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POLÍTICA SOCIAL
Formas de actuação
no contexto europeu

JOSÉ ANTÓNIO PEREIRINHA


ISBN: 978-972-674-584-6
José António Pereirinha

POLÍTICA SOCIAL
Formas de Actuação no Contexto Europeu

Universidade Aberta
2008

© Universidade Aberta

Capa: Esperança Marques.

Copyright © UNIVERSIDADE ABERTA – 2008


Palácio Ceia • Rua da Escola Politécnica, 147
1269-001 Lisboa – Portugal
www.univ-ab.pt
e-mail: cvendas@univ-ab.pt

TEXTOS DE BASE (cursos formais) N.º 309


ISBN: 84-6

© Universidade Aberta
JOSÉ ANTÓNIO PREIRINHA

Nascido em 1951, em Lisboa, fez os estudos secundários no Liceu Passos Manuel e no Liceu Padre
António Vieira. Concluiu a licenciatura em Economia em 1973, no Instituto Superior de Economia (actual
ISEG) da Universidade Técnica de Lisboa. Obteve, em 1988, o grau académico de Doctor of Philosophy
in Development Studies no Institute of Social Studies, em Haia (Holanda), reconhecido como grau de
doutor pela Universidade Técnica de Lisboa. Obteve, em 1995, o título de Agregado em Economia pela
Universidade Técnica de Lisboa.
É Professor Catedrático do Departamento de Economia do Instituto Superior de Economia e Gestão
(ISEG) da Universidade Técnica de Lisboa (UTL). É actualmente o Presidente do Conselho Científico do
ISEG/UTL. Foi Presidente do Departamento de Economia do ISEG e Presidente do Centro de Investigação
sobre Economia Portuguesa (CISEP), no ISEG/UTL. Exerce actualmente funções de Presidente do Conselho
Consultivo do Instituto de Segurança Social, I.P.
Exerceu funções técnicas como economista no Ministério do Trabalho (Gabinete de Estudos e
Planeamento) e no Ministério das Finanças e do Plano (Departamento Central de Planeamento, actual
Departamento de Planeamento e Prospectiva, onde foi Chefe de Divisão). É professor universitário
em exclusividade desde 1990. Tem leccionado disciplinas de licenciatura e de mestrado, nas áreas da
teoria económica e da política económica e social. É actualmente o coordenador da unidade curricular
Fundamentos da Política Social, do 2º ciclo (mestrado de Análise de Política Social) do ISEG/UTL. Foi
durante vários anos o coordenador do Mestrado em Economia e Política Social, no ISEG/UTL, tendo
orientado várias dissertações de mestrado e teses de doutoramento nas áreas da distribuição do rendimento,
desigualdades sociais, pobreza e exclusão social, segurança social e análise de políticas sociais.
Tem feito investigação, coordenado equipas de investigação e publicado nas áreas da análise das políticas
sociais, desigualdades do rendimento, pobreza e exclusão social. Nos anos mais recentes tem trabalhado
na investigação nos seguintes domínios: história do Estado-providência em Portugal, problemática do
envelhecimento e segurança social, pobreza numa perspectiva de género, indicadores sociais, política social
numa perspectiva de análise comparativa.

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Política Social: formas de actuação no contexto europeu

7 Introdução

11 1. Estado-providência: conceito e incursão histórica


16 Estado-providência: uma (primeira) delimitação conceptual
17 Origens do Estado-providência: a criação das primeiras medidas
24 expansão do Estado-providência: a difusão das medidas sociais
32 O Estado-providência em Portugal: uma digressão histórica
34 Trajectórias de crescimento do Estado-providência no pós-guerra
39 Políticas de redução (“retrenchment”) do Estado-providência

45 2. Objectivos, funções e instrumentos do Estado-providência


50 Dimensão social da integração europeia: análise evolutiva
61 A estratégia de Lisboa e a Agenda Social Europeia
64 A dimensão e as funções sociais do Estado na União Europeia

71 3. Modelo social europeu e regimes de Estado-providência


75 Análises comparativas de Estados-providência
78 Esping-Andersen e os três mundos do capitalismo de bem-estar
85 Variedade de tipologias de Estado-providência
90 A Europa do Sul: realidade ou modelo?
92 As reformas e o futuro do Estado-providência na Europa

99 4. Pluralidade de actores: o welfare-mix


104 “Welfare pluralism” e o triângulo de bem-estar na actualidade
110 Os três sectores da política social: uma distinção conceptual
115 O terceiro-sector da política social: conceito(s) e dimensão económica
117 Justificações para a actuação do Terceiro Sector
120 O terceiro sector em Portugal

127 5. Economia das pensões


131 Função e natureza dos sistemas de pensões
134 Sistemas de pensões de repartição e de capitalização
138 Funcionamento agregado de sistemas de pensões
141 Mecanismos de garantia de recursos (ou de rendimento mínimo)
145 Sistemas de pensões, crise e reformas

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153 6. Avaliação dos efeitos redistributivos das políticas sociais
157 O rendimento disponível das famílias
160 Rendimento disponível mercantil e operações de redistribuição
165 Efeito redistributivo da despesa pública
167 Progressividade das actuações das políticas públicas
169 Decomposição do índice de Gini
173 Efeito redistributivo das transferências na União Europeia
175 Efeito das transferências sobre a redução da pobreza

184 Anexo 1: Nota sobre a curva de concentração (generalização da curva


de Lorenz)
188 Anexo 2 Nota metodológica sobre a avaliação de efeitos redistributivos
de transferências

193 Referências bibliográficas

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Introdução

Este livro vai ocupar-se da análise da Política Social nas suas formas concretas de actuação nos países
da União Europeia. Confunde-se assim com a análise do funcionamento dos Estados-providência, tal
como se configuram na actualidade no conjunto destes países. Trata-se, assim, de observar a realidade
da actuação dos Estados na sua finalidade de promoção e garantia de direitos sociais, na diversidade que
tais actuações assumem na actualidade em termos de objectivos, instrumentos e modos organizativos
e processuais de decisão. Mas também em termos de resultados que decorrem dessa actuação, das
restrições que se colocam à sua eficácia e das vulnerabilidades que os sistemas nacionais de garantia
de direitos sociais defrontam actualmente na sua sustentabilidade. Pressupõe um conhecimento dos
fundamentos económicos e normativos para a actuação do Estado, mas orienta-se agora para a sua
actuação concreta, tal como a podemos encontrar no que actualmente se designa como modelo social
europeu.

