por exemplo, um auditor de uma empresa analisará uma amostra
226 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

representativa dos milhares de facturas anuais para obter informa-


ções relativas à totalidade das facturas emitidas ou recebidas pela
empresa. Um bibliotecário examinará uma amostra representativa
das obras possuídas para avaliar o seu estado geral de conservação.
O responsável pelo marketing de uma empresa seleccionará uma
amostra representativa dos seus clientes para testar o impacto de
uma campanha de publicidade que tenciona lançar.
No entanto, e apesar das suas numerosas vantagens, as técni-
cas de amostragem estão longe de constituírem uma panaceia em
investigação social. De que se trata exactamente?
Depois de ter circunscrito o seu campo de análise, deparam-se
três possibilidades ao investigador: ou recolhe dados e faz incidir
as suas análises sobre a totalidade da população coberta por esse
campo, ou a limita a uma amostra representativa desta popula-
ção, ou estuda apenas algumas componentes muito típicas, ainda
que não estritamente representativas, dessa população. A escolha
é, na realidade, bastante teórica, visto que, na maior parte das
vezes, uma das soluções se impõe naturalmente, em função dos
objectivos e das condições da investigação.

a) Primeira possibilidade: estudar a totalidade da


população
A palavra «população» deve, portanto, ser aqui entendida no
seu sentido mais lato: o conjunto de elementos constituintes de
um todo. O conjunto das facturas de uma empresa, dos livros
de uma biblioteca, dos alunos de uma escola, dos artigos de
um jornal ou dos clubes desportivos de uma cidade constituem
outras tantas populações diferentes. A investigação de Durkheim
visava todo o conjunto da população considerada, dado que as
suas análises se baseavam em dados estatísticos nacionais. Esta
fórmula impõe-se com frequência em dois casos que se situam
nos antípodas um do outro: ou quando o investigador, analisando
fenómenos macrossociais (as taxas de suicídio, por exemplo) e
A OBSERVAÇÃO 227

estudando a população enquanto tal, não tem por isso necessidade


de informações precisas sobre o comportamento das unidades que
a compõem, bastando-lhe dados globais disponíveis nas estatísticas,
ou quando a população considerada é muito reduzida e pode ser
integralmente estudada.

b) Segunda possibilidade: estudar uma amostra


representativa da população
Esta fórmula impõe-se quando estão reunidas duas condições:
— Quando a população é muito numerosa e é preciso recolher
muitos dados para cada indivíduo ou unidade;
— Quando, sobre os aspectos que interessam ao investigador, é
importante recolher uma imagem globalmente conforme à que
seria obtida interrogando o conjunto da população, resumindo,
quando se põe um problema de representatividade.

A exigência de representatividade é menos frequente do que


por vezes se julga: não deve confundir-se cientificidade com
representatividade. Para conhecer melhor grupos ou sistemas de
relações, não é forçosamente pertinente, em termos sociológicos,
estudá-los como somas de individualidades. Não é, sem dúvida,
inútil interrogarmo-nos acerca do significado da noção de repre-
sentatividade, demasiadas vezes evocada com muita ligeireza do
ponto de vista epistemológico. Quem se interessar por esta questão
pode consultar, nomeadamente, Le métier de sociologue (op. cit.,
p. 243), que cita o caso do «two-step flow of communication»
para mostrar o erro causado por uma utilização pouco lúcida
do princípio de representatividade (exemplo tirado de «Two-step
flow of communication: an up-to-date report on an hypothesis»,
in Public Opinion Quarterly, 1957, vol. XXI, pp. 61-78).
Não nos deteremos aqui sobre as técnicas de amostragem
propriamente ditas, que são demasiado específicas para entrarem
no âmbito deste livro. Como acontece com todas as questões
228 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

muito técnicas, há muitas obras que tratam deste assunto e que


podem ser facilmente obtidas em qualquer biblioteca de ciências
sociais. Ainda que estas técnicas não sejam geralmente muito
difíceis de compreender, a sua utilização prática é com frequência
mais complicada, devido às imperfeições e dificuldades de acesso
a bases de sondagens (registos de estado civil, anuários e listas
várias que, em princípio, contêm os nomes de todas as unidades
da população) e aos dados estatísticos que permitem estabelecer
quotas, ou ainda ao trabalho de muitos entrevistadores, cuja
ausência de escrúpulos ou de competência pode arruinar a fiabi-
lidade da amostra.

c) Terceira possibilidade: estudar componentes não


estritamente representativas, mas características da
população
Esta é, sem dúvida, a fórmula mais frequente. Quando um
2

investigador deseja, por exemplo, estudar as diferentes formas


como vários jornais dão conta da actualidade económica, a melhor
solução consiste em analisar minuciosamente alguns artigos des-
ses diferentes jornais que tratam os mesmos acontecimentos, de
forma a proceder a comparações significativas. Querer construir
uma amostra representativa do conjunto dos artigos de cada
jornal numa base aleatória é teoricamente possível, mas exigiria
uma amostra mais vasta, tendo em conta a grande diversidade
de temas e de formatos de artigos, e a análise do seu conteúdo
reivindicaria um trabalho extremamente longo e laborioso.
Para analisar o impacto do modo de gestão do pessoal das
empresas sobre os seus resultados no trabalho, outro investiga-
dor contentar-se-á, e com razão, em estudar em profundidade o
funcionamento de um pequeno número de empresas muito carac-
terísticas dos principais modos de gestão do pessoal.
Nos casos em que encara um método de entrevista semidirectiva
(ver adiante), o investigador não pode, regra geral, dar-se ao luxo
A OBSERVAÇÃO 229

de entrevistar muito mais do que umas dezenas de pessoas. Nesses


casos, o critério de selecção dessas pessoas é em geral a diversidade
máxima dos perfis relativamente ao problema estudado.
Por exemplo, numa investigação intensiva sobre os diferentes
modos de reacção de uma população à renovação do seu bairro,
procurar-se-á diversificar ao máximo os tipos de pessoas inter-
rogadas no interior dessa população, nomeadamente, tendo em
conta critérios de idade, de género, situação familiar, ocupação,
condição socioeconómica e origem cultural. Ao diversificar ao
máximo os perfis, o investigador terá maiores hipóteses de reco-
lher reacções mais variadas e mais contrastantes. Conforme as
entrevistas se vão acumulando e revelando as suas informações,
o contributo de cada entrevista suplementar será cada vez menos
relevante. Ainda que o investigador tenha tentado diversificar os
perfis, o conteúdo das respostas atingirá um ponto de satura-
ção e as últimas entrevistas não mostrarão quase nada que não
tenha sido já referido por um inquirido anterior. É neste ponto
de saturação que o investigador deverá, legitimamente, pôr termo
às suas entrevistas e que poderá considerar que a sua amostra de
inquiridos, ainda que não estritamente representativa, é, apesar
de tudo, válida.

4. OBSERVAR COMO? OS INSTRUMENTOS


DE OBSERVAÇÃO E A RECOLHA DOS DADOS
Neste terceiro ponto, exporemos primeiro os princípios de
elaboração dos instrumentos de observação. Esta exposição será
ilustrada por dois exemplos que permitirão entender a forma
como se opera a passagem do conceito e dos seus indicadores às
técnicas de recolha dos dados. Trataremos em seguida as diferentes
operações que fazem parte do trabalho da fase de observação e
apresentaremos, por fim, um panorama dos métodos de recolha
mais correntes.
230 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

4.1 A elaboração dos instrumentos de observação


Esta fase do trabalho de observação consiste na construção
do instrumento capaz de recolher ou de produzir a informação
prescrita pelos indicadores. Esta operação apresenta-se de dife-
rentes formas, consoante se trate de uma observação directa ou
indirecta.

a) A observação directa e a observação indirecta


A observação directa é aquela em que o próprio investigador
procede directamente à recolha das informações, sem se dirigir
aos sujeitos interessados. Apela directamente ao seu sentido de
observação. Por exemplo, para comparar o público do teatro
com o do cinema, um investigador pode contar as pessoas à
saída, observar se são jovens ou velhas, como estão vestidas,
etc. Outro exemplo: para estudar a estrutura espacial e social
de um bairro, o investigador pode observar os tipos de habi-
tação (casas unifamiliares, prédios de apartamentos), o lugar
ocupado pelas habitações sociais relativamente às privadas e a
manutenção feita a umas e a outras, o espaço público acessível
a todos, sem restrições de acesso, em relação ao espaço privado,
etc. À particularidade e a vantagem da observação directa reside
no facto de as informações recolhidas pelo investigador estarem
em «bruto» no sentido em que não foram especialmente adap-
tadas, ou até modificadas, por ele. Os indivíduos observados
(por exemplo, os amantes de teatro e de cinema, ou as pessoas
que frequentam o bairro) não intervêm na produção da infor-
mação procurada. Esta é recolhida directamente pelo observador
(inspiramo-nos aqui nas conversas com o belga Daniel Bodson,
sociólogo do espaço).
No caso da observação indirecta, o investigador dirige-se ao
sujeito para obter a informação procurada. Ao responder às per-
guntas, o sujeito intervém na produção da informação. Esta não
A OBSERVAÇÃO 231

é recolhida directamente, sendo, portanto, menos objectiva. Na


realidade, há aqui dois intermediários entre a informação pro-
curada e a informação obtida: o sujeito, a quem o investigador
pede que responda, e o instrumento, constituído pelas perguntas
a fazer. Estas são duas fontes de deformações e de erros que será
preciso verificar para que a informação obtida não seja falseada,
voluntariamente ou não.
Na observação indirecta, o instrumento de observação é um
questionário ou um guião de entrevista. Um e outro têm como
função produzir ou registar as informações requeridas pelas
hipóteses e prescritas pelos indicadores. No primeiro exemplo
que apresentaremos a seguir, sobre os comportamentos sexuais e
atitudes perante o risco de sida, o instrumento de observação é
um questionário. No segundo exemplo, o do Movimento Branco,
o instrumento de observação é um guião de entrevista. Para
mostrar a continuidade entre a observação e a análise, estes dois
exemplos serão retomados na etapa seguinte, dedicada à análise
das informações.

b) Primeiro exemplo: comportamentos sexuais e atitudes


perante o risco de sida
A observação consiste em reunir todas as informações desig-
nadas pelos indicadores. Se optarmos pela recolha de dados por
questionário, este compreenderá o conjunto das perguntas que
cobrem os indicadores de todos os conceitos implicados pelas
hipóteses. Cada pergunta corresponde a um indicador e a sua
função é produzir, pelas respostas dadas, a informação necessária
ao teste das hipóteses.
No prolongamento da etapa anterior (construção do modelo de
análise), teremos em consideração, sucessivamente, o modelo
de análise KABP e o modelo de análise da rede social, tal como
nos concentraremos mais sobre os determinantes dos comporta-
mentos do que sobre os próprios comportamentos.
232 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

O modelo de análise KABP


Neste modelo, os conhecimentos, as crenças e as atitudes, em
princípio, explicam os comportamentos. Portanto, as três hipóte-
ses principais interrogam, assim, a ligação entre conhecimentos,
crenças e atitudes, por um lado, e os comportamentos, por outro.
Mas o modelo é mais rico do que isso e integra também hipóteses
que estabelecem uma ligação entre os três primeiros conceitos.
Explicaremos os procedimentos a partir da hipótese seguinte:
quanto melhor uma pessoa conhecer as vias de transmissão do
VIH e os modos de protecção contra este vírus, menos riscos
corre de ser infectada nas relações sexuais. Para submeter esta
hipótese à prova dos factos, seria necessário medir o grau de
conhecimento das vias de transmissão e dos modos de protecção
e o grau de risco de infecção pelo VIH que se corre durante as
relações sexuais. Mas uma coisa de cada vez. Na etapa anterior
apresentámos o conceito de conhecimento e as suas duas compo-
nentes, as vias de transmissão do VIH e os modos de protecção
contra este vírus.
Em primeiro lugar, no que respeita à dimensão das vias de
transmissão do vírus, os indicadores escolhidos são reiterados

Conceito: conhecimento
Dimensão: vias de transmissão do VIH
Indicadores Perguntas Respostas
Na sua opinião, a transmissão do vírus da Sim | Não | Não
sida é possível sei
Relações sexuais Durante relações sexuais vaginais? o o o
Durante relações sexuais anais? o
DO

Do

Durante relações sexuais orais (bucogenitais)? o


Consumo de droga por | Consumo de droga com uma seringa infectada | O o o
via intravenosa
Picadas de mosquito Pela picada de um mosquito o o o
Uso de casas de banho Ao sentar-se no tampo da sanita o o o
Partilha do mesmo copo | Bebendo pelo mesmo copo de outra pessoa o o o

Quadro 5.1 — A dimensão «vias de transmissão do VIH» em perguntas


A OBSERVAÇÃO 233

na primeira coluna do Quadro 5.1. À frente de cada indicador


é retomada a pergunta, ou as perguntas, que lhe correspondem,
bem como os espaços para o registo das respostas.
Este é apenas um exemplo da ligação entre indicadores e per-
guntas. Encontramos muitas perguntas deste tipo nos inquéritos
inspirados totalmente ou parcialmente no modelo KABP.

As modalidades de resposta fazem parte das perguntas

Neste quadro, supõe-se que se trata de perguntas de conhe-


cimento e achamos normal limitar as respostas a «sim», «não»
e «não sei». Com efeito, ou o inguirido sabe se podemos ser
infectados pela picada de um mosquito ou não sabe. Se conhecer
a posição dos cientistas, de acordo com a qual a picada de mos-
quito não transmite a infecção, responderá «não». Mas também
poderíamos ter considerado que se tratava mais de uma questão
de crenças, em que intervêm fenómenos psíquicos de confiança
e de interpretação de mensagens formais. Por exemplo, é possí-
vel que o inquirido desconfie dos avisos dos especialistas sobre
a eventual infecção pela picada do mosquito. Neste caso, teria
sido mais normal propor mais possibilidades de resposta, como:
«O risco é baixo, mas existe», ou ainda «Dizem que não, mas
eu desconfio».
A comparação dos muitos inquéritos realizados em diferentes
países mostra que os resultados registados dependem fortemente
das modalidades de resposta propostas (Marquet, J., Zantedeschi,
E. e Huynen, P., «Knowledge on VIH/AIDS modes of transmis-
sion and means of protection in different European countries»,
Annali di Igiene, vol. 9, n.º 4, 1997, pp. 265-272). A título de
exemplo, quando a escolha é dicotómica («sim» ou «não»), a
taxa de respostas correctas do ponto de vista das mensagens
de prevenção aumenta espectacularmente... mas poderá ser um
aumento superficial, já que este mascara as hesitações dos inqui-
ridos em relação a essas mensagens.
234 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Este exemplo mostra que as modalidades de resposta propos-


tas são parte integrante da pergunta e intervêm directamente no
processo de produção de dados. Existem obras de método que
tratam de forma específica desta questão (nomeadamente Lorenzi-
-Cioldi, E, Questions de méthodologie en sciences sociales, Lau-
sana, Delachauz e Niestlé, 1997).

Até onde levar a recolha de dados?


É necessário elaborar perguntas para todos os indicadores
da dimensão do conceito?
No que respeita à dimensão das vias de transmissão do VIH,
observamos que um indicador tanto pode traduzir-se por apenas
uma como por várias perguntas. Percebe-se facilmente que o registo
das práticas sexuais poderia ter sido bastante alargado. O mesmo
acontece com os indicadores, embora se tenham seleccionado três
que remetiam para situações e actividades da vida diária, a lista
está longe de ser exaustiva. Deste modo, em alguns inquéritos sur-
giam também indicadores relativos ao facto de comer no mesmo
prato de outra pessoa ou de comer uma refeição preparada por
um seropositivo, ou o facto de apertar a mão ou tocar em alguém,
etc. Tanto o número de perguntas como o número de indicadores
deve, portanto, ser analisado pelo investigador.
Na mente das pessoas, as vias de transmissão do vírus são
potencialmente muito numerosas. Não será sensato tomar
alguns indicadores ao acaso e transformá-los em perguntas.
Pelo contrário, é preciso encontrar uma série de indicadores que
exprimam os diversos graus do conhecimento que se pretende
verificar. É aconselhável ter vários indicadores para cada grau.
O ideal será, então, obter para cada um dos constituintes uma
bateria de indicadores que marquem os diferentes graus do
conhecimento. Assim, no exemplo precedente, primeiro encon-
tramos os indicadores que se referem às vias de transmissão
comprovadas, e que foram alvo de mensagens de prevenção,
A OBSERVAÇÃO 235

e depois as «falsas» vias de transmissão, menos presentes nas


campanhas de prevenção.
Para as perguntas que traduzem os indicadores da dimensão
«modos de protecção» (Quadro 5.2), observamos que as respostas
propostas correspondem a uma escala que indica um grau, mais
ou menos elevado, de eficácia e isto apesar de se tratar de per-
guntas de conhecimento. Esta escolha explica-se pela indefinição
relativa de algumas situações propostas, dito por outras palavras,
pela impossibilidade de precisar todas as eventualidades ligadas ao
modo de protecção considerado. Assim, o preservativo masculino
pode ser uma protecção eficaz, na condição de ser posto a tempo,
de ser utilizado correctamente, de não se romper, etc., de modo

Conceito: conhecimento
Dimensão: modos de protecção contra o VIH
Indicadores Perguntas Respostas
Vejamos algumas maneiras Muito | Razoavel- | Não é | Nada Não
de reagir perante a sida. eficaz -mente eficaz eficaz sei
Para se proteger da infecção, eficaz
em que medida considera
as seguintes formas de
protecção eficazes?
Coito — Retirar-se antes da o o o o o
interrompido ejaculação
Higiene — Lavar-se após o acto o a o o o
sexual
Escolha dos — Escolher parceiros que o o o o o
parceiros pareçam saudáveis
Pílula — Tomar a pílula o o o o o
contraceptiva
Preservativo | — Utilizar um preservativo o o D o o
masculino
Teste de — Pedir ao parceiro que n o D o o
rastreio faça um diagnóstico e
esperar pelo resultado antes
de voltar a ter relações
sexuais
Fidelidade | — Ser fiel a um parceiro que o o o o o
também seja fiel

Quadro 3.2 — A dimensão «modos de protecção contra o VIH» em perguntas


236 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

que várias respostas são possíveis consoante o inquirido considere


essas condições como satisfeitas ou não. Prever todas as situações
possíveis no questionário, com todos os seus matizes, não é realista
e pode cansar o inquirido. Por outro lado, se as perguntas lhe
parecerem indiscretas, poderá recusar-se a continuar ou, pior ainda,
mentir ao responder. Por isso, o melhor é limitar-se às perguntas
e às possibilidades de resposta mais pertinentes, até porque, na
análise, a multiplicação de respostas é menos interessante do que
a comparação entre elas.

O modelo da rede social


Na etapa de construção do modelo de análise, o conceito de
rede social desdobrou-se em três dimensões e onze indicadores.
Na análise (Marquet et al., op. cit., 1997), tratando-se de explicar
os modelos ideais dos indivíduos em termos de casal, verificou-se
que alguns indicadores tinham um papel mais determinante do
que outros. Alguns indicadores puderam desde logo ser postos de
parte, o que permitiu aligeirar o questionário.
O Quadro 5.3 apresenta uma versão extremamente reduzida do
modelo de análise, em que nos limitámos aos indicadores deter-
minantes: o grau de inserção do parceiro (principal) no círculo de
amigos, para a dimensão da estrutura da rede; o controlo social
exercido pelo parceiro (principal), para a dimensão do controlo
social da rede; as normas práticas do círculo familiar e do círculo
de amigos, para a dimensão das normas práticas da rede.

Os comportamentos sexuais
Mesmo que tenhamos decidido concentrar-nos sobre os determi-
nantes dos comportamentos em detrimento dos próprios compor-
tamentos, não será de todo inútil debruçarmo-nos alguns instantes
sobre as dificuldades de operacionalização do conceito de com-
portamento sexual. Uma dessas dificuldades já foi aqui discutida
(Até onde levar a recolha de dados?): a lista dos comportamentos
A OBSERVAÇÃO 237

Conceito: rede social


Dimensão: a estrutura da rede
Indicador Perguntas e respostas
Grau de inserção Em relação ao seu parceiro, escolha a afirmação que lhe parecer mais
do parceiro correcta:
(principal) no
o O meu parceiro principal conhece todos os meus amigos
círculo de amigos
o O meu parceiro principal conhece quase todos os meus amigos
D Tenho muitos amigos que o meu parceiro não conhece
o Ninguém conhece o meu parceiro
Dimensão: o controlo da rede social (percepção)
Indicador Perguntas e respostas
Controlo Em relação ao seu parceiro, em que medida lhe seria possível, se quisesse,
social exercido ter uma aventura ou uma relação sem que ele desse conta? Isso seria:
pelo parceiro
o Possível
(principal)
o Bastante possível
o Pouco possível
o Impossível
Dimensão: as normas práticas da rede (percepção)
Indicadores Perguntas e respostas
Normas práticas Na sua família, no que respeita à relação do casal, na prática, qual
do círculo familiar o modelo que domina (ou seja, o que se passa concretamente)?
o Fidelidade para a vida
o Fidelidade enquanto está com alguém
o Fidelidade com alguns desvios excepcionais
o Aventuras ou relações paralelas frequentes
Normas práticas Entre os seus amigos, no que respeita à relação do casal, na prática, qual
do círculo o modelo que domina (ou seja, o que se passa concretamente)?
de amigos
D Fidelidade para a vida
o Fidelidade enquanto se está com alguém
o Fidelidade com alguns afastamentos excepcionais
o Aventuras ou relações paralelas frequentes

Quadro 5.3 — O conceito de «rede social» em perguntas

sexuais a analisar é potencialmente muito longa e o investigador


é, então, levado a efectuar uma selecção racional. Regressaremos a
este assunto mais tarde. Este exemplo permite discutir outras difi-
culdades, também muito comuns, nos inquéritos por questionário.
238 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Como gerir as questões sensíveis


Que a sexualidade é um tema de investigação delicado, todos
sabemos. É igualmente o caso de muitos outros assuntos que com-
portam um risco de estigmatização, como a doença ou a deficiên-
cia ou ainda alguns comportamentos desviantes. Embora a maior
parte das investigações se debruce sobre temas menos sensíveis, o
da sexualidade é um bom exemplo, porque permite compreender
melhor a natureza de uma dificuldade que se apresenta, em graus
geralmente menores, noutras questões. Nas sociedades contempo-
râneas, a grande maioria dos comportamentos sexuais pertence,
senão ao foro íntimo, pelo menos à esfera da vida privada. Por
conseguinte, aceitar revelar estes actos num inquérito não é fácil.
O carácter indiscreto de um inquérito sobre os comportamentos
sociais dos indivíduos pode até reduzir consideravelmente a taxa
de respostas.
Contudo, será necessário abandonar qualquer perspectiva de
investigação acerca desta temática? Seguramente que não. Poucas
mulheres recusarão despir-se para fazer um exame ginecológico,
poucos homens recusarão despir-se para um exame urológico;
poucas pessoas se oporão a um pedido efectuado assim pelo
seu médico, pela simples razão de que esse pedido está em sin-
tonia com a intervenção ou o exame a realizar. Portanto, estes
pedidos, formulados por estes diferentes profissionais, parecem
legítimos. O mesmo acontece com as ciências humanas e sociais,
em que o questionamento deve ser legitimado pelos objectivos da
investigação. Evidentemente, esta legitimidade, determinada pelo
investigador a montante da aprovação do questionário, quando
este apresenta os objectivos da investigação (conhecimento dos
comportamentos com risco de infecção, redução da velocidade
de propagação do vírus, aplicação de programas de prevenção...),
também se joga ao longo da gestão do questionário. Neste aspecto,
a analogia com o exame médico poderá continuar. Apesar dos
procedimentos a realizar, o médico procurará sempre proteger o
A OBSERVAÇÃO 239

pudor dos pacientes, cobrindo as partes do corpo que não devem


ficar expostas pelo exame, explicando o que está a fazer, escolhendo
cuidadosamente as palavras com que se exprime... O investigador
em ciências humanas e sociais fará o mesmo: o seu questionamento
deve ser proporcional aos objectivos da investigação. Não se trata
de explorar toda a vida sexual das pessoas inquiridas, mas sim de
seleccionar adequadamente os indicadores mais pertinentes para
pôr à prova as suas hipóteses.
Contudo, de uma cultura para outra, de um contexto para
outro, as perguntas e a maneira de as fazer pode variar. O inves-
tigador deve resolver a tensão entre a necessidade de recolher
dados, que o pode levar longe de mais, e a sensibilidade cultural,
que o pode incitar a não investigar. De igual modo, deve pro-
curar explicar as razões de ser do seu questionamento. Também
deve escolher o seu vocabulário com cuidado e, neste ponto,
o vocabulário sobre a sexualidade é particularmente rico em
metáforas. À mesma prática pode ser mencionada recorrendo a
vocabulário científico, com palavras do senso comum ou com
recurso a calão. Se queremos atestar a seriedade da investigação
e evitar chocar inutilmente, este último registo será eliminado
logo à partida. Mas o registo científico não se impõe necessa-
riamente de imediato, porque primeiro é preciso assegurar que
os termos utilizados são compreendidos pelo maior número de
pessoas possível.
Este problema da legitimidade é ainda mais premente para os
estudantes que fazem uma investigação no âmbito de um traba-
lho universitário do que para os investigadores profissionais. Que
direito tem um estudante de explorar a vida de outras pessoas
com o único objectivo de obter um diploma? Recebeu formação,
adquiriu experiência suficiente para isso? Pelo menos, informou-
-se sobre os princípios éticos e as regras deontológicas em vigor?
Cada um deverá medir muito bem aquilo que está em condições
de fazer, enquanto aqueles que orientam o trabalho devem ter
consciência da sua própria responsabilidade.
240 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

As perguntas têm de ser sobre factos materiais (actos


ou comportamentos) ou acerca de atitudes e opiniões?

Quando o investigador tem a firme convicção de que é pra-


ticamente impossível interrogar a população sobre determinados
actos ou comportamentos, só lhe resta uma solução: estudar as
atitudes e opiniões. Em qualquer sociedade alguns actos têm
uma fraca legitimidade social e poucas pessoas estarão dispostas
a declará-los, de modo que as perguntas directas sobre as suas
práticas podem originar poucas respostas e/ou respostas pouco
fiáveis. Para contornar este obstáculo, fazem-se perguntas indirec-
tas, solicitando-se aos inquiridos que exprimam as suas atitudes
em relação a estes actos de fraca legitimidade ou em relação às
pessoas que os praticam.
Relativamente aos comportamentos sexuais, este modo de pro-
ceder permite ir ao encontro de um segundo objectivo: apreender
as normas das pessoas que ainda não iniciaram a sua vida sexual.
Para estas, mais do que versar sobre actos que ainda não concre-
tizaram, o questionário incidirá sobre as atitudes e as opiniões.
Este procedimento é frequente em muitos assuntos em que o ponto
de vista de um «não praticante» também deve ser considerado,
falamos, por exemplo, do tabagismo, do consumo de álcool ou
da condução automóvel.
Há várias maneiras de proceder. Mostramos-lhe três, ilustradas
por exemplos concretos nos três quadros seguintes. A apresen-
tação foi reduzida de propósito. Geralmente, estas perguntas
encontram-se em listas muito mais extensas que abarcam uma
grande diversidade de comportamentos.
As afirmações destes três exemplos foram retiradas ou inspira-
das nos questionários sobre os comportamentos sexuais e atitudes
perante o risco de sida ou das diferentes versões do European
Value Study. De um exemplo para o outro, vemos que as per-
guntas se apresentam de formas sensivelmente diferentes. Não
se prestam todas às mesmas operações de análise estatística. No
A OBSERVAÇÃO 241

Conceito: comportamentos sexuais


Dimensão: a abertura do casal a uma terceira pessoa
Indicadores Perguntas Respostas
Na sua opinião, Sim Não Não sei
As relações A fidelidade é indispensável para a felicidade o o a
extraconjugais do casal?
Podemos amar uma pessoa e não lhe ser fiel? o o o
Podemos amar duas pessoas ao mesmo o o o
tempo?

Quadro 5.4 — A dimensão «abertura do casal a uma terceira pessoa» em perguntas


— exemplo 1

Conceito: comportamentos sexuais

Dimensão: a abertura do casal a uma terceira pessoa


Indicadores Perguntas e respostas
As relações Em que medida concorda com a seguinte afirmação:
extraconjugais Quando somos casados, as relações sexuais com outros parceiros que não os
cônjuges não são aceitáveis.
o Concordo totalmente
mo Concordo bastante
o Discordo bastante
m Discordo totalmente

Quadro 5.5 — A dimensão «abertura do casal a uma terceira pessoa» em perguntas


— exemplo 2

Conceito: comportamentos sexuais


Dimensão: a abertura do casal a uma terceira pessoa
Indicadores Perguntas Respostas
As relações Para cada uma das afirmações que vou citar, situando-se Avaliação
extraconjugais | numa escala de 1 a 10, diga se pensa que é sempre justificável | de 1a 10
(resposta 10), se nunca é justificável (resposta 1) ou se se situa
entre os dois.
Homens e mulheres casados que têm uma aventura com outra o
pessoa
Ter relações sexuais com alguém de um encontro o

Quadro 5.6 — A dimensão «abertura do casal a uma terceira pessoa» em perguntas


— exemplo 3
242 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

primeiro exemplo, a variável que regista as respostas à pergunta


é uma variável nominal, ou seja, de natureza qualitativa, cujas
modalidade não estão hierarquizadas: «sim» é simplesmente dife-
rente de «não» e de «não sei». No segundo exemplo, depois de
resolvidos os casos de «não sei» e «não responde», a variável é
também qualitativa e será designada como ordinal na medida em
que as quatro primeiras modalidades de resposta estão ordenadas
(da concordância mais elevada para a mais baixa). No terceiro
exemplo, e depois de, também aqui, terem sido resolvidos os casos
de «não sei» e «não responde», a informação obtida assume o
aspecto de uma variável quantitativa, em que o número exprime
o grau de concordância com que o inquirido justifica ou não o
seu comportamento. A título de exemplo, percebe-se directamente
que o cálculo da resposta média dos inquiridos só faz sentido
neste último caso. Nos dois primeiros, o tratamento mais básico
terá de servir. Regressaremos de forma mais pormenorizada aos
tipos diferentes de variáveis na sexta etapa do procedimento de
investigação (A análise da informação). Antes de construir um
questionário, não será inútil de todo reflectir sobre o tratamento
de dados que serão previstos, para dar às perguntas as formas
exigidas. Muitos manuais de análise estatística abordam estes
problemas.
Depois de construído o questionário, há uma operação sem a
qual não podemos passar e que vale mais do que todos os conse-
lhos. Consiste em testar previamente o questionário junto de um
pequeno número de indivíduos pertencentes às diversas categorias
do público a que diz respeito o estudo, mas, se possível, diferentes
dos que foram incluídos na amostra. Este teste prévio permite
muitas vezes detectar as questões deficientes, os esquecimentos,
as ambiguidades e todos os problemas que as respostas levan-
tam. Assim, o teste do questionário pode revelar que um termo
é incompreendido ou desconhecido para muitas pessoas e que é
necessário explicar o seu significado na pergunta, ou ainda que
algumas perguntas podem parecer chocantes ou estão deslocadas
A OBSERVAÇÃO 243

e que, por isso, convém formulá-las de outra maneira. Também


pode acontecer que o teste revele que o questionário é pouco
adequado à situação de algumas pessoas. Só depois de termos
o questionário devidamente testado e corrigido é que podemos
proceder à recolha de dados.

c) Segundo exemplo: as consequências do Movimento


Branco
Este segundo exemplo retoma a investigação sobre o Movi-
mento Branco, apresentado na quarta etapa (A construção do
modelo de análise). Importa, nomeadamente, questionar-se sobre
o significado que o movimento teve para aqueles que nele parti-
ciparam, sobre a mensagem que pretendiam enviar aos políticos
e sobre o destino do movimento. Vários estudos realizados sobre
esta acção colectiva questionaram a unanimidade e a pretensa
homogeneidade do movimento, como foi o caso da investigação
conduzida por J. Marquet e Y. Cartuyvels (citado atrás: ver
O modelo de análise).
Recorde-se que esta investigação originou quatro objectivos
que se traduziram em outras tantas hipóteses, todos apresentados
na etapa anterior (O modelo de análise). Convidamos o leitor a
reler essa parte antes de prosseguir a sua leitura.
O estudo das mobilizações na sua diversidade e complexidade
requeria um método que desse lugar ao socialmente mutável,
ao socialmente fugaz, uma técnica que desse à pessoa inquirida
a possibilidade de definir e avaliar a sua realidade. A partir do
momento em que perceberam que não podiam determinar a priori
as consequências das mobilizações, que não podiam determinar de
que emoções, protestos ou denúncias era feita a principal trama
das várias reacções, os investigadores optaram por um instrumento
de observação que colocasse as pessoas inquiridas no âmago do
dispositivo: o guião de entrevista. Mais do que limitar-se à lista
de temas a tratar, o guião de entrevista conta aqui com cerca
244 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

de uma vintena de perguntas. Este modo de apresentação foi


escolhido devido ao aspecto colectivo da investigação; garante
que todos os investigadores partilham a mesma interpretação dos
diferentes pontos a abordar. No entanto, não quer isto dizer que
de cada vez as perguntas tenham sido formuladas nestes termos
e pela mesma ordem, nem mesmo que tenham sido todas feitas
de forma sistemática, podendo uma pergunta levar, por vezes, a
longos desenvolvimentos cobrindo várias temáticas. Cada entrevista
tem a sua própria dinâmica, que depende de dois interlocutores,
o investigador e o entrevistado.
Neste tipo de procedimento, é necessário preparar muito cui-
dadosamente a maneira como a investigação será apresentada às
pessoas inquiridas, por um lado, e o guião de entrevista, por outro.

A apresentação da investigação
No que respeita à apresentação da investigação, que deve ante-
ceder a entrevista propriamente dita, é importante precisar e insistir
no respectivo estatuto do investigador e da pessoa entrevistada.
E é esta última que deve ocupar a posição mais importante (ver
a segunda etapa: À exploração) e convém que o investigador a
deixe perceber isso.
Nesta apresentação, observamos, por um lado, a diversidade das
manifestações colectivas e as potenciais motivações invocadas, ou
seja, um reforço do objecto da investigação em coerência com as
hipóteses, e, por outro lado, a indicação de que é o interlocutor,
e não o investigador, «quem sabe», para lhe mostrar que tem
uma grande margem de liberdade nas suas afirmações. Vejamos
os termos exactos que foram escolhidos para a apresentação da
investigação sobre o Movimento Branco às pessoas seleccionadas
para as entrevistas:
Estamos a investigar as reacções dos cidadãos relativamente aos
acontecimentos ocorridos na Bélgica a seguir ao Verão de 1996, ou
seja, o desaparecimento de crianças, a descoberta dos respectivos
A OBSERVAÇÃO 245

corpos, a prisão de alguns dos responsáveis por esses actos, os


problemas com o inquérito, etc.
O que nos interessa aqui é perceber o conjunto dos motivos,
razões e sentimentos que levaram as pessoas a reagir, o modo como
viveram aqueles acontecimentos. As manifestações foram bastante
diversificadas: houve a grande marcha de Outubro de 1996 e ainda a
de Fevereiro de 1998, as marchas nas vilas e nas cidades, os comités
brancos, as petições, etc. Por conseguinte, procuramos pessoas que
tenham participado numa destas acções e que aceitem falar sobre
o assunto e explicar as razões que motivaram a sua participação
naquelas acções e como as viveram. Se pretendemos perceber o que
a população quis transmitir, parece indispensável dar-lhe a palavra.

O guião de entrevista
A pergunta introdutória tem uma importância capital, porque
tem ao mesmo tempo de sublinhar o tema da entrevista e ser
construída de modo que envolva a pessoa inquirida numa dinã-
mica de conversação em que é o principal actor. Deve evitar-se
perguntar-lhe o nome, a idade, a profissão, etc., como num ques-
tionário administrativo. Estas perguntas, a que se responde com
poucas palavras, podem levar o entrevistado a acomodar-se a uma
conversa em que espera perguntas muito concretas, que exijam
respostas sucintas. À pergunta introdutória da investigação acerca
do Movimento Branco é a pergunta 1 do guião de entrevista que
figura mais abaixo. Acabou por se revelar uma pergunta bastante
pertinente e desempenhou o seu papel na perfeição.
As perguntas que constituem o corpo da entrevista estão formu-
ladas de forma aberta, apelando por vezes a uma curta narrativa e
deixando sempre uma grande margem de liberdade ao entrevistado.
Com efeito, numa investigação qualitativa, o questionamento é
mais aberto do que nos inquéritos quantitativos, que mobilizam
questionários padronizados. Por isso, o guião de entrevista não
foi redigido ao acaso e corresponde às hipóteses da investigação.
246 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

As perguntas finais do guião de entrevista (18, 19 e 20) são


uma oportunidade para, sem confundir os papéis, colocar a pessoa
inquirida numa posição de analista do fenómeno estudado, para
que se possa recolher o maior número de pistas interpretativas
possível. Em consonância com a dinâmica da interacção escolhida,
oferecem-lhe uma última oportunidade de mostrar a sua leitura
da realidade.

Pergunta 1 (introdutória) — Antes de abordar a questão das suas


reacções aos acontecimentos que marcaram a Bélgica a seguir ao
Verão de 1996, pode descrever-me quem é? Proponho que faça um
pequeno filme da sua vida, como se fosse um encenador, frisando
aquilo que lhe parecer importante.
Pergunta 2 — Para entrarmos no tema central da entrevista,
poderia igualmente contar-me qual a sua participação em manifes-
tações e mobilizações colectivas? Por outras palavras, foi, ou não,
a primeira vez que participou neste tipo de acções?
Pergunta 3 (se a pessoa participou na Marcha Branca) — Pode
contar-nos o que aconteceu no dia da Marcha Branca e explicar o
que mais o marcou?
Pergunta 4 (se a pessoa nunca tiver participado em acções colecti-
vas anteriormente [ver a pergunta 2]) — O que o levou a participar
desta vez? Pode contar-nos quando, como e por que motivo decidiu
participar?
Pergunta 5 (se a pessoa já participou em acções colectivas anterior-
mente [ver pergunta 2] — Em que outras acções participou no passado?
Pergunta 6 (se a pessoa já participou em acções colectivas
anteriormente [ver pergunta 2] — Para si, estas diferentes acções
situam-se na mesma linha, na mesma óptica ou filosofia ou, pelo
contrário, algumas delas são específicas, diferentes? O que o levou
a participar desta vez?
Pergunta 7 — Hesitou em participar? Por outras palavras, havia
razões que o pudessem levar a não participar? Se sim, quais e porquê?
Pergunta 8 — Tomou a decisão de participar nesta(s) acção /acções
sozinho? Como reagiram as pessoas à sua volta? À sua família, os
seus amigos, os seus colegas? Falou com eles acerca disso?
A OBSERVAÇÃO 247

Pergunta 9 — O que pretendia exprimir ou manifestar através


desta(s) acção /acções? Por quem participa? O que pretende trans-
mitir e a quem? Quais são as suas expectativas?
Pergunta 10 — Acha que o que fez serviu para alguma coisa?
Voltaria a fazê-lo?
Pergunta 11 — No momento em que empreendeu esta(s)
acção /acções, pensou que ela(s) podia(m) mudar algumas coisas?
Se sim, quais? O que pensa disso hoje? Voltaria a fazer o mesmo?
Pergunta 12 — Na sua opinião, o que seria necessário para operar
essas mudanças, para que pudessem ser concretizadas? Quais os tra-
võôes que se apresentam à mudança e quais as esperanças de mudar?
Pergunta 13 — Acompanhou os projectos de reforma da justiça
e das polícias? O que pensa do assunto? Na sua opinião, o que é
preciso fazer?
Pergunta 14 — Participou na... (ver pergunta 2). Houve activida-
des nas quais poderia ter participado, mas acabou por decidir não
o fazer? Se sim, quais e porquê?
Pergunta 15 — Se ficasse frente a frente com um dirigente polí-
tico, o que gostaria de lhe dizer?
Pergunta 16 — De maneira geral, se tomarmos o conjunto dos
acontecimentos, quem são os responsáveis pela situação?
Pergunta 17 — Das diferentes personalidades que ocuparam a
cena pública nos últimos tempos, quais as que lhe pareceram mais
susceptíveis de veicular as suas esperanças de mudança?
Pergunta 18 (final) — Como explica que o Movimento Branco
tenha conseguido mobilizar tantas pessoas?
Pergunta 19 (final) — No que lhe diz respeito, reconheceu-se
em algumas das pessoas que desempenharam um papel importante
nestes últimos tempos? Se sim, em quais e porquê?
Pergunta 20 (última) — Chegado ao termo da entrevista, ficou
com a impressão de ter ficado por dizer alguma coisa importante,
que nos esquecemos de um aspecto importante das coisas e que
queira agora acrescentar? Há uma última mensagem que gostasse
de transmitir?
248 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

P1 | P2 | P3 | P4 | P5 | P6|P7|P8|P9|P10|P11|P12|P13|P14|P15|P16|P17|P18|P19|P2o

H1 X|X x x x x x x x

x
XI xX| x]
X| XxX x x x x x
PS

>
H3 x x x x x

H4 x x x x x X x x X x X X

Quadro 3.7 — Correspondência entre hipóteses e perguntas

Acima, mostramos um quadro recapitulativo que liga as diversas


perguntas do guião da entrevista às hipóteses correspondentes.
O objectivo é certificar-se de que as quatro hipóteses estão bem
relacionadas. A abertura do questionário também está represen-
tada; efectivamente, as perguntas que dizem respeito a uma única
hipótese são poucas.
Foram realizadas vinte e cinco entrevistas semidirectivas apro-
fundadas, com a duração média de uma hora e meia, a pessoas
que, de uma ou de outra maneira, participaram no Movimento
Branco.
Tal como para o exemplo anterior, veremos na etapa seguinte
como analisar as informações recolhidas ao longo das entrevistas.

4.2 As três operações da observação


a) Conceber o instrumento de observação
Como acabámos de ver, a primeira operação da fase de observa-
ção consiste em conceber um instrumento capaz de produzir todas
as informações adequadas e necessárias para testar as hipóteses.
Este instrumento será muitas vezes, mas não obrigatoriamente,
um questionário ou um guião de entrevista.

b) Testar o instrumento de observação


A segunda operação a realizar na observação consiste em tes-
tar o instrumento de observação. A exigência de precisão varia
A OBSERVAÇÃO 249

consoante se trate de um questionário ou de um guião de entre-


vista. O guião de entrevista é o suporte da entrevista. Mesmo
quando está muito estruturado, fica nas mãos do entrevistador.
Pelo contrário, o questionário destina-se muitas vezes à pessoa
interrogada; é lido e preenchido por ela. É, pois, importante
que as perguntas sejam claras e precisas, isto é, formuladas de
tal forma que todas as pessoas interrogadas as interpretem da
mesma maneira.
Num questionário dirigido a jovens e tendo por objecto a prá-
tica de desporto, encontrava-se a seguinte pergunta: «Os seus pais
praticam desporto? Sim ou não?» Esta pergunta parece simples
e clara e, no entanto, está mal formulada e conduz a respostas
não utilizáveis. Em primeiro lugar, a palavra francesa parents é
imprecisa. Trata-se do pai e da mãe ou de um conjunto familiar
mais alargado? Depois, que responder se apenas um deles pratica
desporto? Uns responderão «sim», pensando que basta que um
deles seja desportista; outros dirão «não», achando que a per-
gunta abrange ambos. Assim, para designar o mesmo estado de
coisas obter-se-ão «sins» nuns e «nãos» noutros. Estas respostas
não eram utilizáveis e toda a parte da investigação que andava
à volta desta pergunta teve de ser abandonada.
Além da exigência de precisão, é ainda necessário que a pessoa
interrogada esteja em condições de dar a resposta, que a conheça
e não esteja constrangida ou inclinada a escondê-la.
Para nos assegurarmos de que as perguntas serão bem com-
preendidas e as respostas corresponderão, de facto, às informações
procuradas, é imperioso testar as perguntas. Esta operação consiste
em apresentá-las a um pequeno número de pessoas pertencentes
às diferentes categorias de indivíduos que compõem a amostra.
Percebemos assim que expressões como «relações sexuais»
podem ser interpretadas de várias maneiras. Descobrem-se igual-
mente perguntas que provocam reacções afectivas ou ideológicas
e cujas respostas deixam de ser utilizáveis. Identificam-se outros-
sim perguntas que colocam problemas e às quais as pessoas não
250 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

gostam de responder e que é, por conseguinte, preferível não fazer


no início do questionário.
No que diz respeito ao guião de entrevista, as exigências são
diferentes. É a forma de conduzir a entrevista que deve ser experi-
mentada, tanto ou mais do que as próprias perguntas contidas no
guião. Não falamos aqui do guião de entrevista muito estruturado,
cujas exigências são semelhantes às do questionário. É sobretudo
quando se trata de uma entrevista semidirectiva que as coisas se
tornam muito diferentes. O guião de entrevista retomará simples-
mente o conjunto dos temas a abordar (formulados no exemplo
do Movimento Branco sob a forma de perguntas).
Neste caso, trata-se de levar a pessoa interrogada a exprimir-se
de forma muito livre acerca dos temas sugeridos por um número
restrito de perguntas relativamente amplas para deixar o campo
aberto a respostas diferentes daquelas que o investigador teria
podido explicitamente prever no seu modelo de análise. Aqui as
perguntas ficam, portanto, abertas e não induzem as respostas
nem as relações que podem existir entre elas.
A estrutura das hipóteses e dos conceitos não está rigorosamente
reproduzida no guião de entrevista, mas não está por isso menos
presente no espírito de quem a conduz. O entrevistador deve conti-
nuamente levar o seu interlocutor a exprimir-se sobre os elementos
desta estrutura sem lha revelar. O êxito de uma entrevista deste
tipo depende, é claro, da composição das perguntas, mas também,
e sobretudo, da capacidade de concentração e da habilidade de
quem conduz a entrevista. Assim, é importante testar-se. Isto pode
fazer-se gravando algumas entrevistas e ouvindo, se possível com
um ou dois colegas, a forma como foram conduzidas.

c) A recolha dos dados


A terceira operação da fase de observação é a recolha dos
dados. Esta constitui a execução do instrumento de observação.
Esta operação consiste em recolher ou reunir concretamente as
A OBSERVAÇÃO 251

informações determinadas junto das pessoas ou das unidades de


observação incluídas na amostra.
Proceder-se-á por observação directa quando a informação
procurada estiver directamente disponível. O guião de observa-
ção destina-se então ao próprio observador, e não a um eventual
entrevistado.-Por conseguinte, a sua redacção não está sujeita a
restrições tão precisas como, por exemplo, as do questionário.
Não sendo uma observação directa, a recolha de dados estatís-
ticos existentes, de documentos escritos (textos, opúsculos...) ou
pictóricos (cartazes, fotografias...), levanta igualmente problemas
específicos que serão evocados no último ponto desta etapa.
Pelo contrário, a observação indirecta, por meio de questionário
ou de guião de entrevista, deve vencer a resistência natural ou a
inércia dos indivíduos. Não basta conceber um bom instrumento,
é preciso ainda pô-lo em prática de forma a obter-se uma pro-
porção de respostas suficiente para que a análise seja válida. As
pessoas não estão forçosamente dispostas a responder, excepto
se virem nisso alguma vantagem (falar um pouco, por exemplo)
ou se acharem que a sua opinião pode ajudar a fazer avançar as
coisas num domínio que consideram importante. O investigador
deve, portanto, convencer o seu interlocutor, «vender-lhe a sua
mercadoria». É por isso que geralmente se evita enviar um ques-
tionário pelo correio, confiando-o, de preferência, a inquiridores,
se o custo não for excessivo. O papel do inquiridor é, neste
caso, o de criar nas pessoas interrogadas uma atitude favorável,
a disposição para responderem francamente às perguntas e, por
fim, entregarem o questionário correctamente preenchido. Se se
tratar de um questionário enviado por via postal, é importante
que a apresentação do documento não seja dissuasiva e que este
seja acompanhado por uma carta de introdução clara, concisa e
motivante.
Antes de abordar, nas páginas seguintes, o panorama das
principais categorias de métodos de recolha de dados, é bom
insistir na antecipação. Esta não é uma operação da observação
252 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

propriamente dita, mas deve ser uma preocupação constante do


investigador, ao elaborar o seu instrumento de observação. Na fase
seguinte, a análise das informações, os dados observados serão
submetidos a diversas operações estatísticas que visam dar-lhes a
forma exigida pelas hipóteses da investigação. É por isso que é
necessário sublinhar que a escolha do instrumento de observação
e a recolha dos dados devem inscrever-se no conjunto dos objec-
tivos e do dispositivo metodológico da investigação.
A escolha de um método de inquérito por questionário junto
de uma amostra de várias centenas de pessoas impede que as
respostas individuais possam ser interpretadas isoladamente,
fora do contexto previsto pelos investigadores. É, pois, prefe-
rível saber à partida que os dados recolhidos nestas condições
só fazem sentido quando tratados de modo estritamente quan-
titativo, que consiste em comparar as categorias de respostas e
em estudar as suas correlações. Pelo contrário, outros processos
de recolha de dados porão de lado qualquer possibilidade de
tratamento quantitativo e exigirão outras técnicas de análise
das informações reunidas.
Os métodos de recolha e os métodos de análise dos dados são
normalmente complementares e devem, portanto, ser escolhidos em
conjunto, em função dos objectivos e das hipóteses de trabalho.
Foi por essa razão que mantivemos os mesmos exemplos nesta
etapa, na anterior e na próxima. Se os inquéritos por questioná-
rio são acompanhados por métodos de análise quantitativa, os
métodos de entrevista requerem habitualmente métodos de análise
de conteúdo que são muitas vezes, embora não obrigatoriamente,
qualitativos. Resumindo, é importante que o investigador tenha
uma visão global do seu trabalho e não preveja as modalidades
de nenhuma destas etapas sem se interrogar constantemente acerca
das suas implicações posteriores.
Precisemos, além disso, que as perguntas que constituem o
instrumento de observação determinam o tipo de informação
que obteremos e o uso que dela poderemos fazer na análise dos
A OBSERVAÇÃO 253

dados. Se nos interessamos, por exemplo, pelo sucesso escolar


de alunos, podem ser considerados três níveis de precisão na
informação: insucesso ou sucesso, o lugar (primeiro, segundo,
terceiro..., último) e a percentagem de pontos obtidos em rela-
ção ao total. A informação recolhida dependerá da pergunta que
figura no instrumento de observação. Ao fazer a análise, os dados
qualitativos dicotómicos (o insucesso-sucesso) não são tratados
da mesma forma que os dados qualitativos ordinais (o lugar) ou
os quantitativos (a percentagem).
Neste exemplo, observamos uma vez mais a interdependência
entre a observação e a análise dos dados. Temos então de anteci-
par e de nos interrogar regularmente para cada resposta prevista:
«Será que a pergunta que faço vai dar-me a informação e o grau
de precisão de que necessito na fase posterior?» Ou ainda: «Para
que deve servir esta informação e como vou poder medi-la e
relacioná-la com as outras?»

5. PANORAMA DOS PRINCIPAIS MÉTODOS


DE RECOLHA DAS INFORMAÇÕES
Para ilustrar os princípios gerais da observação, escolhemos
dois exemplos que ilustram, respectivamente, o inquérito por
questionário e o guião de entrevista. Estes métodos, no entanto,
estão longe de ser os únicos. Além disso, não são, em si mesmos,
melhores nem piores do que qualquer outro; tudo depende, na
realidade, dos objectivos da investigação, do modelo de análise
e das características do campo de análise. Por exemplo, se estu-
damos o conteúdo de artigos de imprensa, a utilização de um
questionário não tem sentido.
Terminaremos então esta etapa relativa à observação apresen-
tando criticamente alguns dos principais métodos de recolha das
informações. O objectivo pretendido é duplo: primeiro, mostrar
que eles existem e que os métodos de investigação social não se
254 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

limitam à administração de questionários; segundo, ajudar quem


empreende concretamente um trabalho a escolher o mais sensata-
mente possível os métodos de que tem necessidade. Na próxima
etapa será apresentado um panorama comparável, mas que terá
por objecto os métodos de análise das informações.
Apenas conhecemos correctamente um método de investiga-
ção depois de o termos experimentado por nós próprios. Antes
de escolhermos um é, portanto, indispensável assegurarmo-nos,
junto de investigadores que o dominem bem, da sua pertinência
em relação aos objectivos específicos de cada trabalho, às suas
hipóteses e aos recursos de que dispomos. O panorama que apre-
sentamos não substitui de forma alguma esta maneira de proceder,
mas pensamos que pode ser útil para a preparar.
O termo «método» já não é aqui entendido no sentido lato
de dispositivo global de elucidação do real, mas sim num sentido
mais restrito, o de dispositivo específico de recolha ou de análise
das informações, destinado a testar hipóteses de investigação.
Neste sentido restrito, a entrevista de grupo, o inquérito por
questionário ou a análise de conteúdo são exemplos de métodos
de investigação em ciências sociais.
No âmbito da aplicação prática de um método podem ser
utilizadas técnicas específicas, como, por exemplo, as técnicas de
amostragem. Trata-se então de procedimentos especializados que
não têm uma finalidade em si mesmos. Da mesma forma, os dis-
positivos metodológicos fazem necessariamente apelo a disciplinas
auxiliares, como, nomeadamente, a matemática, a estatística ou
a psicologia social.
Para facilitar as comparações, e correndo o risco de parecer-
mos incompletos e demasiado sumários, limitámos o panorama a
métodos correntes e esforçámo-nos por expô-los da mesma forma
e muito brevemente. Com efeito, cada ficha técnica incluirá:

a) Uma apresentação geral do método;


b) Uma apresentação das suas principais variantes;
A OBSERVAÇÃO 255

c) Uma exposição dos objectivos para os quais é particularmente


adequado;
) Uma exposição das suas principais vantagens;
>»s a

Uma exposição dos seus limites e dos problemas que levanta;


Uma indicação dos outros métodos que frequentemente o
acompanham;
g) Algumas palavras sobre a formação necessária para a sua utili-
zação, excepto, é claro, tudo o que é do domínio da formação
metodológica geral;
h) Algumas referências bibliográficas destinadas àqueles que dese-
jem conhecer mais aprofundadamente o método apresentado.
As obras que não são consagradas a um método particular
são retomadas na bibliografia geral no final do volume. Por
outro lado, alguns exemplos de investigações, cujos resultados
foram publicados em francês, serão igualmente retomados no
final da etapa seguinte, dado que cada investigação particular
recorre em geral a vários métodos diferentes.

5.1 O inquérito por questionário

a) Apresentação

Consiste em fazer a um conjunto de inquiridos (uma popu-


lação total ou uma amostra) uma série de perguntas relativas
à sua situação social, profissional ou familiar, às suas opiniões, à
sua atitude em relação a opções ou a questões humanas e sociais,
às suas expectativas, ao seu nível de conhecimentos ou de cons-
ciência de um acontecimento ou de um problema, ou ainda sobre
qualquer outro ponto que interesse os investigadores. O inquérito
por questionário de perspectiva sociológica distingue-se da simples
sondagem de opinião pelo facto de visar a verificação de hipóte-
ses e a análise das correlações entre variáveis que essas hipóteses
sugerem. Por isso, estes inquéritos são geralmente muito mais
elaborados e consistentes do que as sondagens.
256 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Na maior parte das vezes, o questionário intervém num processo


de dados numéricos destinados a medir e/ou a compreender um
determinado fenómeno social. Neste sentido, é uma ferramenta
de objectivação dos fenómenos sociais observados. Traduz a visão
simplificada da realidade social assumida pelo investigador e
inscrita no seu modelo de análise. O questionário apenas poderá
desempenhar este papel com um certo grau de padronização.
Este poderá ser extremo, se houver só perguntas fechadas (o
inquirido é obrigado a escolher entre as respostas predefinidas
pelo investigador), se for reduzido pela introdução de perguntas
semiabertas (o inquirido pode optar por uma resposta diferente
das que são apresentadas no seguimento da pergunta) ou se for
totalmente aberto (a pergunta não é seguida por nenhuma suges-
tão de resposta).

b) Variantes
O questionário chama-se de «administração indirecta» quando
o próprio inquiridor o completa a partir das respostas que lhe são
fornecidas pelo inquirido. Chama-se de «administração directa»
quando é o próprio inquirido que o preenche. O questionário
é-lhe então entregue em mão por um inquiridor encarregado de
dar todas as explicações úteis, ou endereçado indirectamente pelo
correio ou por qualquer outro meio. Escusado será dizer que este
último processo merece pouca confiança e só excepcionalmente é
utilizado na investigação social, dado que as perguntas são muitas
vezes mal interpretadas e o número de respostas é geralmente
demasiado fraco. Em contrapartida, utiliza-se cada vez com mais
frequência o telefone neste tipo de questionário.
Os inquéritos realizados pela internet também são usados
cada vez com maior frequência pelas investigações em ciências
sociais, em particular nas investigações quantitativas. O principal
interesse destes inquéritos reside na possibilidade de alcançar um
público bastante vasto por um custo consideravelmente baixo. Mas
A OBSERVAÇÃO 257

há muitos problemas a ter em conta, nomeadamente, a grande


dificuldade em constituir uma amostra aleatória e em obter a
qualidade necessária ao nível das respostas (a este respeito, ver
o artigo de D. Frippiat e N. Marquis «Les enquêtes par Internet
en sciences sociales: un état des lieux», Population, 2010, vol.
62, n.º 2).

c) Objectivos para os quais o método é especialmente


adequado
e O conhecimento de uma população enquanto tal: as suas
condições e modos de vida, os seus comportamentos e as suas
práticas, os seus valores ou as suas opiniões.
e A análise de um fenómeno social que se julga poder apreender
melhor a partir de informações relativas aos indivíduos da
população em questão. Exemplos: o impacto de uma política
familiar ou a introdução da microinformática no ensino.
e De modo geral, os casos em que é necessário interrogar um
grande número de pessoas, quer se trate da população total
ou de uma amostra. Para as amostras, põe-se o problema da
sua representatividade. Neste ponto, as diferentes variantes não
são equivalentes.

d) Principais vantagens
e A possibilidade de quantificar uma multiplicidade de dados e de
proceder, por conseguinte, a numerosas análises de correlação.
e O facto de a exigência, por vezes essencial, de representatividade
do conjunto dos entrevistados poder ser satisfeita por meio
deste método. É preciso sublinhar, no entanto, que, por vezes,
esta representatividade é difícil de alcançar (por exemplo, na
ausência de uma base de sondagem) e que mesmo quando
se consegue nunca é absoluta, está sempre limitada por uma
margem de erro.
258 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

e) Limites e problemas
e O peso e o custo geralmente elevado do dispositivo (excepto
para os inquéritos feitos pela internet).
A fiabilidade das respostas às perguntas que podem ser enten-
didas como indiscretas ou delicadas, como as que se referem ao
trabalho clandestino, à vida íntima ou a condutas desviantes.
O carácter relativamente frágil da credibilidade do dispositivo.
Para que o método seja digno de confiança devem ser preenchidas
várias condições: rigor na escolha da população ou da amostra,
formulação clara e unívoca das perguntas, correspondência
entre o universo de referência das perguntas e o universo de
referência do entrevistado, atmosfera de confiança no momento
da administração do questionário, honestidade e consciência
profissional dos entrevistadores. Se qualquer destas condições
não for correctamente preenchida, a credibilidade do conjunto
do trabalho ressente-se. Na prática, as principais dificuldades
provêm, em geral, da parte dos entrevistadores, que nem sempre
estão suficientemente formados e motivados para efectuarem
este trabalho exigente e muitas vezes desencorajador.

f) Métodos complementares
e A análise qualitativa dos dados. A apresentação da análise
qualitativa dos dados como complemento da abordagem de
um questionário pode parecer surpreendente. No entanto, a
padronização inerente ao inquérito por questionário requer
um mínimo de conhecimento prévio do fenómeno estudado,
sem o qual o investigador estará a desperdiçar meios, tempo
e energia. Com o objectivo de conhecer melhor o terreno em
que se lança, o investigador poderá, por conseguinte, ter inte-
resse em fazer preceder o seu inquérito por questionário de
um inquérito qualitativo, seguido de uma análise dos dados
recolhidos, para evitar lançar-se ao acaso num dispositivo onde
já não poderá voltar atrás.
A OBSERVAÇÃO 259

e A análise estatística dos dados. Os dados recolhidos por um


inquérito por questionário, em que um grande número de
respostas são predeterminadas e previstas antecipadamente
pelo investigador, não têm significado em si mesmas. Só
podem, portanto, ser úteis no âmbito de um tratamento
quantitativo que permita comparar as respostas globais de
diferentes categorias sociais e analisar as correlações entre
variáveis.
e Tomadas em si mesmas, as respostas de cada indivíduo par-
ticular podem, no entanto, ser consultadas para constituírem
uma selecção de entrevistados típicos com vista a análises
posteriores mais aprofundadas.

g) Formação exigida
e Técnicas de amostragem.
e Técnicas de redacção, de codificação e de exploração das per-
guntas, incluindo as escalas de atitude.
e Gestão de redes de entrevistadores.
e Iniciação aos programas informáticos de gestão e análise de
dados de inquéritos (R, SPSS, SPAD, SAS...).
e Estatística descritiva e análise estatística dos dados.
e No caso mais frequente, em que o trabalho é efectuado em
equipa e recorrendo a serviços especializados, não é indispen-
sável que todos os investigadores sejam pessoalmente formados
nos domínios mais técnicos.

h) Algumas referências bibliográficas


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3.2 A entrevista

a) Apresentação

Nas suas diferentes formas, os métodos de entrevista implicam


processos fundamentais de comunicação e de interacção humana.
Caracterizam-se por um contacto directo entre o investigador e
os seus interlocutores e por uma fraca directividade por parte
daquele. Correctamente aplicados, estes processos permitem ao
investigador retirar das entrevistas informações e elementos de
reflexão muito ricos e matizados.
Instaura-se, assim, em princípio, uma verdadeira troca, durante
a qual o interlocutor do investigador exprime as suas percepções
de um acontecimento ou de uma situação, as suas interpretações
ou as suas experiências, ao passo que, por intermédio das suas
perguntas abertas e das suas reacções, o investigador facilita essa
expressão, evita que ela se afaste dos objectivos da investigação
e permite que o interlocutor aceda a um grau máximo de auten-
ticidade e de profundidade.
Se a entrevista é, antes de mais, um método de recolha de
informações, o espírito teórico do investigador deve, no entanto,
A OBSERVAÇÃO 261

permanecer continuamente atento, de modo que as suas interven-


ções tragam elementos de análise tão fecundos quanto possível.
As directivas e os princípios expostos atrás para a entrevista
exploratória (ver a segunda etapa: A Exploração) mantêm-se global-
mente aplicáveis ao caso presente. Em comparação com a entrevista
exploratória, o investigador centrará mais a troca em torno das
suas hipóteses de trabalho, sem por isso excluir os desenvolvimentos
paralelos susceptíveis de as matizarem ou de as corrigirem. Com
efeito, mesmo num procedimento dedutivo, a maneira de realizar
as entrevistas reveste-se sempre de carácter indutivo. Além disso
— e é esta a diferença essencial —, o conteúdo da entrevista será
objecto de uma análise de conteúdo sistemática, destinada a testar
as hipóteses de trabalho, e a revê-las, se necessário.

b) Variantes
e A entrevista semidirectiva, ou semidirigida, é certamente a mais
utilizada em investigação social. É semidirectiva no sentido
em que não é inteiramente aberta nem encaminhada por um
grande número de perguntas precisas. Em geral, o investigador
dispõe de uma série de perguntas-guias, relativamente abertas,
a propósito das quais é imperativo receber uma informação da
parte do entrevistado. Mas não fará necessariamente todas as
perguntas pela ordem em que as anotou e sob a formulação
prevista. Tanto quanto possível, «deixará andar» o entrevistado
para que este possa falar abertamente, com as palavras que
desejar e pela ordem que lhe convier. O investigador esforçar-
-se-á tão-só por reencaminhar a entrevista para os objectivos
cada vez que o entrevistado deles se afastar e por fazer as
perguntas às quais o entrevistado não chega por si próprio
no momento mais apropriado e de forma tão natural quanto
possível.
e À entrevista compreensiva, tal como concebida por J.-Cl. Kauf-
mann (op. cit.), é uma forma de entrevista semidirectiva que
se inscreve numa abordagem indutiva em que a recolha e a
262 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

análise das informações não constituem etapas sucessivas, ope-


rando, no entanto, em conjunto, à medida que as entrevistas
decorrem, em simultâneo com a elaboração da problemática e
das hipóteses. O objectivo é alcançar uma compreensão íntima
do pensamento e da acção dos indivíduos.
Esta abordagem indutiva encontra-se igualmente na «teoria
enraizada» ou «ancorada» (grounded theory, em inglês), tal
como concebida por B. Glaser e A. Strauss (ver as referên-
cias bibliográficas mais adiante), em que a teorização é um
processo que deriva de uma análise comparativa das infor-
mações recolhidas. Como é evidente, este método diz respeito
ao conjunto do processo de investigação e não apenas à
entrevista.
Uma forma particularmente aprofundada da entrevista é a
narrativa de vida. Esta consiste na reconstituição da trajectó-
ria de vida dos entrevistados, com o objectivo de perceber de
que maneira se formaram e se transformaram os seus modos
de apreender as experiências ao longo da sua existência e
dos acontecimentos que a marcaram. Nesse caso, as entrevis-
tas serão mais longas e divididas em várias sessões, mas com
menos pessoas. Este método está exposto em várias das obras
indicadas nas referências bibliográficas.
A entrevista centrada, mais conhecida pela sua denominação
inglesa, focused interview, tem por objectivo analisar o impacto
de um acontecimento ou de uma experiência precisa sobre
aqueles que a eles assistiram ou que neles participaram; daí
o seu nome. As reacções a esse acontecimento ou experiência
também podem revelar opiniões, representações do universo
ou sistemas de valores que o investigador pretende tratar por
meio delas. Esse acontecimento ou experiência pode ser de
diversas naturezas ou ter diversos suportes: um filme, ou um
excerto de um filme, um discurso político, um testemunho,
uma reportagem, publicidade... O entrevistador não dispõe de
perguntas preestabelecidas, como no inquérito por questionário,
mas sim de uma lista de tópicos precisos relativos ao tema
A OBSERVAÇÃO 263

estudado. Ao longo da entrevista abordará necessariamente


esses tópicos, mas de modo livremente escolhido no momento
de acordo com o desenrolar da conversa. Neste quadro rela-
tivamente flexível não deixará de fazer numerosas perguntas
ao seu interlocutor.

c) Objectivos para os quais o método é especialmente


adequado
e A análise do sentido que os actores dão às suas práticas e aos
acontecimentos com os quais se vêem confrontados: as suas
representações sociais, os seus sistemas de valores, as suas
referências normativas, as suas interpretações de situações
conflituosas ou não, as leituras que fazem das próprias expe-
riências, etc.
e A análise de um problema específico: os dados do problema,
os pontos de vista presentes, o que está em jogo, os sistemas
de relações, o funcionamento de uma organização, etc.
e A reconstituição de um processo de acção, de experiências ou
de acontecimentos do passado.
e Astrajectórias de vida nas suas dimensões sociais e individuais.

d) Principais vantagens
e O grau de profundidade e de perfeição dos elementos de análise
recolhidos.
e A flexibilidade e a fraca directividade do dispositivo que permite
recolher os testemunhos e as interpretações dos interlocutores,
respeitando os próprios quadros de referência — a sua lingua-
gem e as suas categorias mentais.

e) Limites e problemas
e Como para todos os métodos qualitativos, a utilização correcta
e fecunda da entrevista exige o respeito por um conjunto de
264 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

princípios e regras (como as que foram expostas na etapa


exploratória) que não são tão fáceis de pôr em prática como
parece. Apenas a experiência, sistematicamente avaliada, permite
adquirir, ao longo do tempo, aquilo a que chamamos «calo».
Além dos princípios e das regras gerais, alguns métodos espe-
cíficos têm os seus próprios procedimentos e pressupõem o
respeito pelas recomendações técnicas.
Um dos problemas de alguns métodos qualitativos relativa-
mente pouco codificados ou formais, pelo menos na aparência,
é o facto de o investigador principiante que os aplica poder
não estar forçosamente em condições de se dar conta da sua
incompetência e poder acreditar que estes estão ao seu alcance.
A leitura de obras de referência de qualidade ajudá-lo-á a ter
consciência do caminho a percorrer, mas também de que este
caminho está ao seu alcance, se estiver disposto a dotar-se
dos meios necessários e a impor a si próprio um mínimo de
disciplina.
Inversamente, a própria flexibilidade do método pode intimi-
dar aqueles que não consigam trabalhar com serenidade sem
directivas técnicas precisas, de preferência quantitativas.
O domínio dos aspectos técnicos do método será em vão se o
investigador não dispuser de uma boa formação geral (cultural,
histórica, política, sociológica...) a que ir buscar os recursos
intelectuais que lhe permitem compreender o alcance de algumas
questões, contextualizá-las e, por conseguinte, ir conduzindo
a entrevista por caminhos mais adequados.
Embora as qualidades intelectuais sejam essenciais, as qua-
lidades humanas são quase tão importantes como aquelas,
em particular a capacidade de ouvir o seu interlocutor e de
se pôr no lugar dele, sem que para isso tenha de aprovar as
suas práticas e afirmações. Saber adoptar naturalmente uma
atitude de neutralidade atenciosa, inspirar confiança, ser sensível
sem sentimentalismos não é para todos. Ainda a este respeito,
o investigador deve ser claro consigo próprio e ser capaz de
se auto-avaliar.
A OBSERVAÇÃO 265

e Ao contrário, por exemplo, dos inquéritos por questionário,


os elementos de informação e de reflexão recolhidos pelo
método da entrevista não se apresentam imediatamente sob
uma forma que requeira um modo de análise particular. Neste
caso, talvez mais do que noutros, os métodos de recolha e de
análise das informações devem ser escolhidos e concebidos
conjuntamente.

f) Métodos complementares
e Em investigação social, o método das entrevistas está quase
sempre associado a um método de análise de conteúdo. Durante
as entrevistas trata-se, de facto, de fazer aparecer o máximo
possível de elementos de informação e de reflexão, que servirão
de materiais para uma análise sistemática de conteúdo que
corresponda, por seu lado, às exigências de explicitação, de
estabilidade e de intersubjectividade dos processos. Regressa-
remos a este ponto na próxima etapa.
e Por fim, na maioria dos casos, as entrevistas fazem parte de
um dispositivo metodológico de conjunto, compreendendo,
nomeadamente, as observações directas e a recolha de documen-
tos sobre o fenómeno estudado. Por exemplo, o investigador
que pretenda analisar um aspecto do funcionamento de uma
determinada organização realizará entrevistas, fará observações
e reunirá um determinado número de documentos sobre essa
organização (como as actas ou os relatórios de actividade).
Por conseguinte, a entrevista deve ser concebida na sua com-
plementaridade com os outros métodos.

g) Formação exigida
e De maneira geral, a aptidão para retirar o máximo de elemen-
tos interessantes da entrevista está ligada à cultura geral e à
formação teórica do investigador, à sua lucidez epistemológica
e à sua experiência.
266 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

e Mais especificamente:

— Conhecimento teórico e prático elementar dos processos


de comunicação e de interacção interindividual (psicologia
social);
— Formação teórica e prática nas técnicas de entrevista (veja-
-se o que está escrito na segunda etapa a propósito das
entrevistas exploratórias).

h) Algumas referências bibliográficas


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SauvayRrE, R. (2013), Les Méthodes de [entretien en sciences sociales,
Paris, Dunod.
A OBSERVAÇÃO 267

5.3 A observação directa

a) Apresentação
Trata-se de um método no sentido restrito, baseado na obser-
vação visual, e não na «Observação» enquanto quinta etapa do
procedimento desta obra.
Como vimos atrás, os métodos de observação directa cons-
tituem os únicos métodos de investigação social que captam os
comportamentos no momento em que eles se produzem, sem a
mediação de um documento ou de um testemunho. Nos outros
métodos, pelo contrário, os acontecimentos, as situações ou os
fenómenos estudados são reconstituídos com base nas declara-
ções dos actores (inquérito por questionário e entrevista) ou dos
vestígios deixados por aqueles que os testemunharam directa ou
indirectamente (análise de documentos).
Em ciências sociais, as observações sociológicas podem incidir
sobre uma grande diversidade de fenómenos, como, por exemplo,
práticas colectivas, comportamento dos actores, funcionamento
das organizações ou a distribuição dos utilizadores num espaço
qualquer. O campo de observação do investigador é, a priori,
infinitamente amplo e só depende, em definitivo, dos objectivos
do seu trabalho e das suas hipóteses de partida. A partir delas,
o acto de observar será estruturado, na maior parte dos casos,
por uma grelha de observação previamente constituída. Um dos
interesses deste método é que permite observar práticas e compor-
tamentos imprevistos, ou até surpreendentes, em relação ao que
era esperado pelas hipóteses, ou pressentido pelos preconceitos do
investigador, obrigando este último a pôr em causa e até, se for
preciso, a reformular as hipóteses e às vezes mesmo a pergunta
de partida.
As modalidades concretas da observação em investigação social
são muito diferentes, consoante o investigador adopte, por exem-
plo, um método de observação participante de tipo antropológico
268 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ou, pelo contrário, um método de observação não participante,


cujos processos técnicos são muito formalizados. É entre estes
dois pólos, brevemente apresentados no ponto seguinte, que se
situam os dispositivos intermediários.

b) Variantes
e A observação participante é, logicamente, a que melhor responde,
de modo global, às preocupações habituais dos investigadores em
ciências sociais. Os seus princípios foram forjados na investigação
etnológica e antropológica, em contextos culturais não europeus,
muitas vezes ligados à colonização. Hoje em dia, pratica-se cor-
rentemente no seio de todas as sociedades, nomeadamente, as
europeias. Consiste em estudar um grupo ou uma comunidade
durante um período relativamente longo, participando na vida
colectiva. O investigador estuda então os seus modos de vida, de
dentro e pormenorizadamente, esforçando-se por perturbá-los o
menos possível. Deve fazer sua a ideia, brilhantemente exposta
por Erving Goffman na sua obra Asiles. Études sur la condition
sociale des malades mentaux (Paris, Minuit, 1968), segundo a
qual toda a maneira de viver parece normal e racional quando
a colocamos no seu contexto. Daí que seja importante que o
investigador se deixe impregnar por esse contexto, frequentan-
do-o por um período suficientemente longo.
A validade do seu trabalho assenta, nomeadamente, na precisão
e no rigor das observações, bem como no contínuo confronto
entre as observações e as hipóteses interpretativas, num movi-
mento iterativo, ou seja, de idas e vindas constantes entre o
trabalho no terreno e a reflexão do investigador, ou, ainda, entre
as observações e as hipóteses (ver, nomeadamente, Olivier de
Sardan, J.-P., La Rigueur du qualitatif, Les contraintes empi-
riques de Pinterprétion socianthropologique, Lovaina-a-Nova,
Academia-Bruylant, 2008). O investigador estará particular-
mente atento à reprodução ou não dos fenómenos observados,
bem como à convergência entre as diferentes informações obti-
A OBSERVAÇÃO 269

das, que devem ser sistematicamente cruzadas, nomeadamente


multiplicando as fontes. É o que designamos por princípio da
triangulação (ibidem, p. 79-80).
É a partir de tais procedimentos que as lógicas sociais e cul-
turais dos grupos estudados surgem com mais clareza e que
as hipóteses são testadas e aperfeiçoadas (ver mais adiante a
field research).
O envolvimento íntimo na vida de um grupo ou de uma
comunidade pode afectar profundamente o modo como o
investigador vê a sua própria existência e o mundo, bem como
a sua ligação com os outros. A elucidação desta experiência
marcante é indispensável e pode ser, ela própria, fonte de pre-
ciosos ensinamentos.
Os métodos de observação não participante apresentam, por
seu lado, perfis muito diferentes, sendo o seu único ponto
comum o facto de o investigador não participar na vida do
grupo, que, portanto, observa «do exterior». A observação
tanto pode ser de longa como de curta duração, feita à
revelia ou com o acordo das pessoas em questão, ou ainda
realizada com ou sem a ajuda de grelhas de observação
pormenorizadas. Por exemplo, um investigador pode pedir
para assistir, sistematicamente, a algumas aulas de uma turma
numa escola secundária, para analisar os comportamentos
dos alunos (ou dos professores) em interacção, ou, ainda
às reuniões de uma associação, cujo funcionamento interno
pretenda estudar.
As grelhas de observação retomam de modo muito selec-
tivo as diferentes categorias de fenómenos ou de práticas a
observar. Podem ser mais ou menos formais e prever algu-
mas modalidades de quantificação, por exemplo, um cálculo
das frequências e das distribuições das diferentes classes de
comportamento, com o objectivo de estudar as correlações
entre estes comportamentos e outras variáveis destacadas
pelas hipóteses. Este processo inspira-se, de facto, naquilo
que é feito há muitos anos em psicologia, pedagogia e, há
270 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

mais tempo ainda, em etologia animal. Mas, ao contrário do


que muitas vezes se passa nestas disciplinas, os investigadores
em ciências sociais não recorrem a métodos de observação
experimental, a não ser em disciplinas limítrofes, como a
psicologia social.
Os recursos tecnológicos modificam as condições de estudo das
práticas e das situações sociais. Filmá-las permite ao investi-
gador, e aos seus parceiros, perceber, com um distanciamento
ainda maior, pormenores ou comportamentos que lhes podem
ter escapado no momento próprio. Além disso, estes recursos
permitem pôr em prática dispositivos mais elaborados de análise
das informações gravadas. A gravação modifica as condições
de observação (que, no limite, pode ser feita sem a presença
do investigador) e modifica igualmente a natureza e a gama
dos objectos observados e alarga as possibilidades de análise,
que pode ser feita colectivamente e com maior distanciamento.
É por isso que podemos considerar que, a partir de um deter-
minado ponto, a observação feita com recurso à ajuda destas
ferramentas representa, em si própria, uma variável do método
de observação.

c) Objectivos para os quais o método é especialmente


adequado
e Estes objectivos diferem em parte com as diferentes formas que
a observação pode tomar. No entanto, de maneira geral — e
por definição —, poderíamos dizer que o método é particu-
larmente adequado à análise do não verbal e daquilo que ele
revela: as condutas instituídas e os códigos de comportamento,
a relação com o corpo, os modos de vida e os traços culturais,
a organização espacial dos grupos e da sociedade, etc.
Mais especificamente, os métodos de observação de carácter
não experimental são adequados ao estudo dos acontecimentos
tal como se produzem e no momento em que se produzem.
A OBSERVAÇÃO 271

d) Principais vantagens
e A apreensão dos comportamentos e dos acontecimentos no
próprio momento em que se produzem.
e A recolha de um material de análise não suscitado pelo inves-
tigador e, portanto, relativamente espontâneo.
e A possibilidade de gravar as observações e de as poder anali-
sar de seguida com maior profundidade, colectivamente e com
maior distanciamento.
e A autenticidade relativa dos acontecimentos em comparação
com as palavras e com os escritos. De modo geral, o indiví-
duo médio aprendeu a dominar a sua expressão verbal; em
contrapartida, pouquíssimas pessoas aprenderam a dominar a
linguagem corporal. Por conseguinte, é através dela que nos
revelamos mais espontaneamente.

e) Limites e problemas
e As dificuldades frequentemente encontradas para se ser aceite
como observador pelos grupos em questão.
e A presença do observador pode afectar, ou mesmo perturbar,
a situação observada.
e O problema do registo. O investigador não pode confiar
apenas na sua recordação dos acontecimentos apreendidos
ao vivo, dado que a memória é selectiva e eliminaria uma
grande variedade de comportamentos cuja importância não
fosse de imediato aparente. Como nem sempre é possível, nem
desejável, tomar notas no próprio momento, a única solução
consiste em transcrever os comportamentos observados logo
após a observação. Na prática, trata-se muitas vezes de uma
tarefa muito pesada, devido à fadiga e às condições de trabalho
por vezes esgotantes. Este «diário de bordo» do investigador
deve incluir também o relatório das dificuldades sentidas,
das reacções das pessoas encontradas a seu respeito, do seu
próprio questionamento como investigador. Ao reler as notas
do seu diário com o distanciamento que só o tempo permite,
272 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ao partilhá-las com os colegas em quem confia, o investigador


perceberá melhor o alcance e os limites do seu trabalho e
descobrirá nele algumas lacunas que poderá colmatar; poderá
corrigir alguns dos próprios comportamentos problemáticos e
progredir na aquisição do «ofício». Mais ainda, ao proceder,
a partir do seu diário ao que chamamos «inquérito sobre
inquérito», obterá de forma indirecta conhecimentos sobre o
tema da sua investigação.
O problema da interpretação das observações. A utilização de
grelhas de observação muito formalizadas facilita a interpreta-
ção, mas, em contrapartida, esta arrisca-se a ser relativamente
superficial e mecânica perante a riqueza e a complexidade dos
processos estudados. No que respeita à observação do tipo antro-
pológico, na maior parte das vezes, a interpretação realiza-se de
forma progressiva, no âmbito de um procedimento essencialmente
indutivo. Para os investigadores principiantes, a dificuldade
está em proceder com método e rigor quando o procedimento
está ainda relativamente pouco formalizado. O respeito de alguns
princípios-chave, nomeadamente o da triangulação, referido
acima, é indispensável e será de uma grande ajuda para eles.
Outro princípio é o da saturação, já exposto neste capítulo a
propósito da amostra. Diferentes obras, indicadas mais adiante,
fornecem conselhos preciosos a este respeito, expondo disposi-
tivos metodológicos relativamente precisos.

f) Métodos complementares
e O método da entrevista, normalmente seguida de uma análise de
conteúdo, é seguramente o que mais se utiliza em paralelo com
os métodos de observação. A sua complementaridade permite,
com efeito, efectuar um trabalho de investigação aprofundado,
que, quando conduzido com a lucidez e as precauções neces-
sárias, apresenta um grau de validade satisfatório.
Sob as mais variadas formas, os investigadores recorrem muitas
vezes a observações de tipo antropológico, mas de duração
A OBSERVAÇÃO 273

limitada, para suprirem as carências de métodos de investiga-


ções muito formalizados, cujo rigor técnico tem muitas vezes
como corolário uma falta de imaginação e de sensibilidade ao
nível das interpretações.

g) Formação exigida
A melhor e, no fundo, a única verdadeira formação em obser-
vação é a prática. Não bastam algumas semanas de trabalho para
tornar mais perspicaz o olhar do perito. É necessário um confronto
longo e sistemático entre a reflexão teórica, inspirada na leitura dos
bons autores, e os comportamentos observáveis na vida colectiva
para produzir os observadores mais penetrantes — aqueles de que
as ciências sociais se lembram e que hoje servem de modelos. Tem,
pois, de se aprender a observar... observando; e, se tivermos opor-
tunidade para isso, é preciso comparar as nossas próprias observa-
ções e interpretações com as dos colegas com quem trabalhamos.

h) Algumas referências bibliográficas


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Academia Bruylant.
STRAUSS, A. é CORBIN, J. (2004), Les Fondements de la recherche quan-
titative. Techniques et procédures de développement de la théorie
enracinée, Academic Press Friburgo.