Pretende-se que, no final da leitura deste livro, os leitores tenham alcançado os seguintes objectivos
principais: i) conheçam o âmbito e as formas de actuação das políticas sociais dos Estados europeus,
a sua diversidade actual nos vários regimes de Estado-providência que actualmente caracterizam o
espaço europeu, os diferentes níveis, nacional e supranacional, em que essas políticas são preparadas,
executadas e avaliadas, ficando habilitados a discutir o significado actual da Política Social Europeia;
ii) conheçam a diversidade de actores de Política Social que actualmente caracterizam a actuação dos
Estados-providência, a sua natureza de welfare pluralism com um crescente peso, em articulação com o
Estado, do sector privado lucrativo e das organizações do chamado “terceiro sector”; iii) conheçam as
características dos sistemas de protecção social, com particular destaque para os sistemas de pensões,
em termos dos princípios em que assentam o seu funcionamento (repartição e capitalização, sistemas
multi-pilares de organização dos sistemas) e das formas que têm assumido as suas progressivas
transformações, desde as suas origens até às reformas que têm tido nos tempos mais recentes; iv)
consigam integrar, num quadro de discussão teoricamente bem fundamentado, os actuais problemas
sociais no espaço europeu com as tendências que a Política Social têm vindo a ter, as reformas que têm
vindo a ser pensadas e concretizadas, e os desafios que se colocam actualmente a esses sistemas.

O livro está estruturado em seis capítulos que pretendem cobrir, na sua globalidade, os objectivos
atrás enunciados. Inicia-se com um capítulo (capítulo 1) dedicado ao conceito de Estado-providência,
que necessita de clarificação prévia dado o carácter central que vai assumir ao longo do livro. Trata-
-se de um conceito de origem europeia, historicamente localizado, mas com diversidades actuais que
radicam, em grande medida, nas diversas condições sociais, económicas e políticas em que surgiram
e se difundiram no espaço europeu. É portanto necessário que o livro se inicie com uma perspectiva
histórica relativamente à origem das formas actuais de actuação do Estado na provisão de bem-estar
social, bem como dos processos de difusão dessas modalidades de intervenção até às suas formas
actuais.

Segue-se-lhe um capítulo (capítulo 2) dedicado a uma apresentação dos Estados-providência europeus,


caracterizando a sua actuação nas funções que desempenham nos diversos Estados que constituem a
actual União Europeia (UE-27), quantificando o valor económico dessas funções e a sua diversidade
no contexto da UE. Mas, tratando-se de um espaço económico e político que envolve várias realidades

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nacionais, as dimensões sociais da construção europeia foram tendo uma evolução em que se formaram
diversos níveis de intervenção política na formulação das políticas sociais, destacando-se claramente
os níveis nacional (dos Estados Membros, responsáveis pela preparação e execução das políticas) e
o nível supra-nacional (da Comissão Europeia e das várias instâncias do poder na União) em que se
definem estratégias e se formam linhas de orientação que marcam a Política Social e as formas de
actuação dos Estados-providência nacionais. É fundamental ter-se esta visão integrada em termos da
Europa da UE-27, observando a evolução da Política Social Europeia (conceito que deve ser discutido)
e as sucessivas fases de alargamento que vieram tazer, para a União Europeia, uma riqueza muito
significativa de formas e modalidades de intervenção dos Estados em Política Social.

É necessário, então, conhecer a diversidade de formas de intervenção do Estado. É vasta a literatura


que tem sido produzida sobre essa diversidade, existindo diversas tipologias de Estado-providência,
propostas por vários autores, onde se enquadram as formas concretas assumidas nos Estados
europeus. Dedicaremos um capítulo (capítulo 3) à apresentação destas tipologias, ao suporte teórico
em que assentam algumas delas, às características gerais destes modelos de Estado-providência e,
naturalmente, evidenciaremos as potencialidades, para a análise da realidade social e para a Política
Social, que decorrem destas tipologias e também as suas limitações. Será neste capítulo que dedicaremos
alguma atenção especial ao modelo de Estado-providência do Sul da Europa, onde se localiza o caso
português.

Dedicaremos o capítulo seguinte (capítulo 4) ao pluralismo dos actores e ao papel do welfare mix
na actualidade. Nas sociedades contemporâneas, designadamente nos países europeus, assiste-se a
formas de pluralismo providencial (“welfare pluralism”) envolvendo, na provisão do bem-estar, formas
variadas de articulação dos três sectores da Política Social: o Estado, o Mercado e o “Terceiro Sector”,
ou sector da economia social. Não pode analisar-se a Política Social sem se terem em consideração
estas formas de welfare mix, em que os vários sectores têm uma lógica própria de intervenção, cuja
contribuição conjunta assume formas diferenciadas nas várias sociedades europeias e têm, também,
tido uma evolução no sentido do seu progressivo desenvolvimento. A par de alguma justificação
teórica para a existência do sector de economia social, apresentar-se-á informação sobre a dimensão
económica deste sector, quer ao nível mundial quer ao nível europeu e, em particular, em Portugal,
destacando-se as funções que desempenham e as lógicas distintas que apresentam e a lógica da sua
articulação em Política Social.

O capítulo seguinte (capítulo 5) será dedicado à protecção social. Uma área central de actuação dos
Estados-providência é a proteccção contra riscos sociais, cuja justificação económica e normativa
foi analisada noutra ocasião. A segurança social, em particular as pensões de velhice, absorvem uma
parte significativa do orçamento social dos Estados europeus. É também relativamente à possibilidade
económica de garantir direitos sociais de protecção contra estes riscos sociais que se questiona a
sustentabilidade dos Estados-providência actuais. E também, devido à necessidade de o assegurar, que
os Estados nacionais têm procurado reformar os seus sistemas, e os organismos internacionais têm dado
orientações que suportam, ou impulsionam, algumas dessas reformas. Neste capítulo retomaremos o que
noutra ocasião foi exposto sobre a fundamentação da segurança social e abordaremos a fundamentação
do sistema de repartição, ou PAYG, e o sistema de capitalização. Será apresentado um modelo simples
de comportamento de um agente face a diferentes sistemas de protecção social e analisaremos, de
seguida, o comportamento agregado na economia, identificando-se os factores de vulnerabilidade destes

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dois sistemas, de forma comparada. Discutir-se-ão as diversas questões que se colocam a propósito
das reformas dos sistemas, passando em revista os principais marcos históricos relativos a orientações
de reforma dos sistemas que tiveram lugar nos anos recentes. Será dado algum relevo a experiências
europeias e, em particular, a Portugal.