5.4 A recolha de dados preexistentes: dados


secundários e dados documentais

a) Apresentação

A análise secundária consiste em utilizar na sua própria inves-


tigação material que foi recolhido por outros em função de outro
objectivo. Os tipos de fontes e documentos assim utilizados são
muitos e variados: estatísticas de institutos nacionais de estatís-
tica ou de organizações internacionais, bases de dados e arquivos
públicos ou privados, resultados de inquéritos anteriores, etc.
Estes recursos podem revelar-se muito úteis para o investiga-
dor, sobretudo quando se trata de dados que apenas organis-
mos dotados de meios poderosos têm condições para recolher.
Mas, em qualquer caso, a ideia é que é inútil consagrar muito
tempo e energia para recolher aquilo que já existe, ainda que
a apresentação dos dados possa não ser directamente adequada
e deva sofrer algumas adaptações. A característica dos dados
secundários e documentais é não terem sido produzidos pelo
próprio investigador e, por conseguinte, não se apresentarem,
necessariamente, de um modo que corresponda às necessidades
da investigação. Apesar das suas numerosas vantagens, a recolha
de dados preexistentes pode pôr muitos problemas, que devem
ser resolvidos de uma forma correcta. Por esta razão, é aqui
considerada um verdadeiro método de investigação.
A OBSERVAÇÃO 275

b) Variantes
São muitas e dependem da natureza das fontes e das informa-
ções consideradas. Do ponto de vista da fonte, pode tratar-se de
documentos manuscritos, impressos, audiovisuais ou electrónicos,
oficiais ou privados, pessoais ou provenientes de um organismo,
contendo colunas de números ou textos. Se pusermos provisoria-
mente de lado o problema da análise dos dados por fim escolhidos
para testar as hipóteses e apenas nos preocuparmos aqui com a
sua recolha propriamente dita, podemos considerar que as três
variantes utilizadas com mais frequência em investigação social
são: a recolha de dados estatísticos, a recolha de documentos de
forma textual provenientes de instituições e de organismos públicos
e privados (leis, estatutos e regulamentos, actas, publicações...) ou de
particulares (narrativas, memórias, correspondência...), e por último,
e cada vez mais frequente hoje em dia, a recolha de documen-
tos audiovisuais tais como reportagens ou entrevistas realizadas
sobretudo por canais de televisão e guardadas nos seus próprios
arquivos, em arquivos públicos ou acessíveis através da internet.
Cada uma destas variantes implica processos diferentes de
validação dos dados, mas a sua lógica é fundamentalmente a
mesma: trata-se de verificar a credibilidade dos documentos e das
informações que eles contêm, bem como a sua adequação aos
objectivos e às exigências do trabalho de investigação.
e No que diz respeito aos dados estatísticos, a atenção incidirá
principalmente sobre a credibilidade global do organismo emis-
sor, sobre a definição dos conceitos e dos modos de cálculo (a
taxa de desemprego, por exemplo, é definida e calculada de
maneira diferente em cada um dos países da União Europeia)
e respectiva adequação às hipóteses da investigação, sobre a
compatibilidade de dados relativos a períodos diferentes ou
recolhidos por organismos diferentes e, por último, sobre a
correspondência entre o campo coberto pelos dados disponíveis
e o campo de análise da investigação.
276 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

e No que diz respeito aos documentos de forma textual, a atenção


incidirá sobretudo sobre a sua autenticidade, sobre a exactidão
das informações que contêm, bem como sobre a correspondên-
cia entre o campo coberto pelos documentos disponíveis e o
campo de análise da investigação.
e No que diz respeito aos documentos audiovisuais, a questão
da credibilidade das informações coloca-se de forma particular-
mente aguda, sobretudo para os muitos que são difundidos
através da internet, onde convivem, lado a lado, o melhor e o
pior, incluindo documentos que, deliberadamente, visam enganar
o público.

Não abordaremos a investigação histórica propriamente dita,


pois é uma disciplina autónoma e exige uma formação universitária
específica. Sublinhamos apenas, para todos os que se interessam
tanto pela História como por outras ciências da sociedade, como
a Sociologia, a Antropologia ou as Ciências Políticas, que existem
muitas obras de referência que se situam na fronteira dessas dis-
ciplinas. Nomeadamente, obras que utilizam o método histórico
para abordar problemáticas das ciências sociais e políticas, como
sejam as da formação dos Estados e da socialização nas sociedades
modernas (Norbert Elias, por exemplo), do desenvolvimento dos
movimentos sociais e da formação de classes sociais (designa-
damente, Edgar P. Thompson) ou da emergência das revoluções
(como Charles Tilly).

c) Objectivos para os quais o método é especialmente


adequado
e A análise dos fenómenos que estão no centro das políticas
públicas e alimentam as estatísticas públicas e administrativas,
regionais, nacionais ou supranacionais, e particularmente a
análise dos fenómenos macrossociais, demográficos e socioeco-
nómicos, como o desemprego, o envelhecimento da população
ou a evolução das famílias.
A OBSERVAÇÃO 277

e O estudo de temáticas que preocupam os investigadores em


ciências sociais e são tema de programas internacionais de
inquéritos sociológicos, como o World Values Survey (WVS) ou
o International Social Survey Program (ISSP). Estes inquéritos
abordam diversas temáticas: a família, os papéis de género,
o trabalho, a religião, a política, a cidadania, a imigração...
Realizados em vários países, estes inquéritos têm também a
grande vantagem de se repetirem periodicamente. Deste modo,
permitem um trabalho de comparação temporal e espacial ainda
que não se deva subestimar a dupla dificuldade da equivalência
das várias traduções de um mesmo questionário nem deixar de
ter em consideração a interpretação das especificidades contex-
tuais de cada inquérito. À nível internacional, três organizações
desempenham um papel central no arquivamento, na federação,
na transparência e no acesso a bases de dados: o Council of
European Social Science Data Archives (CESSDA), o Interna-
cional Consortiun for Political and Social Research (ICPSR) e
o International Federation for Data Organization (IFDO).
e O estudo das ideologias, dos sistemas de valores e da cultura
no seu sentido mais lato.
e A análise das mudanças sociais e do desenvolvimento histórico
dos fenómenos sociais sobre os quais não é possível recolher
testemunhos directos ou para cujo estudo estes são insuficientes.
e A análise da mudança nas organizações.

d) Principais vantagens
e A economia de tempo e de dinheiro que permite ao investigador
consagrar o essencial da sua energia à análise propriamente
dita.
e Em muitos casos, este método permite evitar o recurso abusivo
às sondagens e aos inquéritos por questionário, que, sendo
cada vez mais frequentes, acabam por aborrecer as pessoas,
demasiadas vezes solicitadas. (Em abono dos investigadores
profissionais tem de se dizer que eles apenas são responsáveis
278 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

por uma pequena parte das sondagens e dos inquéritos por


questionário.)
Algumas bases de dados contam com milhares, dezenas ou até
centenas de milhares de indivíduos. Isto permite análises mul-
tivariadas que testam modelos complexos, o que uma amostra
construída por um único investigador jamais permitiria.
A valorização de um importante e precioso material documental
que não pára de se enriquecer devido ao rápido desenvolvimento
das técnicas de recolha, de organização e de transmissão dos
dados, em particular através da internet.

e) Limites e problemas
e Nem sempre é possível o acesso aos documentos. Em certos
casos, o investigador tem efectivamente acesso aos documen-
tos, mas, por uma razão ou por outra (carácter confidencial,
respeito pela vontade de um interlocutor...), não pode divulgar
as informações.
Os numerosos problemas de credibilidade e de adequação
dos dados às exigências da investigação obrigam por vezes o
investigador a renunciar a este método já no decurso do tra-
balho. Por isso, só deve começar a ser utilizado depois de ter
rapidamente averiguado se o procedimento é ou não viável.
Como os dados não são recolhidos pelo próprio investigador,
de acordo com os critérios que mais lhe convêm, deverão,
normalmente, ser submetidos a manipulações, destinadas a
apresentá-los nas formas exigidas para a verificação das hipó-
teses. Estas manipulações são sempre delicadas, dado que não
podem alterar as características de credibilidade que, precisa-
mente, justificaram a utilização destes dados.
Algumas bases de dados acessíveis são parcas quanto à metodo-
logia subjacente à sua produção. A ausência de uma definição
precisa da população estudada, do período temporal conside-
rado, dos conceitos, e dos indicadores, aumenta sensivelmente
o risco de uma interpretação incorrecta dos resultados.
A OBSERVAÇÃO 279

f) Métodos complementares
e Os dados estatísticos recolhidos são normalmente objecto de
uma análise estatística.
e Os dados recolhidos nos documentos de forma textual são
utilizados em diversos tipos de análise e, em particular, na
análise histórica propriamente dita e na análise de conteúdo.
Além disso, os métodos de entrevista e de observação são com
frequência acompanhados pela análise de documentos relativos
aos grupos ou aos fenómenos estudados.
e Por fim, e de maneira geral, os métodos de recolha de dados
preexistentes são utilizados na fase exploratória da maior parte
das investigações em ciências sociais.

g) Formação exigida
e Quer se trate de pesquisar dados numa biblioteca ou na inter-
net, será sempre útil uma formação específica. Já estudámos a
pesquisa bibliográfica na segunda etapa (A exploração). Cir-
culam na internet muitas ferramentas que têm a pretensão de
ajudar o investigador no seu trabalho. O leitor atento há-de
reparar que a maioria delas apenas prevê um motor de busca
(nomeadamente, o Google, por exemplo). Existem também
obras especializadas neste domínio, como, por exemplo, a
de Béatrice Foenix-Riou e de Serge Cacaly, intitulada Guide
de recherche sur Internet. Outils et méthodes (Paris, Armand
Colin). Essas obras permitem distinguir as diferentes ferramentas
da Web (os motores de busca e as respectivas funcionalidades,
e as características dos metamotores), fornecendo numerosos
conselhos para uma busca eficaz (formatos das palavras-chave
e de perguntas, exemplos...).
e Para a recolha de dados estatísticos: uma formação em esta-
tística descritiva e, de preferência, em epistemologia. Com
efeito, é preciso não se deixar iludir pelos dados numéricos,
que, como todos os outros, não são factos reais, mas sim
«factos construídos», isto é, abstracções que supostamente
280 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

representam factos reais. Se estes dados permitem, pois, ter


uma ideia mais ou menos correcta da realidade, em contrapar-
tida, apenas têm valor e sentido se se souber como e porque
foram construídos.
e Para a recolha de documentos de forma textual e audiovisual:
uma formação em pesquisa e em crítica de fontes documentais
(que raramente são objecto de ensino específico nas universi-
dades e nas escolas superiores).

h) Algumas referências bibliográficas


CHENU, À. e LESNARD, L. (2011), La France dans les comparaisons
internationales. Guide d'accês aux grandes enquêtes statistiques en
sciences sociales, Paris, Presses de Sciences Po.
DARGENTAS, M., BRUGIDOU, M., LE ROUx, D. e SALOMON, A.-C. (2006),
«Compte rendu des jornées internationales de Panalyse secondaire
en recherche qualitative; Utopie ou perspectives nouvelles?», Bulletin
de méthodologie sociologique / Bulletin of Sociological Methodology,
pp. 43-45.
DARGENTAS, M., BRUGIDOU, M., LE Roux, D. e SALOMON, À.-C. (2006),
L'Analyse secondaire: une nouvelle pratique de recherche qualitative
en SHS, Paris, Lavoisier, R&D-EDF.
DARGENTAS, M., LE ROUx, D., SALOMON, À.-C. e BrUGIDOU, M. (2007),
«Sur les prospectives de la recherche qualitative en France; capi-
talisation et ré-utilisation d'entretiens de recherche», Recherches
qualitatives, Hors Série, 3, 156-173.
Foenix-RIoU, B. e CACALY, S. (2005), Guide de recherche sur Internet.
Outils et méthodes, Paris, Armand Colin.
Levy, M.-L., EWENCZYK, S., e JAMMES, R. (1981), Comprendre Pinfor-
mation économique et sociale: guide méthodologique, Paris, Hatier.
SALMON, P. (1987), Histoire et critique, Bruxelas, Editions de PUniver-
sité de Bruxelles.
SALMON, P. (1993), «Analyse secondaire», in Sociétés contemporaines,
n.º 14-15, Junho-Setembro, Paris, LHarmattan.
SeLZ, M. e MAILLOCHON, F. (2009), «Analyse secondaire», in Raison-
nement statistique en sociologie, Paris, PUF, pp. 215-231.
ÃO

o
o
q
uu
x
>
«
<L

o
R. (1252 ) Les sciences soc iales et leurs donn
q
SILBERMAN 3: Paris,
ees >

La Documentation française. Rapport au ministêre de PÉEducat 10n


nationa le, de la Recherche et de la Technolog ie, Junho de 1999 >
disponível na Internet.
282 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

x
posteriormente o tratamento necessário à verificação das hipóteses.
É, portanto, necessário antecipar, isto é, preocupar-se, desde a con-
cepção do instrumento de observação, com o tipo de informação que
fornecerá e com o tipo de análise que deverá e poderá ser previsto.
A escolha entre os diferentes métodos de recolha dos dados
depende das hipóteses de trabalho e da decorrente definição dos
dados pertinentes. Além disso, é outrossim necessário ter em conta
as exigências de formação necessárias para uma aplicação correcta
de cada método.

TRABALHO DE APLICAÇÃO N.º 11


CONCEPÇÃO DA OBSERVAÇÃO

Este exercício consiste, uma vez mais, em aplicar as noções estu-


dadas nesta etapa ao seu próprio trabalho. Esta aplicação efectua-se
em três fases:

e Observar o quê? A definição dos dados pertinentes.


Quais as informações necessárias para testar as hipóteses? Para
responder a esta pergunta comece por reconsiderar as suas hipó-
teses, os seus conceitos e respectivos indicadores.
e Observar em quem? A delimitação do campo de análise e a
selecção das unidades de observação.
1. Tendo em conta as informações necessárias, qual a unidade
de observação que se impõe (indivíduo, empresa, associação,
câmara, país...)?
2. Como delimitar o campo de análise?
— Quantos indivíduos, empresas, etc.?
— Qual a zona geográfica a considerar?
— Qual o período de tempo a ter em conta?
Em função destas delimitações, será mais sensato fazer incidir a
observação sobre a totalidade da população, sobre uma amostra
representativa ou apenas sobre unidades características dessa
população?
Para delimitar o campo de análise, tenha igualmente em conta o
seu prazo, os seus recursos e o método de recolha dos dados que
tenciona utilizar (antecipação!).
A OBSERVAÇÃO 283
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A ANÁLISE DAS
INFORMAÇÕES
AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO

Etapa 1 — A pergunta de partida

Etapa 2 — A exploração


As entrevistas
As leituras Pas
<« exploratórias

Etapa 3 — A problemática

Etapa 4 — A construção do modelo de análise


Gees

Etapa 5 — A observação
rms

Etapa 6 — A análise das informações


€—

Etapa 7 — As conclusões
1. OBJECTIVOS
O objectivo da investigação é responder à pergunta de partida...
que, sem dúvida, evoluiu ao longo do processo. Para este efeito,
o investigador formula hipóteses e procede às observações que
elas exigem. Trata-se, em seguida, de verificar se as informações
recolhidas correspondem de facto às hipóteses, ou, noutros termos,
se os resultados observados correspondem aos resultados espera-
dos pela hipótese. O primeiro objectivo desta fase de análise das
informações é, portanto, a verificação empírica.
Mas a realidade é mais rica e mais matizada do que as
hipóteses que elaboramos a seu respeito. Uma observação séria
revela com frequência outros factos além dos esperados e outras
relações que não devemos negligenciar. Por conseguinte, a aná-
lise das informações tem uma segunda função: interpretar estes
factos inesperados e rever ou afinar as hipóteses para que, nas
conclusões, o investigador esteja em condições de sugerir aper-
feiçoamentos do seu modelo de análise ou de propor pistas de
reflexão e de investigação para o futuro. É o segundo objectivo
desta nova etapa.
Uma vez mais, partiremos de exemplos concretos, de forma
que os princípios de aplicação desta etapa apareçam claramente.
Para mostrar bem a continuidade entre a observação e a análise,
os dois exemplos escolhidos serão os mesmos da etapa anterior: os
comportamentos sexuais e atitudes perante o risco de sida e o
' Movimento Branco. No primeiro, a análise será quantitativa e no
segundo será qualitativa. A partir destes dois exemplos, podem
especificar-se as três operações de análise da informação. Por fim,
apresentar-se-á um panorama dos principais métodos de análise
das informações. Assim, ao longo desta etapa os ensinamentos que
288 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

podem ser generalizados serão progressivamente disponibili-


zados, podendo ser aplicados no contexto de investigações muito
diferentes.

2. DOIS EXEMPLOS

2.1 Os comportamentos sexuais e as atitudes


perante o risco de sida
No que respeita ao modelo de análise da rede social desen-
volvido anteriormente, construímos a hipótese segundo a qual,
em relação à monogamia, os ideais conjugais dos indivíduos
eram determinados pelas normas em vigor na sua rede social
próxima, a partir dos círculos familiar, de amigos e de colegas.
Para o inquérito de 1993 (Marquet, J., Huynen, P. e Ferrand, A.,
op. cit.), o questionário incluía uma pergunta para perceber as
normas práticas de cada círculo e uma pergunta para as normas
ideais do ego (os inquiridos). Após a fase de observação, ficámos
na posse de respostas às perguntas relativas aos indicadores e às
dimensões dos conceitos. Como tratar estas respostas-informação
para poder afirmar com segurança que as normas na matéria
influenciam de facto os comportamentos?

a) Os quadros cruzados
Poderíamos começar por testar a hipótese parcial da influên-
cia normativa do círculo familiar sobre as normas ideais do ego,
mobilizando a pergunta relativa ao primeiro indicador da dimensão
«normas práticas da rede»: «Na sua família, no que diz respeito
à relação entre o casal, qual é o modelo que domina a realidade
(ou seja, o que se passa concretamente)? Fidelidade para a vida,
fidelidade enquanto se está com alguém, fidelidade com algumas
rupturas ocasionais ou aventuras e relações paralelas frequentes?»
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 289

O quadro seguinte associa as normas ideais do ego às normas


do círculo familiar. Este quadro e os seguintes foram construídos
a partir dos que figuram no artigo referido. Foram ligeiramente
simplificados e alterados por uma questão pedagógica. Também
por uma questão de simplificação, os «não sei» e os «não res-
ponde» não são apresentados, mas foram considerados para os
cálculos, o que explica o facto de a coluna dos totais apresentar
um efectivo superior à soma dos efectivos das outras colunas.

Norma prática em vigor na família próxima Total


P < 0,000
Modelo do ego Fidelidade Fidelidade Rupturas e
para a vida sucessiva relações paralelas
Fidelidade para a 72 18 21 47
vida
Fidelidade sucessiva 24 76 36 45
Rupturas e relações 4 6 43 8
paralelas
TOTAL 100 100 100 100
N (não ponderado) 1135 853 235 2270

Percentagens em colunas. Ler: entre as pessoas que entendem a fidelidade para a vida
como a norma prática em vigor na família mais próxima, 72 % declaram igualmente
a fidelidade para a vida como a sua própria norma ideal de casal; em contrapartida,
entre estas mesmas pessoas, 24 % têm como modelo ideal a fidelidade enquanto se
está com alguém e 4 % um modelo que deixa espaço para as rupturas.
P < 0,000 designa as probabilidades associadas ao teste do qui-quadrado.

Quadro 6.1 — Modelo ideal de casal para o ego em função do modelo que domina
no seio familiar

A leitura dos quadros


Globalmente, estes resultados parecem confirmar a hipótese
parcial de uma correspondência entre as normas práticas do círculo
familiar e as normas ideais dos indivíduos. Com efeito, verificamos
que entre as pessoas que entendem a fidelidade para a vida como
uma norma prática dominante no seu círculo familiar são muitas
(72 %) as que seguem esta norma como o seu próprio ideal. Entre
290 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

as que afirmam que a fidelidade enquanto se está com alguém é


a norma em vigor no seio da sua família, 76 % escolhem essa
norma como o seu próprio ideal. Mesmo entre as que consideram
que um modelo com rupturas é a prática dominante no seu círculo
familiar, os que optam eles próprios por esse modelo representam
43 %, uma percentagem minoritária, uma vez que apenas 8 %
do conjunto das pessoas interrogadas admite segui-lo.
De acordo com este quadro, não há qualquer dúvida de que
os modelos ideais dos entrevistados correspondem, tendencial-
mente, às normas práticas observadas no seu círculo familiar. No
entanto, de modo geral, quando se lê um quadro e se comparam
percentagens, põe-se a questão de saber a partir de que valor
podemos considerar que as diferenças entre percentagens são
significativas. As obras especializadas podem mostrar-lhe testes
estatísticos apropriados para o auxiliar na sua resposta. Estas
obras explicam de forma muito clara e simples o como e o porquê
dos testes de significação. No caso do quadro cruzado, que vimos
atrás, foi calculado um desses testes, o qui-quadrado. As proba-
bilidades associadas a esse teste (P < 0,000) permitem afirmar
que as tendências observadas são estatisticamente significativas:
não há sequer uma hipótese em mil de a tendência observada se
dever ao acaso.
No entanto, impõe-se uma clarificação importante: embora
um teste permita afirmar com um grau de certeza elevado que
dois fenómenos estão ligados estatisticamente, nenhum conse-
guirá explicar as razões dessa ligação estatística. Retomando o
exemplo que acabámos de desenvolver, isto significa que o teste
confirma que os modelos ideais dos entrevistados correspondem,
tendencialmente, às normas práticas que observam na família mais
próxima, contudo, o teste não permite estabelecer uma relação de
causalidade. De um ponto de vista estatístico, nada permite fazer
a distinção entre a hipótese da influência das normas práticas
familiares sobre as normas ideais de ego e a hipótese inversa, a
da influência do ego e das respectivas normas sobre as práticas
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 291

(visíveis) dos membros do seu círculo familiar. Esta ligação esta-


tística específica apenas fará sentido se ligada ao conjunto dos
resultados da análise e comparada com o modelo teórico.
Mas regressemos à nossa hipótese geral. Como dispomos de
apenas três indicadores para a dimensão «normas práticas da rede»,
a abordagem quadro a quadro é possível, no entanto, também tem
os seus limites, aos quais voltaremos adiante. Depois de testar a
hipótese parcial da influência normativa do círculo familiar sobre
as normas ideais de ego, o investigador pode fazer o mesmo com
as que estão relacionadas com a influência normativa, primeiro
do círculo familiar e depois do círculo de colegas. Os respecti-
vos quadros, não reproduzidos aqui, mostram igualmente uma
correspondência relativa entre as normas práticas do círculo de
amigos e do círculo de colegas, por um lado, e das normas ideais
dos indivíduos, por outro.

Efeito cumulativo, efeito determinante


O raciocínio pode ser levado mais longe. Ainda que os resulta-
dos mostrem uma relativa correspondência entre as normas ideais
do ego e as normas práticas dos três círculos considerados inde-
pendentemente uns dos outros, o investigador poderá questionar
se é legítimo esperar um efeito cumulativo dos diferentes círculos,
o que o levará, então, a ter em conta as normas práticas dos três
círculos em simultâneo. Para tal, distinguirá as situações de homo-
geneidade normativa (em que os três círculos são dominados pela
mesma norma prática), de maioria normativa (em que a mesma
norma domina dois dos três círculos) e de heterogeneidade (em que
cada círculo apresenta uma norma prática diferente). O Quadro
6.2 responde a esta questão.
Este quadro mostra que quando os três círculos apresentam
uma mesma norma (homogeneidade normativa), a probabilidade
de o ego adoptar essa norma como o seu ideal é grande: no total,
47 % das pessoas optaram pela fidelidade para a vida, mas esta
292 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

percentagem sobe para 89 % naqueles que vêem esta norma domi-


nar a realidade nos seus três círculos. Na amostra, 45 % optaram
pela fidelidade enquanto se está numa relação, mas essa percenta-
gem passa para 78 % naqueles que vêem esta norma dominar no
conjunto da sua rede social. E mesmo para o modelo que deixa
espaço às rupturas conjugais, minoritariamente escolhido (8 %
dos entrevistados) a homogeneidade normativa no seio da rede,
indo nesse sentido, faz a percentagem subir para 47 %, ou seja,
seis vezes mais! Portanto, parece realmente funcionar um efeito
cumulativo.
Sempre com os mesmos dados em mente, o investigador poderia
perguntar-se se um círculo não terá um efeito mais determinante
do que os outros. Poderia, assim, estudar o que acontece às
normas ideais do ego quando as normas práticas de um círculo

Grau de homogeneidade normativa Total


P < 0,000
Homogeneidade Maioria Heterogeneidade
Modelo de | Fidelidade | Fidelidade | Rupturas | Fidelidade | Fidelidade | Rupturas
ego para a sucessiva | e relações | para a sucessiva | e relações
vida paralelas vida paralelas
Fidelidade 89 17 18 74 38 23, 50 47
para a vida
Fidelidade 10 78 35 22 58 51 39 45
sucessiva
Rupturas 1 5 47 4 4 26 11 8
e relações
paralelas
TOTAL 100 100 100 100 “100 100 100 100
N não 336 432 87 250 499 252 399 2270
ponderado

Percentagens em coluna. Ler: entre as pessoas que entendem a fidelidade para a vida
como a norma prática em vigor nos três círculos (homogeneidade normativa), 89 %
declaram a fidelidade para a vida como a sua própria norma ideal de casal, 10 % a
fidelidade enquanto se está numa relação, etc.
P < 0,000 designa as probabilidades associadas ao teste de qui-quadrado.

Quadro 6.2 — Modelo do casal ideal em função da tipologia de homogeneidade


normativa dos círculos
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 293

diferem das que vigoram nos outros dois. Estas análises, que não
abordaremos aqui, ajudá-lo-iam a perceber que nestas situações
apenas as normas práticas familiares se mantêm tendencialmente
em correspondência com as normas ideais do ego. Por outras
palavras, as normas familiares afiguram-se mais determinantes
do que as dos outros dois círculos.
Os manuais especializados apresentam numerosos métodos
mais sofisticados, como os diversos modelos de regressão, que
permitem tratar estas questões. No entanto, é importante perceber
que os dois questionamentos em torno do efeito cumulativo e do
efeito determinante nunca terão uma resposta definitiva. O teste
das hipóteses complementares levará o investigador a formular
novamente essas questões. Num artigo que ficou célebre, no qual
se discutiam as audiências de diferentes emissões radiofónicas
(religiosas, políticas e de música clássica) entre jovens e idosos,
Paul Lazarsfeld referiu exemplos de situações em que uma dife-
rença estabelecida entre jovens e idosos tanto desaparecia como
se mantinha, quando se fazia intervir uma terceira variável (nível
de instrução), a chamada variação-teste. O autor chegou mesmo a
apresentar uma situação em que a introdução desta variável-teste
fazia aparecer diferenças entre jovens e idosos por cada nível de
instrução que não existiam quando a população era considerada
no seu conjunto (Lazarsfeld, P., «V'interprétation des relations sta-
tistiques comme procêdure de recherche» in L' Analyse empirique
de la causalité, Paris, Mouton, pp. 15-27, 1996).

As variáveis-testes
Relativamente à influência da rede social nas normas ideais do
ego, foi também formulada a hipótese do papel potencialmente
determinante do controlo social dos diferentes círculos. Esta
hipótese pode ser articulada com a que acabámos de discutir.
Por outras palavras: verificámos que as normas do ego estavam
largamente em consonância com as normas práticas da sua rede,
294 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

e principalmente com as do seu círculo familiar, mas estes núme-


ros não esconderão outras relações mais pertinentes? É aqui que
se põe o problema da análise das relações entre as variáveis e
o respectivo significado. As variáveis-testes que o investigador
vai usar são, nomeadamente, as que remetem para as hipóteses
complementares formuladas na fase de construção do modelo de
análise e, por conseguinte, no nosso exemplo, o controlo familiar
tal como entendido pelo ego. O Quadro 6.3 introduz a variável-
-teste «controlo social familiar» e distingue as situações em que
o ego percepciona o controlo familiar como fraco e aquelas em
que o sente como forte.
Este quadro mostra que, apesar da variável-teste, as normas
ideais do ego se mantêm tendencialmente em correspondência
com as normas práticas familiares. No entanto, observamos
também um efeito específico ligado à percepção subjectiva do
controlo exercido pelo círculo familiar, ou um efeito de inte-
racção entre as duas variáveis independentes (normas práticas
do círculo familiar e percepção do controlo exercido por este
círculo) sobre as normas do ego. Assim, a percepção subjectiva
do controlo familiar modifica a relação entre normas práticas
familiares e normas ideais do ego; o sentimento de poder esca-
par ao controlo familiar (controlo social fraco: CS —) aumenta
(de1l%a7%, de3% a 8%, de 35 % a 45 %, consoantea
norma prática familiar) a probabilidade de o ego optar por um
modelo que admita rupturas, enquanto o sentimento de não
poder escapar ao controlo da família (controlo social forte:
CS +) aumenta (de 65 % para 79 %, de 15 % para 22 %, e de
19 % para 28 %, consoante os casos) a probabilidade de o ego
optar pelo modelo de fidelidade para a vida.

b) Os índices de síntese
Estas análises mostram o potencial de análise de ferramentas
aparentemente simples como os quadros cruzados. Contudo, este
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 295

Norma prática em vigor na família mais próxima Total


P < 0,000
Fidelidade para a vida Fidelidade sucessiva Rupturas e relações
paralelas
Modelo de ego CS- CS+ | Total Cs- CS+ | Total Cs- CS+ | Total
Fidelidade para a vida 65 79 72 15 22 18 19 28 21 47
Fidelidade sucessiva 28 20 24 77 7/3 76 36 SA 36 45
Rupturas e relações z a! 4 8 3 6 45 35 43 8
paralelas
TOTAL 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100
N não ponderado 696 429 1135 605 244 853 189 45 235 2270

CS-: controlo social fraco; CS +: controlo social forte.


P <« 0,000 designa as probabilidades associadas ao qui-quadrado.

Quadro 6.3 — Modelo ideal do casal para o ego, em função do modelo que domina
no seio da família e da percepção subjectiva do controlo exercido pela família

modo de começar a análise não é o caminho ideal. Quando se


dispõe de muitos indicadores para a mesma dimensão, até pode
ser contra-indicado. Explicitaremos este ponto a partir da hipótese
que escolhemos para o modelo de análise KABP, a saber: quanto
melhor uma pessoa conhecer as vias de transmissão do VIH e os
meios de protecção contra a infecção, menos riscos correrá de ser
infectada durante as relações sexuais.
As perguntas relativas a conhecimentos, tal como as que são
feitas sobre os comportamentos, são muitas. Podíamos decerto
elaborar um primeiro quadro, cruzando as respostas à primeira
pergunta de conhecimento (por exemplo: «Na sua opinião, a
transmissão do vírus da sida é possível através de relações sexuais
vaginais?») com as da primeira pergunta relativa aos comporta-
mentos (por exemplo: «Durante a sua primeira relação sexual
usou preservativo?») e assim por diante. Este modo de proceder
rapidamente se pode revelar fastidioso: com efeito, uma dúzia
de perguntas sobre o conhecimento e só cinco perguntas sobre
os comportamentos levariam à elaboração e à análise de quase
sessenta quadros! Mas, mais importante do que isso, este método
296 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

de tratar a informação é estatisticamente questionável e poderia


fazer-nos passar ao lado do essencial.
O procedimento é estatisticamente criticável, porque ao exa-
minar muitos quadros relativos a dois conceitos ou fenómenos
totalmente independentes um do outro, não é invulgar que, pela
aleatoriedade da amostra, um quadro possa sugerir uma ligação
entre eles. Destacar os resultados desse quadro equivaleria a con-
fundir um acontecimento produzido por acaso, e pouco susceptível
de se repetir, com uma lógica social mais profunda.
O procedimento seria pouco sensato, porque cada indicador
é indissociável do conjunto dos indicadores da dimensão. Se a
hipótese do impacto do nível de conhecimento sobre os com-
portamentos merece ser testada, já O interesse que haveria em
estudar, por exemplo, a ligação entre o conhecimento do risco de
transmissão por beber pelo copo de uma pessoa infectada (uma
questão do conhecimento, como outras) e o facto de ter feito, ou
não, um teste de diagnóstico antes de iniciar um novo relaciona-
mento (um comportamento, entre outros) pode ser questionado.
Impõe-se, assim, a necessidade de uma abordagem que tenha em
consideração vários comportamentos em simultâneo, tanto mais
que alguns desses comportamentos, quanto à eficácia contra o
VIH, quase se substituem uns aos outros: por exemplo, no iní-
cio de uma relação, dois parceiros poderiam optar pelo uso do
preservativo ou por esperar pelos resultados de um duplo teste
de diagnóstico, antes da sua primeira relação sexual. Por outras
palavras, não usar preservativo não é, por si só, um indicador
da assunção de risco.
O princípio a seguir deve ser trabalhar cada dimensão do
conceito e elaborar, para cada uma delas, uma síntese das infor-
mações, reagrupando, se possível, as respostas com elas relacio-
nadas. Um modo de proceder consiste na construção de índices
que sintetizem as informações fornecidas pelos indicadores. No
que respeita à dimensão das vias de transmissão do vírus, com
redacções de perguntas ligeiramente diferentes das que foram
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 297

apresentadas na etapa anterior, N. Beltzer, L. Saboni, C. Sauvage,


C. Sommen e o grupo KABP, autores do relatórios do inquérito
KABP 2010 (Les Connaissances, attitudes, croyances et comporte-
ments face su VIH/SIDA en Íle-de-France en 2010, Observatoire
Regional de Santé Íle-de-France, 2011), construíram esse índice de
«conhecimento das vias de transmissão comprovadas» calculando
um resultado que varia entre O e 5, em função do número de
respostas correctas às perguntas relativas às vias de transmissão
qualificadas como «comprovadas», a saber, as respostas «sim» para
as relativas a «relações sexuais sem preservativo» e «consumo de
droga através de uma seringa usada» e as respostas «não» para
as que referem o «uso de casas de banho públicas», o facto de

Inquéritos 1994 1998 2001 2004 2010


(n = 601) (n = 1198) (n = 3321) (n = 3367) (mn = 6955)

Valor médio do 4.55 4,44 4,45 4,45 4,46


resultado

Pp (2004
vs 2010)
> 0,05; P (1994
sê 2010)
< 0,005.