Finalmente, no capítulo seguinte (capítulo 6) faremos incidir a nossa atenção sobre a avaliação dos
efeitos redistributivos de programas sociais. Os programas sociais têm efeito sobre a distribuição do
rendimento, alterando-a e, com ela, alterando também a desigualdade do rendimento. Nem todos os
programas sociais têm por finalidade essa redução das desigualdades. Mas é sempre desejável que o
façam. Vimos, em outra ocasião, que a equidade é um critério relevante de análise em Política Social.
Em particular, faz todo o sentido que o consideremos quando pretendemos avaliar o efeito de prestações
sociais. Apresentaremos uma metodologia de análise dos efeitos, sobre a distribuição do rendimento e
sobre a desigualdade, de transferências sociais. Apresentaremos também uma metodologia de análise
de efeito de transferências sociais sobre a pobreza monetária, ilustrando com dados recentes relativos
à União Europeia.

A organização do livro tem a preocupação de orientar o leitor para o aprofundamento dos temas
tratados ao longo dos capítulos. Para esse efeito, em cada capítulo apresentam-se sugestões de leitura
de aprofundamento e questões para reflexão.

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1. Estado-providência: conceito e incursão histórica

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Sumário

1.1 Estado-providência: uma (primeira) delimitação conceptual

1.2 Origens do Estado-providência: a criação das primeiras medidas

1.3 Expansão do Estado-providência: a difusão das medidas sociais

1.4 O Estado-providência em Portugal: uma digressão histórica

1.5 Trajectórias de crescimento do Estado-providência no pós-guerra

1.6 Políticas de redução (“retrenchment”) do Estado-providência

Leituras complementares

Palavras-chave

Questões para revisão e reflexão

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Objectivos

O que se espera da leitura deste capítulo:

• Que os leitores compreendam o conceito de Estado-providência


(welfare state) e identifiquem, na delimitação do seu conteúdo, a
actualidade deste conceito para compreender as finalidades e os
objectivos da Política Social nos Estados modernos;

• Que os leitores fiquem a conhecer as origens do Estado-providência,


a natureza das primeiras medidas de protecção social tomadas e o
seu desenvolvimento a todo o mundo contemporâneo, identificando
os principais marcos históricos nesse desenvolvimento;

• Que os leitores identifiquem as principais fases da construção do


Estado-providência em Portugal e que as consigam relacionar com a
evolução das medidas de política que foram sendo tomadas no resto
da Europa, enquadrando-as temporalmente nesse processo;

• Que os leitores conheçam os principais traços característicos das


trajectórias de crescimento da dimensão do Estado-providência, na
Europa e no resto do mundo, ficando a conhecer ordens de grandeza
para a sua magnitude, posição relativa dos Estados e etapas desse
crescimento;

• Que os leitores conheçam algumas das ideias recentes sobre a redução


(retrenchment) do Estado-providência e perspectivas teóricas da
literatura sobre estas matérias.

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O conceito de Estado-providência encontra-se hoje muito vulgarizado na
literatura e na discussão pública sobre o papel social do Estado. Essa presença
deve-se a várias razões. Alguns consideram que o Estado‑providência é
demasiado consumidor de recursos económicos, desviando-os de utilizações
mais produtivas: visando objectivos de coesão social, podem comprometer
objectivos de competitividade. Outros receiam que o crescimento da sua
dimensão económica prossiga e até se acentue, não sendo sustentável tal
crescimento e portanto alguns direitos sociais estão em perigo: poderia falar-se
em crise do Estado-providência, seja ela crise financeira (insustentabilidade)
ou crise de legitimidade (impossibilidade de manter o seu papel de
sustentação do sistema capitalista). Alguns autores consideram que o Estado-
providência deve ser reformado, não deixando de ter papel regulador de
direitos, mas funcionando numa base de suporte financeiro e de envolvimento
diferentes dos actores sociais, uma vez que não se verificam já as condições
(económicas, demográficas) que existiam aquando da sua criação. Fala-se
assim na necessidade de reforma, de redução (“retrenchment”) do Estado-
providência, de uma nova política de Estado-providência (“new politics of
the Welfare State”), de reforço do “welfare pluralism”, da criação de formas
de parceria público-privado, desenvolvimento de “quasi-markets” que se
substituam ao poder hegemónico do Estado na provisão do bem-estar, etc.

Para compreendermos estas questões e seguirmos estes debates, para o


qual irá contribuir a matéria tratada neste livro, temos de começar pela
apresentação e discussão do conceito de Estado-providência, a tradução
portuguesa do termo original anglo-saxonico “Welfare-State”. A compreensão
do conceito obriga, então, a uma digressão histórica sobre as sua origens
(as primeiras medidas e os marcos históricos da sua fundação), sobre os
processos de difusão das medidas tomadas em alguns países. Que factores
permitem explicar o seu surgimento em alguns países, pioneiros de medidas
sociais? Que factores explicam a sua difusão e cescimento entre outros aíses?
O Estado-providência tem assim uma evolução, após a II Guerra Mundial,
que segue trajectóricas de crescimento em toda a Europa, mas marcada,
nos anos 1980, por medidas de tentativa de redução do seu crescimento, ou
mesmo de redução da sua dimensão. É neste debate, sobre qual a dimensão
desejável do Estado-providência, que nos encontramos actualmente bem
como, naturalemnte, sobre a função social que se espera que os Estados
modernos cumpram, e com que recursos. São estas as questões introdutórias
que iremos tratar neste capítulo.

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1.1 Estado-Providência: uma (primeira) delimitação conceptual

Podemos socorrer-nos de uma definição clássica de Asa Briggs, publicada


em 1961, para iniciarmos a apresentação e discussão do conceito de Estado-
-providência. Para este autor, “Um Estado-providência é um Estado onde o
poder organizado é deliberadamente usado (através da actuação política e
da administração) para modificar o funcionamento dos mercados em, pelo
menos, três direcções: i) garantir aos indivíduos e às famílias um rendimento
mínimo que seja independente do valor mercantil da sua riqueza; (ii) reduzir
a insegurança pessoal pemitindo aos indivíduos e às famílias enfrentar
certas contingências sociais (como, por exemplo, a doença, a velhice e o
desemprego) que, de outro modo, originariam uma crise individual e familiar;
(iii) assegurar a todos os indivíduos, sem distinção de estatuto ou classe, a
maior disponibilidade possível de serviços sociais” (BRIGGS, 1961).

Esta definição ajuda a identificar o âmbito das funções sociais do Estado,


tal como se apresentavam nos Estados-providência mais desenvolvidos da
Europa nos anos 60, e que habitualmente identificamos como objectivos
da Política Social. Há um objectivo de gestão de riscos sociais ao proteger
os cidadãos dos efeitos nocivos, sobre os direitos sociais, de fenómenos
contingentes que podem originar perda de rendimento, seja em resultado
de desemprego, de doença ou da velhice. A existência de modalidades de
protecção social contra esses riscos, existentes em todos os países europeus,
que a eles devotam uma parte significativa dos seus orçamentos apesar da
diversidade de modalidades e de peso económico nesse espaço, constitui
talvez a marca mais distintiva do modelo social europeu.

Um objectivo de grande importância nos modernos Estados-providência é o


redistribuição de recursos, realizado com grande diversidade de modalidades
de actuação no espaço europeu. Algumas dessas actuações consistem na
atribuição de transferências sociais monetárias de forma a garantir níveis
mínimos de rendimento. Ao fazê-lo, o Estado está a actuar sobre a distribuição
do rendimento, reduzindo essas diferenças fazendo incidir a atenção sobre a
base da distribuição. Pode também actuar desta forma de modo a evitar que
os cidadãos estejam ou permaneçam abaixo do limiar de pobreza. Existem,
na Europa, várias formas de actuar com vista a essa finalidade. Pode ser
através de uma actuação de âmbito universal, de garantia a todos os cidadãos
de prestações sociais independentemente de terem feito contribuições prévias
para o sistema de protecção social e, portanto, sem relação com a sua carreira
profissional e assente, portanto, numa base de solidariedade geral da sociedade
(sistema fiscal). Pode também estar dependente da existência de contribuições
feitas anteriormente para o sistema de protecção social e de valor relacionado
com o valor dessa contribuição. Estariamos assim numa base de solidariedade
mais estrita, de base profissional (contribuição para um fundo restrito a certa

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profissão, sector de actividade, empresa, região) podendo portanto ter uma
natureza corporativa. Algumas destas transferências podem também ser
means-tested, estando a atribuição da prestação dependente da existência
de carências comprovadas por meios exigíveis pelo sistema. Em qualquer
dos casos o Estado-providência assegura um rendimento mínimo, ainda que
a sua “independência” relativamente ao valor da sua riqueza possa assumir
diferentes formas e níveis.

Outro objectivo, também de natureza redistributiva, tem a natureza de


fornecimento, em géneros, de serviços sociais. Trata-se da provisão de
serviços que têm lugar por razões de eficiência, face a fracassos de mercado,
ou por azões de equidade, dada a natureza desses serviços, necessários para
garantir direitos sociais fundamentais. Esta provisão pode constituir a forma
de fornecimento gratuito de produção pública (por exemplo, um serviço
nacional de saúde) ou o seu fornecimento por agentes privados (do sector
lucrativo ou sem fins lucrativos) com financiamento público. A diversidade
de formas de actuação não põem em causa a essência da actuação do Estado-
-providência, de garantia de provisão desses serviços.

Esta definição ajuda a entender a essência da natureza do Estado-providência


no período do pós-guerra. Mas não permite ainda, na forma como é
apresentado, dar conta da diversidade de modalidades que apresenta na
Europa, nem das alterações que foi tendo ao longo do tempo, desde a criação
das primeiras medidas fundadoras dos sistemas, a difusão entre Estados
das medidas inovadoras tomadas em alguns países, das mais recentes
transformações que tiveram lugar. É disso que vamos tratar de seguida.

1.2 Origens do Estado-providência: a criação das primeiras


medidas

O termo “Estado-providência” ficou consagrado, na língua portuguesa, como


tradução do termo “Welfare State”, surgido em Inglaterra em 1941. Vivia-se
um clima de guerra e surgiu da voz de um eclesiástico, o Arcebispo Temple,
o apelo à necessidade de um Estado de “Welfare” por contraste com um
Estado de “Warfare” que caracterizava o regime nazi, e que seria necessário
criar após o fim da guerra. Aqui reside uma curiosidade histórica: o facto
de o conceito, que hoje é consensual, ter surgido num país (Inglaterra),
embora as primeiras medidas de política que lhe deram conteúdo, terem
surgido muito antes, em outros países na Europa: em 1889 na Alemanha e
em 1891 na Dinamarca. É, aliás, a partir destes dois países que nascem e se
desenvolvem as duas famílias de sistemas de protecção social que vêm marcar
as principais diferenças nos actuais regimes de bem-estar, e às quais faremos

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referência mais adiante. Mas o termo “Welfare State” ficou definitivamente
consagrado e associado ao modelo britânico de provisão do bem-estar após
o surgimento do famoso relatório “Social Insurance and Allied Services”,
redigido e apresentado por William Beveridge no Parlamento inglês em 1942
e que ficou sendo universalmente conhecido por Relatório Beveridge.

Os Estados-providência que hoje caracterizam o modelo social europeu são,


assim, o resultado de processos de difusão, principalmente após a II Guerra
Mundial, de medidas de política social tomadas em alguns países fundadores.
Importa assim conhecer a natureza dessas medidas, questionarmo-nos sobre
os factores que explicam que elas tenham sido tomadas nesses países e,
naturalmente, o que explica que essas medidas tenham dado origem, por
difusão, ao que hoje caracteriza o mosaico de diversidade de regimes de
Estado-providência na Europa e no resto do mundo.

As primeiras medidas tomadas pelos governos e que estão na origem dos


actuais programas sociais do Estado-providência foram de natureza de seguro,
não tendo sido todas elas criadas simultaneamente mas por uma ordem em
que inicialmente visaram proteger dos riscos de acidentes de trabalho, se
estenderam ao seguro de doença e à protecção na velhice, posteriormente
às prestações de protecção no desemprego (FLORA & ALBER, 1984) e só
mais recentemente às prestações familiares e seguros de saúde.

O Quadro 1.1 apresenta as datas da introdução das primeiras medidas que


originaram os programas sociais que actualmente constituem a segurança
social.