Quadro 6.4 — Evolução do resultado dos conhecimentos «comprovados» em França


— Inquéritos 1994-2010

beber «pelo copo de uma pessoa infectada» e «a picada de um


mosquito». O índice foi construído de modo que um resultado
elevado traduza um grau de conhecimento igualmente elevado.
Na condição de não se deixar iludir pelo seu significado, esta
expressão sintética das informações é bastante interessante. Ainda
que simplista, a medida ilustra até onde pode ir o procedimento
de descrição e de agregação de dados quando estes o permitem.
Com efeito, o objectivo é reagrupar ao máximo os dados que
digam respeito a uma dimensão (ou a uma componente) e o ideal
será descrevê-los com um índice pertinente.
Além de constituir uma síntese da informação, esse índice pode
ser mobilizado para observar a evolução dos conhecimentos ao
298 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

longo do tempo. Com resultados médios oscilando entre 4,55 e


4,44 desde 1999, o grau de conhecimento pode ser considerado
relativamente bom ao longo de todo o período analisado.
Podemos ir ainda mais longe e começar a comparar estes índi-
ces. Alguns parecem bastante próximos, variando apenas uma ou
duas centésimas. Mas, e quanto à diferença registada entre o pri-
meiro inquérito (1994: 4,55) e o último (2010: 4,46)? A diferença
de 0,9 é uma realidade, mas será suficiente para afirmar que o
resultado do conhecimento baixou entre 1994 e 20102 Também
aqui, os autores do quadro calcularam um teste estatístico para
responder a esta pergunta. A informação indicada a seguir ao
quadro (Pranõa vs ond 05054 Passira dmg 4 0,005) indica que os
resultados médios de 2004 e 2010 não podem considerar-se dife-
rentes, pois essa diferença não é estatisticamente significativa. Em
contrapartida, os resultados médios de 1994 e 2010 são de facto
estatisticamente diferentes e há menos de cinco hipóteses em cem
de nos enganarmos quando afirmamos que o resultado do conhe-
cimento das vias de transmissão «comprovadas» diminuiu entre
estas duas datas. Como podemos verificar, quando as amostras
são grandes, um afastamento, por mais pequeno que seja, pode
revelar-se estatisticamente significativo. Muito provavelmente, isto
significa que existe mesmo uma diferença na população em que
se recolheram as amostras. Inversamente, quando as amostras são
pequenas, mesmo as diferenças importantes podem vir a revelar-
-se estatisticamente não significativas. Estes testes são importantes
para evitarmos falsas conclusões.
Mas regressemos à nossa hipótese. Depois de tratados os dados
relativos aos indicadores da primeira dimensão, passaremos para
os seguintes, se possível, procedendo da mesma maneira. Quando
não é possível calcular um índice sintético, o investigador recorre
a técnicas mais simples, tratando cada questão isoladamente.
Para testar a hipótese relativa à ligação entre conhecimentos
e comportamentos, deve construir-se um índice de «compor-
tamento», de forma similar, a partir das perguntas relativas às
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 299

práticas investigadas por ocasião do inquérito. A relação entre


os dois índices poderá então ser analisada. O investigador vai
comparar, por exemplo, o resultado médio do índice da assunção
de risco em pessoas que têm um bom conhecimento das vias de
transmissão com o resultado médio da assunção de riscos em
pessoas com um conhecimento reduzido das vias de transmissão
do vírus VIH.

A construção de um índice
Acabámos de apresentar o modo de construção de um índice
de síntese de uma maneira extremamente simples. No entanto,
não é demais chamar a atenção dos que pretendem lançar-se neste
exercício para os três pontos seguintes:

— A coerência de um índice depende do trabalho de operacio-


nalização dos conceitos e das dimensões. Se forem esquecidas
algumas dimensões, se os conceitos forem mal escolhidos, o
índice será inevitavelmente afectado.
— O equilíbrio do índice depende também deste trabalho. Se o
investigador tiver quatro indicadores para a dimensão de um
conceito e apenas um indicador para outra dimensão, e se os
integrar todos (ou as variáveis que os medem) na construção
do seu índice, estará a atribuir efectivamente maior importância
à primeira dimensão do que à segunda... Excepto se atribuir
um peso quatro vezes maior a este último indicador do que
aos outros quatro.
— Existem ferramentas estatísticas que permitem verificar que
diferentes indicadores variam em conjunto, fazendo, por conse-
guinte, parte da mesma realidade. A título de exemplo, o alpha
de Cronbach mede a homogeneidade dos índices construídos.
Quando se procede a um trabalho de construção de índices
de síntese, podem igualmente ser mobilizados vários tipos de
análises factoriais.
300 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

2.2 O Movimento Branco


O segundo exemplo retoma a análise do Movimento Branco e
o nosso foco incidirá sobre a primeira hipótese. Estabelecer que
o que se manifesta no Movimento Branco é complexo e diversi-
ficado equivale a formular a hipótese de que os indivíduos dão
um sentido às suas acções de variadas maneiras, em função das
questões apreendidas e definidas distintamente por uns e por outros.
Ainda que o perfil das pessoas contactadas ao longo das vinte e
cinco entrevistas seja muito diversificado (quanto a género, idade,
meio social, participação no Movimento Branco), com uma amos-
tra assim não se pode, evidentemente, medir o peso das atitudes
específicas na opinião ou invocar qualquer representatividade da
população.

a) A grelha de análise
Para analisar o conteúdo das entrevistas, os investigadores ela-
boraram uma grelha de análise, com várias funções. Primeiro, esta
grelha instaura um intermediário objectivo entre o investigador e o
material de que dispõe. O conteúdo das entrevistas não será ana-
lisado em função dos valores e da subjectividade do investigador,
mas sim em função dos elementos e da estrutura da grelha. O que
o investigador poderá afirmar sobre o seu material resultará da
aplicação desta grelha a esse mesmo material e não das suas pró-
prias inclinações no momento. Utilizar sistematicamente a mesma
grelha para analisar o conjunto das entrevistas de um inquérito
(ou de qualquer outro material, como documentos, por exemplo)
é uma exigência de rigor. E o rigor consiste de facto numa ade-
quação entre os conhecimentos adquiridos e aquilo que justifica a
sua afirmação, neste caso, a utilização sistemática da mesma grelha
de análise. Além disso, ao aplicar de forma sistemática esta mesma
grelha de análise ao conjunto das entrevistas realizadas, os con-
teúdos destas últimas podem ser organizados e comparados numa
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 301

base estável e objectiva. Por último, se estiver bem concebida, a


grelha de análise permite compreender os aspectos que os actores
destacam nas mobilizações, assim como o sentido que atribuem às
suas próprias acções. Permite ultrapassar os propósitos individuais
para delas fazer emergir as lógicas sociais, ou seja, as coerências
implícitas entre uma série de representações e práticas que fazem
com que as coisas não aconteçam por acaso e que contribuam
para algumas orientações colectivas (ver Remy, J., Voyé, L., e
Servais, É., 1978, Produire ou réproduire? Une sociologie da la
vie quotidienne, tomo I, Bruxelas, Éditions Vie Ouvriêre, p. 93).
A grelha de análise escolhida pelos investigadores inspira-se
no «esquema actancial» desenvolvido originalmente por A. J.
Greimas (Sémiotique des sciences sociales, Paris, Seuil, 1976) e
mais tarde, em sociologia, por J.-P. Hiernaux (L'Institution cul-
turelle, IL, Méthode de description structurale, Paris, PUF, 1977).
Toda a grelha de análise tem, forçosamente, um aspecto formal
que numa primeira abordagem poderá desencorajar alguns, mas
com a qual depressa nos familiarizamos, se nos esforçarmos. De
seguida, e antes de a ilustrar com exemplos, mostramos a grelha
de maneira abstracta.
Para Greimas, todo o discurso ou narrativa se organiza em
torno de um desafio a que ele chama demanda. A análise da estru-
tura do discurso deverá permitir fazer emergir o seu significado.
Sempre de acordo com Greimas, as estruturas possíveis são muito
pouco numerosas, dado que tanto os papéis desempenhados pelas
«personagens» como as relações que mantêm entre si são em
número limitado. Os papéis identificados em qualquer demanda
são seis: o emissor, o objecto, o destinatário, o adjuvante, o sujeito
e o oponente. As «personagens» que desempenham estes papéis
tanto podem ser objectos materiais como seres humanos ou seres
morais (como a verdade ou a força do mal, por exemplo). O que
importa não é a sua natureza, mas os papéis narrativos na his-
tória dessa demanda, ou seja, a sua ou as suas esferas de acção.
É por isso que Greimas lhes chama «actantes». Uma mesma per-
302 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

sonagem ou actante pode desempenhar papéis diferentes e vários


actantes podem desempenhar o mesmo papel (ocupar o mesmo
estatuto actancial). Os actantes podem manter entre si três tipos
de relações: relações de comunicação, de desejo e de poder. Estas
relações põem os actantes em interacção dois a dois.

Eixo da comunicação

Emissor ———— Objecto +—— Destinatário


olasa P

Er
OXIg

.o

Adjuvante ——————» Sujeito <+—— Oponente

Eixo do poder

O esquema actancial representado acima é baseado em Everaert-Desmedt


(Sémiotique du récit, Bruxelas, De Boeck, Universidade, 1989).

Figura 6.1 — O esquema actancial

De forma muito sucinta, o actante sujeito e o actante objecto


estão unidos por uma relação de desejo: o sujeito é a persona-
gem que, sentindo que lhe falta algo, vai iniciar uma busca por
aquilo que o poderia satisfazer, o chamado objecto da demanda.
O actante adjuvante e o actante oponente situam-se no eixo de
poder: na sua demanda, o sujeito pode ser auxiliado pelo adju-
vante, que possui trunfos que lhe podem ser úteis, mas também
pode ser contrariado por um oponente, que se apresenta como
um obstáculo à concretização do objectivo. O actante emissor e
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 303

o actante destinatário estão unidos por uma relação de comuni-


cação: o emissor, também designado como sujeito manipulador,
no sentido em que (ao nível da comunicação) vai apresentar um
objecto ao destinatário, de modo que este se vai transformar no
sujeito que inicia a demanda pelo objecto (ao nível pragmático).
Embora os papéis actanciais de destinatário e de sujeito por vezes
sejam desempenhados por personagens distintas, muitas vezes
acontece que a mesma personagem desempenha um e outro papel.
Por conseguinte, este esquema foi mobilizado como grelha de
análise na medida em que permitia estudar, por um lado, o papel
e o lugar que cada pessoa atribuía a si própria no seu discurso
e, por outro lado, a sua definição particular da questão. Mais
adiante, analisaremos dois excertos bastante díspares a fim de
mostrar a pertinência desta grelha.
O primeiro excerto foi retirado da entrevista de Marion, 43
anos, mãe e dona de casa:

«Eu via a minha participação no Movimento Branco como uma


forma de apoiar as mães e os pais, para lhes mostrar que a vida
continua [...] Era sobretudo para os apoiar, porque também sou mãe.
E também havia lá muitos pais. Havia imensas emoções e sentíamo-
-nos desprotegidos, porque na verdade nada poderá substituir um
filho, portanto, era um pequeno gesto que lhes queríamos oferecer.
[...] Muitas das pessoas diziam-se chocadas com aqueles aconteci-
mentos... envergonhadas por viver num país como a Bélgica... e com
algum sentimento de culpa por ainda termos os nossos filhos [...].»

Neste caso, o horizonte da acção é a própria acção, na medida


em que o que ressalta da mobilização é sobretudo a vontade de
viver colectivamente o luto pelas crianças desaparecidas. Trata-se
de uma força de mobilização partilhada por um grande número
das pessoas interrogadas, ainda que as formas variem, indo de
uma versão religiosa, na qual se fala de comunhão, a uma versão
laica, em que se invoca, sobretudo, o tema da solidariedade. Para
Marion, trata-se de «apoiar os pais e mostrar que a vida continua».
304 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Acção típica: viver o luto

Eixo da comunicação
— Os sentimentos
suscitados pelos
acontecimentos:
vergonha, culpabilidade ————— Mostrar <+— O conjunto
o luto do povo
— Identificação com
os pais enquanto pais

ofasop

OX
Op

A amplitude ———————>»>» E +——— A ruptura


do movimento da unanimidade

Eixo do poder

Figura 6.2 — Mostrar o luto

Marion apresenta-se, acima de tudo, como mãe que se asso-


cia à dor de outros pais. Os elementos que desencadeiam a sua
atitude são, antes de mais, emoções fortes — a vergonha (de ser
belga), o sentimento de culpa (por ainda ter os seus filhos, por
pertencer a uma sociedade que permitiu aqueles acontecimentos,
etc.) — que estão na base do choque que sentiu.
O segundo excerto provém da entrevista de Roland, 40 anos,
empregado:
«Participei em duas, três manifestações locais [...], nomeadamente
para concretizar uma série de coisas em relação ao meu envolvi-
mento com o movimento ecológico. Eu tinha a impressão de que
havia uma série de reivindicações [...] que estavam no programa
dos Verdes e que através da oportunidade de questionamento da
justiça, os problemas da Melissa e da Julie, voltaram a aparecer
para uma série de gente, no limite mal explicados, dito de maneira
muito sentimental, mas que diziam respeito a alguma coisa muito
forte. [...] Acho que isso fazia parte do meu envolvimento. [...]
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 305

É uma preocupação... enfim, uma necessidade de coerência. O modo


como o casal Russo, a mãe de Élisabeth e Nabela, lidaram com as
coisas e o facto de estar dentro dos acontecimentos, impressionou-
-me bastante. Acho que as pessoas quando confrontadas com uma
situação de emergência são capazes de ser inteligentes, de percep-
cionar e de compreender, em termos políticos e de estratégia [...].
A sua percepção dos mecanismos da sociedade é, ainda assim,
fantástica. [...] O Movimento Branco pode levar a criar reflexões
em termos locais.»

Roland começa por se apresentar como um actor: participa nas


mobilizações brancas porque intui nelas um determinado número de
indicações que mostram que estão politicamente próximas da sua
militância anterior. Neste sentido, estas mobilizações inscrevem-se
no âmbito mais lato da sua acção política. Conservam, sem dúvida,
uma certa especificidade relativa aos acontecimentos dramáticos
que estiveram na sua origem, mas, neste caso, a dimensão de luto
é menos vincada. Embora Roland afirme querer manifestar a sua
solidariedade com os pais das crianças desaparecidas, não é porque
se identifique logo com eles, enquanto pai, mas porque reconhece
neles uma proximidade política, tanto do ponto de vista da análise
dos acontecimentos como da estratégia, que coincide com a sua.
Para Roland, o gatilho da sua participação nas mobilizações
brancas parece ser uma coligação entre a sua militância ecologista,
por um lado, e, por outro, os novos actores (os pais das crianças
desaparecidas) que emergem na altura dos acontecimentos e que real-
çam de forma muito particular as falhas da nossa sociedade. Neste
contexto, sente-se impelido a reagir, ao mesmo nível de qualquer
outro cidadão, mas de forma mais insistente enquanto militante.
Embora Roland tenha participado em algumas manifestações,
evoca também travões à participação, a fraca politização de alguns
actores (o que não é mostrado no excerto seleccionado), mas
também uma tendência demasiado grande de algumas pessoas
para se manterem focadas nas emoções e nos sentimentos.
306 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Acção típica: politizar as acções

Eixo da comunicação
— Os pais como
reveladores das falhas
da nossa sociedade — » Perseguir os seus próprios +— [Os que estão
— Compromissos de objectivos políticos: levar politicamente
militância anterior à reflexão comprometidos]

olasa P
gu E

OX
.o

A proximidade ————» Eu enquanto <+———— [A fraca politização


ideológica entre ele militante do movimento]
e o movimento A insistência sobre a
dimensão sentimental
Eixo do poder das iniciativas

Figura 6.3 — Politizar as acções

b) A construção de uma tipologia


Construir a hipótese de uma denúncia social diversificada não
equivale a apresentar a originalidade das atitudes e das vivências
de cada um como um horizonte inultrapassável. Embora cada caso
seja único, no fim de contas, são as lógicas sociais que constituem
o alvo da investigação sociológica. Por isso, o relatório de uma
investigação não pode limitar-se à apresentação sucessiva das várias
entrevistas. Provavelmente, tal estratégia teria como consequência
um leitor perdido numa multiplicidade de pormenores sem que
lhe fosse dada a mínima pista de estruturação do conjunto.
De uma maneira muito clássica para uma investigação qua-
litativa, a apresentação dos resultados da análise dos discursos
foi estruturada em função de esquemas actanciais típicos, ou
ideais-tipo, no sentido em que esta noção é entendida por Max
Weber. Um tipo ideal representa uma ferramenta metodológica
graças àx qual a especificidade de uma situação, de uma prática
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 307

ou de um indivíduo é posta em evidência e pode, eventualmente,


ser comparada com outras dentro de uma tipologia. Os tipos
ideais são construídos seleccionando um determinado número
de traços pertinentes em relação aos objectivos da investigação,
acentuando-os, para deixar bem clara a especificidade da inves-
tigação, e articulando-os uns com os outros num esquema de
pensamento coerente.
Nesta investigação sobre as consequências do Movimento
Branco, os ideais-tipo foram construídos com o foco em três
pontos: o horizonte da acção empreendida do ponto de vista do
falante; o papel e o lugar que o falante atribui ao seu próprio
discurso e a identificação do destinatário da acção; as questões
identificadas pelo falante. Cada tipo é construído com base nas
várias entrevistas. É provável que nenhuma delas corresponda
exactamente a um tipo particular, porque um tipo não é uma
categoria na qual uma situação, uma prática ou um indivíduo se
encaixe directamente, ou não, mas antes uma referência em relação
à qual os podemos situar como mais ou menos próximos ou mais
ou menos distantes. Neste sentido, nenhum dos entrevistados se
reconheceria indubitavelmente de modo completo num dos tipos
propostos, mas muitas pessoas poderiam sentir-se «portadoras de
características» de vários tipos ou subtipos, em diferentes propor-
ções. No entanto, existem algumas relações privilegiadas entre
papéis, algumas das quais dominantes ao nível dos registos da

Horizonte da acção Destinatário da acção Questões


A acção em O eu-indivíduo (tipo 1) Ser, observar
si mesma da DÊ x a EA
Os pais (tipo 2) Viver o luto: comunhão e solidariedade,
perdão
A acção como Os institucionais (tipo 3) | Exprimir uma frustração, uma fractura social,
uma etapa críticas específicas, nomeadamente, em relação
à ineficácia das instituições
Os cidadãos (tipo 4) Provocar um despertar cívico
Os militantes (tipo 5) Politizar as acções

Quadro 6.5 — Síntese da tipologia


308 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

argumentação, que constroem a pertinência de um procedimento


tipológico. O Quadro 6.5 apresenta uma breve síntese deste ponto.
Uma tal tipologia, construída graças à grelha de análise, permite
revelar as diferentes lógicas de adesão ao Movimento Branco.
Graças a ela, não estamos perante uma visão homogeneizante e
demasiado simplista do movimento, nem perante uma visão frag-
mentada segundo a qual apenas existiriam casos particulares. Os
significados que se entrecruzam no seio deste movimento podem
revelar-se de uma maneira muito subtil.

3. AS TRÊS OPERAÇÕES DE ANÁLISE


DAS INFORMAÇÕES
Bastante diferentes, os dois procedimentos explicitados atrás
implicam múltiplas operações específicas, quer para a análise
quantitativa quer para a análise qualitativa. Mas em qualquer dos
casos, são sempre necessárias e inevitáveis três operações, mesmo
que, de acordo com os métodos usados, elas possam coordenar-se
umas com as outras de diversas maneiras. Estas três operações
são: primeiro, preparar os dados ou as informações; segundo,
relacionar os dados ou as informações; terceiro, comparar os
resultados observados com os resultados esperados a partir da
hipótese. Para expormos estes pontos, colocar-nos-emos alterna-
damente no cenário de uma análise quantitativa e no cenário de
uma análise qualitativa.

3.1 A preparação dos dados ou informações

a) Análise quantitativa: descrever e agregar


Para testarmos uma hipótese temos, ,
em primeiro lugar, 2
de
exprimir cada um destes dois termos por uma medida precisa,
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 309

para podermos examinar a sua relação. Na preparação dos dados,


a descrição e a sua agregação visam precisamente isto. Descrever
os dados de uma variável equivale a apresentar a sua distribuição
com a ajuda de quadros ou gráficos, mas também a exprimir esta
distribuição numa medida sintética. O essencial desta descrição
consiste, pois, em pôr bem em evidência as características da
distribuição da variável.
Agregar dados ou variáveis significa agrupá-los em subcate-
gorias ou exprimi-los por um novo dado pertinente. Foi o que
fizemos quando construímos o índice de conhecimento das vias
de transmissão «comprovadas». Mas a descrição de uma variável
por uma expressão sintética (o resultado médio do conhecimento,
por exemplo) segue procedimentos diferentes, consoante o tipo de
informação de que se dispõe. Seguem-se algumas especificações e
chamadas de atenção úteis sobre o assunto.
Os dados que constituirão o objecto da análise são as respostas-
“informações obtidas para cada indicador durante a observação.
Estes dados apresentam as diferentes modalidades e os diferentes
estados de uma variável. A título de exemplo, alemão, belga e fran-
cês são modalidades da variável nacionalidade. Da mesma forma,
30 anos é um estado ou uma modalidade da variável «idade».
Chama-se variável a toda a característica susceptível de tomar
várias modalidades. Se não for esse o caso, estaremos a lidar com
uma constante e não com uma variável. Quando um conceito tem
apenas um único indicador, a variável identifica-se com o indi-
cador (por exemplo, a idade). Quando um conceito é composto
por várias dimensões, o investigador pode querer construir uma
variável que seja o resultado da agregação das diversas dimen-
sões (como o nível de conhecimento das vias «comprovadas» de
transmissão da sida no exemplo anterior).
As variáveis qualitativas ou são nominais ou são ordinais. Diz-se
que uma variável é nominal se as suas modalidades não apresenta-
rem uma ordem natural, ou, o que vai dar ao mesmo, se qualquer
ordenamento dessas modalidades for puramente arbitrário. É o
310 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

caso da variável nacionalidade, para a qual podemos evidentemente


estabelecer uma classificação de modalidades (apresentar as dife-
rentes nacionalidades por ordem alfabética, por exemplo), mas
cujo carácter arbitrário se revela quando se faz a tradução que,
por poucas mudanças que traga, altera a ordem inicial. Quando
a variável nominal conta com apenas duas modalidades (por
exemplo, o sexo), falamos de uma variável nominal dicotómica.
Uma variável é dita ordinal se as suas modalidades puderem ser
ordenadas, mas sem que se tenha uma medida da importância
do afastamento entre duas modalidades sucessivas. É o caso de
variáveis como a concordância em relação a uma opinião cujas
modalidades seriam, por exemplo, completamente em desacordo,
em desacordo, de acordo, completamente de acordo. As quatro
modalidades estão ordenadas de forma clara, mas nada é espe-
cificado quanto à distância que separa umas das outras e seria,
sem dúvida, arriscado afirmar que são equidistantes. Finalmente,
há variáveis, ditas quantitativas, cujas modalidades têm um valor
numérico. Quando se mede a altura de uma pessoa, se conta o
número de filhos de uma família, se escreve a percentagem que um
aluno obteve num exame de Matemática, etc., os diferentes valores
recolhidos (1,80 m, 3 filhos, 71 %) não têm nada de arbitrário
e indicam muito mais do que uma ordem entre as modalidades.
Aqui, cada resposta é dada por um número que remete para uma
métrica que permite medir os afastamentos entre as respostas dos
vários indivíduos.
Estas especificações um pouco técnicas não são inúteis, dado
que, na altura da descrição e da agregação dos dados ou das
variáveis, é preciso adoptar os processos de cálculo adequados.
As variáveis qualitativas não são tratadas da mesma forma
que as variáveis quantitativas. Para descrever uma variável por
meio de uma expressão sintética, utilizar-se-ão, por exemplo, as
percentagens, se ela for nominal, a mediana, se for ordinal, e a
média, se for contínua. Tem de se tomar isto em consideração ao
elaborar os instrumentos de observação, porque não é indiferente
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 311

que as respostas obtidas dêem à variável um carácter nominal,


ordinal ou contínuo. Era precisamente a isto que aludíamos ao
falarmos de antecipação das respostas na altura da formulação
das perguntas.
A descrição de uma variável e a utilização que dela pode fazer-se
variam consoante ela seja nominal, ordinal ou contínua. Assim,
não é possível, para a agregação das variáveis, agrupar medidas
de tipos diferentes sem passar por um denominador comum, o que
conduz a uma séria perda de informação. Isto é particularmente
importante quando é preciso agregar variáveis para reconstituir
um conceito e exprimi-lo por uma medida sintética. Torna-se
difícil analisar as relações entre os dois conceitos de uma hipó-
tese a partir do momento em que não é possível exprimi-las por
uma medida adequada. Ora é justamente esse o objectivo de um
trabalho científico.

b) Análise qualitativa: transcrever e organizar


Para testar as hipóteses a partir das entrevistas semidirectivas,
é necessário começar por transcrevê-las. Tirando alguma situa-
ção excepcional, esta transcrição é integral, mesmo que ocupe
dezenas de páginas, sem o que as análises mais pormenorizadas
serão muito difíceis, sobretudo se visarem a reconstituição da
estrutura ou da dinâmica do conjunto da matéria. A transcrição
integral permite ainda evitar excluir precipitadamente da análise
partes da entrevista julgadas desinteressantes à partida, o que se
poderia revelar inexacto ao longo do estudo. Em primeiro lugar, é
preciso ter materiais consistentes e de qualidade (no caso vertente,
as entrevistas) que sejam perfeitamente corrigidos e inteiramente
disponíveis para análise. Sejam quais forem as operações que se
seguirem, será sempre possível regressar a estes materiais de base
e orientarmo-nos neles.
De seguida, é necessário organizar os materiais de um modo
que permita a sua análise. As aplicações informáticas permitem
312 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

muitas manipulações, começando pelo simples tratamento do


texto, graças ao qual podemos procurar e sublinhar palavras,
deslocar excertos para os pôr em paralelo com outros, etc. Mas
nada disto terá utilidade se o investigador não tiver uma visão
clara dos princípios segundo os quais pretende organizar os seus
materiais.
No nosso segundo exemplo, sobre o Movimento Branco, esta
organização é relativamente sofisticada. Baseada numa grelha de
análise que visa reconstituir e formalizar o esquema actancial, essa
organização começa já a invadir a operação seguinte.

3.2 A ligação entre dados ou informações

a) Análise quantitativa: a análise das relações entre


as variáveis

A análise das relações entre as variáveis constitui a segunda


passagem obrigatória.
As variáveis a relacionar entre si são as que correspondem aos
termos da hipótese, isto é, os conceitos implicados nas hipóteses,
as dimensões, ou os indicadores ou atributos que as definem.
O exemplo anterior ilustra o estado da relação entre o modelo
familiar em termos de casal, por um lado, e o modelo do ego,
por outro.
Na prática, procede-se primeiro ao exame das ligações entre
as variáveis das hipóteses principais, passando depois às hipóteses
complementares. Estas terão sido elaboradas na fase de construção,
mas podem também nascer no decurso da análise, como resultado
de informações inesperadas.
Lembremos que é aqui que intervêm as variáveis-testes. Estas
são introduzidas pelas hipóteses complementares para assegurarem
que a relação pressuposta pela hipótese principal não é falaciosa,
ou, se assim não for, para a aperfeiçoar. Por exemplo, no caso pre-
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 313

cedente, a introdução da variável-teste «controlo social familiar»


permitiu matizar a relação observada entre o modelo familiar e
o modelo do ego.
Isto é só um caso particular de um problema geral — o da
pertinência de variáveis tidas em consideração. Se duas variáveis, A
e B, sem ligação entre si, estão estreitamente dependentes de uma
outra variável, C, qualquer variação desta provocará variações
paralelas nas duas primeiras. Se não soubermos da existência de
C, a co-ocorrência de A e B será interpretada como a expressão
de uma relação directa entre elas, quando, afinal, não passa do
reflexo da sua dependência em relação a C. À obra de R. Boudon
Les méthodes en sociologie (Paris, PUF, col. «Que sais-je?», 1969)
inclui várias ilustrações das possíveis relações entre variáveis.
Os processos de análise ou de agregação das variáveis são muito
diferentes, consoante os problemas equacionados e as variáveis em
jogo. Além disso, cada método de análise das informações implica
procedimentos técnicos específicos, e não podemos aqui ser mais
precisos sem enveredarmos por técnicas demasiado particulares
em relação aos nossos objectivos.
Acrescentaremos, simplesmente, que também existem técnicas
de análise quantitativa que, mais do que estudar as relações
entre variáveis, tratam das semelhanças e das diferenças entre
os indivíduos estatísticos. Constituem uma ajuda preciosa para
a construção de tipologias. Usadas isoladamente, têm um alcance
descritivo, mas podem ser facilmente associadas a técnicas des-
tinadas a estudar as ligações entre variáveis. Assim, a tipologia
construída num primeiro momento é uma variável nova e esta
pode ser relacionada com as outras variáveis de que o investi-
gador dispõe.

b) Análise qualitativa: comparações e tipologias


A utilização de uma grelha de análise para tratar as informações
qualitativas, como o conteúdo da entrevista, permite estabelecer
314 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ligações em dois níveis. Ao nível de cada entrevista, as relações


entre os seus elementos (por exemplo, entre os actantes, na entre-
vista de Marion) podem ser evidenciadas de modo a reconstituir a
estrutura da entrevista e, por conseguinte, o sistema de representa-
ção e de acção da pessoa entrevistada. Ao nível do conjunto das
entrevistas, podem ser feitas comparações (entre Marion, Roland
e os outros) e realçadas convergências e divergências, de modo a
revelar as lógicas sociais implícitas que, neste caso, podem elas
próprias ser utilizadas pela ferramenta da tipologia.
Mas, como acabámos de sublinhar, porque as técnicas de aná-
lise quantitativas podem ser úteis para a construção de tipologias,
convém, precisamente, não reduzir o contributo do qualitativo para
a produção de tipologias. Como veremos na segunda aplicação
no fim do manual (Os modos de adaptação ao risco de infec-
ção pelo VIH nas relações heterossexuais), a análise qualitativa
permite igualmente estudar a ligação entre fenómenos, conceitos
ou variáveis; neste caso, interrogando-nos sobre os factores que
determinam os comportamentos de risco.
Quer se trate de um método quantitativo ou qualitativo, o
princípio de análise passará sempre por estabelecer ligações
(ou mostrar que estas não existem), sejam quais forem as
modalidades e os termos utilizados: correlação, co-ocorrência,
oposição, independência, convergência ou divergência, etc.
Através das diversas operações que estabelecem as ligações
(estatísticas, grelhas de análise...), a natureza da matéria inicial
altera-se profundamente. A partir das respostas individuais a um
questionário, construímos correlações entre variáveis graças a
ferramentas estatísticas; a partir das narrativas individuais (ou
da observação directa de comportamentos), construímos uma
estrutura de pensamento e de acção graças às ferramentas da
grelha de análise e da tipologia. Na análise, o material inicial
«fermentou», de alguma maneira, através da comparação e da
interligação entre os seus componentes, revelando perspectivas
de explicação que não tinham sido previstas no início da inves-
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 315

tigação, lançando sobre os fenómenos um olhar mais esclarece-


dor, ao mesmo tempo mais abrangente e subtil. Seja qual for o
método utilizado, um bom investigador é aquele que sabe fazer
fermentar a matéria de que dispõe.

3.3 A comparação dos resultados observados com


os resultados esperados e a interpretação das
diferenças
Cada hipótese elaborada durante a fase de construção exprime
as relações que julgamos correctas e que a observação e a análise
deveriam, portanto, confirmar. Assim, no estudo dos comporta-
mentos sexuais perante o risco de sida, formulámos a hipótese
de a rede a que um indivíduo pertence constituir para ele uma
referência que influencia fortemente os seus ideais (e comporta-
mentos). Os resultados esperados a partir da hipótese deveriam
então mostrar que os seus ideais conjugais estão em consonância
com as normas da rede a que pertence. Os resultados observados
são os que resultam das operações anteriores. É comparando estes
últimos com os resultados esperados a partir da hipótese que
podemos tirar conclusões.
Se houver divergência entre os resultados observados e os
resultados esperados, o que é frequente, teremos de buscar a
origem da diferença e procurar as diferenças entre a realidade e
o que era presumido à partida ou de elaborar novas hipóteses
e, a partir de uma nova análise dos dados disponíveis, examinar
em que medida são confirmadas. Em certos casos será mesmo
necessário completar a observação.
No início da investigação sobre o Movimento Branco,
formularam-se quatro hipóteses. A primeira, sobre a qual se debru-
çou o exemplo, era a de uma denúncia complexa e diversificada.
Esta hipótese não se limitou a ser confirmada pela análise; as
alegadas complexidade e diversidade foram exploradas e mere-
316 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ceram um conteúdo sintético na tipologia. A partir daí, podiam


ter sido formuladas novas hipóteses, ainda mais aperfeiçoadas e
criteriosas, que, por sua vez, também poderiam ter sido exploradas,
se dispuséssemos dos meios e do tempo necessários.
Estes exemplos mostram bem que não se trata apenas de verificar
ou infirmar a hipótese. Quer esta seja confirmada ou infirmada,
no todo ou em parte, se a observação e a análise tiverem sido
bem conduzidas, surgirá um conjunto de novos conhecimentos,
sendo a hipótese apenas o fio condutor que permitirá saber de que
lado será razoável e interessante investigar. Por conseguinte, o que
encontramos é sempre muito mais matizado do que a hipótese,
que não terá deixado de desempenhar o seu papel.
À interacção que acabámos de evocar entre a análise, as hipóte-
ses e a observação é representada por dois circuitos de retroacção:

Etapa 4 — A construção do modelo de análise


Gra

Etapa 5 — A observação
4—

Etapa 6 — A análise das informações


4—

Etapa 7 — As conclusões
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 317

4. PANORAMA DOS PRINCIPAIS MÉTODOS


DE ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES
A maior parte dos métodos de análise das informações depen-
dem de uma de duas grandes categorias: a análise estatística dos
dados e a análise de conteúdo. Serão, portanto, estas a ser aqui
apresentadas, com algumas das suas variantes. No entanto, alguns
métodos apresentados na etapa anterior como métodos de recolha
das informações associam intimamente a recolha e a análise. É,
nomeadamente, o caso da observação antropológica e da entre-
vista compreensiva, quando são aplicadas, como é frequente, a um
procedimento indutivo. As distinções entre a recolha e a análise
das informações não são, assim, forçosamente tão nítidas como
a presente organização das etapas pode deixar supor.