Quadro 1.1 – Datas da introdução de alguns programas sociais

Seguro de
Seguro Seguro Seguro
acidentes Seguro de Prestações
País de de de
de desemprego familiares
doença velhice Saúde
trabalho
Alemanha 1884 1883 1889 1927 1954 1880
Reino 1887 (1)
1911 1908 1911 1945 1948
Unido 1906 (2)
Suécia 1901 1910 1913 1934 1947 1962
Canadá 1930 1971 1927 1940 1944 1972
EUA 1930 ----- 1935 1935 ----- -----
1898 1905 (1)
França 1930 1905 (1) 1932 1945
1946 (**) 1910 (2)

1928 (1)
Itália 1898 1919 1919 1936 1945
1943 (2)
Fonte: KUDRLE & MARMOR (1984:83)
(1) Segundo Hugh Heclo; (2) Segundo Peter Flora
(**) Sistema obrigatório

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Estes programas incluem prestações de substituição de rendimento (perdido
por motivo de acidentes de trabalho, desemprego, doença ou por razões de
idade) ou de complemento de rendimento (compensando despesas devido a
aumento da dimensão familiar). Trata-se de um conjunto de riscos sociais cuja
cobertura, sob a responsabilidade do Estado, surge como inovação política
num conjunto muito limitado de países europeus no final do sec. XIX.

A criação destas medidas significa um “corte com o liberalismo” (FLORA


& ARBER, 1984:50-51), ou seja, com as ideias e práticas liberais que
remetem para cada indivíduo a responsabilidade pela gestão dos seus
interesses próprios. Este corte tem lugar quer pela natureza obrigatória do
seguro quer pela responsabilidade financeira assumida pelo Estado com a sua
criação. Mas significam também, para os vários programas sociais, ruturas
de natureza e magnitude distinta. Assim, comparando estes programas,
o seguro contra acidentes de trabalho é o que constiui um corte menos
radical, uma vez que se traduz numa transferência, para o Estado, de uma
responsabilidade patronal por danos causados aos trabalhadores. Essa
transferência é justificada pela crescente industrialização, obrigando a formas
automáticas e reguladas de reparação de danos, e ao facto dessa crescente
industrialização estar a originar uma progressiva colectivização dos riscos.
O seguro de doença e a pensão de velhice, como programas obrigatórios
de segurança social, constituem já cortes mais radicais com o liberalismo,
pois pretendem assegurar rendimentos de substiuição que poderiam ser
assegurados por comportamentos individuais racionais de precaução e
seguro, ressalvando assim o efeito de comportamentos de miopia, como
vimos em outra ocasião. Já o seguro de desemprego constitui, entre todos, o
corte mais radical com as ideias liberais, pois significaram a rutura com uma
ideia, por vezes generalizada, da existência de desemprego como fenómeno
voluntário ou de ser passível de resolução se houver maior disponibilidade
pelos desempregados de aceitar postos de trabalho vagos. Não se estranhará
assim a ordem pela qual estes programas sociais foram sendo criados, do
que constitui um corte menos radical ao que mais acentuadamente rompe
com as ideias e as práticas liberais.

Devemos então concentrar a nossa atenção naquele conjunto limitado de


países que iniciaram estas medidas, conhecendo a sua natureza: a Alemanha,
os países Escandinavos e o Reino Unido.

Foi na Alemanha, como vimos, que foram tomadas as primeiras medidas de


política de protecção contra riscos sociais, políticas inovadoras que tiveram
repercussão em todo o mundo da época, como adiante se verá. Tal ficou a
dever-se a Bismark que, tendo sido nomeado primeiro ministro da Prússia em
1862, se tornou, após a guerra vitoriosa com a França em 1870 e a unificação
dos estados alemães, o chanceler do império germânico em 1871. A política

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de Bismark ficou conhecida pelas marcas do nacionalismo e militarismo e
pela oposição aos ideais social democratas em desenvolvimento na década
de 1880 e de reforço do poder central do Estado. A crescente industrialização
do país, as exigências crescentes do movimento operário e a necessidade de
conter os ideais social-democratas levou Bismark a desenvolver uma política
social apresentando, no Parlamento Nacional (Reichstag) um conjunto de
propostas de lei que constituem os alicerces fundadores da segurança social.
Na sua mensagem ao Parlamento em 17 de Novembro de 1881, afirmava
que “devem curar-se as feridas sociais não só reprimindo os excessos
social-democratas mas também através de avanços positivos de progresso
do bem-estar dos trabalhadores”. Com este objectivo, e em menos de uma
década (entre 1883 e 1889), Bismark fez aprovar no Reichstag legislação
fundamental criando prestações de seguro obrigatório relativamente a alguns
riscos sociais, fundando assim o primeiro sistema de segurança social de
natureza obrigatória.

A legislação provada consistiu num conjunto de três leis que vieram a


consagrar um sistema de seguro obrigatório relativamente a riscos de acidentes
de trabalho, de doença, de invalidez e velhice (KHOUDOUR‑CASTERAS,
2004). A primeira destas leis, aprovada em 15 de Junho de 1883, criou
um seguro de doença para os trabalhadores com salário anual inferior a
2,000 marcos, com base num financiamen­to por contribuição em 2/3 pelos
trabalhadores e em 1/3 pela entidade patronal. Este seguro cobria tratamento
médico até 13 semanas e o pagamento de apoio financeiro equivalente a ¾
do salário. A segunda lei, aprovada em 6 de Julho de 1884, criou o seguro
de acidentes de trabalho, totalmente financiado por contribuições patronais.
No caso de invalidez permanente e total, os trabalhadores receberiam uma
renda periódica correspondente a 2/3 do seu salário anual, transmitindo o
direito ao pagamento de salário aos órfãos e viúvas em caso de morte. A
terceira lei, aprovada em 22 de Junho de 1889, criou o direito a pensão de
velhice e invalidez aos trabalhadores, independentemente do valor do salário,
criando um sistema de pensões financiado parcialmente pelo Estado e com
as contribuições, em valor igual, dos trabalhadores e da entidade patronal.
Em 1911 foi criado um Código de Segurança Nacional, consolidando estas
três prestações de seguro obrigatório.