4.1 A análise estatística dos dados

a) Apresentação
O desenvolvimento e a democratização dos computadores e dos
programas informáticos transformaram profundamente a análise
dos dados. A possibilidade de manipular rapidamente quantidades
consideráveis de dados encorajou a afinação de novos processos
estatísticos, como a análise factorial de correspondências, que
permite visualizar e estudar a ligação entre várias dezenas de
variáveis ao mesmo tempo. Paralelamente, a facilidade com que
os dados podem ser trabalhados e apresentados incitou muitos
investigadores a estudá-los em si mesmos, sem referência explícita
a um quadro de interpretação.
Apresentar os mesmos dados sob diversas formas favorece
incontestavelmente a qualidade das interpretações. Neste sentido,
a estatística descritiva e a expressão gráfica dos dados são muito
mais do que simples métodos de exposição dos resultados. Mas
318 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

esta apresentação diversificada dos dados não pode substituir a-


reflexão teórica prévia, a única a fornecer critérios explícitos e
estáveis para a recolha, a organização e, sobretudo, a interpre-
tação dos dados, assegurando, assim, a coerência e o sentido do
conjunto do trabalho.
Actualmente, o conjunto de instrumentos para a análise estatística
de dados é muito vasto. As técnicas mais recentes coexistem nor-
malmente com outras mais simples e mais antigas, que enriquecem,
mas não substituem necessariamente. As mais simples — medidas
de tendência central (moda, mediana, média), medidas de disper-
são (amplitude, amplitude interquartil, desvio-padrão...), quadros
de frequências, representações gráficas diversas (diagrama circular,
histograma...) — foram concebidas para a análise univariada, por
outras palavras, para a análise de uma variável de cada vez. Conse-
quentemente, têm um alcance descritivo. As técnicas mais utilizadas
na análise bivariada, que se refere à relação entre duas variáveis,
também não são novas: tabela de contingência, ou quadro cruzado,
o teste do qui-quadrado, a correlação (linear ou não), o teste t de
comparação entre duas médias. Apesar da sua aparente simplici-
dade, nem sempre estas técnicas são bem dominadas, o que é de
lamentar, sobretudo porque algumas constituem a base de técnicas
mais sofisticadas (como a correlação linear e a medida de base dos
modelos de regressão linear). As análises multivariadas mobilizam
técnicas matemáticas mais complexas de variantes muito numerosas
e produzidas ininterruptamente, mas cujas bases por vezes também
são antigas. No entanto, os meios de cálculo dos computadores
permitem desenvolvimentos sem precedentes. As principais famílias
de técnicas são: as análises factoriais, que visam revelar as co-varia-
ções entre variáveis e modalidades; as análises classificatórias, cujo
objectivo é constituir classes de indivíduos homogéneas e diferentes
entre si; os modelos de regressão, que procuram avaliar o efeito
específico de uma variável (independente) sobre o fenómeno social
estudado (a variável dependente), enquanto uma série de outras
variáveis (independentes) se mantêm constantes. Como é evidente,
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 319

esta lista é muito sucinta e exclui métodos em pleno crescimento,


como a análise em rede (Social Network Analysis), por exemplo.
Para cada uma destas técnicas, não podemos deixar de encorajar
o leitor a consultar as obras especializadas.

b) Variantes
e Quando os dados a analisar preexistem à investigação e são
retirados de bases de dados reais ou reunidos por meio da
recolha de dados documentais, fala-se geralmente de análise
secundária. Neste caso, o investigador está mais ou menos
limitado nas suas análises pelo problema da compatibilidade
dos dados entre si e com as hipóteses que deseja testar.
e Quando os dados a analisar foram especialmente recolhidos
para responder às necessidades da investigação graças a um
inquérito por questionário, fala-se, normalmente, de tratamento
de inquérito. Neste caso, as análises são em geral mais apro-
fundadas, visto que os dados são, em princípio, padronizadas
à partida e perfeitamente alinhados com os objectivos da
investigação.
e Os métodos de análise estatística dos dados são também
utilizados para o exame de documentos com forma textual.
Trata-se então de um método de análise de conteúdo que será
retomado mais à frente sob este título.

c) Objectivos para os quais o método é especialmente


adequado
e É adequado, por definição, a todas as investigações orientadas
para o estudo das correlações entre fenómenos susceptíveis de
serem exprimidos por variáveis quantitativas. Por conseguinte,
estes métodos estão geralmente muito bem adequados a inves-
tigações conduzidas numa perspectiva de análise causal. Mas
não é, de modo algum, exclusivo desta. Por exemplo, no quadro
do paradigma sistémico, uma correlação entre duas variáveis
320 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

não será interpretada como uma relação de causalidade, mas


como uma co-variação entre componentes de um mesmo sis-
tema que evoluem conjuntamente (M. Loriaux, «Des causes
aux systêmes: la causalité en question», in R. Franck (dir.), op.
cit., pp. 41-86).
A análise estatística dos dados impõe-se em todos os casos em
que estes últimos são recolhidos por meio de um inquérito por
questionário, em que as perguntas são ditas «fechadas», ou
seja, quando os entrevistados têm de escolher entre um pequeno
número de respostas (do tipo sim/não, sempre / muitas vezes, rara-
mente/nunca). É então necessário reportarmo-nos aos objectivos
para os quais é adequado este método de recolha dos dados.

d) Principais vantagens
e À precisão e o rigor do dispositivo metodológico, que permite
aos pares avaliarem o procedimento da investigação.
A capacidade dos meios informáticos, que permitem manipular
muito rapidamente um grande número de indivíduos estatísticos
e de variáveis.
A clareza dos resultados e dos relatórios de investigação,
nomeadamente quando o investigador se esforça por traduzir
de forma pedagógica os métodos e as técnicas por vezes com-
plexos, aproveitando, por exemplo, os recursos da apresentação
gráfica das informações.

e) Limites e problemas
e O instrumento estatístico tem um poder de elucidação limitado
aos postulados (a importância do número, das correlações entre
variáveis...) sobre que se baseia, mas não dispõe, em si mesmo,
de um poder explicativo. Pode descrever relações, estruturas
latentes, mas o significado dessas relações e dessas estruturas
não deriva dele. É o investigador que atribui um sentido a estas
relações, por meio do modelo teórico que construiu previamente
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 321

e em função do qual escolheu um método de análise estatística


(esta questão está descrita em Franck, R., 1994, op. cit.).
e Nesta perspectiva, devíamos estar particularmente atentos ao
risco de terrorismo quantitativo que pretende que uma análise
quantitativa seja forçosamente mais pertinente do que uma
análise qualitativa, e que assim seja porque mobiliza modelos
matemáticos bastante sofisticados e que apenas alguns especia-
listas, que muitas vezes ignoram o que são as ciências humanas,
podem compreender. O investigador responsável apenas usará
métodos cujos postulados de base, condições de aplicação,
limites e regras de interpretação que conheça.

f) Métodos complementares
A montante: o inquérito por questionário e a recolha de dados
estatísticos existentes.

g) Formação exigida
e Boas noções de base em estatística descritiva.
e Boas noções de base em análise multivariada.
e Iniciação aos programas informáticos de gestão e de análise
de dados de inquéritos (R, SPSS, SPAD, SAS, STATA...).

h) Algumas referências bibliográficas


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322 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

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4.2 A análise de conteúdo

a) Apresentação
A análise de conteúdo incide sobre mensagens tão variadas
como obras literárias, artigos de jornais, documentos oficiais,
programas audiovisuais, declarações políticas, actas de reuniões
e, evidentemente, relatórios de entrevistas semidirectivas. A esco-
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 323

lha dos termos utilizados pelo locutor, a sua frequência e o seu


modo de disposição, os temas que aborda e a sua forma de os
desenvolver, a própria construção do «discurso», são fontes de
informações com base nas quais o investigador tenta mostrar e
reconstituir processos sociais, culturais ou políticos (por exem-
plo, a socialização e a evolução do pensamento no seio de uma
população, o modo como alguns problemas são tratados a nível
colectivo, as relações entre dirigentes religiosos ou políticos e os
seus fiéis ou potenciais eleitores, as tensões e os conflitos numa
qualquer comunidade, etc.).
Contrariamente à linguística, a análise de conteúdo em ciências
sociais não tem como objectivo compreender o funcionamento
da linguagem enquanto tal. Se os mais diversos aspectos formais
do discurso podem ser tidos em conta e, por vezes, examinados
com uma minúcia e uma paciência de santo, é sempre para obter
um conhecimento relativo a um objecto exterior a eles mesmos.
Os aspectos formais da comunicação são então considerados
indicadores da actividade cognitiva do locutor, dos significados
sociais ou políticos do seu discurso ou do uso social que faz da
comunicação.
Concretamente, a análise de conteúdo consiste em submeter as
informações recolhidas a um tratamento metódico, por exemplo:
agrupá-las por temas pertinentes de acordo com as hipóteses,
compará-las umas com as outras e relacioná-las, ou ainda organizá-
las de acordo com uma estrutura que lhes dê um sentido (como
na investigação sobre o Movimento Branco, apresentada atrás).
Para o efeito, os métodos de análise de conteúdo implicam a
aplicação de procedimentos técnicos relativamente precisos, como
o cálculo e frequências relativas ou de co-ocorrência dos termos
utilizados. Apenas a utilização de métodos já construídos e estáveis
permite efectivamente que o investigador elabore uma interpre-
tação que não tome como indicadores os seus próprios valores e
a sua subjectividade. Os métodos e os respectivos procedimentos
constituem uma espécie de intermediário entre a reflexão do
324 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

investigador e os seus materiais, graças aos quais pode objecti-


var os conhecimentos que daí retira e evitar assim interpretações
arbitrárias e inconstantes.
Ao ser submetido a estes procedimentos de análise, o material
em bruto, tal como foi produzido pelo locutor ao longo de uma
entrevista ou num texto, transforma-se num material mais elabo-
rado, mais complexo e ao mesmo tempo mais sintético.
O lugar ocupado pela análise de conteúdo na investigação
social é cada vez maior, em especial porque oferece a possibilidade
de tratar de forma metódica informações e testemunhos que apre-
sentam um certo grau de profundidade e de complexidade, como,
por exemplo, os relatórios de entrevistas semidirectivas.
Os recentes progressos dos métodos de análise de conteúdo
foram favorecidos pelos progressos da linguística, das ciên-
cias da comunicação e da informática. No que respeita mais
particularmente à investigação social propriamente dita, deve
muito, em particular, a Roland Barthes, a C. Lévi-Srauss e a
A. J. Greimas.
Apesar da sua variedade, a maior parte das análises de con-
teúdo realiza-se em dois momentos, ainda que isso não seja
uma regra absoluta: num primeiro momento, as entrevistas e
os documentos previamente transcritos são analisados um por
um; num segundo momento, procede-se a uma análise transver-
sal e comparativa (para ver, por exemplo, se uma determinada
opinião é ou não largamente partilhada e, a sê-lo, com que
cambiantes, ou para construir uma tipologia). Tanto na análise
interna de cada entrevista ou documento, como numa análise
transversal comparativa, o investigador procurará «triangular»
as suas conclusões, ou seja, verificar se a mesma conclusão é
confirmada por vários pontos de vista, por várias afirmações em
momentos diferentes da mesma entrevista, por vários locutores
em entrevistas diferentes.
Neste ponto, o trabalho de equipa é altamente recomendado.
Por exemplo, em algumas equipas de investigação cada entrevista
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 325

é analisada pelo investigador que a realizou e por um membro


da sua equipa, de modo a poderem confrontar as suas análises,
examinar a causa de eventuais divergências e, sobretudo, discutir
novas hipóteses que cada um poderá ter para propor.

b) Principais variantes
Agrupam-se correntemente os diferentes métodos de análise
de conteúdo em duas categorias: os métodos quantitativos e os
métodos qualitativos. Os primeiros seriam extensivos (análise
de um grande número de informações sumárias) e teriam como
informação de base a frequência do aparecimento de certas carac-
terísticas de conteúdo ou de correlação entre elas. Os segundos
seriam intensivos (análise de um pequeno número de informações
complexas e pormenorizadas) e teriam como informação de base a
presença ou a ausência de uma característica ou o modo segundo
o qual os elementos do «discurso» estão articulados uns com
os outros. Estas distinções só são válidas de uma forma muito
geral: as características próprias dos dois tipos de procedimento
não são assim tão nítidas e vários métodos recorrem tanto a um
como a outro.
Sem pretendermos resolver todas as questões de demarcação
entre os diferentes métodos de análise de conteúdo, propomo-nos
distinguir aqui três grandes categorias de métodos, consoante o
exame incida principalmente sobre certos elementos do discurso,
sobre a sua forma ou sobre as relações entre os seus elementos
constitutivos. Limitar-nos-emos a evocar, para cada categoria,
algumas das principais variantes. As variantes enumeradas são as
que L. Bardin distingue em V' Analyse de contenu, Paris, PUF, 2009.

As análises temáticas
São as que tentam sobretudo revelar as representações sociais
ou os juízos dos locutores a partir de um exame de certos ele-
326 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

mentos constitutivos do discurso. Entre estes métodos podemos


nomeadamente distinguir:
e A análise categorial: a mais antiga e a mais corrente. Consiste
em calcular e comparar as frequências de certas características
(na maior parte das vezes, os temas evocados) previamente
agrupadas em categorias significativas. Baseia-se na hipótese
segundo a qual uma característica é tanto mais frequentemente
citada quanto mais importante é para o locutor. O procedimento
é essencialmente quantitativo;
e A análise da avaliação: incide sobre os juízos formulados pelo
locutor. É calculada a frequência dos diferentes juízos (ou
avaliações), mas também a sua direcção (juízo positivo ou
negativo) e a sua intensidade.

As análises formais
São as que incidem principalmente sobre as formas e encadea-
mento do discurso. De entre estes métodos podemos nomeada-
mente distinguir:
e A análise da expressão: incide sobre a forma da comunicação,
cujas características (vocabulário, tamanho das frases, ordem
das palavras, hesitações...) facultam uma informação sobre o
estado de espírito do locutor e suas tendências ideológicas;
e A análise da enunciação: incide sobre o discurso concebido
como um processo cuja dinâmica própria é, em si mesma,
reveladora. O investigador está então atento a dados como o
desenvolvimento geral do discurso, a ordem das suas sequências,
as repetições, as quebras do ritmo, etc.

As análises estruturais

As análises estruturais partem da ideia de que o significado


de um texto é revelado pela sua estrutura, ou seja, pela maneira
como os elementos estão dispostos. Podemos distinguir:
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 327

e A análise de co-ocorrências: representa uma modalidade rela-


tivamente simples da análise estrutural. Já não se trata de
examinar as frequências individuais dos temas (ou ocorrên-
cias), mas sim as suas associações (ou co-ocorrência). Perceber
que temas são sistematicamente abordados nas afirmações
do entrevistado informa-nos sobre o seu universo cultural ou
ideológico;
e A análise estrutural propriamente dita: vai mais longe porque
visa revelar a estrutura do conjunto do texto, os princípios
subjacentes à organização entre os seus elementos e o sis-
tema de relações entre eles. A análise estrutural interessa-se,
nomeadamente, pelos pares de oposições entre elementos e
pela maneira como estes pares de oposições se articulam entre
si para formar estruturas de oposições mais abrangentes dos
elementos do texto, pelas regras de encadeamento entre os
elementos do texto, a sua trama e, mais amplamente, por tudo
o que estrutura o texto, revelando uma «ordem» nos discursos
que, à primeira vista, poderiam parecer desordenados ou até
incoerentes. O método elaborado por A. J. Greimas, utilizado
atrás, no segundo exemplo, é uma das suas variantes.

c) Objectivos para os quais o método é especialmente


adequado
Nas suas diferentes modalidades, a análise de conteúdo tem um
campo de aplicação muito vasto. Pode incidir sobre comunicações
de formas muito diversas: textos literários, programas televisivos
ou radiofónicos, filmes, relatórios de entrevistas, mensagens não
verbais, conjuntos decorativos, etc. Ao nível dos objectivos de
investigação, pode ser nomeadamente utilizada para:
e A análise das ideologias, dos sistemas de valores, das repre-
sentações e das aspirações, bem como da sua transformação;
e O exame da lógica de funcionamento das organizações, graças
aos documentos que elas produzem.
328 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

O estudo das produções culturais e artísticas.


e A análise dos processos de difusão e de socialização (manuais
escolares, jornais, publicidade...).
e A análise de estratégias, do que está em jogo num conflito, das
componentes de uma situação problemática, das interpretações
de um acontecimento, das reacções latentes a uma decisão, do
impacto de uma medida.
e A reconstituição de realidades passadas não materiais: menta-
lidades, sensibilidades...

d) Principais vantagens
e Todos os métodos de análise de conteúdo são adequados ao
estudo do implícito.
e Obrigam o investigador a manter uma grande distância em
relação a interpretações espontâneas e, em particular, às suas
próprias. Com efeito, não se trata de utilizar as suas próprias
referências ideológicas ou normativas para julgar as dos outros,
mas sim de analisá-las por critérios que incidem mais sobre a
organização interna do discurso do que sobre o seu conteúdo
explícito.
e Uma vez que têm como objecto uma comunicação repro-
duzida num suporte material (geralmente um documento
escrito), permitem um controlo posterior do trabalho de
investigação.
e Vários deles são construídos de uma forma muito metódica e
sistemática sem que isso prejudique a profundidade do trabalho
e a criatividade do investigador, muito pelo contrário.

e) Limites e problemas
É difícil generalizar, dado que os limites e os problemas apre-
sentados por estes métodos variam muito de um para outro. As
diferentes variantes não são de modo algum equivalentes e não
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 329

são, portanto, intermutáveis. Na escolha de uma delas devemos


estar particularmente atentos aos seguintes pontos:

e Alguns métodos de análise de conteúdo baseiam-se em pres-


supostos, no mínimo, simplistas. O recorde, neste aspecto,
pertence, sem dúvida alguma, à análise categorial (ver acima)
para a qual a frequência de uma característica deve constituir
um indicador suficiente da sua importância. Temos, pois, de
nos interrogar sobre se a investigação pode adaptar-se a estes
limites. Se a resposta for negativa, teremos de escolher outro
método ou utilizar vários conjuntamente. À análise categorial é,
aliás, muitas vezes aplicada com utilidade como complemento
de outros métodos mais elaborados.
e Alguns métodos, como a análise avaliativa, são muito pesados
e laboriosos. Antes de os adoptarmos é preciso ter a certeza de
que são perfeitamente adequados aos objectivos da investigação
e de que dispomos do tempo e dos meios necessários para os
levarmos a bom termo.
e Se a análise de conteúdo, globalmente considerada, oferece
um campo de aplicação muito vasto, o mesmo não acontece
com cada um dos métodos particulares, alguns dos quais têm,
pelo contrário, um campo de aplicação muito reduzido. Na
realidade, não existe um, mas vários métodos de análise de
conteúdo.

f) Métodos complementares
Os métodos mais frequentemente associados à análise de con-
teúdo são:
e Sobretudo: as entrevistas semidirectivas, cujos elementos de
informação se prestam particularmente bem a um tratamento
pela análise da enunciação (que desmontará a sua dinâmica)
e da análise estrutural.
e A recolha de documentos sobre os quais a análise de conteúdo
se baseará.
330 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
g) Formação exigida
e Cada método pressupõe uma aprendizagem específica mais ou
menos longa, segundo o grau de formalização do método. De
qualquer forma, é preciso uma prática sustentada por uma
boa formação teórica, sem a qual será impossível atribuir um
sentido às operações efectuadas.
e Os investigadores recorrem cada vez mais a programas infor-
máticos, tanto na aplicação de métodos qualitativos, como a
análise estrutural, como na execução de métodos quantitativos.
Os programas informáticos podem auxiliar o investigador em
várias tarefas. Algumas, relativamente simples, como, por exem-
plo, identificar palavras e localizá-las no seu contexto, deslocar
excertos, compará-los por justaposição, podem ser realizadas
com um bom domínio de um simples programa de tratamento
de texto. Mas hoje em dia existem aplicações informáticas con-
cebidas especificamente para a análise de conteúdo capazes de
múltiplas tarefas, como associar excertos de textos a categorias
escolhidas pelo investigador, assinalar e calcular ocorrências
e co-ocorrências e cruzar informações. Muito flexíveis, estes
programas podem apoiar verdadeiramente a investigação, em
especial no âmbito da análise estrutural ou da teoria enraizada
(ver Ch. Lejeune, «Montrer, calculer, explorer, analyser. Ce que
Pinformatique fait [faire] à "analyse qualitative», Recherches
qualitatives, hors-série, 9, 2010, pp. 15-32). Softwares como
Alceste ou Iramutec, este de acesso livre e gratuito, baseiam-se
na frequência e na co-ocorrência de unidades sintácticas para
mostrar estruturas de vocabulário. Outros softwares foram
concebidos para auxiliar o investigador no seu trabalho de
categorização, de codificação do texto e de análise em fases
posteriores. Entre os softwares mais conhecidos, podemos citar
Atlas TI, NVivo e MaxQDA bem como Weft-QDA, que é livre,
gratuito e de utilização bastante simples. Cassandra é outro
software livre e gratuito que oferece funcionalidades para a
codificação semiautomática de textos ou mesmo de análises
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 331

colectivas (ver Ch. Lejeune, «Au fil de Pinterprétation. Lapport


des registres aux logiciels d'analyse qualitative», Revue suisse
de sociologie, 34/3], 2008, pp. 593-603).
e Por mais importantes que sejam, pela rapidez, pelo rigor e pela
flexibilidade que permitem, os softwares não vão raciocinar pelo
investigador, nem definirão por ele as categorias pertinentes a
ter em conta. Por conseguinte, as diferentes operações devem
ser cuidadosamente planeadas.
e Posto isto, não será exagerado afirmar que estes softwares
estão a transformar profundamente a análise de conteúdo, de
modo que valerá a pena informar-se e, se necessário, frequentar
formações especializadas.

h) Algumas referências bibliográficas


BARDIN, L. (1993), V' Analyse de contenu, Paris, PUF.
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332 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

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et sociologie, Bruxelas, Facultés Universitaires Saint-Louis.

4.3 Limites e complementaridade dos métodos


específicos: o exemplo da field research
Concluiremos esta apresentação com algumas observações
importantes sobre os limites e a complementaridade dos métodos
específicos, quer sejam de recolha, quer de análise das informações.
Lembremos, em primeiro lugar, que nenhum dispositivo metodo-
lógico pode ser aplicado de forma mecânica. A preocupação com
o rigor não pode conduzir à rigidez na aplicação dos métodos.
Para cada investigação, os métodos devem ser escolhidos e utili-
zados com flexibilidade, em função dos seus objectivos próprios,
do seu modelo de análise e das suas hipóteses. Por conseguinte,
não existe um método ideal que seja, em si mesmo, superior a
todos os outros. Cada um pode prestar os serviços esperados,
na condição de ter sido sensatamente escolhido, de ser aplicado
com rigor, mas sem rigidez e de o investigador ser capaz de medir
os seus limites e a sua validade. Em contrapartida, o dispositivo
metodológico mais sofisticado será inútil se o investigador o
aplicar sem discernimento crítico ou sem saber claramente o que
procura compreender melhor.
Como já lembrámos atrás, a distinção entre os métodos de
recolha e os métodos de análise das informações nem sempre é
2
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 333

nítida. Mas, numa perspectiva ainda mais alargada, vemos que


a construção teórica e o trabalho empírico não se seguem for-
çosamente na ordem cronológica e sequencial, em particular na
observação antropológica e na entrevista compreensiva. É cada
vez mais evidente que o processo de investigação não consiste
em aplicar um conjunto de receitas precisas, numa ordem prede-
terminada, mas sim em inventar, em pôr em prática e dominar
um dispositivo original que beneficie da experiência anterior dos
investigadores e responda a determinadas exigências de elabora-
ção. Tal procedimento só pode aprender-se com a prática, porque
depende essencialmente da experiência.
Por fim, observa-se que o verdadeiro rigor não é sinónimo de
formalismo técnico. O rigor não incide primordialmente sobre os
pormenores da aplicação de cada procedimento utilizado, mas sim
sobre a coerência de conjunto do processo de investigação e o
modo como ele realiza exigências epistemológicas bem compreendi-
das. Por conseguinte, é errado acreditar que as investigações mais
rigorosas são as que recorrem a métodos muito formalizados, tal
como é falso pensar que um investigador só pode ser rigoroso
em detrimento da sua imaginação.
Pelo contrário, em certas alturas, um procedimento construído
de forma clara e estruturada permite deixar correr a imaginação
e o engenho sem se desviar do caminho e sem soçobrar na incoe-
rência. O investigador terá melhores condições para correr o risco
de «errar» um pouco se tiver sempre um fio condutor para se
agarrar. De igual modo, como já vimos, uma certa formalização
nas exigências metodológicas (em especial na construção de uma
amostra, quer esta seja representativa ou fundamentada, ou na
utilização de uma grelha de análise estruturada) obriga o investi-
gador a pôr-se em posição de ser surpreendido pelos seus dados,
porque estes o obrigam a ir investigar onde talvez não teria ido
espontaneamente.
Um bom exemplo de recurso frutuoso à imaginação do inves-
tigador, da necessária coerência do conjunto do procedimento
334 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

de investigação e da complementaridade dos métodos é a field


research (ou estudo no terreno), que consiste em estudar as situa-
ções concretas no seu contexto real.
Utilizada pelos antropólogos e pelos sociólogos, a field
research emprega uma pluralidade de métodos. Combina geral-
mente a observação participante e as entrevistas semidirectivas
às quais se junta muitas vezes a análise de documentos. É no
decurso da própria investigação que o investigador decide
recorrer a um ou outro destes métodos, uma vez que não está
estabelecido à partida nenhum protocolo definitivo de investi-
gação. Essencialmente indutivo, o procedimento nada tem de
linear. A field research decorre de um pragmatismo metodológico
cujo fulcro é a iniciativa do próprio investigador e cujo lema
é a flexibilidade.
As dificuldades encontradas no decurso de semelhante procedi-
mento são múltiplas e omnipresentes. O investigador tem de estar
a decidir constantemente quando, onde, o quê e quem observar
ou entrevistar. Tem de estar a escolher continuamente os períodos,
os locais, os comportamentos e as pessoas a estudar. Confronta-se
sem cessar com problemas de amostragem. Por exemplo, como
fazer para seleccionar uma amostra de jovens delinquentes quando
não existe nenhuma lista que agrupe esta população? Também
tem de estar sempre a negociar e a renegociar a sua entrada
no terreno. Por conseguinte, um plano de investigação pode ser
continuamente adaptado. Uma vez no terreno, para observar ou
para entrevistar, o investigador tem de estar sempre a adaptar a
sua atitude (a sua idade, o sexo, a etnia e a psicologia influenciam
os papéis que ele deve assumir em cada etapa do procedimento).
Também deve reflectir nos tipos de dados a observar, a anotar
e a conservar para a análise. Não há regras nesta matéria. Tudo
depende da experiência e da apreciação do investigador. Este deve,
por conseguinte, ser iniciado em numerosos métodos que tem de
relativizar, pesando uns e outros. Esta pluralidade metodológica
permite a triangulação de que falámos atrás.
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 335

A sua abordagem deve manter-se flexível e ele tem de estar


sempre a ter em consideração que faz parte integrante da situação
observada: reage mais de uma determinada maneira do que de
outra, comete erros, é mais ou menos afortunado, etc. Incansavel-
mente, o field researcher é obrigado a reflectir no impacto do seu
papel no andamento da investigação, sem com isso negligenciar a
sua pergunta de partida e as suas hipóteses (R. G. Burgess [1984],
In the Field. An Introduction to Field Research, Londres e Nova
Iorque, Routledge).

4.4 Um cenário de investigação não linear


À semelhança da field research, certos estudos não seguem rigo-
rosamente o encadeamento de etapas que foi apresentado até aqui.
As hipóteses e mesmo as perguntas são susceptíveis de evoluírem
constantemente durante o trabalho no terreno. Em contrapartida,
o trabalho empírico será regularmente reorientado em função
de aprofundamentos sucessivos da pergunta da investigação, da
problemática e das hipóteses. Iterativo, o processo implica um
diálogo e vaivéns permanentes entre teoria e empirismo, mas
também entre construção e intuição, que estão mais imbricadas.
Apesar de dotado de circuitos de retroacção, o esquema linear das
etapas da investigação representa mal esse processo, que poderia
assumir uma forma circular:

Plano de investigação
ae ou operacionalização

Hipótese e
Observações
conceptualização
ao
Análise de
informaçõe
s
336 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

De certa forma, tudo se passa como se o conjunto do dispo-


sitivo em sete etapas que distinguimos fosse percorrido várias
vezes, mas de uma maneira menos formalizada e sequencial do
que numa investigação que adopta um procedimento dedutivo.
Para concluir, recordamos que a maior parte das investigações
concretas comporta uma parte de dedução e outra de indução, em
proporções muito variáveis. Por consequência, não se pode opor
radicalmente e de modo simplista o procedimento dedutivo ao
procedimento indutivo, assim como não se deve opor de forma
radical e simplista a explicação dos fenómenos sociais à com-
preensão do sentido que os actores atribuem às suas experiências.
Comprovam-no as duas aplicações desta obra. Estes dois proce-
dimentos devem ser encarados sobretudo como complementares,
tal como recomendado por vários autores (nomeadamente, M.-N.
Schurmans [2006], Expliquer, interpréter, comprendre. Le paysage
épistémologique des sciences sociales, Universidade de Genebra).

4.5 Exemplos de investigações que aplicam


os métodos apresentados
Bajos, N. e Bozon, M., dir. (2008), Enquête sur la sexualité en France,
Paris, La Découverte (inquérito por questionário — análise estatís-
tica de dados).
BeckER, H. S. (reed. 1985) (1963), Outsiders. Études de sociologie de
la déviance, Paris, Éditions A.-M. Métailié (field research).
BERNSTEIN, B. (1975), Langage et classes sociales. Codes sociolinguisti-
ques et contrôle social, Paris, Éditions de Minuit (análise quantitativa
de conteúdo).
BouRDIEU, P. (1979), La distinction. Critique sociale du jugement,
Paris, Éditions de Minuit (inquérito por questionário — análise
estatística de dados).
BOURDIEU, P. (dir.) (1993), La Misêre du monde. Paris, Seuil (entrevista
semidirectiva).
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 337

CastTELLS, M. (1963), La question urbaine, Paris, François Maspero


(recolha de dados existentes — análise estatística de dados — aná-
lise secundária).
CROZIER, M. (1963), Le Phénomêne bureaucratique, Paris, Seuil (entre-
vista semidirectiva — observação participante — análise estatística
de dados — análise secundária).
DARMON, M. (2013), Les Classes préparatoires. La fabrique d'une
jeunesse dominante, Paris, La Découverte (observação directa não
participante).
DurkHEIM, E. (reed. 1983) (1930), Le suicide, Paris, PUF, col. «Qua-
drige» (análise estatística de dados secundários).
GARrcIA, S. e OLLER, À.-C. (2015), Réaprendre à lire. De la querelle
des méthodes à Vaction pédagogique, Paris, Seuil (observação par-
ticipante).
GOFFMAN, E. (reed. 1968) (1961), Asiles. Étude sur la condition sociale
des malades mentaux, Paris, Éditions de Minuit (observação par-
ticipante).
GRANOVETTER, M. (1997), Getting a job. A Study of Contacts and Car-
rers, Cambridge, Harvard University Press (análise de rede social).
Jounin, N. (2014), Voyage de classes, Paris, La Découverte (field research).
LaHIRE, B. (1995) Tableaux de familles, Paris, Seuil/Gallimard (entrevistas).
LaHirE, B. (2002), Portraits sociologiques, Dispositions et variations
individuelles, Paris, Nathan (entrevistas — estudos de caso).
LaHirE, B. (2004), La Culture des individus. Dissonances culturelles e
distinction de soi, Paris, La Découverte (análise estatística de dados
secundários — entrevistas).
LAURENT, P.-). (2010), Beautés imaginaires. Anthropologie du corps et
de la parenté, Lovaina-a-Nova. Academia-Bruylant (field research).
Lévi-STRAUSS, Cl. (1964), Le Cru et le cuit, Paris, Plon (análise estru-
tural de conteúdo).
LipsET, S. M. (reed. 1963) (1960), L'Homme et la politique, Paris,
Seuil (recolha de dados existentes — análise estatística de dados —
análise secundária).
Mus, C. W. (reed. 1966) (1951), Les Cols blancs. Essai sur les classes
moyennes américaines, Paris, François Maspero (entrevista — análise
de conteúdo).
338 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Morin, E. (1969), La Rumeur d'Orléans, Paris, Seuil (observação —


entrevista semidirectiva).
NizET, J., e HiERNAUX, J.-P. (1984), Violence et ennui: malaise du quo-
tidien dans les relations professeurs-élêves, Paris, PUF, col. «Le Socio-
logue» (entrevista semidirectiva — análise estrutural de conteúdo).
SAINSAULIEU, R. (1977), L'Identité au travail, Paris, Presses de la Fon-
dation Nationale des Sciences Politiques (observação participante
— inquérito por questionário).
TouRraInE, A. (1966), La Conscience ouvriêre, Paris, Seuil (inquérito
por questionário — análise estatística de dados).
VAN Zanten, A. (2001), V'École de la péripbérie, Paris, PUF (entrevista
semidirectiva — observação).
WALLRAFF, G. (1986), Tête de Turc, Paris, La Découverte (observação
participante).
A ANÁLISE DAS INFORMAÇÕES 339
SÉTIMA ETAPA

AS CONCLUSÕES
AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO

Etapa 1 — A pergunta de partida

Etapa 2 — A exploração

»
P| As entrevistas
As leituras
< exploratórias

Etapa 3 — A problemática

Etapa 4 — A construção do modelo de análise


Gem

Etapa S — A observação
Gem

Etapa 6 — A análise das informações


4—

Etapa 7 — As conclusões
1. OBJECTIVOS
A conclusão de um trabalho é uma das partes que os leitores
costumam ler em primeiro lugar. Graças a essa leitura de algumas
páginas de conclusão, o leitor poderá, com efeito, ficar com uma
ideia do interesse que a investigação tem para si, sem ter de ler o
conjunto do relatório. A partir deste rápido diagnóstico decidirá
ler ou não o relatório inteiro ou, eventualmente, algumas das suas
partes. Convém, portanto, redigir a conclusão com muito cuidado
e fazer aparecer nela as informações úteis aos potenciais leitores.
A conclusão de um trabalho de investigação social compreenderá
geralmente três partes: primeiro, uma retrospectiva das grandes
linhas do procedimento que foi seguido; depois, uma apresentação
pormenorizada dos contributos para o conhecimento originados
pelo trabalho e, por fim, considerações de ordem prática.
É este tipo de esquema que está geralmente em vigor nas reu-
niões científicas (colóquios, conferências, workshops...).

2. RETROSPECTIVA DAS GRANDES LINHAS


DO PROCEDIMENTO
Esta retrospectiva deve ser sucinta e ir directa ao assunto.
Incidirá sobre os seguintes pontos:
— A pergunta de investigação, ou seja, a pergunta de partida
que, muitas vezes, no término da fase exploratória, já terá sido
reformulada e modificada;
— À problemática, as características principais do modelo de
análise e, em particular, as hipóteses de pesquisa;
— O campo de observação, os métodos utilizados e as observações
efectuadas;
344 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

— À comparação entre os resultados hipoteticamente esperados


e os observados, bem como a maneira como estas diferenças
foram interpretadas.

3. NOVOS CONTRIBUTOS PARA


OS CONHECIMENTOS
Um trabalho de investigação social produz dois tipos de conhe-
cimentos: novos conhecimentos relativos ao objecto de análise e
novos conhecimentos teóricos.

3.1 Novos conhecimentos relativos ao objecto de


análise
Estes novos conhecimentos incidem sobre o fenómeno estudado
enquanto tal, como, apenas para recordar alguns dos exemplos
citados, a taxa de suicídio no seio de uma população, o insucesso
escolar, as relações de poder no trabalho em rede, os comportamen-
tos perante o risco de infecção pelo VIH ou a participação numa
acção colectiva. Trata-se de mostrar em que é que a investigação
permitiu conhecer melhor este fenómeno. Estes novos contributos
têm uma dupla natureza.
— Por um lado, juntam-se aos conhecimentos anteriores que
dizem respeito ao objecto de análise. Uma investigação sobre
o desemprego traz forçosamente novas informações sobre este
fenómeno. A monografia (estudo minucioso de um objecto limi-
tado) de uma organização contribui para aumentar o campo
das informações empíricas que interessam nomeadamente à
sociologia e à psicossociologia das organizações.
— Por outro lado, matizam, corrigem e, por vezes, pôem mesmo
em causa os conhecimentos anteriores. Todo o contributo
para o conhecimento em ciências sociais é forçosamente
AS CONCLUSÕES 345

correctivo, na medida em que os objectos de conhecimento


(sociedades globais, organizações, culturas, grupos, etc.)
fazem parte de um ambiente do qual temos sempre um certo
conhecimento, por grosseiro e espontâneo que seja. Este é,
muito claramente, o caso do contributo de Durkheim para
o suicídio. Com efeito, a sua contribuição não se limita a
fornecer conhecimentos suplementares (estatísticos, nomeada-
mente), mas põe em causa a concepção do suicídio enquanto
fenómeno estritamente individual e corrige a imagem anterior
deste fenómeno.

Os novos conhecimentos relativos ao objecto são, assim, os


que podem pôr-se em evidência ao responder às duas perguntas
seguintes:

— O que sei a mais sobre o objecto de análise?


— O que sei de novo sobre este objecto?

Quanto mais o investigador se distancia dos preconceitos do


conhecimento corrente e se preocupa com a problemática, mais
probabilidades tem a sua contribuição de novos conhecimentos
relativos ao objecto de ser de tipo correctivo.

3.2 Novos conhecimentos teóricos


Para aprofundar o seu conhecimento de um domínio concreto
da vida social, o investigador definiu uma problemática e elaborou
um modelo de análise composto por conceitos e hipóteses. Ao
longo do seu trabalho, não só este domínio concreto foi sendo
progressivamente revelado, como, ao mesmo tempo, foi posta à
prova a pertinência da problemática e do modelo de análise. Por
conseguinte, um trabalho de investigação deve, normalmente,
permitir também avaliar a problemática e o modelo de análise
que o fundamentaram.
346 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

A possibilidade de uma investigação social conduzir a novos


conhecimentos teóricos está, é claro, ligada à formação teórica
e à experiência do investigador. O investigador principiante não
deve, portanto, ter demasiadas ilusões a este respeito. No entanto,
não nos colocamos aqui ao nível das descobertas teóricas inéditas
e de grande interesse para o conjunto da comunidade científica,
mas, muito mais simplesmente, ao da descoberta de perspectivas
teóricas novas do ponto de vista do investigador que efectuou o
trabalho, ainda que estas sejam amplamente conhecidas noutros
contextos. À nossa perspectiva continua a ser uma perspectiva
de formação.
Com efeito, qualquer investigador pode fazer progredir a
sua capacidade de análise dos fenómenos sociais, avaliando, a
posteriori, o seu próprio trabalho teórico. Esta avaliação toma
geralmente duas direcções complementares.
— À primeira, a montante do modelo de análise, incide sobre a
pertinência da problemática. Permitiu esta revelar facetas pouco
conhecidas do fenómeno estudado? Tornou possível fornecer
novos conhecimentos empíricos de tipo correctivo? Não terá
encaminhado o trabalho na via de proposições e de análises
banais, que mais não fazem do que repetir o que já se sabia?
— A segunda direcção, a jusante do modelo de análise, incide
sobre a sua operacionalização. Terá o modelo sido construído
com suficiente coerência, de maneira que as análises possam ter
sido conduzidas de forma clara e ordenada? Eram as hipóteses,
os conceitos e os indicadores bem escolhidos e suficientemente
precisos?

A partir deste exame crítico podem ser formuladas novas pers-


pectivas teóricas, tendo em conta o seu interesse para investigações
posteriores. Ao nível da problemática, poderemos, nomeadamente,
propor outros pontos de vista, outras formas complementares de
questionar que temos razões para crer que sejam mais esclare-
cedoras ou adequadas para a análise de uma esfera mais ampla
AS CONCLUSÕES 347

de fenómenos. Ao nível da operacionalização, poderemos sugerir


rever a formulação de uma hipótese, definir mais precisamente
um conceito ou afinar alguns indicadores.
Os progressos teóricos procedentes desta dupla avaliação
apresentam a vantagem de serem construídos com referência
directa a um trabalho empírico. Quanto mais importante for
este fundamento empírico, maior justificação lhes conferirá. De
qualquer forma, é indispensável indicar claramente em que se
baseiam as novas ideias propostas no fim do trabalho. É particu-
larmente importante distinguir as que se apoiam directamente nos
ensinamentos da investigação das que ocorrem ao investigador,
sem poderem ser de imediato relacionadas com esse trabalho
empírico.