Para se poder ter uma ideia da importância que assumiu a criação deste sistema
na Alemanha, refiram-se os seguintes valores estatísticos (KHOUDOUR–
‑CASTERAS, 2004: 16-25): relativamente ao seguro de doença (lei de 1883),
em 1885 cobria 24% da população activa, sendo esta percentagem de 46%
em 1913; o seguro de acidentes de trabalho cobria 21% da população activa
em 1886, passando para 98% em 1913; o seguro de invalidez e velhice
cobriu sempre, desde a sua criação, cerca de 55% da população activa.
Mas deve ser relativizada a importância da participação do Estado nestes

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programas. Na verdade “os programas Bismarkianos (…) não satisfaziam
os critérios modernos de definição de uma redistribuição ou seguro social
público, pelo menos nos seus primeiros anos” (LINDERT, 2004:174).
Basta para isso verificar que a participação do Estado nesses programas era
diminuta. Cálculos efectuados e apresentados em KHOUDOUR-CASTERAS
(2004), relativos ao conjunto dos três programas para o período entre a sua
criação e 1913 revelam que é de cerca de metade (44,7%) a percentagem da
contribuição das entidades patronais para o financiamento destes programas,
sendo de 40% a dos trabalhadores, de 10% o rendimento de juros do capital
formado com os excedentes obtidos em anos anteriores, e de apenas 5,4%
a contribuição do Estado.

Um dos argumentos de suporte da importância da legislação de Bismark é a


influência que teve na legislação de outros países, quer europeus, quer fora
da Europa: Nova Zelândia, em 1889 e, muito mais tarde, também nos EUA,
com o New Deal de Roosevelt em 1935. Na sequência da legislação alemã,
vários governos formaram comissões para preparar propostas de legislação.
Em 1889 tem lugar, em Paris, o primeiro congresso internacional sobre
seguros de acidentes (KUHNLE, 1984:126).

Também os países escandinavos criaram medidas de política de protecção


contra riscos sociais dos tabalhadores no final do séc. XIX, em datas muito
próximas das do governo alemão, em particular na Dinamarca. É discutível
e controverso o efeito que terá tido na legislação dinamarquesa, já que se
conhecem iniciativas legislativas neste país para a criação de seguros de
doença em 1862, 1866 e 1875, portanto anteriores à legislação alemã, embora
não tenham obtido aprovação. A legislação dinamarquesa sobre seguros
de doença veio a ser preparada por uma comissão criada em 1885, vindo
a ser aprovada legislação em 1892, diferindo da alemão pelo maior peso
conferido aos subsídios estatais e ao carácter voluntário (não obrigatório) do
sistema (KUHNLE, 1984:129). Também na Suécia, logo após a aprovação
da legislação alemã de 1883, foi criada uma comissão para estudar esta
legislação e preparar medidas, chegando a ser propostas, cinco anos depois,
medidas relativas a acidentes de trabalho e pensões de velhice, inspiradas
no modelo alemão, sem terem obtido aprovação no Parlamento. Só mais
tarde, em 1891, seria aprovada legislação, desta vez inspirada no modelo
dinamarquês, baseada em contribuições voluntárias. Também a legislação
sobre pensões de velhice viria a ser aprovada segundo um modelo distinto do
alemão, baseada no princípio da cobertura universal. Na Noruega foi criada,
em 1885, uma comissão para preparar medidas de protecção de riscos de
acidentes de trabalho para a população trabalhadora, seguindo mais o modelo
alemão, segundo o princípio do seguro obrigatório, que foi aprovado em
1894. A protecção contra outros riscos só seria aprovada muito mais tarde, em
1909. Não há assim evidência de uma influência alemã absoluta na natureza

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© Universidade Aberta
das medidas seguidas pelos países escandinavos, bastante influenciadas pela
sua cultura e características políticas, socioeconómicas, institucionais e de
orientação ideológica (KUHNLE, 1984) ainda que marcada, em termos
da agenda política, pela ocorrência das medidas inovadoras tomadas na
Alemanha.

Na Inglaterra, a protecção social teve, durante séculos, uma natureza


assistencialista. Era essa a natureza da Poor Law, criada em 1606 e que,
tendo sido reformada em 1834, esteve em vigor neste país até 1929. Já
anteriormente, em 1909, num relatório escrito nessa época, Beatrice Webb
defendia que a Poor Law deveria ser substituída por medidas de política
de natureza diferente, com uma participação diferente do Estado na esfera
social. Será só no início do sec. XX no governo de Lloyd George, em 1908,
que são criadas as pensões de velhice (Old Age Pensions Act), de natureza
means-tested, em 1911 que será criado o seguro obrigatório contra a doença
(National Health Insurance Act) e, no ano seguinte, o seguro contra o
desemprego (Unemployment Insurance Act), ainda que de âmbito sectorial
muito limitado.

A grande inovação na política social britânica surge, porém, nos anos


1940s, com a aprovação das medidas propostas por William Beveridge
no seu relatório “Social Insurance and Allied Services”, vulgarmente
conhecido por Relatório Beveridge, apresentado no Parlamento inglês em
Novembro de 1942 e publicado no mês seguinte, como um best-seller, com
um impressionante volume de vendas de 635,000 exemplares (FRASER,
1973:235). William Beveridge, antigo deputado e professor de Ciências
Económicas da Universidade de Londres e reitor de um dos College de
Oxford, foi encarregado, em 1941, de coordenar um grupo de trabalho
interministerial para realizar um “survey of the existing national schemes of
social insurance and allied services, including workmen´s compensation” e
fazer recomendações. Pretendia-se criar um conjunto de medidas pensando
no período de reconstrução após o final da II Guerra Mundial, tendo sido
elaborado a aprovado em plena guerra, com fim imprevisível, certamente
num ambiente facilitador de medidas de natureza universal (dada a natureza
dos factores de risco) e de pendor igualitarista.

Beveridge seguiu, na realização do seu trabalho, três princípios orientadores


(FRASER, 1973:235-239): Em primeiro lugar, pretendia efectuar mudanças
revolucionárias, não influenciadas ou condicionadas pela experiência do
passado. Hoje questiona-se até que ponto as medidas propostas o terão sido,
ou antes foram generalizações de medidas já em vigor, colmatando deficits
de protecção e estabelecendo mínimos de protecção a garantir. Numa análise
crítica feita ao Plano Beveridge, poucos meses após a sua publicação, Ramos
Costa afirmava que “o Plano Beveridge não é uma transformação radical do
Sistema de Seguros Inglêses, mas antes uma sistematização de leis sociais

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© Universidade Aberta
já existentes com algumas inovações locais no capítulo dos cuidados à
primeira infância, defesa da mulher na sua função de mãe e trabalhadora,
etc” (COSTA, 1943:7-8).