4. PERSPECTIVAS PRÁTICAS
Qualquer investigador deseja que o seu trabalho sirva para
alguma coisa. Muitas vezes iniciou-o mesmo ou a pedido de
terceiros, como no caso das duas aplicações do procedimento
que retomaremos posteriormente. Por vezes, ele próprio tem
responsabilidades (numa instituição ou associação) ou milita
num movimento social e deseja enquadrar melhor os limites do
seu compromisso ou do seu próprio trabalho social, económico,
cultural ou político.
Muitas vezes, espera-se que os resultados das investigações
em ciências sociais possam traduzir-se directamente em decisões
e acções. Isto só é possível quando o estudo levado a cabo é de
carácter muito técnico, como, por exemplo, os estudos de mercado.
Mas, regra geral, as relações entre investigação e acção não são
assim tão imediatas.
As conclusões de uma investigação raramente conduzem a
aplicações práticas claras e indiscutíveis, ou a aplicações concretas
(como seria o caso das investigações em matéria de tecnologia).
348 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

É, portanto, necessário que o investigador e os seus eventuais


patrocinadores moderem os seus ímpetos e que o primeiro espe-
cifique bem as ligações entre as perspectivas práticas e os elemen-
tos de análise em que supostamente se inspiram. Tratar-se-á de
consequências práticas claramente implicadas por determinados
elementos de análise? Se a resposta é positiva, quais são esses
elementos de análise e em que é que a implicação é indiscutível?
Tratar-se-á mais simplesmente de pistas de acção que as análises
sugerem, sem as induzirem de forma automática e incontestável?
Em suma, não podemos ir além do que a investigação sugere sem
indicar claramente essa mudança de registo.
Entre a análise e a decisão prática não é possível, em particular,
contornar a questão do juízo moral e da responsabilidade. A análise
sociológica pode esclarecer os processos de funcionamento e de
mudança dos conjuntos sociais (por exemplo, das organizações).
Porém, não nos permite retirar dela consequências práticas sem
passar explicitamente pela mediação de um julgamento e de uma
tomada de decisão de ordem normativa.
No entanto, a investigação pode contribuir para definir os
desafios normativos de uma situação ou de um problema, bem
como as margens de manobra dos actores em relação aos cons-
trangimentos e, portanto, a sua responsabilidade.
Quando o trabalho de um investigador contribui para enrique-
cer e aprofundar as problemáticas e os modelos de análise, não
é apenas o conhecimento de um objecto preciso que progride; é,
mais profundamente, o campo do concebível que se modifica. Em
poucas décadas os sociólogos modificaram consideravelmente a
maneira de estudar muitas questões, como o sucesso e o insucesso
escolar. Sem dúvida, foram muito poucas as investigações sobre
essas questões que tiveram impacto directo e visível sobre o que
se passava nas escolas. Contudo, esse trabalho não deixou por
isso de contribuir amplamente para enriquecer os debates actuais
sobre a escola e para modificar profundamente a visão que os
responsáveis e os docentes tinham do problema e das suas funções
AS CONCLUSÕES 349

e, por conseguinte, de transformar, directa ou indirectamente, os


quadros institucionais e as próprias práticas. Por conseguinte,
quando por vezes um trabalho de investigação tem impacto sobre
a sociedade e as práticas sociais, na maior parte dos casos é por,
em conjunto com outros, fazer parte de um processo colectivo
complexo.
DUAS APLICAÇÕES
DO PROCEDIMENTO
3 Does À )
- e 4 qa =
L : 4 A
1. OBJECTIVOS
À primeira aplicação diz respeito à compreensão de uma atitude,
a relação com o corpo relativamente aos cuidados corporais; a
segunda aborda a explicação dos comportamentos, dos modos de
adaptação ao risco de infecção pelo vírus da sida nas relações
heterossexuais.
A problemática e o modelo de análise da primeira aplicação
são construídos a partir de uma abordagem teórica central, a da
socialização, enquanto os da segunda combinam várias abordagens.
Também os métodos são diferentes: no primeiro caso, entrevis-
tas exploratórias seguidas de um questionário, cujas respostas
foram tratadas quantitativamente; no segundo caso, a entrevista
semiestruturada e a análise de conteúdo. Estas diferenças tornam
a justaposição das duas aplicações particularmente interessante.
As duas aplicações ilustram como, na realidade, cada investi-
gação aplica soluções metodológicas específicas, tendo em conta
as condições e os objectivos do trabalho. Estas soluções nunca
correspondem exactamente ao procedimento tal como foi exposto
«teoricamente», sem que se transgridam alguns dos seus princí-
pios gerais.

2. APLICAÇÃO N.º 1: A RELAÇÃO COM


O CORPO NOS CUIDADOS
Este primeiro exemplo inscreve-se numa longa história. Em
2004, o tema de um seminário de iniciação à investigação, des-
tinado a estudantes de Sociologia do segundo ciclo universitário,
foi: «A relação com o corpo nos cuidados». Em 2007, este tema
foi retomado por uma equipa multidisciplinar composta por dois
354 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

sociólogos, um antropólogo e uma enfermeira responsável pela


formação de estudantes em Cuidados de Enfermagem e Obstetrícia
e pela formação de auxiliares de enfermagem. A equipa partiu do
material produzido no seminário — fichas de leitura, entrevistas
exploratórias, pistas de problematização, primeira versão e teste
de um questionário padrão, base de dados explorável — e criou
um dispositivo de inquérito mais elaborado com o objectivo de
aprofundar os resultados iniciais. Este dispositivo compreende
duas vagas sucessivas, a primeira, junto de estudantes de Cuidados
de Enfermagem e Obstetrícia do primeiro ano, realizada no ano
lectivo 2007-2008 e, a segunda, junto de estudantes de Cuidados
de Enfermagem e Obstetrícia do terceiro ano, realizada no ano
lectivo 2009-2010.
Os desenvolvimentos seguintes remetem tanto para a investiga-
ção inicial, levada a cabo no contexto do seminário de investigação,
como para a sua continuação posterior, parcialmente publicada na
obra de J. Marquet, N. Marquis e N. Hubert (dir.) Corps soignant,
corps soigné. Les soins infirmiers: de la formation à la profession
(Lovaina-a-Nova, Académia-l Harmattan, 2013), nomeadamente,
nos artigos «La cartographie du corps» (N. Hubert, J. Marquet,
N. Marquis, A.-M. Vuillemenot, pp. 59-83) e «Soigner le proche
et Pinconnu: rôles familiaux et rôles professionnels» (J. Marquet,
pp. 171-206). O leitor que pretenda desenvolvimentos mais vastos
sobre o assunto poderá consultar estes artigos. Por questões de
ordem pedagógica, a história desta investigação composta por
vários episódios foi simplificada.

2.1 A pergunta de partida


Este projecto nasceu no seguimento de conversas com pro-
fessores e profissionais dedicados à formação de estudantes em
Cuidados de Enfermagem e Obstetrícia, e que faziam parte das
suas preocupações: muitos estudantes vivem o seu primeiro estágio
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 355

como um verdadeiro choque com a realidade. O confronto com a


nudez dos pacientes é uma verdadeira provação. Alguns só muito
dificilmente, ou nunca, a conseguem ultrapassar. Tendencialmente,
os testemunhos de rapazes e raparigas são muito diferentes e
remetem para vivências distintas. Foram estas preocupações que
levaram estes professores e profissionais e solicitar-nos que tra-
balhássemos a questão da relação com o corpo nos cuidados,
envolvendo os próprios estudantes no processo.
O assunto foi proposto aos alunos do primeiro ano do segundo
ciclo de Sociologia, no âmbito de um seminário de investigação.
Na sua formulação provisória, a pergunta de partida era: «Quais
os factores que determinam a relação com o corpo nos cuida-
dos?» A expressão «relação com o corpo» foi imediatamente
submetida a discussão. Enquanto a questão dos professores e
dos profissionais da formação e da saúde destacava explicita-
mente a postura dos seus estudantes, aprendizes de prestadores
de cuidados, os estudantes de Sociologia adoptavam constante-
mente posturas diferentes, ora a do cuidador, a do paciente ou
a dos seus familiares. Deste modo, questionaram imediatamente
a pertinência da fórmula «relação com o corpo». Antes de nos
preocuparmos com os factores que determinam a relação com o
corpo nos cuidados, era preciso clarificar esta fórmula. À etapa
seguinte ajudar-nos-ia.

2.2 A exploração

a) As leituras
A pesquisa de literatura foi orientada pelas palavras-chave:
«corpo» e «cuidados corporais». Num primeiro momento,
procurou-se clarificar a fórmula «relação com o corpo», retirar-
lhe o seu carácter espontâneo e transformá-la num conceito.
Apesar de nos limitarmos aos textos sociológicos, a literatura
356 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

dedicada ao corpo, o seu lugar na sociedade, as suas representa-


ções, práticas e costumes sociais era incomensurável. Tínhamos de
proceder a uma selecção criteriosa. No âmbito do seminário de
investigação, num primeiro momento, decidimos concentrar-nos
sobre as obras de síntese mais recentes e, num segundo tempo,
partir delas para as referências mais mobilizadas. Apesar desta
limitação, a quantidade de material continuava a ser demasiado
grande. Felizmente, não se pretendia, de modo algum, fazer uma
síntese destes trabalhos, mas apenas evoluir para uma construção
conceptual. Neste processo, o papel do conceito «cultura somá-
tica» de L. Boltanski («Les usages sociaux du corps», Annales, 1,
1971, pp. 205-233) foi crucial. A cultura somática de um grupo
específico é de alguma forma a relação com o corpo, legítima e
valorizada por este, ou seja, o sistema de regras que regula as
condutas relativas ao corpo no seio do grupo. Baseando-nos nesta
perspectiva, mas acrescentando-lhe uma inflexão interaccionista, na
nossa opinião mais capaz de perceber o que está em jogo numa
relação de cuidados, a relação com o corpo foi progressivamente
definida como um sistema de interacção e de articulação entre
um conjunto de práticas corporais e os significados que lhes são
atribuídos. Tratou-se, portanto, de perceber as práticas corporais,
a ideia que cada um tem do seu corpo, do corpo dos outros, das
práticas sobre o corpo e dos efeitos destas em termos de posi-
cionamento social.
As leituras que articulavam as duas palavras-chave privilegiadas
— «corpo» e «saúde» — podem ser divididas em três categorias:
as que abordam a medicina numa perspectiva socioantropológica
comparatista e sublinham que cada modo de apreender o corpo
remete infalivelmente para uma concepção do ser humano; as
que recorrendo à sociologia das organizações e à sociologia das
profissões sublinham vivamente a multiplicidade, a diversidade
e a especificidade das profissões relacionadas com os cuidados
corporais; e, por fim, as de inspiração essencialmente feminista,
que se interrogam sobre as continuidades e as descontinuidades
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 357

entre o care (em português «cuidar») familiar e o care profissio-


nal. Cada uma destas perspectivas aborda tipos de determinantes
diferentes da relação com o corpo nos cuidados: os modelos
culturais, a socialização profissional e as condições de exercício
de uma profissão, a socialização familiar e o género.

b) As entrevistas exploratórias
A par das leituras, os estudantes realizaram também entrevistas
exploratórias semidirectivas junto de profissionais de cuidados
em sentido lato (na sua maioria enfermeiros, mas também alguns
médicos), por um lado, e pacientes a necessitarem de cuidados, por
outro. Nos dois casos, centraram-se na interacção entre pacientes
e cuidadores e na observação da relação de cuidados e em que
medida era esta susceptível de revelar a relação com o corpo nos
diferentes intervenientes.
Para os profissionais de saúde, as principais questões giravam
em torno da sua forma de lidar com os pacientes e com o corpo
destes, mantendo-se atentos às evoluções ao longo da sua própria
carreira e às experiências marcantes por que passaram.
No que respeita aos determinantes da relação com o corpo
nos cuidados, as principais conclusões das entrevistas foram as
seguintes:

— Os profissionais estão conscientes de que apreendem de


forma diferente o corpo dos pacientes em função do sexo, da
geração, da classe social, da religião e da cultura dos indi-
víduos;
— À interacção deve ser tida em conta, tanto nas suas componen-
tes objectivas (idade, sexo, classe social, religião, cultura... das
duas pessoas em interacção) como na sua dinâmica («o pudor,
o embaraço, o mal-estar são contagiantes»);
— A formação e a experiência profissional são susceptíveis de
transformar a relação com o corpo dos cuidadores, a relação
com o seu próprio corpo e com o dos pacientes;
358 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

x
— Algumas experiências anteriores ou paralelas à socialização
profissional, no contexto familiar (nudez) ou nos momentos
de lazer (duches colectivos, serviços...) também têm influência;
— As condições objectivas no âmbito do exercício dos cuidados
determinam, em parte, as margens de manobra dos intervenien-
tes: seja em que local for (dentro ou fora da instituição), sejam
quais forem os serviços, as profissões de saúde e sobretudo as
especialidades dos profissionais, a relação com o corpo pode
ser muito variável;
— À natureza dos actos praticados muda a relação com o corpo;
neste sentido, é preciso distinguir os cuidados de higiene dos
actos médicos;
— Todos os prestadores de cuidados com quem falámos referem
uma distinção entre os cuidados prestados a um próximo e os
cuidados prestados a um desconhecido.

Além disso, foram muitos os que referiram como experiência


marcante a primeira vez que tiveram de fazer a higiene de um
paciente do sexo masculino; ter de lidar com uma eventual erecção
surgiu como o principal receio.
Para os pacientes, a entrevista baseava-se nas suas experiências
recentes com os diferentes profissionais de saúde, abordadas ini-
cialmente de uma forma global e depois com particular destaque
para a gestão do pudor e para as experiências marcantes.
Os elementos que sobressaíram nas entrevistas com os pacientes
foram os seguintes:
— Os pacientes opõem a relação de cuidado ideal à relação de
cuidado mal vivida. A primeira é feita de atenção e competência,
é personalizada e existe uma preocupação em explicar o que
se está a passar. A segunda caracteriza-se pela falta de atenção
(profissionais distantes que falam entre si, médicos frios) e de
personalização («ser reconhecido apenas pela doença», «ser um
objecto», «ser apenas um número de quarto», «ficar reduzido a
um corpo sem intimidade»), pelo sentimento de incompreensão
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 359

e por vezes até de preocupação, alimentada pelas contradições


entre os diferentes intervenientes.
— À questão da gestão do pudor é importante, mas deve ser
articulada com as da dependência, do sofrimento e dos actos
profissionais a praticar. Várias pessoas referem, por exemplo,
que a dor relega as preocupações com a dependência e com o
pudor para segundo plano.
— Vários pacientes dizem-se co-responsáveis e, por conseguinte,
parceiros na gestão do pudor.
— Na maior parte do tempo, quando se trata de reconhecer o seu
próprio pudor, os pacientes fazem-no referindo-se à sua história
familiar (família «muito católica», «reservada»), enquanto a
ausência de pudor é remetida para a profissão dos intervenientes
(«é o trabalho deles»).
— Muitos pacientes dizem ter consciência de que o âmbito dos
cuidados de saúde predetermina a margem de liberdade dos
intervenientes e que o que é possível, por exemplo, nos cuidados
domiciliares já não o será num serviço de urgência.
— Muitas vezes, embora o sexo dos médicos pareça indiferente,
sobretudo devido à pouca proximidade, vários pacientes
apontam a sua preferência por enfermeiras, em detrimento
dos enfermeiros, chegando a naturalizar as «competências
femininas» (atenção, carinho, delicadeza, gentileza).

Tanto as leituras como as entrevistas revelaram muitas pistas


de análise. Neste aspecto, a fase exploratória desempenhou perfei-
tamente o seu papel. Evidentemente, não poderemos desenvolver
aqui todas essas pistas.

2.3 A problemática
a) Fazer o balanço
Como vimos, as leituras permitiram identificar vários registos
de potenciais determinantes da relação com o corpo nos cuidados:
360 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

os modelos culturais, as condições em que o trabalho é exercido,


a socialização profissional, a socialização familiar e a constru-
ção de género. As entrevistas exploratórias não desclassificam
nenhum destes registos explicativos; muito pelo contrário, o que
trazem são argumentos que testemunham a sua pertinência. Todas
estas perspectivas são interessantes só por si, mas não é mini-
mamente realista querer conduzir uma investigação que atribua
a todas o mesmo grau de importância, sob pena de nos disper-
sarmos e de não produzirmos nenhum contributo significativo
para nenhuma delas. Não significa isto que seja absolutamente
necessário manter uma, abandonando completamente as outras.
Assim, no mínimo, podemos prever algumas perguntas sobre a
nacionalidade e a religião dos entrevistados e dos seus pais, o
que mais tarde permitirá, ainda que modestamente, reconsiderar
hipóteses alternativas. Isto não impede a necessidade de definir
a abordagem preferencial. Voltemos às opções tomadas para o
inquérito de 2007-2008.

b) Conceber uma problemática


Tendo a investigação a sua origem nas questões de docentes
e profissionais da formação e da saúde, confrontados com as
dificuldades dos seus estudantes do primeiro ano de Cuidados
de Enfermagem e Obstetrícia, os investigadores começaram por
efectuar escolhas estratégicas, procurando adoptar uma problemá-
tica directamente vantajosa para os formadores e as formadoras.
Assim, decidiu-se que o estudo incidiria apenas sobre os cuidados
de enfermagem e sobre os estudantes, em detrimento do âmbito
das suas intervenções. Sem negar o interesse de tais investigações,
ficavam assim afastadas as comparações interprofissionais ou as
análises quanto a organização ou a dispositivos de saúde.
Finalmente, a escolha recaiu sobre a abordagem pela socia-
lização, em consonância com o papel dos formadores e das
formadoras. Esta escolha permitia interrogar-se simultaneamente
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 361

sobre o historial dos estudantes à sua chegada ao início dos estu-


dos superiores e sobre as transformações operadas pelo ciclo de
formação. Além disso, a questão da construção social de género
articulava-se facilmente com estas questões.
A maior parte dos autores distinguem a socialização primária
e a socialização secundária. A família é a instância de socializa-
ção primária por excelência. Para a maioria dos indivíduos, é o
primeiro lugar de aprendizagem do saber ser e do saber fazer
que lhes permitirá compreender as regras próprias da sociedade
a que pertencem e de aí encontrar o seu lugar. A principal espe-
cificidade da socialização primária, além do facto de vir antes de
todas as outras e de, de alguma forma, se inscrever numa página
em branco, reside no facto de a criança não adoptar uma postura
crítica: o mundo que lhe é apresentado adquire de imediato o
estatuto de uma evidência, é «O» mundo. O questionamento das
normas, das regras, dos valores transmitidos, é tanto menos pro-
vável quanto mais forte for a relação afectiva que liga a criança
aos seus pais. No entanto, nas nossas sociedades, em que outras
instâncias de socialização intervêm muito precocemente junto da
criança, nomeadamente creches e escola, a tendência é que desde
tenra idade se desenvolva uma atitude reflexiva, alimentada pelas
diferentes maneiras de gerir uma mesma questão.
Por seu turno, a socialização pela formação e pelo trabalho
enquadra-se na socialização secundária. Já não se trata de trans-
mitir referências para encontrar o seu lugar no mundo, mas de se
inserir numa esfera específica, a esfera profissional. Consequente-
mente, o saber ser e o saber fazer são mais direccionados e se há
casos em que estão em consonância com o que foi transmitido
anteriormente, também pode acontecer que exista um desfasa-
mento. É aí que reside toda a problemática da implantação de
uma socialização secundária sobre as aquisições anteriores.
No que diz respeito à investigação sobre a relação com o
corpo nos cuidados, as entrevistas exploratórias permitiram
formular a hipótese segundo a qual a primeira vez que se dá
362 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

banho a um paciente revela como que um hiato entre dois sis-


temas normativos: na sociedade ocidental, temos tendência para
associar a nudez à sexualidade e a remeter as duas coisas para
a esfera da vida privada; por ocasião dos cuidados de higiene, o
corpo dos pacientes tem de ser dessexualizado, a nudez é exposta
sem intimidade, o pudor do paciente é relegado para segundo
plano. O choque do primeiro banho ilustra as transformações da
relação com o corpo que o facto de se tornar num profissional
na prestação de cuidados de saúde implica, e é como que uma
condensação do trabalho alcançado pela socialização por meio
da formação.
Primeira instância da socialização, a família é ainda tida como
o lugar privilegiado para a produção do género, para a impreg-
nação de ordem simbólica dos sexos: «o meio familiar constitui a
matriz no interior da qual tem lugar a mais precoce socialização
dos papéis do sexo» (ver Rouyer e C. Zaouche-Gaudron, «La
socialisation des filles et des garçons au sein de la famille: enjeux
pour le développement», in A. Dafflon Novelle, (dir.), Filles-garçons.
Socialisation differenciée?, Grenoble, Presses Universitaires de
Grenoble, 2006, pp. 27-45). Por conseguinte, podemos pensar
que, de modo geral, na família se transmite uma relação com o
corpo diferenciada consoante os sexos.
A problemática foi construída a partir da teoria da socialização.
Ainda que, essencialmente, tenhamos apresentado a socialização
como um processo de transmissão, não podemos negligenciar
o papel do conjunto dos intervenientes, incluindo o da pessoa
socializada. Hoje em dia, já nenhum investigador sério poderá
apresentar o indivíduo socializado como um simples receptáculo
passivo da influência dos socializadores, como os pais, os pro-
fessores e os meios de comunicação. Foi neste sentido que atrás
referimos o desenvolvimento de uma atitude reflexiva na criança.
Também é verdade que esta atitude pode ser difícil de perceber
retrospectivamente por inquérito. O de 2007-2008 dedicou-se a
encontrar traços de uma socialização familiar diferenciada con-
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 363

soante o género, a verificar se, em relação aos cuidados, as manei-


ras de ser e de fazer se reflectiam no espaço familiar e no espaço
profissional e se a hipótese de uma consequência da socialização
familiar seria defensável.
Uma vez escolhida a problemática da socialização, a pergunta
de partida transforma-se em pergunta de investigação: «Em que
medida é que a relação com o corpo, mobilizada na prestação
de cuidados de enfermagem pelos estudantes do primeiro ano de
Cuidados de Enfermagem e Obstetrícia, tem as marcas de uma
socialização familiar diferenciada de acordo com o género?» Por
conseguinte, neste caso, os determinantes da relação com o corpo
nos cuidados remetem para a socialização, e mais especificamente
para a socialização familiar, por outras palavras, para um processo
longo e multifacetado que não poderemos apreender em toda a
sua complexidade, mas que, apesar de tudo, será necessário ope-
racionalizar, sem o que a investigação será pura especulação. Dito
de outra maneira, a problemática tem de ser submetida à prova
dos factos e para aí chegar temos de começar pela construção
do modelo de análise.

2.4 A construção do modelo de análise


O objectivo desta etapa consiste em tornar observável e refu-
tável a ideia segundo a qual a relação com o corpo nos cuidados
é marcada pelo género (ou seja, marcada pelo masculino ou pelo
feminino) e remete, pelo menos parcialmente, para a sociali-
zação familiar.

a) Modelo e hipóteses: os efeitos da socialização


na família
Primeiro, construir o modelo de análise equivale a estabelecer
uma relação (hipótese) entre a relação com o corpo nos cuidados
364 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

para os estudantes e a socialização familiar que receberam. Esta


hipótese pode ser formulada da seguinte maneira: «A relação
com o corpo, marcada pelo género, mobilizado /mobilizável nos
primeiros cuidados corporais por estudantes do primeiro ano de
Cuidados de Enfermagem e Obstetrícia reproduz a relação com
o corpo presente na esfera familiar».
Sintetizar a investigação em torno de uma só hipótese apre-
senta a vantagem da concisão e permite comunicar melhor os seus
objectivos. Mas, na realidade, neste caso contamos com três que
se encaixam umas nas outras:
— H1: A relação com o corpo mobilizada /mobilizável nos
primeiros cuidados corporais é diferente nos alunos e nas
alunas;
— H2: A relação com o corpo marcada pelo género mobili-
zada /mobilizável nos primeiros cuidados corporais reproduz
a relação com o corpo presente na esfera familiar;
— H3: A relação com o corpo marcada pelo género mobili-
zada /mobilizável nos primeiros cuidados corporais foi forjada
na esfera familiar.

No momento da investigação de 2007-2008, e tendo como


base o trabalho levado a cabo no seminário de investigação de
2004-2005, a hipótese da existência de uma relação com o corpo
diferente para um e para o outro género (H1) foi considerada
amplamente validada. O que não impediu que exigisse algumas
especificações. Há demasiados trabalhos a desenvolver análises em
termos de género baseados numa única variável, o «sexo», o que
é, evidentemente, bastante redutor. Se adoptarmos uma perspectiva
de género, temos de virar a nossa atenção para as categorizações
(classes de género, estatutos masculino e feminino...) que fazem
sentido de um ponto de vista sociológico. Por outras palavras,
o sexo dos entrevistados interessa aos investigadores no sentido
em que fornece informações sobre as categorias «mãe», «irmão»,
«filha», «pai», «filho» como posições ou estatutos no seio de um
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 365

sistema familiar, e sobre as categorias de «cuidador» e «cuida-


dora» enquanto posições ou estatuto num sistema de cuidados
de saúde, e sobre as categorias «homem» e «mulher» enquanto
posições ou classes no seio de um sistema social. E esta atenção
às categorizações deve estar presente desde a construção do ques-
tionário ou do guião da entrevista.
A segunda hipótese alega que no espaço familiar a relação
com o corpo também é marcada pelo género (H2.1) e aponta
para uma homologia da relação com o corpo na esfera fami-
liar e na esfera profissional (H2.2). A terceira hipótese vai um
pouco mais longe no sentido em que defende uma ligação de
causa-efeito em que a relação com o corpo na prestação de
cuidados é apreendida, pelo menos em parte, como o resultado
da socialização familiar.

b) Os indicadores
Muitas vezes, os conceitos mobilizados pela hipótese e pelo
modelo não são directamente observáveis. É então necessário
precisar os indicadores que permitirão registar os dados indis-
pensáveis para confrontar o modelo com a realidade.
Quer se trate de a apreender na esfera familiar ou na esfera
profissional, a relação com o corpo nos cuidados é observável
apenas em parte. Ainda assim, seria necessário optar por uma
metodologia que permitisse captar em directo as interacções
entre os diferentes actores. No nosso caso, isso pressuporia,
por exemplo, que os membros da equipa de investigação
pudessem assistir aos cuidados de higiene, o que requereria a
autorização prévia das direcções dos hospitais e dos serviços
de enfermagem, dos auxiliares e dos pacientes. E mesmo no
cenário mais optimista, em que o conjunto destas autoriza-
ções seria concedido, para os investigadores continuaria a ser
impossível aceder com os seus próprios olhos aos significados
atribuídos aos cuidados corporais observados. O sentido que
366 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

os indivíduos concedem aos comportamentos apenas é acessível


por meio das suas opiniões e representações, que só as suas
próprias palavras podem traduzir.
De igual modo, compreender retrospectivamente a socialização
em acção também não é possível; quando muito, podemos tentar
captar certas consequências ainda mensuráveis. Perante a dificul-
dade em observar directamente os comportamentos, também aqui
nos viraremos para o estudo das atitudes com base nas opiniões
e das representações dos estudantes.

c) As relações entre a construção e a verificação


- O modelo de análise da construção da relação com o corpo
nos cuidados pela socialização familiar deve identificar claramente
aquilo sobre o que a observação vai incidir e articular as diferentes
hipóteses entre si. Um esquema, mesmo que redutor, ajudar-nos-á
bastante. A Figura 8.1 tem esse objectivo.
A análise incidirá de forma privilegiada sobre os conceitos e as
hipóteses apresentadas com cor, tendo cada hipótese o seu número.
Os conceitos e as setas escuras a cheio traduzem o facto de a
socialização não se resumir à socialização familiar, de idealmente
ser necessário ter em conta outras instâncias de socialização, mas
que nesta pesquisa não terão a mesma atenção que a família.
O conceito e as setas a tracejado escuro remetem para a parte
da investigação que não é aqui apresentada e que incide sobre a
socialização pela formação e, por conseguinte, sobre o trabalho
de formadores, formadoras e professores, que estão na origem
da investigação.
Construir o modelo de análise consiste em especificar de
seguida as diferentes dimensões e subdimensões de cada con-
ceito e sobre as quais incidirá a observação. O género será
apreendido primeiro a partir da variável «sexo», mas, como
se verá no ponto 2.4, outras variáveis, decorrentes de outros
conceitos e dimensões, fornecerão complementos de informação
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 367

Socializaçã Socialização Socialização


familiar escolar pelos pares

Relação com o corpo


Género

Socialização pela E a = o Ter tolo OR o


formação profissional : nos cuidados
;

Figura 8.1 — O modelo de análise da construção da relação com o corpo nos


cuidados pela socialização familiar

que permitem compreender as posições e estatutos nos sistemas


familiares e profissionais.
Para os conceitos de socialização na família, relação com o
corpo na esfera familiar e relação com o corpo na relação pro-
fissional de saúde, procederemos como indicado na etapa 4 (O
modelo de análise), apresentando os conceitos, as dimensões e
os indicadores mobilizados na forma de um quadro. Conceitos,
dimensões e indicadores mobilizados no seguimento do estudo
estão assinalados a cores; os restantes serão igualmente alvo de
uma recolha de dados, permitindo outras análises não apresen-
tadas aqui.
Com base neste quadro, podemos, então, projectar os resul-
tados esperados por cada hipótese, ou seja, os resultados que
devíamos obter na fase da verificação, para confirmar o modelo
368 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

e as suas hipóteses. Para que H1 se confirme, o grau de faci-


lidade em imaginar-se no lugar de quem recebe ou de quem
presta cuidados de higiene tem de revelar-se significativamente
diferente em alunos e alunas, pelo menos em determinados
pontos. A hipótese 2.1 confirmar-se-á se, em certos aspectos
essenciais da representação do corpo, captada através do mapa
corporal, os alunos e as alunas mostrarem resultados contras-
tantes quanto ao grau de facilidade com que se imaginam no
lugar daqueles que recebem ou daqueles que prestam cuidados
de higiene em família. A hipótese H2.2 será confirmada se as
diferenças relativamente a H1 e a H2.1 apresentarem traços e
estruturas comparáveis. À hipótese 3 confirma-se se as expe-
riências de duche ou de banho com membros da família modi-
ficarem significativamente o grau de facilidade em imaginar-se
numa situação em que ou se recebem ou se prestam cuidados
de higiene neste contexto.
No que respeita aos resultados esperados, o modelo de aná-
lise pode ir até à especificação dos métodos e técnicas precisas
que serão usados para estudar as ligações entre as variáveis. No
seguimento do exemplo, mais do que mobilizar um método de
análise multivariada que permita apreender de uma só vez todas as
variáveis que remetem para os diferentes conceitos, cada hipótese
será testada separadamente e mobilizará técnicas simples (índices
de síntese e quadros cruzados).
Damos conta aqui da ligação que existe entre a construção
(conceitos e hipóteses) e a verificação (tratamento e análise de
dados). As hipóteses guiam a análise estatística de dados, desig-
nando as variáveis a relacionar e especificando o significado que
validamente podemos atribuir a esta relação. As relações estatísticas
adquirem sentido porque a hipótese lhes atribui um significado.
Uma das funções da construção das hipóteses e do modelo é guiar
o tratamento de dados e atribuir-lhe um sentido.
A segunda ligação que une a construção e a verificação manifesta-
-se pelos indicadores. Estes asseguram a continuidade entre a
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 369

Conceitos Dimensões Indicadores


A socialização Experiências de nudez — Na infância, experiências de duche ou banho
familiar partilhadas com pai, mãe, irmãos, irmãs
— Na adolescência, experiências de nudez com
os pais, irmãos/irmãs, avós, outros membros
da família
— Ver corpos nus
— Tocar em corpos nus
— Falar da puberdade, da sexualidade, da nudez
A relação A representação do corpo | — O mapa corporal do ponto de vista do
com o corpo carácter delicado (ou não) de intervenções
em diferentes zonas corporais
Atitude imaginada — Nível de à-vontade que imagina ao pedir
em situação de receber a um membro da família que faça uma
cuidados de um membro higiene completa ao seu corpo
da família
Atitude imaginada — Nível de à-vontade que imagina ao pensar
em situação de prestar fazer uma higiene completa a um membro
cuidados a um membro da família
da família
A relação Atitude imaginada — Nível de à-vontade que imagina perante
com o corpo em situação de receber a obrigação de pedir a alguém, definido
na relação cuidados em função do seu sexo e do seu grau de
profissional proximidade, que faça uma higiene completa
de cuidados ao seu corpo
Atitude imaginada — Nível de à-vontade que imagina perante
em situação de prestar a obrigação de fazer uma higiene completa
cuidados a alguém definido em função do seu sexo
e do seu grau de proximidade
— Nível de à-vontade que imagina perante
a obrigação de fazer uma higiene completa
a alguém definido em função da sua geração
— Nível de à-vontade que imagina perante
a obrigação de fazer uma higiene completa
a alguém definido em função da sua doença
(ferida, queimadura...)
— Nível de à-vontade que imagina perante
a obrigação de fazer uma higiene completa
a alguém definido em função do seu grau
de sofrimento

Quadro 8.1 — Conceitos, dimensões e indicadores estudados


370 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

construção dos conceitos e a observação. Os indicadores apontam


as informações a obter e, por consequência, as perguntas a fazer.

2.5 A observação

a) A selecção das unidades de observação


Consiste em escolher as unidades sobre as quais vai proceder-se
à observação. Na maior parte das vezes, põe-se o problema da
construção de uma amostra. A população-alvo eram os estudantes
de Enfermagem e Obstetrícia de escolas francófonas da Bélgica.
Não sendo materialmente possível realizar o inquérito no con-
junto das escolas seleccionadas, a equipa de investigação teve o
cuidado de assegurar a colaboração de um número significativo
de estabelecimentos, estando atento à diversidade geográfica.
De facto, por um lado, temos as escolas próximas da fronteira
francesa, que acolhem muitos jovens que seguiram o modelo de
ensino francês, diferente daquele em que a maioria dos estudan-
tes se formou e, por outro lado, temos a população da região de
Bruxelas, caracterizada por uma maior diversidade cultural, com
uma proporção significativa de jovens oriundos de culturas não
ocidentais. Dos quinze estabelecimentos potencialmente elegíveis,
nove participaram no inquérito. Em 2007-2008, os estudantes do
primeiro ano de Cuidados de Enfermagem e Obstetrícia foram
convidados a participar no inquérito; dois anos mais tarde, foi a
vez dos alunos do terceiro ano fazerem o mesmo. Para os desen-
volvimentos que se seguem, apenas nos interessa o inquérito de
2007-2008.

b) O instrumento de observação
O questionário apresentado em 2007-2008 aos estudantes
do primeiro ano incluía nada menos que 49 perguntas e muitas
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 371

subperguntas. Seria demasiado extenso reproduzi-lo aqui integral-


mente. Por conseguinte, procedemos a uma selecção que segue o
modo de apresentação adoptado no capítulo consagrado à quinta
etapa do procedimento de investigação. Para cada conceito e
cada dimensão abordados, o questionário contava com muitos
indicadores suplementares. Foram retidos apenas os mobilizados
na etapa posterior de análise das informações.

Conceito: a relação com o corpo nos cuidados corporais


Dimensão: a representação do corpo
Indicadores Perguntas Respostas
O nível Enquanto cuidador, tem Nada Um pouco Bastante Muito
mais ou de realizar determinados | embaraçoso | embaraçoso | embaraçoso | embaraçoso
menos procedimentos no corpo
delicado do paciente (olhar,
de uma tocar, etc.). Do ponto de
intervenção | vista da relação com os
sobre as pacientes, realizar estes
diferentes | gestos nas seguintes partes
partes do do corpo parece-lhe:
corpo
P A cabeça (rosto, boca...) o o o o
Os membros superiores o o o o
(braços, mãos)
O peito de uma mulher o o o o
ou de uma jovem
O peito de um homem a o o o
ou de um jovem
O ventre o o o o

A zona genital de uma n o D n


mulher ou de uma jovem
A zona genital de um o o o o
homem ou de um jovem
A zona anal o o o o
Os membros inferiores o o o o

Quadro 8.2 — A representação do corpo — as perguntas


372 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Conceito: a relação com o corpo nos cuidados corporais


Dimensão: Atitude que imagina uma situação em que recebe cuidados
Indicadores Perguntas e respostas Codificação
Imagine que tinha de pedir ajuda a uma pessoa (1) (2) (3) (4) (5)
para ela lhe lavar todo o corpo. Sentir-se-ia:
(1) Muito embaraçado; (2) embaraçado; (3)
À vontade; (4) Muito à vontade; (5) Não me
encaixo nesta situação (por exemplo: não conheci
o meu avô; não tenho irmão...), consoante
a pessoa que lhe dá banho é:
O nível de O meu avô
à-vontade
A minha avó
sentido por
ser lavado O meu pai
por membros A minha mãe
da família
O meu irmão
A minha irmã
O meu cônjuge/ o meu parceiro
O nível de Outra pessoa próxima (mulher)
à-vontade
Outra pessoa próxima (homem)
sentido por
ser lavado Uma pessoa desconhecida (mulher)
por pessoas Uma pessoa desconhecida (homem)
próximas ou
desconhecidas

Quadro 8.3 — Atitude imaginada quando recebe cuidados: as perguntas


DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 373

Conceito: a relação com o corpo no que respeita aos cuidados corporais


Dimensão: Atitude que imagina em situação de prestação de cuidados
Indicadores Perguntas e respostas Codificação
Imagine que tinha de prestar cuidados de (1) | (2) | (3) | (4) | (5)
higiene às seguintes pessoas, aceitaria? (1) Sim,
sem problemas; (2) Sim, mas não estaria muito
à vontade; (3) Não; (4) Não sei; (5) Não me
encaixo nesta situação (por exemplo: não conheci
o meu avô; não tenho irmão...)
O nível de Avô o o D o o
à-vontade Avó o ololotlo
sentido
por lavar Pai ololololo
membros da Mãe o o a D o
família
Irmão a o o o o
Irmã a o o o o
Cônjuge D o o o o
Filho o o o o D
Filha o o o a o
O nível de Outra pessoa próxima do sexo feminino o o o o o
à-vontade ZA :
E Outra pessoa próxima do sexo masculino D o o o o
sentido por
lavar pessoas Uma pessoa desconhecida do sexo feminino o D o o o
proximas OH Uma pessoa desconhecida do sexo masculino ololololo
desconhecidas

Quadro 8.4 — Atitude imaginada quando presta cuidados: as perguntas


374 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Conceito: a socialização familiar


Dimensão: as experiências de nudez partilhadas
Indicadores Perguntas e respostas Codificação
Banho/duche Já viveu alguma das seguintes situações? (1) Nunca; | (1) | (2) | (3) | (4)
com membros (2) As vezes; (3) Muitas vezes; (4) Não me encaixo
da família nesta situação (por exemplo: não conheci a minha
mãe; não tenho irmão...).
Tomar duche/banho com o seu pai, olololo
quando era criança
Tomar duche/banho com a sua mãe, o o o o
quando era criança
Tomar duche/banho com os seus irmãos, o o D o
quando era criança
Tomar duche/banho com as suas irmãs, o o o o
quando era criança

Quadro 8.5 — Experiências de nudez partilhadas: as perguntas

c) A recolha de dados
Os membros da equipa de investigação estabeleceram contactos
personalizados em cada uma das escolas. A maior parte deles
deslocou-se pessoalmente aos locais para aplicar o questionário
ao conjunto dos alunos do primeiro ano de Cuidados de Enfer-
magem e Obstetrícia; em duas das escolas, as próprias pessoas
de contacto quiseram encarregar-se desta tarefa. As indicações
necessárias para obter as respostas adequadas constavam do iní-
cio do questionário, o que não impediu que durante o processo
se fizessem algumas perguntas de interpretação. Nos casos em
que os membros da equipa de investigação estavam presentes,
a homogeneidade das respostas ficou assegurada, mas para as
duas outras escolas não temos essa garantia. As raras perguntas
problemáticas foram afastadas da análise. No total, 1468 estu-
dantes, ou seja, mais de 99 % dos participantes, completaram
o questionário de forma válida, registando-se 83 % de alunas e
17 % de alunos.
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 375

2.6 A análise das informações

a) O mapa corporal
Com base nas respostas às perguntas do Quadro 8.2, apresen-
tado atrás, conseguiu desenhar-se um mapa corporal do grau mais
ou menos delicado dos procedimentos de acordo com as zonas
do corpo. Resultados que não são retomados aqui mostram um
corpo dividido em duas partes: uma grande maioria dos estu-
dantes (entre 62 % e 79 %) consideram que os procedimentos
realizados na cabeça, nos membros superiores, no peito de um
homem ou de um jovem, no ventre ou nos membros inferio-
res não são «nada embaraçosos»; pelo contrário, uma grande
maioria (entre 72 % e 78 %) consideram que os procedimentos
realizados na zona genital de uma mulher ou de uma jovem, na
região genital de um homem ou de um jovem ou na região anal
são «embaraçosos» ou «muito embaraçosos». O peito feminino
tem um estatuto intermédio entre estes dois grupos de zonas
corporais, apresentando, no entanto, uma percentagem de «nada
embaraçosos» de apenas 16 %, o que aproxima este indicador
do segundo grupo.
Além desta visão global, a primeira pergunta é sobre a existência
de uma potencial representação do corpo marcada pelo género.
Mais do que produzir nove quadros cruzados, de acordo com as
ideias desenvolvidas na quinta etapa (A análise de dados), cons-
truímos dois índices de síntese: um primeiro para as perguntas
que remetem para as partes do corpo visíveis no mundo ocidental
(índice PVC), ou seja, o primeiro grupo das zonas corporais; e um
segundo índice para as que evocam as partes do corpo invisíveis
no mundo ocidental, ou seja, as outras quatro perguntas (índice
PIC). Estes dois índices foram construídos de modo que tivessem
um valor «0» quando os procedimentos realizados em todas as
partes do corpo eram considerados «nada embaraçosos» e «10»
quando eram considerados «muito embaraçosos».
376 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Índice PVC (t-teste n. s. a 0,05) Índice PIC (t-teste n. s. a 0,05)


População total 1,56 6,52
Alunos 1,49 6,25
Alunas 1,57 6,57

Quadro 8.6 — Valores médios dos índices PVC e PIC em função do género

Se compararmos os valores dos índices de síntese calculados para


as alunas e para os alunos, não se observam diferenças estatistica-
mente significativas. Este resultado pode parecer contra-intuitivo
na medida em que, por ocasião das entrevistas exploratórias,
houve várias alunas a exprimir o seu mal-estar perante a ideia de
prestar cuidados de higiene a pacientes masculinos, mas não se
registaram testemunhos semelhantes em relação aos alunos. Esta
aparente incoerência entre os dados da entrevista e os dados do
inquérito na verdade explica-se pelo carácter globalizante de um
índice. O índice PIC aqui analisado agrega as respostas que evocam
situações diferentes e indica que, globalmente, as diferenças entre
alunas e alunos não são significativas. Mascara assim, como bem o
demonstra o Quadro 8.7, potenciais afastamentos mais específicos.
Este quadro mostra que a relutância feminina e masculina
perante os cuidados de higiene não é exactamente semelhante; por
conseguinte, parece pertinente interrogarmo-nos sobre a dimensão
das abordagens marcadas pelo género.