O segundo princípio orientador do Relatório Beveridge era o de que a


segurança social seria apenas uma parte de um conjunto de políticas de
progresso social. E aqui surge, de facto, um elemento inovador. Segundo
FRASER (1973:237), “o que foi realmente revolucionário [nas medidas
propostas por Beveridge] foi a própria concepção de sociedade organizada
por forma a lutar contra o que Beveridge designou por cinco gigantes.
Ele estava apenas a tratar da miséria (“want”), mas estava consciente de
que as suas propostas teriam de ser colocadas no contexto de uma política
social que igualmente se dirigisse aos outros quatro demónios. Um país em
que, ao longo da sua história, houve uma tão grande preocupação com as
liberdades, liberdade de falar, de escrever, de votar, estava agora a dar uma
lição de liberdade, pois é de verdadeira liberdade que se trata quando se
refere a libertação da miséria (“want“), da doença (“disease“), da ignorância
(“ignorance“), da sordidez (“squalor“) e da ociosidade (“idleness“). Era aqui,
na totalidade desta visão, que se encontrava o elemento revolucionário do
Relatório Beveridge”

O terceiro princípio é o de que a segurança social deve assentar na cooperação


entre o Estado e o indivíduo, devendo o Estado organizar a segurança,
assegurando um mínimo nacional, deixando espaço para cada indivíduo
conseguir mais do que esse mínimo, para ele próprio e para a família.
Libertação da miséria significaria “não um pedido ao Estado, satisfeito
através da prova da necessidade e falta de outros recursos mas, antes, um
direito a ter um rendimento próprio para se manter acima do nível de miséria”
(Beveridge, The Pillars of Security, 1943, citado em FRASER, 1973:237).
Protegeria assim os cidadãos nacionais da miséria, no nascimento à morte.
Ou como ficou celebrizado na frase-slogan “freedom from want, from the
cradle to the grave”.

Há um espírito de universalismo no ambiente social da época, em tempo


de guerra, que marcará a orientação das propostas de Beveridge. Consistem
na atribuição de uma prestação de rendimento num valor mínimo (de facto
de valor baixo, garantindo um nível de subsistência), universal e igual para
todos, suportado por um financiamento de contribuição universal e, também,
de taxa uniforme.

O governo de Attlee viria a executar, em 1946, medidas de política


preconizadas no Plano Beveridge, criando o National Insurance, embora
nem todas as recomendações do Plano tenham sido seguidas: em vez de
prestações uniformes, foram diferenciadas por idade, género e condição
perante o trabalho. O valor das prestações foi fixado em níveis muito baixos,

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o que originou o pagamento de prestações complementares, em regime
de means-test, à população que permanecia em pobreza. E em 1948 seria
anunciado a criação do National Health Service, universal para todos os
cidadãos, seguindo os princípios orientadores do Plano Beveridge.

1.3 Expansão do Estado-providência: a difusão das medidas


sociais

Actualmente as instituições do Estado-providência encontram-se


generalizadamente em todo o mundo ocidental, ainda que assumindo níveis
e modalidades distintas de intervenção, como veremos mais adiante.

A observação do desenvolvimento do Estado-providência na Europa permite


identificar fases bem demarcadas nesse desenvolvimento ao longo do sec.
XX. flora & alber (1984:52-57) construíram um índice de cobertura
da segurança social e, analisando cada um dos 12 países mais desenvolvidos
da Europa Ocidental, concluiram que: i) havia grande homogeneidade no
conjunto destes países até à I Guerra Mundial, com um âmbito de cobertura
de riscos muito limitada, destacando-se a Alemanha e a Dinamarca como
países pioneiros na criação de medidas de protecção contra alguns riscos
sociais; ii) a segunda fase decorre no período entre a I e a II Guerras Mundiais,
aumentando a heterogeneidade entre os países, em que os países escandinavos
e o Reino Unido alargam o âmbito dos seus sistemas; iii) o período do pós
II Guerra Mundial evidencia um movimento lento de convergência, ainda
caracterizado pela liderança do Reino Unido e dos países escandinavos; iv)
após os anos 1960s há uma progressiva diminuição das diferenças entre
os países, aproximando-se todos eles de uma completa cobertura de riscos
sociais. Foi de facto, a partir de 1960, que teve lugar o grande crescimento
da despesa social pública (castles, 2006).

A investigação sobre o desenvolvimento das instituições do Estado–


‑providência tem-se centrado em duas questões fundamentais. Uma dessas
questões de investigação tem sido sobre os factores que determinaram as
primeiras medidas de política de protecção social, quer em termos do timing
da sua ocorrência quer do local em que ocorreram, isto é, dos países em
que estas medidas foram tomadas. A outra questão tem a ver com a difusão
dessas medidas, do desenvolvimento do Estado-providência, na Europa e
no resto do mundo.

Uma das orientações teóricas mais conhecidas, e entre as que primeiro surgiram
para explicar a emergência de Estados-providência e o seu desenvolvimento,
foram as que se enquadraram no pensamento funcionalista, explicando o

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surgimento das instituições de segurança social pela necessidade dessas
instituições para o funcionamento da sociedade. As teorias do industrialismo
enquadram-se nesse pensamento funcionalista (myles & quadagno,
2002). Segundo estas teorias, a industrialização cria necessidades de despesa
pública em áreas sociais, devido ao aumento da mão-de-obra assalariada e,
daí, o surgimento de novas vulnerabilidades (acidentes de trabalho, doença,
desemprego, velhice), exigindo-se ao Estado um papel de garantia de
protecção dos riscos em que essas vulnerabilidades se traduzem. Associado
ao crescimento da necessidade de mão-de-obra encontra-se o papel que cabe
ao Estado em assegurar mão-de-obra qualificada para sustentar o crescimento
económico através do sistema educativo. Relacionado com o crescimento
e o progresso económico está também o envelhecimento da população e o
aumento da esperança de vida. O envelhecimento, e as necessidades que dele
decorrem na provisão de serviços sociais, constitui um factor importante
de crescimento das despesas públicas sociais. No entanto, vários estudos
empíricos tendentes a relacionar o surgimento das instituições do Estado-
‑providência com os níveis de industrialização têm demonstrado que é fraca
a relação entre estas duas variáveis (skocpol & amenta, 1986).