Realizar procedimentos na região Realizar procedimentos na região


genital de uma mulher genital de um homem
(X2 n.s. a 0,05) (XZ sig. a 0,001)
Alunas Alunos Alunas Alunos
Nada embaraçoso 5,30 % 7,00 % 4,40 % 10,30 %
Um pouco 22,10 % 21,90 % 16,00 % 24,70 %
embaraçoso
Embaraçoso 30,30 % 30,60 % 30,40 % 29,60 %
Muito embaraçoso 42,20 % 40,50 % 49,20 % 35,40 %

Quadro 8.7 — Avaliação do carácter delicado de realizar procedimentos na região


genital de uma mulher, por um lado, e na região genital de um homem, por outro,
em função do género dos estudantes
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 377

b) Imaginar-se como paciente e como cuidador


O primeiro índice de uma relação com o corpo marcada
pelo género confirma-se a partir do momento em que se estuda
a maneira como as alunas e os alunos se imaginam enquanto
receptores ou prestadores de cuidados. Os dois quadros seguintes
respondem parcialmente a esta questão.

Pessoas próximas e desconhecidos: ordenamento das situações,


partindo das mais difíceis
Alunas Alunos
% de «muito pouco % de «muito pouco
à vontade» à vontade»
Homem próximo*** 56,4 Homem próximo*
** 28,00
Desconhecido* ** 49,8 Mulher próxima? 26,4
Desconhecida* 30,2 Desconhecida* 24,8
Mulher próxima” 279 Desconhecido* ** 24,7

Legenda: *** = Xi? sig. 0,001; ** = Xi? sig. 0,01; * = Xi? sig. 0,05; º = Xi? n.s. 0,05.
Leitura: 56,4 % das alunas diz-se «muito pouco à vontade» perante a ideia de ter de
pedir ajuda a um homem próximo que lhe dê um banho completo.

Ouadro 8.8 — Percentagem de alunas e alunos que se dizem «muito pouco


à vontade» perante a ideia de ter de pedir a outra pessoa que lhe dê um banho
completo, de acordo com o grau de proximidade e o género dessa pessoa

Pessoas próximas e desconhecidas: ordenamento das situações,


partindo das mais difíceis
Alunas Alunos
% de «sem % de «sem
problemas» problemas»
Homem próximo*** 24,0 Mulher próxima*** 3357
Mulher próxima*** 50,6 Homem próximo*** 37,4
Desconhecido* ** 60,3 Desconhecida* 70,5
Desconhecida* 78,3 Desconhecido* ** 74,2

Legenda: *** = Xi? sig. 0,001; ** = Xi? sig. 0,01; * = X2 sig. 0,05; º = X2 n.s. 0,05.

Quadro 8.9 — Percentagem de alunas e alunos que afirmam que prestariam cuidados
de higiene «sem problemas», de acordo com o grau de proximidade e o género da
pessoa a quem esses cuidados seriam prestados.
378 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Quando se imaginam a si próprias como pacientes, a abordagem


das alunas parece claramente marcada pelo género. Com efeito,
são as duas figuras masculinas que suscitam o grau máximo de
desconforto. Este fenómeno não se observa nos alunos, em que
impera o grau de proximidade com o interveniente. Acrescente-se
que as diferenças entre as percentagens são claramente menores
para os alunos do que para as alunas, em que são muito maiores,
sinal de que estas diferenciam claramente as situações evocadas.
Quando os estudantes se imaginam como cuidadores, e apenas
se considera a ordem das situações a avaliar, os resultados dos
dois sexos são similares: prestar cuidados a uma pessoa próxima
é mais difícil do que intervir junto de um desconhecido e cuidar
de uma pessoa do sexo oposto é mais difícil do que cuidar de
uma pessoa do próprio sexo. Assim sendo, perante o mesmo grau
de proximidade, as alunas fazem uma distinção muito clara entre
sexos, o que não acontece com os alunos.
Quer se considere a projecção do eu como paciente ou como
cuidador, as alunas distinguem sistematicamente as situações em
função do sexo da pessoa com quem têm de interagir; os alunos
tendem a não fazer desta variável um critério determinante.

c) Os indicadores de um efeito da socialização na família


A partir destes resultados, tudo indica que, quanto às dimen-
sões estudadas, as alunas e os alunos têm uma relação dife-
rente com o corpo. Podemos ver nisto a marca da socialização
familiar?
Nos estudantes dos dois sexos que já vivem como um casal, o
parceiro tem incontestavelmente um estatuto privilegiado. A inti-
midade partilhada no dia-a-dia não é em vão, pois tende a tornar
mais fácil o pedido de ajuda. Surge de seguida, tanto para as
alunas como para os alunos, a figura da mãe, que habitualmente
assume o papel de prestadora de cuidados ao longo da infância.
E terminam aqui os pontos de convergência. Para as outras figuras
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 379

Os membros da família: ordenamento das situações,


partindo sempre das mais difíceis
Alunas Alunos
% de «muito pouco % de «muito pouco
à vontade» à vontade»
Avõ*** ZA Avõ6*** 42,6
Pai*** 63,1 Filha* 40,6
Irmão*** 61,9 Avó? 39,6
Filho? 45,4 Filho? 37,3
Avóº 44,7 Irmã*** 37,1
Filha* 32,1 Irmão*** 33,5
Irmã*** 2753 Pai*** 32,0
Mãe* 21,3 Mãe* 28,5
Cônjuge/parceiro” DA: Cônjuge/parceiro” 6,9

Legenda: *** = Xi? sig. 0,001; ** = Xi2 sig. 0,01; * = Xi sig. 0,05; º = X? n.s. 0,05.

Quadro 8.10 — Percentagem de alunas e de alunos que se dizem «muito pouco


à vontade» perante a ideia de pedir ajuda a outra pessoa para que esta lhe dê um
banho completo, em função do estatuto familiar dessa pessoa

Os membros da família: ordenamento das situações,


partindo sempre das mais difíceis
Alunas Alunos
% de «sem % de «sem
problemas» problemas»
Pait** 23,3 Av6*** 32,4
Avõ*** 28,0 Mãe*** 34,3
Irmão* 38,3 Pai*** 35,7
Avó*** 42,8 Irmã*** 39,9
Mãe*** 52,0 Av6** 40,2
Irmã*** 61,0 Irmão* 48,4
Cônjuge/Parceiro” 21,9 Filha*** 79,7
Filha*** 93,3 Filho* 85,5
Filho* 93,7 Cônjuge/parceiro” 91,6

Legenda: *** = Xi? sig. 0,001; ** = Xi? sig. 0,01; * = X?? sig. 0,05; º = X? n.s. 0,05.

Quadro 8.11 — Percentagem de alunas e de alunos que afirmam que prestariam «sem
problemas» cuidados de higiene de acordo com o estatuto familiar da pessoa a quem
esses cuidados seriam prestados
380 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

familiares, as alunas desenvolvem claramente uma aproximação


marcada pelo género: a percentagem de incómodo atinge o seu
máximo para as quatro figuras masculinas; a diferença entre as
figuras masculinas e as figuras femininas da mesma geração são
grandes. No caso dos alunos, a aproximação é mais geracional
e as diferenças entre as figuras familiares são bastante menores.
Quando os estudantes se imaginam como cuidadores de um
membro da sua família, há três situações em isso é pouco pro-
blemático: aquelas em que assumem o estatuto de progenitor e,
por conseguinte, o papel de prestar cuidados a um filho ou a uma
filha; de seguida aquelas em que se trata de prestar cuidados de
higiene ao seu parceiro, ou seja, à pessoa com quem a intimidade
é anterior aos cuidados; e por fim as situações em que os cuidados
são prestados a irmãos do mesmo sexo. Este último cenário já
é encarado como relativamente mais difícil, mas menos do que
todos os outros exemplos. Para os restantes cinco cenários uma
abordagem marcada pelo género surgiu várias vezes nas alunas:
a higiene feita aos pais, aos avôs e aos irmãos é antecipada como
problemática, claramente mais complexa do que a que é feita
às avós, às mães e às irmãs. No caso dos alunos, as figuras dos
dois sexos estão mais misturadas e as diferenças entre os vários
cenários são nitidamente menores.
O facto de a socialização familiar ser anterior à socialização
da formação, por um lado, e o facto de a grande maioria dos
estudantes (73 %) não ter ainda realizado o mínimo estágio no
momento da aplicação do questionário, por outro, tornam plausí-
vel a hipótese de uma transferência de uma relação com o corpo
forjada, entre outros aspectos, na esfera familiar e no universo
profissional.
O questionário do inquérito continha muitas perguntas sobre
as actividades relativas aos cuidados e à nudez no espaço familiar.
A título de exemplo, mobilizámos algumas no Quadro 8.12, cujos
resultados parecem confirmar a hipótese de um efeito ligado à
socialização familiar. Para os quatro cenários propostos, as dife-
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 381

renças entre as percentagens vão no mesmo sentido: ter passado


pela experiência de um duche ou de um banho com um membro
da família durante a infância diminui o incómodo relativo à ideia
de o entrevistado ter agora a sua higiene feita por essa pessoa.

Alunas Alunos
Sig. do Xi2 | Exp. «sim» | Exp. «não» | Sig. do Xi2 | Exp. «sim» | Exp. «não»
Pai NA 55,9 67,3 * 221 36,5
Mãe hdi 17,3 28,5 + 20,4 33,8
Irmão Rosa 5758 72,1 di 28,6 51,4
Irmã +* 24,4 36,1 e 31,2 43,6

Legenda: *** = Xi? sig. 0,001; ** = Xi? sig. 0,01; * = Xi? sig. 0,05; º = Xi? n.s. 0,05.
Leitura: entre as alunas que tiveram uma experiência de duche ou banho com o pai
quando eram crianças, 55,9 % diz-se «muito pouco à vontade» perante a ideia de ter
de pedir a este para lhe dar um banho completo; esta percentagem sobe para 67,3
nas alunas que não viveram esta experiência. A diferença entre estas percentagens é
significativa no limite de 0,001.

Quadro 8.12 — Percentagem de alunas e de alunos que afirmam estar «muito pouco
à vontade» perante a ideia de pedir ajuda a uma pessoa para lhe dar um banho
completo, de acordo com o estatuto familiar dessa pessoa e de acordo com o facto
de ter tido ou não a experiência de tomar um duche ou um banho com essa pessoa
quando eram crianças

2.7 Conclusões
Se avaliarmos cada hipótese isoladamente, podemos considerar
que nenhuma delas é posta em causa pelos resultados apresentados.
Se atentarmos no grau de à-vontade em imaginar-se numa posição
de receber ou prestar cuidados de higiene, as alunas diferenciam
sistematicamente as situações em função do sexo da pessoa com
quem interagem; os alunos não fazem desta variável um factor
determinante (H1). Quando se pensa nos cuidados dentro da
esfera familiar, as alunas testemunham de forma sistemática um
à-vontade nitidamente maior na interacção com os membros femi-
ninos da família; já os alunos minimizam a diferença entre os sexos
(H2.1). Por outras palavras, a distinção tipicamente feminina das
382 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

situações em função do género dá-se tanto na esfera profissional


como na esfera familiar (H2.2). As experiências de duche ou de
banho com membros da família modificam significativamente o
grau de à-vontade em imaginar-se numa situação de receber ou
prestar cuidados de higiene com estes (H3).
Para sustentar a tese de uma construção marcada pelo género
na relação com o corpo nos cuidados corporais aquando da
socialização familiar podemos, no entanto, tentar ir mais além arti-
culando de novo estes resultados entre si e com alguns resultados
menores relativamente às hipóteses específicas, mas esclarecedores
em relação à tese geral. Assim:

— A quase totalidade dos estudantes que vive como casal pensa


poder dar banho ou receber cuidados de higiene do seu par-
ceiro. Ora, comparativamente às outras situações evocadas, a
relação conjugal é a única na qual a sexualidade ocupa um lugar
legítimo, que se tornou essencial na sociedade contemporânea;
— Enquanto potencial cuidadora, a mãe beneficia de um estatuto
particular junto dos estudantes de ambos os sexos. Paralela-
mente, as alunas, mais ainda do que os alunos, vêem-se sem
grandes problemas a prestar cuidados de higiene aos seus filhos,
seja qual for o sexo. Apesar da transformação progressiva dos
papéis domésticos masculinos e femininos, estes resultados
parecem mostrar mais a persistência da representação segundo
a qual o cuidar e a higiene das crianças incumbem em primeiro
lugar à mãe;
— Para os outros cenários familiares, quer se trate de se imaginar
como o que recebe cuidados ou como o que cuida, as rapa-
rigas manifestam uma dificuldade maior quanto aos cuidados
de higiene em que se encontram perante um homem. Esta
observação ultrapassa o âmbito familiar e estende-se a todos os
cenários de cuidados. É como se as alunas estivessem sempre a
afirmar a diferença entre os sexos, enquanto os alunos tendem
a esbatê-la. Não é de todo impossível que as diferenças entre
alunas e alunos traduzam em parte os respectivos papéis de um
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 383

e do outro sexo na gestão da sexualidade: na nossa sociedade,


enquanto as mulheres continuam a ser o garante principal do
respeito pelo pudor, os homens continuam muitas vezes a ser
vistos como seres sexualmente interessados independentemente
de uma relação específica. Se esta hipótese estiver certa, pode-
mos afirmar que, enquanto mulheres, as alunas sentir-se-iam à
partida investidas desta função de garantes do pudor e atentas
para não despertar o desejo sexual masculino. Inversamente,
a relativa neutralização das diferenças entre sexos, verificada
nos alunos, poderia ser interpretada como uma minimização
das dificuldades por parte dos jovens que querem causar boa
impressão, em linha com a norma segundo a qual, seja em que
circunstância for, um homem tem de se sempre atraente.

Se estas hipóteses interpretativas forem exactas, as alunas


iniciam a sua formação com três funções de referência: a função
maternal, mais concretamente, a de responsável por cuidar dos
filhos; a função conjugal, incluindo a componente de solicitude
para com o parceiro ou a parceira; a função de guardiã do pudor,
instada a manifestar uma atitude de reserva relativamente ao desejo
masculino. Confrontadas com a realização de cuidados de higiene
a um adulto do sexo oposto, em conformidade com esta última
função que não tem equivalência nos alunos, as alunas adopta-
ram uma atitude de reserva que se traduziu nomeadamente nos
números registados no estudo exposto. Um dos pontos essenciais
do dispositivo pedagógico consiste, então, em legitimar no âmbito
da relação profissional os actos e as atitudes que são ilegítimos
fora dela.
Evidentemente, a investigação foi apresentada de forma simpli-
ficada. O que não impede de se perceber de imediato a diferença
entre a construção de um tal dispositivo de inquérito e uma simples
sondagem. As informações dadas por cada pergunta destinam-se
a ser de novo articuladas, elucidadas umas pelas outras, confron-
tadas entre si, de forma que possam sustentar uma argumentação
384 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

complexa. À pergunta de partida e depois a pergunta e a hipótese


da investigação desempenharam a função de guias. À consistência
da fase exploratória, antes de dar por fechado um inquérito que
não podia ser alterado a meio do processo sem tornar as análi-
ses impossíveis, foi muito importante. Chegámos a dados muito
interessantes, mesmo que, no fim da investigação, e também aqui
isso se verifica, a interpretação nos tenha levado a novas hipóteses
interpretativas e a novas perguntas. A aventura continua...

3. APLICAÇÃO N.º 2: OS MODOS DE


ADAPTAÇÃO AO RISCO DE INFECÇÃO PELO
VIH NAS RELAÇÕES HETEROSSEXUAIS
Este segundo exemplo foi escolhido pelo seu carácter pedagó-
gico bem como pela sua complementaridade e diferenças quanto
à aplicação anterior. À investigação visa construir uma forma
de tipologia, o que constitui amiúde a conclusão das investi-
gações em ciências sociais. Esta investigação está exposta em
pormenor na obra de D. Peto, J. Remy, L. Van Campenhoudt,
e M. Hubert, sida: "amour face à la peur. Modes d'adaptation
au risque du sida dans les relations hétérosexuelles (Paris,
DV'Harmattan, 1992).

3.1 A pergunta de partida


Final dos anos 1980, início dos anos 1990, a sida surgiu para
todos como uma grande ameaça, mas a medicina continuava
impotente para a travar. Não existia vacina e a triterapia ainda
não estava bem desenvolvida. À prevenção continuava a ser consi-
derada a melhor maneira de enfrentar o risco e as ciências sociais
foram chamadas a auxiliar no aconselhamento das campanhas de
prevenção. Foi-lhes pedido que produzissem informações sobre
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 385

o conhecimento que a população tinha dos riscos de infecção,


do modo como se corriam ou não esses riscos, em especial nas
relações sexuais, em particular nos chamados grupos de «risco»,
e propunham pistas para uma prevenção eficaz.
Foi neste contexto que se pediu aos investigadores que estudas-
sem o modo como as pessoas adultas susceptíveis de se exporem
ao risco nas suas relações heterossexuais tinham ou não tinham
esse risco em consideração e de que maneira. Esta investigação
limitou-se à parte francófona da Bélgica.
Por conseguinte, a pergunta de partida foi formulada da seguinte
maneira: «Como é que os adultos, particularmente aqueles que
têm vários parceiros sexuais ou que mudam de parceiro com
frequência, reagem ao risco de infecção pelo vírus da sida e por
que razão muitos deles persistem em correr esse risco?»
Esta investigação tinha um duplo objectivo: por um lado,
constituía um estudo exploratório, visando preparar um futuro
inquérito em grande escala, abrangendo o conjunto da população
belga; por outro lado, e dada a urgência, devia ajudar logo a
encontrar perspectivas para as campanhas de prevenção.

3.2 A exploração

a) As leituras
Os investigadores partiram para este trabalho bastante desar-
mados. Primeiro porque a exigência era muito grande e depois
porque dispunham de pouquíssimos estudos prévios sobre este
problema relativamente novo. No entanto, começavam já a
ficar disponíveis os primeiros inquéritos realizados nos países
vizinhos e artigos que discutiam as abordagens teóricas e os
respectivos resultados. Como se viu na terceira etapa (A pro-
blemática), a maior parte dos primeiros inquéritos (em espe-
cial KABP) inscreviam-se no paradigma do indivíduo racional.
386 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Vimos igualmente as suas limitações. Mas, naquela época, as


alternativas ao paradigma do indivíduo racional eram ainda
bastante incipientes.

b) As entrevistas exploratórias
Desde o início da investigação, muitos foram os contactos, as
conversas e as entrevistas com as pessoas envolvidas, nomeada-
mente, responsáveis associativos ou institucionais e profissionais do
sector sociossanitário, diariamente em contacto com uma grande
diversidade de públicos em busca de conselhos, de tratamento ou
de ajuda. Além disso, as entrevistas com as pessoas que corres-
pondiam ao perfil definido pela pergunta de partida começaram
de imediato, com o objectivo de se construir progressivamente a
problemática da investigação. Ainda que a sucessão das grandes
linhas das etapas do procedimento tenha sido seguida, o cenário
não foi estritamente linear, na medida em que se verificou um
vaivém constante entre as entrevistas, a problemática e o modelo
de análise.
Depressa se tornou evidente quanto as complexas dimensões da
pessoa, das relações humanas e da cultura eram postas em causa
pela actividade sexual. Esta envolve os parceiros naquilo que têm
de mais essencial: o sentido que dão à existência, a sua relação
com os outros, e em particular com as pessoas do sexo oposto, o
seu equilíbrio pessoal, a sua relação com o próprio corpo e com o
dos outros, as suas emoções, o modo de integração na sociedade.
Neste jogo complexo, assumir ou não assumir um risco poderá
obedecer a razões ou a lógicas que não se resumem a uma ques-
tão de conhecimento, de cálculo racional ou de interesse pessoal.
Observou-se, por exemplo, que parceiros inexperientes ou
pouco seguros de si, que receavam fazer má figura, podiam ter
tendência para não querer arranjar mais um problema: o da pro-
tecção. Verificou-se também que, numa relação muito romântica,
assumir em conjunto e deliberadamente um risco com a outra
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 387

pessoa, ou por ela, podia ser vivido como uma enorme manifes-
tação de amor, que contribuiria para reforçar a paixão e a afeição
mútuas. Vimos ainda que a intimidade característica da relação
sexual depressa daria uma sensação de grande conhecimento e
confiança recíprocos, sobretudo quando os parceiros pertenciam
ao mesmo meio social. Também se tornou evidente que, muitas
vezes, para enfrentar a incerteza na relação em que cada um se
expunha intimamente, a relação sexual se desenvolvia de acordo
com cenários mais ou menos fixados previamente e em que os par-
ceiros «actuavam» de maneira bastante estável. Estes modelos de
comportamento interactivo relativamente aos quais os parceiros
se sentem à vontade podiam ser perturbados pela necessidade
de se protegerem e os exemplos de «boas razões» para não se
protegerem são abundantes.
Mas como contemplar esta complexidade e esta diversidade
sem se perder nelas?
As conversas e as entrevistas seguidas com colegas e investi-
gadores ligados a tarefas semelhantes foram bastante úteis neste
caso. Na ausência de teorias comprovadas sobre a questão, muitos
deles tentaram transpor para o estudo das relações sexuais as
problemáticas e os quadros teóricos já testados noutros domínios.
Nestas abordagens, atribuiu-se um peso particular àquilo que está
em jogo entre os parceiros a fim de explicar os comportamentos.
Foi assim que estes colegas mobilizaram alguns elementos de teorias
psicossociológicas, da teoria do intercâmbio social e em especial
da análise de redes. A equipa de investigação procedeu de modo
semelhante: longe de se contentar com as poucas publicações sobre
o assunto, recorreram a referências teóricas de carácter mais geral,
mas susceptíveis de serem úteis para esta investigação.
Assim, as leituras, as conversas entre investigadores e as
primeiras entrevistas foram-se alternando ao longo desta fase
exploratória.
Por fim, verificou-se que, na maior parte dos casos, os parceiros
não optavam por soluções drásticas, como se a alternativa fosse
388 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

entre proteger-se sempre e de forma sistemática e não se proteger


de todo. Adaptavam-se ao risco de acordo com diversas modali-
dades. Os que alteraram o seu comportamento devido ao risco de
VIH apenas raramente suprimiram pura e simplesmente qualquer
risco de infecção, limitando-se a um único parceiro sexual que
fosse absolutamente seguro ou utilizando de forma sistemática o
preservativo. Na maior parte das vezes, a alteração dos compor-
tamentos fazia-se de forma hesitante e matizada, diferenciada de
acordo com os parceiros e as circunstâncias. Resumindo, cada
um adaptava-se ao risco com o qual estabelecia uma espécie de
compromisso. Por consequência, a pergunta de partida foi refor-
mulada da seguinte maneira: «Quais são os modos de adaptação
ao risco de infecção pelo VIH nas relações heterossexuais por parte
dos adultos que têm vários parceiros sexuais ou que mudam de
parceiro com frequência?»

3.3 A problemática
Elaborada de forma progressiva, a problemática foi alvo de
muitos reajustamentos ao longo da investigação. Partia de uma
dupla ideia e de hipóteses gerais. A dupla ideia era quase
uma evidência: as reacções ao risco de sida são muito diversas e
dependem de variadíssimos factores. No entanto, esta dupla ideia
exigia uma problemática capaz de explicar essa diversidade sem,
no entanto, ser demasiado fragmentada. Na investigação, esses
factores designaram-se por «factores de clareza», atendendo ao
facto de, de uma ou outra maneira, supostamente, contribuírem
para tornar os comportamentos compreensíveis, sem julgar de
antemão a natureza concreta da relação que os liga a esses mes-
mos comportamentos. As hipóteses gerais consistiam em algumas
ideias a ter em mente na elaboração da abordagem teórica, por
exemplo, o facto de a interacção sexual constituir uma realidade
específica irredutível dos parceiros ou ainda a autonomia relativa
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 389

da esfera sexual como um universo à parte, que se define como


uma ruptura com o universo da vida comum.

a) Factores de clareza
No seguimento do trabalho exploratório e de análise das
primeiras entrevistas, os factores de clareza foram agrupados
em três grandes categorias, correspondentes a três abordagens
complementares de comportamentos, parcialmente apresentados
na terceira etapa (A problemática):

do A trajectória individual e as características individuais: ainda


que a interacção represente uma realidade em si, as investigações
anteriores mostraram claramente a importância da trajectória
pessoal dos parceiros para compreender a sua maneira de
entrar e de se posicionarem numa relação. Com efeito, a cada
etapa da vida correspondem diferentes níveis de conhecimento
e de experiência, de dificuldades e de expectativas diferentes.
A trajectória foi apreendida a partir da posição no ciclo de
vida que faz referência à situação do indivíduo na sua histó-
ria afectiva, sexual e/ou conjugal pessoal, bem como ao seu
estatuto enquanto membro de um agregado familiar associado
a essa posição (jovem adulto que vive com os pais, marido ou
mulher, companheiro ou companheira, solteiro, pai, mãe...).
A posição e o estatuto no ciclo de vida estão ligados à idade,
mas não se sobrepõem e as trajectórias individuais com um
percurso específico muitas vezes comportam a mesma etapa
(como o facto de ir viver com outra pessoa ou de se separar).
Concluindo, neste nível individual, o sexo da pessoa deve ter-se
em consideração.
À interacção entre os parceiros: logo que dois parceiros assu-
e

mem uma relação sexual, passageira ou duradoura, envolvem-se


num jogo a dois em que cada um deixa de comandar o que
se passa. Obviamente, há uma intervenção das características
individuais, mas a relação entre eles obedece também e sobre-
390 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

tudo às próprias características da relação (em especial ao


patamar em que se encontra), ao seu contexto, assim como
aos processos especificamente relacionais.
3. A rede social dos parceiros: neste caso, a rede é entendida no
seu sentido mais lato, como sistema de relações pessoais (fami-
liares, profissionais, de amizade...) no qual cada parceiro está
inserido. Oferece recursos mobilizáveis (o «capital social») e
determina um espaço de restrições e de oportunidades (nomea-
damente em matéria sexual).

b) Uma tipologia dos modos de adaptação ao risco


Para explicar a diversidade das situações e dos modos de
adaptação ao risco de forma ordenada, optou-se por conferir à
investigação o objectivo de construir uma tipologia desses modos
de adaptação ao risco.
Recorde-se que uma tipologia não consiste num conjunto de
categorias concretas de modo que cada caso estudado encaixa-
ria completamente numa e apenas numa dessas categorias. Uma
tipologia constitui um sistema de referências em relação às quais
se situam (com uma certa proximidade ou distância) e se compa-
ram os diferentes casos. Compostos a partir dos mesmos critérios
(factores de clareza e modos de adaptação ao risco), em conjunto,
os diferentes tipos distinguidos fazem parte de um quadro de
pensamento coerente a partir do qual deve ser possível perceber
em que é que cada tipo é ou não problemático do ponto de vista
da adaptação ao risco. Formalmente, um tipo apresenta-se como
uma combinação específica de uma situação caracterizada por
um conjunto de factores de clareza e por um modo particular
de adaptação ao risco.
Assim, devem realizar-se duas operações. No plano teórico,
será necessário determinar os critérios de construção dos tipos
(ou seja, os factores de clareza e as suas principais dimensões,
assim como os diferentes modos de adaptação ao risco). Uma
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 391

vez realizada esta primeira operação (que será objecto da etapa


seguinte), será necessário construir no plano empírico diferentes
tipos que surgem nas entrevistas como «típicos» de uma faceta do
problema da adaptação ao risco de infecção pelo VIH. Podemos,
então, elaborar hipóteses específicas para cada tipo e, através
delas, construir cenários e mensagens de prevenção adaptados.
A partir daqui cada caso concreto deve poder situar-se pela sua
proximidade com o tipo particular, se a identificação for muito
grande, ou pela sua posição intermédia entre dois ou vários
tipos distintos.

3.4 A construção do modelo de análise


O modelo de análise operacionaliza a problemática definindo
as principais categorias da observação. A primeira tarefa con-
sistirá em determinar as dimensões observáveis dos diferentes
factores de clareza e a segunda em distinguir os diferentes modos
de adaptação ao risco. A partir daqui a estrutura da tipologia
poderá ser construída.

a) Dimensões dos diferentes factores de clareza


No que respeita à posição no ciclo de vida, distinguem-se
várias fases diferentes: a fase da descoberta da sexualidade, sem
a experiência da coabitação e sem as responsabilidades conjugais
e parentais; a fase de transição, em que o indivíduo procura cons-
truir um modo de vida mais estável no contexto de um casal ou
de uma família ainda por edificar; a fase de estabilização, que
corresponde aos primeiros anos da vida em família, com ou sem
crianças a seu cargo; a fase de desconstrução, que corresponde
ou à manutenção de uma vida em comum, que se degrada, ou a
uma separação, mas em que pelo menos um dos dois continua a
ser a pessoa de referência no imaginário do outro; fase de celi-
392 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

bato. Cada fase está associada a condições de naturezas diversas


(tanto materiais como, em especial, psicológicas) susceptíveis de
promover determinados comportamentos em termos afectivos ou
sexuais e de desfavorecer outros (por exemplo, as oportunidades
e o desejo de novas conquistas).
À interacção entre parceiros foi apreendida por meio de várias
dimensões: a fase da relação (fase de conquista e de sedução,
fase de familiaridade ou fase de desenlace); as expectativas dos
parceiros no que se refere à relação (expectativas de reprodução,
expectativas afectivas, expectativas de prazer, desejo de constituir
família, busca de estatuto social, esperança de promoção ou receio
de represálias, caso recuse relações); a primariedade ou a secun-
dariedade do espaço da relação (conforme é visível socialmente
ou se mantém secreta) e dos parceiros (estáveis ou ocasionais); as
normas (de equidade ou de reciprocidade) e da relação de poder
no relacionamento, particularmente entre géneros (os recursos
dos parceiros na relação e as respectivas estruturas de capital, os
custos ligados à relação). A cada situação definida pelas dimen-
sões de interacção correspondem comportamentos perante o risco,
mais ou menos plausível, ou até provável, como, por exemplo,
a vontade de transgredir as normas (incluindo a prudência) nas
relações secundárias, quando o casal se encontra numa fase de
ruptura dificilmente aceite pelo outro parceiro.
Distinguiram-se também várias dimensões clássicas de rede
social de parceiros pertinentes quanto ao objectivo da investi-
gação: a extensão e a homogeneidade / heterogeneidade da rede;
a sua densidade (ou seja, o facto de os conhecidos de uma pessoa
se conhecerem entre si, ou não); a unidimensionalidade versus a
multidimensionalidade (de acordo com a quantidade de níveis aos
quais as pessoas que dela fazem parte estão ligadas); a intensidade
das relações na rede (segundo a carga emocional das relações).
A configuração da rede, modelada com o auxílio destas dimen-
sões, permite compreender igualmente o sistema de restrições e
de oportunidades de encontros entre parceiros.
DUAS APLICAÇÕES -DO PROCEDIMENTO 393

b) Os modos de adaptação ao risco


A adaptação ao risco pode fazer-se a montante da relação
sexual (seleccionando alguns tipos de parceiros e evitando outros).
O trabalho empírico mostrará que, do ponto de vista do risco,
esta selecção se processa de modo bastante subjectivo: o «bom
ar» e especialmente o aspecto clean.
Mesmo no seio da interacção sexual, poder-se-ão distinguir
vários modos de adaptação ao risco: a responsabilidade (os par-
ceiros discutem o assunto, fazem testes de diagnóstico, não vêem
o preservativo como uma sinal de desconfiança); a confiança no
parceiro (mesmo que este tenha vivido outras relações anterior-
mente); a aceitação de um risco limitado; a dominação — sub-
missão (quando um parceiro impõe as suas regras ao outro de
tal forma que uma eventual protecção dependa apenas dele); a
relação excepcional não controlada (seja ela não programada,
desenrolando-se num contexto particular, ou sob o efeito de álcool
ou de drogas); o desafio (em que se procura deliberadamente o
risco, eventualmente como uma componente do prazer ou como
uma libertação das normas de uma educação durante muito
tempo considerada rígida); a crise anómica (que corresponde a um
período de desorientação após uma separação ou de dificuldades
graves entre o casal).
A jusante da relação sexual, o que está em causa é essencialmente
o teste como uma forma de se tranquilizar após uma relação que
se pensa ser de risco. A repetição de resultados negativos poderá
dar a algumas pessoas o sentimento de que, afinal de contas, o
seu modo de vida é relativamente seguro e que por isso podem
continuar no mesmo caminho.
Embora, em grande parte, as dimensões dos factores de clareza
tenham sido determinadas a partir de literatura sociológica consi-
derada pertinente, tendo em conta os ensinamentos das primeiras
entrevistas, no caso dos modos de adaptação ao risco, esses fac-
tores foram descobertos exclusivamente ao longo das entrevistas.
394 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Assim, cada tipo deveria apresentar-se como uma combinação


específica de um conjunto de dimensões de factores de clareza e
de um modo de adaptação ao risco de acordo com o esquema
retomado na página seguinte.

Ficha de recapitulação por tipo


EEE EEE DESSES SEE EPP E ESA

Posição e estatuto
no ciclo de vida

Idade

Sexo

SEDES E EEE EE SEE EEE ESSE


Etapas da relação/das
relações

Expectativas relativamente
à relação/às relações

Primariedade/secundariedade
da relação/das relações

Normas e poder
na relação/nas relações

Rede social

Modo de adaptação
ao risco
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 395

3.3 A observação

a) A selecção das unidades de observação


Constituiu-se uma amostra de 76 pessoas, de acordo com os
seguintes critérios: diversidade dos perfis, das situações e das
experiências de vida; mudanças recentes na vida sexual e afectiva;
proximidade subjectiva com o risco de infecção pelo vírus da
sida. O recrutamento das pessoas foi possível graças a diversas
associações do sector sociossanitário e preventivo. A idade dos
entrevistados oscilava entre os 19 e os 60 anos, situando-se a
maioria na faixa etária dos 20-40 anos. À amostra contemplava
quase tantos homens como mulheres.

b) O instrumento de observação e a recolha de dados


A entrevista semidirectiva foi o método utilizado. O guião da
entrevista era composto por um conjunto de pontos relacionados
com a história pessoal, particularmente a sua vertente íntima, o
ambiente social e cultural da pessoa, as relações sexuais recentes
e em curso e, em especial, o modo como o risco tinha sido, ou
não, tido em consideração. A entrevista desenvolvia-se ainda à
medida que se elaborava a problemática e o modelo de análise.
A grande maioria das entrevistas durou mais de uma hora, às
vezes duas horas e até mais. Das entrevistas realizadas, 49 foram
integralmente transcritas, para serem analisadas. As restantes 27
foram descartadas por diversas razões, como a ausência de infor-
mações pertinentes sobre o assunto, a recusa dos entrevistados
em autorizar as gravações ou o facto de a entrevista ter acabado
por ser demasiado curta. Algumas destas entrevistas também não
foram utilizadas no contexto da fase exploratória ou para testar
o guião da entrevista.
396 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

3.6 A análise das informações

a) A análise das entrevistas


Todas as entrevistas foram realizadas directamente por um dos
membros da equipa de investigadores; o entrevistador tinha um
conhecimento profundo das perguntas da investigação e da pro-
blemática. Esta proximidade com a abordagem do tema é essencial
na medida em que o entrevistador pode, a qualquer momento,
lembrar-se de perguntas mais adequadas e relançar a entrevista
para pistas mais interessantes. Sendo o tema tão delicado, e mesmo
com estas condições, como vimos, há uma proporção relativamente
importante de entrevistas com pouca utilidade.
A análise das entrevistas foi feita em duas etapas. Na pri-
meira, uma ou duas pessoas, entre as quais a que realizou a
entrevista, preparou a análise com base num exame temático.
Esta análise consistiu em retomar todos os elementos da entre-
vista, independentemente da sua natureza (afirmações explícitas
ou atitudes do entrevistado durante a entrevista) susceptíveis
de fornecer informações relacionadas com a pergunta de par-
tida e, mais precisamente, com as componentes do modelo de
análise (fase da trajectória pessoal, características da relação
e da rede, etc.). Apresentado a uma equipa de pelo menos três
investigadores, este trabalho preparatório foi discutido em
conjunto com base no texto da entrevista, foi aprofundado e
desenvolvido por este pequeno grupo no qual foram confron-
tadas as análises sem concertação entre os diferentes investi-
gadores. Em algumas ocasiões, associaram-se a estas sessões
de análise colectiva colegas investigadores não directamente
envolvidos nesta investigação concreta, a fim de abrir a análise
a perspectivas que não tinham sido de início previstas pela
equipa de investigação. Progressivamente, as principais hipóteses
e as principais informações retiradas da análise das primeiras
entrevistas foram confrontadas com o conteúdo das últimas
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 397

entrevistas analisadas, de acordo com o princípio da «indução


analítica» explicada acima (segunda etapa: A exploração).

b) A construção da tipologia
Neste dispositivo de investigação, o trabalho empírico serviu
principalmente para testar as hipóteses empíricas formuladas
previamente, mas também para construir uma tipologia com base
num quadro conceptual composto por factores de clareza. Com
efeito, ao longo das análises, graças a um conjunto de tentativas
e erro, foram destacados vários tipos, até se conseguir mostrar
um conjunto deles e explicar as principais situações problemáticas
encontradas e aquilo que cada uma tinha de específico.
Deste modo, foram construídos nove tipos:
— Tipo 1: a ansiedade do «tipo jovem» na sua difícil exploração;
— Tipo 2: a frágil aprendizagem do diálogo nas primeiras relações
privilegiadas;
— Tipo 3: o risco pensado e aceite dos jovens adultos em busca
de um modo de vida;
— Tipo 4: a segurança através da separação dos mundos;
— Tipo 5: a gestão racional e contratual do risco;
— Tipo 6: a confiança cega do parceiro muito simbiótico;
— Tipo 7: os afastamentos secretos do «cônjuge infiel»;
— Tipo 8: as respostas à crise e à anomia:
— Tipo 9: o risco que a mulher submissa corre.

Cada tipo foi explicado em pormenor, resumido numa ficha


e ilustrado com os casos das pessoas entrevistadas que mais
se aproximavam dele. Fizeram-se perguntas específicas sobre a
prevenção a cada tipo. A título de exemplo, mostramos ape-
nas a ficha correspondente ao tipo 4, que é comum, embora
se apresente sob diversas modalidades. As pessoas em questão
partilham a característica de cindir o mundo íntimo em dois:
o dos parceiros sexuais considerados seguros, em que O risco
398 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

é tido em conta de modo variado e muitas vezes aleatório, e o


dos parceiros considerados perigosos, em que é aplicada uma
protecção muito estrita.
Além disso, destacou-se um conjunto de conhecimentos trans-
versais. O modo de adaptação ao risco de infecção pelo vírus
da sida surgiu como um aspecto de um processo mais amplo: o
modo como o indivíduo se adapta à problemática da sua própria
existência, ou até mesmo, para alguns, à sobrevivência do seu
Eu numa situação crítica. Por conseguinte, proteger-se do risco
era apenas mais uma preocupação entre outras, muitas vezes, na
opinião dos entrevistados, bem mais importantes, como encontrar
finalmente a sua alma gémea (para várias mulheres do tipo 9)
ou sobreviver a uma provação duradoura ou passageira (para o
tipo 8). Além disso, verificou-se que, em certos casos, correr riscos
poderia fazer parte deste processo de restruturação pessoal e/ou
de construção de uma relação gratificante. A busca de relações
afectivas e reconhecimento por parte do outro revelou-se central
nas exigências existenciais de uns e de outros. Longe de terem de
ser analisados apenas como consequências de causas anteriores
e exteriores à relação, os comportamentos são elementos cons-
titutivos da relação e dos modos implícitos de comunicar que
fazem parte da construção, manutenção ou desconstrução dessa
relação, quer quando os parceiros têm como objectivo o prazer
partilhado apenas durante algum tempo, quer quando esperam o
grande amor da sua vida.
Um dos principais problemas, comum a quase todos os tipos,
é conseguir gerir racionalmente o risco com base numa confiança
mínima necessária à relação. Entre os que optam por confiar
cegamente no outro (tipo 6) e os que juntos conseguem gerir o
risco de forma contratual e explícita (tipo 5), há todos os que
alternam confiança e desconfiança (tipo 4), os que aceitam uma
certa dose de risco (tipo 3), os que hesitam por serem incapazes
de falar do assunto com os seus parceiros (tipo 2), os que erram
um tanto perante um problema inabitual (tipo 7) para o qual
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 399

estão mal preparados (tipo 1) ou que não dominam (tipo 9) e,


por último, os que simplesmente andam à deriva (tipo 8).

Tipo 4 — A segurança através da separação de mundos

Posição e estatuto Fase de busca de um modo de vida ou fase de celibato.


no ciclo de vida

Idade Jovens adultos, em média, na casa dos 30.

Sexo Indiferenciado.

Etapas da relação/das Na maior parte das vezes: etapas de sedução ou de


relações familiaridade.

Expectativas relativamente Afectivas e de prazer no seu próprio mundo social. De


à relação/às relações prazer apenas no mundo exterior, considerado perigoso.

Primariedade/secundariedade Parceiros primários e secundários do seu próprio meio


da relação/das relações social. Paralelamente, parceiros secundários num espaço
secundário.

Normas e poder Modelo da relação igualitária baseada na escuta do outro,


na relação/nas relações no seu meio social. Desconfiança e apropriação do poder
com vista a uma protecção estrita no mundo «perigoso».

Rede social Muito desenvolvida. Grande importância e influência


normativa do seu próprio meio social, considerado seguro
e que deve ser protegido do risco.

Modo de adaptação Separação entre dois mundos: o mundo «perigoso», em


ao risco que é aplicada uma protecção rígida, e o mundo «seguro»,
com uma gestão diferenciada do risco.
400 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Muitas outras informações, que seria demasiado longo expor


aqui, foram destacadas, em especial sobre as relações entre géne-
ros, o modo como a comunicação era regulada pelas normas
sociais, a influência normativa da rede de pessoas próximas, as
tensões normativas em matéria de sexualidade e o modo como
a sida veio perturbar um jogo social íntimo já de si complexo
e sobre o qual ainda reinava o silêncio sob a aparência de um
certo exibicionismo mediático de fachada.
Houve algumas observações surpreendentes, nomeadamente,
que os parceiros que usavam preservativo nas primeiras relações
sexuais acabavam por abandoná-lo ao fim de apenas três ou
quatro vezes, apesar de não terem recebido nenhuma informação
suplementar respeitante ao estado serológico do parceiro. Esta
constatação, verificada depois graças a um inquérito quantitativo
aplicado à população em geral, ilustra a importância de se ter em
consideração o processo de construção da relação num contexto de
confiança e em que o sentimento de familiaridade e de segurança
ocorre mais rapidamente quando se está na esfera da intimidade.

3.7 Conclusões
Este estudo poderá realçar duas categorias de resultados: pri-
meiro, os nove tipos retomam uma grande parte das situações
problemáticas ligadas à protecção contra o VIH no âmbito das
relações heterossexuais. Alguns casos muito específicos à parte (mas
não forçosamente raros), que exigem investigações especializadas
(violência conjugal, prostituição, tráfico de mulheres, violações...),
a maior parte das situações, se não se encaixar num dos tipos,
poderá pelo menos situar-se na intersecção entre dois ou mais.
Todavia, o quadro não é absolutamente exaustivo; os tipos apenas
representam alguns casos resultantes do trabalho empírico, entre
todos os casos teoricamente possíveis (de acordo com uma combi-
natória dos factores de clareza), o que, logicamente, e em sentido
DUAS APLICAÇÕES DO PROCEDIMENTO 401

restrito, deve caracterizar uma tipologia. A opção por multiplicar


(de modo razoável) estes factores impossibilitou a operação. Foi
dada prioridade à realidade empírica e a uma explicação ancorada
num princípio de realidade sobre o formalismo teórico.
Segundo, o modelo de análise e o método não permitiam
medir o peso respectivo de cada factor no conjunto do modelo de
causalidade. Esta ambição não só era inalcançável como parecia
vã perante a complexidade dos comportamentos, mas sobretudo
pelo facto de não se considerarem consequências puras de factores
anteriores e exteriores, pelos quais os parceiros constroem a sua
relação. Os factores de clareza destinavam-se a perceber os dados
de uma determinada situação e a compreender o que esta tinha
de problemático no que respeita à protecção, e não a explicar os
comportamentos de maneira causal.
Os resultados deste trabalho permitiram formular um deter-
minado número de hipóteses retomadas posteriormente noutras
investigações, num processo cumulativo.
O facto de a tipologia ter finalmente incidido sobre os indiví-
duos e não sobre as relações poderá parecer paradoxal para uma
abordagem que se quer, em grande parte, «relacional». A inclusão
da trajectória pessoal e da posição no ciclo de vida tornava difícil
uma tipologia estritamente relacional. Apesar disso, no essencial,
o indivíduo é caracterizado pelo sistema relacional em que está
inserido (tanto ao nível da interacção sexual como ao nível da
rede social).
Ao identificar de modo compreensível um número significativo
de situações de risco, este estudo pôde ser usado como suporte de
informação e de formação de muitos intervenientes no campo da
prevenção, existindo uma campanha de prevenção inteiramente
concebida com base nele. As suas diferentes mensagens destinaram-
-se sempre, muito especificamente, ao que havia de problemático
num determinado número de situações comuns.
“a

ATOM ia ho 2725 0a Som pie de mibicira É a ec nir


RECAPITULAÇÃO
DAS OPERAÇÕES
404 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Etapa 1 >

Formular a pergunta de partida


tendo o cuidado de respeitar:
— as qualidades de clareza
— as qualidades de exequibilidade
— as qualidades de pertinência

Etapa 2 >

As leituras As entrevistas exploratórias


Seleccionar os textos e Preparar-se para a entrevista
Ler com método e Encontrar-se com os peritos,
Resumir testemunhas e outras pessoas implicadas
Comparar: e Adoptar uma atitude de escuta e de
— os textos entre si abertura
— os textos com as entrevistas e Descodificar os discursos

Etapa 3 »

e Fazer o balanço e descrever


problemáticas possíveis
e Definir uma problemática
RECAPITULAÇÃO DAS OPERAÇÕES 405

Etapa 4 > À construção


do modelo de análise

e Construir as hipóteses e o modelo, precisando:


— as relações entre os conceitos
— as relações entre as hipóteses
e Construir os conceitos, precisando:
— as dimensões
— os indicadores

Etapa 5 >

Delimitar o campo de observação


Conceber o instrumento de observação
[2

Testar o instrumento de observação


Proceder à recolha das informações

Etapa 6 >
A análise das informações
Descrever e preparar os dados para a análise
Medir as relações entre as variáveis
Comparar os resultados esperados com os resultados observados
Procurar o significado das diferenças

Etapa 7 >

e Recapitular o procedimento
e Apresentar os resultados, pondo em evidência:
— os novos conhecimentos
— as consequências práticas
Bibliografia

Além das bibliografias temáticas apresentadas nos capítulos


«A observação» e «A análise das informações», propomos em
seguida uma selecção de obras fundamentais de metodologia geral.
BACHELARD, G. (1965), La Formation de Pesprit scientifique, Paris,
Librairie Philosophique J. Vrin.
Becker, H. S. (2002), Les Ficelles du métier. Comment conduire sa
recherche en sciences sociales. Paris, La Découverte.
BERTHELOT, J.-M. (1990), L'Intelligence du social, Paris, PUF.
BERTHIER N. (2002), Les Techniques d'enquête. Méthode et exercises
corrigés, Paris, Armand Colin.
BOUDON, R., e LAZARSFIELD, P. (1965), Le vocabulaire des sciences
sociales. Concepts et indices, Paris, Mouton.
BOUDON, R., e LAZARSFIELD, P. (dir.) (1969), L' Analyse empirique de
la causalité. Paris, Mouton.
BouRDIEU, P., CHAMBOREDON, J.-C., e PASSERON, J.-C. (1968), Le
métier de sociologue, Paris, Mouton, Bordas.
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WEBER, M. (1922), Essai sur la théorie de la science, Paris, Plon, 1965.
Glossário

Retomamos aqui as principais noções de carácter metodológico


expostas no Manual. A palavras em itálico são noções que tam-
bém fazem parte do glossário. Sempre que se justifique, o nome
de autores de referência é mencionado entre parêntesis.
Amostra: subconjunto da popu- der a sua lógica. Recorre a teorias
lação (de indivíduos, grupos ou matemáticas como a teoria de gra-
quaisquer objectos) estudada e fos ou o cálculo matricial.
sobre a qual recairá efectivamente
Análise de conteúdo: consiste em
a observação ou a recolha de infor-
submeter o conteúdo de um dis-
mações (por exemplo, com recurso
curso (por exemplo, afirmações
ao inquérito por questionário ou
feitas ao longo de uma entrevista
às entrevistas). A amostra pode
semidirectiva, artigos de imprensa,
ser representativa ou característica
actas de reuniões) a uma análise
dessa população.
metódica com o objectivo de obter
Análise das informações: etapa da informações pertinentes em relação
investigação que consiste em anali- aos objectivos da investigação.
sar dados e informações recolhidos Existem análises temáticas, formais
ao longo da etapa de observação, e estruturais.
a fim de testar as hipóteses.
Análise estatística de dados: con-
Análise das redes sociais (em inglês siste em submeter dados numéricos
social network analysis): conjunto (dados recolhidos a partir de um
de ferramentas metodológicas des- inquérito por questionário ou por
tinadas a descrever a estrutura das meio de uma recolha de dados
relações entre os diferentes actores secundários) a um tratamento esta-
sociais interligados e a compreen- tístico (por exemplo, a análise das
410 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

correlações entre variáveis) a fim em dimensões (ou componentes),


de obter informações pertinentes elas próprias traduzidas em indica-
relativamente aos objectivos da dores. À conceptualização é o pro-
investigação. cesso de elaboração dos conceitos
e das ligações entre eles.
Análise secundária: consiste em
utilizar na sua própria investigação Conceito sistémico: conceito ligado
informações ou dados preexistentes a um sistema teórico ao qual
é emprestado (por exemplo, o
2
recolhidos por outros autores ou
instituições em função de outros conceito de função está ligado à
objectivos. teoria funcionalista). O conceito
sistémico decorre essencialmente de
Causa: em sentido mais alargado, um pensamento abstracto: dedução,
tudo o que contribui para a cons- analogia, envolvimento.
tituição de um fenómeno, aquilo
com que o fenómeno se relaciona Conceito operatório isolado: con-
para ser explicado. ceito original elaborado pelo inves-
tigador devido a necessidades
Componente (de um conceito): ver específicas da sua investigação e
Dimensão. que por isso não se refere a uma
teoria preexistente. O conceito
Compreensão/ compreender: em
operatório isolado decorre essen-
sentido lato, reconstruir no pen-
cialmente de um procedimento
samento os processos através dos
empírico: indução, categorias da
quais os fenómenos ocorrem. Neste
prática.
sentido, a compreensão é a finali-
dade de todo o conhecimento. (J. Construção (em ciências sociais):
Ladriêre) Em sentido restrito, sig- consiste em considerar o fenómeno
nifica apreender o sentido da acção estudado a partir de categorias de
humana e social, principalmente o pensamento que decorrem das ciên-
que os próprios actores lhe confe- cias sociais, e em fazer referência a
rem. (M. Weber). um quadro conceptual organizado
susceptível de exprimir a lógica que
Conceito: categoria de pensamento
o investigador pensa estar na base
e de análise científica que implica
do fenómeno.
uma maneira de conceber a reali-
dade. Para se tornar operacional, Correlação (entre variantes): rela-
um conceito pode ser decomposto ção de co-ocorrência, estatisti-
GLOSSÁRIO 411

camente verificável, entre dois hipóteses. A entrevista compreen-


fenómenos, representados por duas siva é uma forma de entrevista
variáveis, que variam conjunta- semidirectiva, cujo objectivo é
mente. alcançar uma compreensão íntima
Dados pertinentes: dados neces- do pensamento e da acção das pes-
sários à verificação das hipóteses. soas entrevistadas. ().-C. Kaufman)

Dimensão ou componente (de um A entrevista centrada (do inglês


conceito): subdivisão do conceito focused interview): método de
no sentido de o tornar operacional entrevista que consiste em recolher
por meio da observação e da análise as reacções dos entrevistados a um
das informações. acontecimento ou experiência con-
creta (por exemplo, um filme, publi-
Entrevista: método de recolha da
cidade, um testemunho), reacções
informação consistindo numa con-
versa entre o entrevistador e uma essas consideradas expressivas do
pessoa (o entrevistado) ao longo da fenómeno estudado. Geralmente,
qual esta é convidada a falar sobre a entrevista centrada é colectiva.
o tema da investigação e a da sua (R. K. Merton)
relação com esse tema.
A entrevista é exploratória quando
Na investigação em ciências sociais, se insere na etapa de exploração
a entrevista é muitas vezes semi- do dispositivo de investigação.
directiva na medida em que o Destina-se principalmente a cons-
investigador dá ao entrevistado truir a problemática, devendo
uma grande liberdade de expressão, manter-se sobretudo aberta.
zelando, no entanto, para que a
conversa se mantenha no âmbito Epistemologia: disciplina filosófica
dos objectivos da investigação. cujo objectivo é o conhecimento
Frequentemente, a entrevista semi- (essencialmente científico) e cujos
directiva inscreve-se num procedi- fundamentos, métodos e condições
mento indutivo, em que a recolha de validação discute e examina.
e a análise das informações, em
vez de serem etapas sucessivas, Explicação / explicar: busca das
ocorrem conjuntamente ao longo causas e processos que permitem
das entrevistas em simultâneo com dar conta dos fenómenos estu-
a elaboração da problemática e das dados.
412 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Exploração ou etapa explorató- Hipótese: afirmação refutável que,


ria: etapa cuja principal função no mínimo, se destina a dar conta
é construir a problemática da de um fenómeno e no máximo a
investigação, revelando as pistas explicá-lo e, presume-se, a verificá-
mais interessantes. Deve permitir “lo. A hipótese assume a forma
tomar conhecimento dos principais de uma antecipação, seja de uma
trabalhos sobre o tema e evitar relação entre dois conceitos, seja de
negligenciar os aspectos essenciais uma relação entre um fenómeno e
do problema. Compreende essen- um conceito capaz de o explicar.
cialmente as leituras e as entrevistas Uma hipótese pode ser deduzida de
exploratórias. uma teoria preexistente ou induzida
através do trabalho exploratório.
Z
Fenómeno: o que é visível, que
História de vida: método de entre-
pode ser objecto de uma apreensão
vista que consiste em reconstituir a
substancial, que pode ser obser-
trajectória de vida dos indivíduos
vado (no sentido lato do termo:
com o objectivo de perceber como
visto, ouvido, tocado...) e, por
é que o seu modo de apreender as
isso, apreendido através de um
experiências se forma e se trans-
inquérito.
forma ao longo da existência e
«Field research»: método de inves- dos acontecimentos que a marcam.
tigação no terreno que consiste
Indicador (de um conceito ou da
em estudar situações concretas no
dimensão de um conceito): expli-
seu contexto real. Pôe em prática
cação observável de um conceito
e combina uma pluralidade de ou de uma das suas dimensões e
métodos, nomeadamente, a obser- que permite calcular ou medir o
vação participante e as entrevistas seu grau de presença (ou ausência)
semidirectivas. O dispositivo de na realidade. (Por exemplo, para
investigação vai-se determinando e Durkheim, o número de rituais em
adaptando à medida que o trabalho Z
comum é um dos indicadores da
avança. coesão religiosa.)

Heurística: qualifica um recurso Índice de síntese: síntese numérica


intelectual, em concreto um con- das informações fornecidas pelos
ceito ou uma hipótese, que permite indicadores de um conceito (ou de
a descoberta. uma das suas dimensões) a partir
GLOSSÁRIO 413

das respostas às perguntas com elas portamentos, as práticas ou os


relacionadas. modos de vida. Podemos distinguir
a observação participante, que
Inquérito por questionário: método
consiste em estudar um grupo ou
de recolha de informações que
de uma comunidade, durante um
consiste em fazer uma série de per-
período relativamente longo, parti-
guntas padronizadas a um conjunto
cipando na sua vida colectiva a fim
de pessoas (uma população total ou
de apreender os comportamentos e
uma amostra). Diz-se que o questio-
os modos de vida a partir do seu
nário é de administração indirecta
interior, e a observação não parti-
quando o próprio entrevistador
cipante em que o investigador não
o completa a partir das respostas
participa na vida do grupo, que,
fornecidas pelos entrevistados e de
administração directa quando é o por conseguinte, apenas observa
próprio entrevistado a preenchê-lo. «de fora».

Modelo de análise: conjunto de


Paradigma: quadro teórico geral,
conceitos (com as suas dimensões susceptível de ser aplicado ao
e os seus indicadores) e de métodos estudo de qualquer fenómeno seja
que se articulam entre si para em ele qual for, composto por ideias
conjunto formarem um quadro sobre o modo como os modelos
coerente destinado à explicação e de análise que dele fazem parte
à compreensão de um fenómeno deviam ser construídos. Exemplos:
social. o funcionalisno, o interaccionismo,
o estruturalismo. (R. Boudon e F.
Observação: em sentido lato, etapa Bourricaud)
do procedimento que consiste
em recolher informação sobre os Pergunta de investigação: formula-
fenómenos estudados em função ção mais elaborada da pergunta de
das hipóteses. Num procedimento partida que evolui no decorrer da
dedutivo, é a recolha de todas as investigação, sobretudo no termo
informações apontadas pelos indi- da fase de exploração e de elabo-
cadores dos conceitos ou das suas ração da problemática.
dimensões.
Pergunta de partida: é a pergunta
Em sentido restrito, método par- que permite ao investigador ini-
ticular de recolha de informações ciar o seu trabalho e o primeiro
que consiste em observar os com- fio condutor deste. Por meio dela,
414 MANUAL DE INVESTIGAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

o investigador tenta exprimir da susceptíveis de ser verificados. (K.


melhor forma possível o que pro- Popper)
cura saber, explicar, compreender.
A pergunta de partida é chamada a Rigor: adequação entre os resulta-
evoluir para se transformar na per- dos apresentados pelo investigador
gunta de investigação. A pergunta e o que lhe permite divulgá-los
de partida deve ser clara, exequível (nomeadamente a pertinência da
e pertinente. problemática, a robustez do modelo
de análise, a aplicação adequada
Problemática: abordagem ou pers- de métodos de observação e de
pectiva teórica adoptada para tra- análise...). O rigor reside essencial-
tar o problema apresentado pela mente na coerência do conjunto do
pergunta de partida, o ângulo sob procedimento.
o qual os fenómenos serão estuda-
dos, o modo como os vamos inter- Ruptura epistemológica: afas-
rogar. Através da problemática, a tamento entre as informações
pergunta de partida evolui até se científicas e os estereótipos, os
tornar a pergunta de investigação. preconceitos e as categorias de
pensamento do senso comum. (G.
Procedimento ou método dedu- Bachelard, P. Bourdieu)
tivo: procedimento metodológico
que consiste em ir do geral para Ruptura metodológica: caracte-
o particular e onde a teorização rística metodológica construída
(problemática e modelo de análise) à base de informações científicas
precede a observação. que instaura uma separação dos
conhecimentos que não são cienti-
Procedimento ou método indutivo: ficamente construídos.
procedimento metodológico que
consiste em ir do particular para o Teoria: sistema de pensamento
geral e onde a observação precede composto por conceitos e hipóteses
a teorização. destinado a explicar os fenómenos.

Refutabilidade: qualidade que uma Teoria ancorada (ou enraizada):


hipótese tem de se poder provar (em inglês grounded theory): pro-
que não se verifica ou ainda que é cedimento essencialmente indutivo
falsa, o que pressupõe um carácter e qualitativo em que a teorização
generalista e que aceite enunciados é um processo que deriva de uma
contrários, que, teoricamente, são análise comparativa das informa-
GLOSSÁRIO 415

ções recolhidas. (B. Glaser e A. Uma tipologia é um conjunto de


Strauss) vários tipos-ideais construídos de
acordo com os mesmos critérios,
Teoria construída: o investigador
destinado a comparar as moda-
desenvolve um modelo de análise
lidades específicas de um mesmo
em função daquilo que lhe parece
grupo de fenómenos (por exemplo,
importante ter em conta, sem
os diversos modos de adaptação ao
empréstimos sistemáticos a uma
risco de infecção pelo VIH).
teoria existente. Os conceitos são
essencialmente conceitos operató- Variável: característica que pode
rios isolados e as hipóteses são assumir valores diferentes, termo
hipóteses induzidas. de uma hipótese susceptível de
Teoria emprestada: quando o inves- tomar valores diferentes. A variável
tigador elege um modelo de aná- explicativa é aquela cujas variações
lise directamente inspirado numa se destinam a explicar, através da
teoria existente, adaptando-o ao hipótese, as variações da variável
seu próprio projecto. Os conceitos dependente. A variável dependente
são essencialmente conceitos sisté- é aquela cujas variações são expli-
micos e as hipóteses são hipóteses cadas, através da hipótese, pelas
dedutivas. variações da variável independente.
Uma variável qualitativa é nomi-
Teorização: elaboração de uma nal se as suas modalidades não
teoria. Neste manual distinguimos apresentam uma ordem natural
dois tempos de teorização: a pro- (por exemplo, a nacionalidade);
blemática e o modelo de análise. é ordinal se as suas modalidades
Tipo-ideal: ferramenta metodoló- são ordenadas, mas sem que se
gica destinada a perceber a especifi- tenha uma medida da importân-
cidade e o sentido de um fenómeno cia do afastamento entre duas
em relação a um objectivo de modalidades sucessivas (por exem-
investigação. À construção de um plo, «não concordo nada», «não
tipo-ideal ocorre em três momen- concordo», «concordo bastante»,
tos: selecção de características «concordo»... com uma opinião).
pertinentes, acentuação dessas Uma variável quantitativa é uma
características e articulação das variável cujas modalidades têm
mesmas, para formar um quadro de um valor numérico (por exemplo,
pensamento coerente. (M. Weber) a altura ou o rendimento). Uma
variável teste tem como função Verificação empírica: comprovação
assegurar que a relação pressuposta das hipóteses a partir da observa-
pela hipótese principal não é fala- ção e da análise das informações
ciosa. (R. Boudon; P. Lazarsfeld) recolhidas.
T RAJECTOS
1. ANTES DE SÓCRATES — INTRODUÇÃO AO 20. REFLEXÕES SOBRE A REVOLUÇÃO
ESTUDO DA FILOSOFIA GREGA NA EUROPA
José Trindade Santos Ralf Dahrendorf

. HISTÓRIA DA FILOSOFIA — PERÍODO 21. A SOMBRA — ESTUDO SOBRE


CRISTÃO A CLANDESTINIDADE COMUNISTA
Fernand Van Steenberghen José Pacheco Pereira

. ACONDIÇÃO PÓS-MODERNA 22. DO SABER AO FAZER: PORQUÊ ORGANIZAR


Jean-François Lyotard A CIÊNCIA
João Caraça
. METADIÁLOGOS
Gregory Bateson 25: PARA UMA HISTÓRIA CULTURAL
E. H. Gombrich
. ELEMENTOS DE FILOSOFIA DA CIÊNCIA
Ludovic Geymonat
24. A IDENTIDADE ROUBADA
. DO MUNDO FECHADO AO UNIVERSO José Carlos Gomes da Silva

INFINITO
25. A METODOLOGIA DA ECONOMIA
Alexandre Koyré
Mark Blaug
- GEOGRAFIA HUMANA — TEORIAS
26. A VELHA EUROPA E À NOSSA
E SUAS APLICAÇÕES
Jacques Le Goff
M.G. Bradford e W. A. Kent
E. A CULTURA DA SUBTILEZA — ASPECTOS
. OS GREGOS E O IRRACIONAL
E. R. Dodds
DA FILOSOFIA ANALÍTICA
M.sS. Lourenço
. O CREPÚSCULO DA IDADE MÉDIA
EM PORTUGAL 28. CONDIÇÕES DA LIBERDADE
António José Saraiva Ernest Gellner

. O NASCIMENTO DE UMA NOVA FÍSICA 29. TELEVISÃO, UM PERIGO PARAA


I. Bernard Cohen DEMOCRACIA
Karl Popper e John Condry
ll. AS DEMOCRACIAS CONTEMPORÂNEAS
Arend Lijphart 30. RAWLS, UMA TEORIA DA JUSTIÇA
E OS SEUS CRÍTICOS
12. A RAZÃO NAS COISAS HUMANAS Chandran Kukathas e Philip Pettit
Herbert Simon
81. DEMOGRAFIA E DESENVOLVIMENTO:
15, PRÉ-ÂMBULOS — OS PRIMEIROS PASSOS ELEMENTOS BÁSICOS
DO HOMEM Adelino Torres
Yves Coppens
82, O REGRESSO DO POLÍTICO
14. O TOMISMO
Chantal Mouffe
F. Van Steenberghen
33: A MUSA APRENDE A ESCREVER
15. O LUGAR DA DESORDEM
Eric A. Havelock
Raymond Boudon

16. CONSENSO E CONFLITO 34. NOVAS REGRAS DO MÉTODO


Seymour Martin Lipset
SOCIOLÓGICO
Anthony Giddens
1z. MANUAL DE INVESTIGAÇÃO
EM CIÊNCIAS SOCIAIS 85. AS POLÍTICAS SOCIAIS EM PORTUGAL
Raymond Quivy e Luc Van Campenhoudt Henrique Medina Carreira

18. NAÇÕES E NACIONALISMO 36. A ECONOMIA PORTUGUESA DESDE 1960


Ernest Gellner José da Silva Lopes

19. ANGÚSTIA ECOLÓGICA E O FUTURO Sa IDENTIDADE NACIONAL


Eurico Figueiredo Anthony D. Smith
38. COMO REALIZAR UM PROJECTO 5. O DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE
DE INVESTIGAÇÃO Amartya Sen
Jud ith Bell
58. O INIMIGO PÚBLICO
39. ARQUEOLOGIA — UMA BREVE Nuno Rogeiro
INTRODUÇÃO
Paul Bahn 59. PRINCÍPIOS DE MACROECONOMIA
José Manuel Madeira Belbute
40. PRÁTICAS E MÉTODOS DE INVESTIGAÇÃO
EM CIÊNCIAS SOCIAIS . INTRODUÇÃO À ANÁLISE DOS FENÓMENOS
Luc Albarello, Françoise Digneffe, Jean-Pierre SOCIAIS
Hiernaux, Christian Maroy, Danielle Ruquoy Luc Van Campenhoudt
e Pierre de Saint-Georges
6 . O MÉDIO ORIENTE E O OCIDENTE — O QUE

m
4 . A «REPÚBLICA VELHA» (1910-1917) ENSAIO CORREU MAL?
-

Bernard Lewis
Vasco Pulido Valente

62. RELAÇÕES INTERNACIONAIS AS TEORIAS


42. OS NOVOS MEDIA E O ESPAÇO PÚBLICO
EM CONFRONTO
Rogério Santos
James E. Dougherty e Robert L. Pfaltzgraff, Jr.
43. EDUCAÇÃO OU BARBÁRIE?
63. AS INFORMAÇÕES EM PORTUGAL
Guilherme d”Oliveira Martins
Pedro Cardoso

44. FASCISMO E COMUNISMO . OS INTELECTUAIS E O LIBERALISMO


François Furet e Ernst Nolte
Raymond Boudon
45. DOMESTICAR A TERRA 65. O PARADOXO DO PODER AMERICANO
François Furet e Ernst Nolte Joseph S. Nye, Jr.

46. A COMPREENSÃO SOCIOLÓGICA 66. AMBIÇÃO PARA A EXCELÊNCIA


Dominique Schnapper José Veiga Simão, Sérgio Machado dos Santos
e António de Almeida Costa
47. AS VIAGENS DO INFANTE D. PEDRO
Margarida Sérvulo Correia 67. CONSTRUÇÃO DE ESTADOS
Francis Fukuyama
48. SOLIDARIEDADE SUSTENTADA —
REFORMAR A SEGURANÇA SOCIAL 68. ROUSSEAU E OUTROS CINCO INIMIGOS
António Correia de Campos DA LIBERDADE
Isaiah Berlin
49. A RIQUEZA E A POBREZA DAS NAÇÕES
David S. Landes 69. PORTUGAL — IDENTIDADE E DIFERENÇA
Guilherme d'Oliveira Martins
50. TEORIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Kenneth N. Waltz 70. A TRAGÉDIA DA POLÍTICA DAS GRANDES
POTÊNCIAS
5 . COMPREENDER OS CONFLITOS John J. Mearsheimer
m

INTERNACIONAIS
Joseph S. Nye, Jr. 71. UM OLHAR SOBRE A POBREZA
Alfredo Bruto da Costa (coord.), Isabel Baptista,
52: PÚBLICOS DA CIÊNCIA EM PORTUGAL Pedro Perista, Paula Carrilho
António Firmino da Costa, Patrícia Ávila e Sandra
Mateus 72. O MUNDO PÓS-AMERICANO
Fareed Zakaria
5a. ENSINO SUPERIOR: UMA VISÃO PARA A
73. O MITO DAS NAÇÕES
PRÓXIMA DÉCADA
Patrick J. Geary
José Veiga Simão, Sérgio Machado dos Santos
e António de Almeida Costa 74. WELLINGTON CONTRA MASSENA
David Buttery
54. O MILAGRE EUROPEU
E. L. Jones dos COLAPSO
Jared Diamond
55. MÉTODOS NÃO INTERFERENTES
EM PESQUISA SOCIAL 76. O RELATIVISMO
Raymond M. Lee Raymond Boudon

56. INTRODUÇÃO À GEOPOLÍTICA lia O QUE É O OCIDENTE?


Philippe Moreau Defarges Roger-Pol Droit
78. PATRIMÓNIO, HERANÇA E MEMÓRIA 97 - OS ESTADOS UNIDOS E A CRISE
Guilherme d"Oliveira Martins DO PODER MUNDIAL
Zbigniew Brzezinski
79. LIDERANÇA E PODER
Joseph S. Nye Jr. 98 . NA SENDA DE FERNÃO MENDES —
PERCURSOS PORTUGUESES NO MUNDO
80. SAÚDE — A LIBERDADE DE ESCOLHER Guilherme d'Oliveira Martins
José Mendes Ribeiro
99 . OS BANQUEIROS VÃO NUS — O QUE
81. A REVOLUÇÃO NO TEMPO ESTÁ MAL NA BANCA E COMO
David S. Landes O CORRIGIR
Anat Admati e Martin Hellwig
82. A GRANDE SEPARAÇÃO — RELIGIÃO,
POLÍTICA E O OCIDENTE MODERNO 100. A ERA DO DESLUMBRAMENTO — COMO
Mark Lilla A GERAÇÃO ROMÂNTICA DESCOBRIU
83. BREVE HISTÓRIA DA HUMANIDADE —
A BELEZA E O TEMOR DA CIÊNCIA
Richard Holmes
CENTO E CINQUENTA MIL ANOS DA NOSSA
HISTÓRIA 101. A DEMOGRAFIA E O PAÍS — PREVISÕES
Cyril Aydon
CRISTALINAS SEM BOLA DE CRISTAL
84. PORTUGAL, SALAZAR E OS JUDEUS Eduardo Anselmo Castro, José Manuel Martins
Avraham Milgram e Carlos Jorge Silva

85. AS QUATRO DIMENSÕES DO DOENTE 102. A NOVA EMIGRAÇÃO PORTUGUESA


DEPRESSIVO João Peixoto (coord.)
Francisco Alonso-Fernández
103. A AQUISIÇÃO DA ESCRITA
86. PORTUGAL NA HORA DA VERDADE — Michel Fayol
COMO VENCER A CRISE NACIONAL
Álvaro Santos Pereira
104. A PRIMEIRA REPÚBLICA —
NA FRONTEIRA DO LIBERALISMO
87. A CIDADE DAS PALAVRAS E DA DEMOCRACIA
Alberto Manguel Miriam Halpern Pereira

88. O CHAPÉU DE VERMEER — O SÉCULO XVII 105. A FLORESTA EM PORTUGAL — UM APELO


E O NASCIMENTO DO MUNDO GLOBAL À INQUIETAÇÃO CÍVICA
Timothy Brook Victor Louro

89. COMPREENDER AS RELAÇÕES 106. MUDANÇA NO JOGO GLOBAL — COMO


INTERNACIONAIS A FAIXA SUL IRÁ TRANSFORMAR
Chris Brown e Kirsten Ainley O MUNDO
John Naisbitt e Doris Naisbitt
90. GALILEU NA PRISÃO — E OUTROS MITOS
SOBRE CIÊNCIA E RELIGIÃO 107. POPULISMO — UMA BREVÍSSIMA
Ronald L. Numbers (org.) INTRODUÇÃO
Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser
91. MOUNIER — O COMPROMISSO POLÍTICO
Guy Coq 108. O MODELO CHINÊS — A MERITOCRACIA
POLÍTICA E OS LIMITES DA DEMOCRACIA
92, OS SUPERFICIAIS — O QUE A INTERNET Daniel A. Bell
ESTÁ A FAZER AOS NOSSOS CÉREBROS
Nicholas Carr 109. A MALDIÇÃO DO DINHEIRO
Kenneth S. Rogoff
93: O COLONIALISMO NUNCA EXISTIU! —
COLONIZAÇÃO, RACISMO E VIOLÊNCIA: Ho. A INQUISIÇÃO DE LISBOA (1537-1579)
MANUAL DE INTERPRETAÇÃO Daniel Norte Giebels
Gabriel Mithá Ribeiro
JE. UM RACISMO IMAGINÁRIO —
94. O FIM DO PODER ISLAMOFOBIA E CULPABILIDADE
Moisés Naím Pascal Bruckner

95. UMA CRISE PORTUGUESA LIZ. AO ENCONTRO DA HISTÓRIA — O CULTO


Francisco da Conceição Espadinha DO PATRIMÔNIO CULTURAL
Guilherme d'Oliveira Martins
96. PORTUGAL 2015: UMA SEGUNDA
OPORTUNIDADE? — INOVAÇÃO 113. MANIFESTO PARA A PRODUTIVIDADE —
E DESENVOLVIMENTO E O DESAZO DA ECONOMIA PORTUGUESA
Lino Fernandes António S. Carvalho Fernandes
14. O DRAMA DE MAGALHÃES E A VOLTA AO 19. POR UM POPULISMO DE ESQUERDA
MUNDO SEM QUERER — seguido de UM Chantal Mouffe
MUSEU DOS DESCOBRIMENTOS: PORQUE
NÃO? 120. ACORDO ORTOGRÁFICO — UM BECO
Luís Filipe F. R. Thomaz COM SAÍDA
Nuno Pacheco
115. «SAÚDE E FRATERNIDADE!» —
A REPÚBLICA POSSÍVEL (1910-1926) 12h: A RELIGIÃO DOS FRACOS —
Fernando Pereira Marques
O QUE O JIHADISMO DIZ DE NÓS
Jean Birnbaum
116. O GENOCÍDIO OCULTADO —
INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA SOBRE 122. A ORDEM LIBERAL INTERNACIONAL

O TRÁFICO NEGREIRO ÁRABO- TERÁ CHEGADO AO FIM?


Niall Ferguson vs. Fareed Zakaria
“MUÇULMANO
Tidiane NºDiaye
123. MANUAL DE INVESTIGAÇÃO
17. PORQUE ESTÁ A FALHAR EM CIÊNCIAS SOCIAIS
O LIBERALISMO? Luc Van Campenhoudt, Jacques Marquet
e Raymond Quivy
Patrick J. Deneen

118. MENTES TIRÂNICAS — PERFIS


PSICOLÓGICOS, NARCISISMO
E DITADURA
Dean A. Haycock

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