À logica do industrialismo, presente na teoria anterior, pode juntar-se a lógica


do capitalismo, presente na explicação proposta pelos teóricos neo-marxistas,
segundo os quais as instituições do Estado-providência são necessárias por
imperativos do estado capitalista para criar condições para a acumulação
do capital e, por outro lado, a necessidade de legitimação social deste modo
de produção. O Estado-providência seria assim “o produto inevitável de
grandes forças económicas que estão para além do controlo dos decisores
políticos e da sociedade que exige uma resposta comum” (myles &
quadagno, 2002:37). As políticas sociais seriam assim as respostas a
requisitos funcionais contraditórios do sistema capitalista avançado.

Outra perspectiva teórica, que se contrapõe às visões funcionalistas do papel


do Estado-providência, encara as variáveis económicas e demográficas não
como factores explicativos do surgimento destas instituições mas, antes, como
variáveis de contexto que afectam as condições, oportunidades e restrições
aos actores políticos para prosseguirem os seus propósitos. E é dessa actuação
política que resulta o surgimento e desenvolvimento dessas instituições,
isto é, é a actuação política que conta (“politics matter”) (korpi, 2004).
Atendendo à natureza redistributiva da actuação do Estado-providência,
esta perspectiva teórica, conhecida por “power resources approach”, dá
importância às relações de poder presentes nos conflitos distributivos em que
se traduzem as diferentes opções de política social. korpi (2004) discute
a hipótese de a “power resources approach” constituir uma explicação para
a emergência das primeiras leis da segurança social. Este e outros estudos
realizados segundo esta perspectiva teórica têm concluído que as diferenças

25
© Universidade Aberta
entre os países no que respeita ao âmbito dos direitos consagrados nos
diversos Estados-providência, bem como à dimensão económica das despesas
sociais públicas, pode ser explicada pelo papel desempenhado pelos partidos
de esquerda e da sua relação com o movimento sindical no desenho das
políticas sociais.

Questiona-se, na literatura sobre o Estado-providência, quais os factores


que causaram a expansão do Estado-providência, tal como se verificou ao
longo do sec. XX. Essas explicações giram em torno de duas grandes linhas
de orientação teórica. Uma delas constitui a corrente do “institucionalismo
histórico”, segundo a qual o comportamento dos actores políticos e dos
grupos de interesse, que dão conteúdo às estruturas do Estado-providência e à
sua evolução, são condicionados por um conjunto de restrições institucionais
historicamente construídas. Outra abordagem teórica para a explicação
do desenvolvimento dos Estados-providência assenta na ideia de que este
desenvolvimento se faz através de processos de “difusão”, entre países,
de políticas sociais já experimentadas em outros países, onde se realiza a
inovação da política. Vejamos cada uma destas abordagens teóricas.

Processos de “path dependency” e de “path deviation”

Sobre a importância da história das instituições como determinante da


evolução das políticas sociais surge, a partir de um texto de pierson
(2000) a abordagem da “path dependency” aplicado às ciências sociais
e, em particular, nas análises das políticas sociais. O conceito de “path
dependency” tem a sua origem na ciência económica nos anos 1980s para
explicar porque em certas circunstâncias poderá ser mais racional a utilização
de tecnologias tradicionais em comparação com novas tecnologias. Foi, nos
anos 1990s, uma abordagem utilizada para compreender o funcionamento das
instituições e para se compreender porque é mais eficiente que a evolução
das instituições se faça, não por alterações drásticas no seu funcionamento,
mas por pequenos ajustamentos ao longo do tempo. Esta ideia foi retomada
por pierson (2000) na análise da política social, aplicando a esta análise
o conceito da teoria económica de rendimentos crescentes à escala. Para
pierson (2000), os custos da mudança de uma alternativa para outra
aumentam com o tempo em certos contextos sociais, o que leva a que as
instituições bloqueiem a mudança. Isto significaria, quando aplicado à análise
da política social, que existem mecanismos que reproduzem as instituições
e as políticas do Estado-providência.

Segundo pfau-effinger (2004), para compreender estes mecanismos,


há que distinguir entre, por um lado, a natureza específica das instituições
e as políticas do Estado-providência em cada país específico e, por outro
lado, a forma específica que assume o contexto social em que se enquadra

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© Universidade Aberta
esse Estado-providência específico, no seu “welfare arrangement”. Isto é,
devem ter-se em consideração as relações que se estabelecem, de forma
mútua, entre as políticas do Estado-providência e as dimensões culturais
nessa sociedade. E, segundo este autor, há que distinguir três níveis de
cultura de bem-estar (“welfare culture”): a) os valores e os modelos culturais
em que as várias políticas se encontram enraizadas, onde encontram a sua
justificação e legimitação; ii) os valores e modelos culturais em relação ao
Estado‑providência que são predominantes entre a população e os vários
grupos sociais na sociedade; iii) os valores e modelos culturais que são
utilizados como base do discurso político dos actores sociais, e com os quais
exercem influência nas políticas do Estado-providência.

Segundo pfau-effinger (2004), a cultura e as políticas do Estado‑


-providência estão inter-relacionados através da actuação dos actores
sociais, através das suas “ideias”, que constituem elementos da cultura do
bem-estar. Há dois grupos de actores sociais: os actores colectivos (partidos
políticos, ONGs, movimentos cívicos, etc) e os actores primários (os grupos
potenciais de actores que, embora tendo posições sociais semelhantes, não
se expressam como actores colectivos, por escassez de recursos de poder
(power resources), não estando portanto estrategicamente envolvidos em
processos de mudança). As políticas do Estado-providência são baseadas
em dois elementos fundamentais: por um lado nas “ideias”, que constituem
a cultura de bem-estar acima descrita e, por outro, nos interesses dos actores
sociais. As relações de poder entre os actores sociais desempenham um
papel importante na determinação das bases culturais que predominam na
prática política.

Um welfare arrangement tenderá a permanecer durável no longo prazo se as


suas bases culturais, no sentido exposto acima, se constituirem como normas
do sistema de provisão do bem-estar. Os actores sociais comportar-se-ão sob
a influência de estruturas e modelos que tendem a permancer estáveis, de
longa duração. Estamos assim perante um processo de path dependency, em
que a história influencia o curso do Estado-providência. Mas poderá ocorrer
um “path deviation”, a determinar um percurso diferente, um desvio de
percurso, do desenvolvimento do Estado-providência. Isto resulta da vontade
dos actores sociais que se traduz numa escolha diversa da que decorre do seu
percurso “histórico” e que pode traduzir-se em alterações de diferentes níveis
de magnitude: uma mera alteração do nível de actuação das instituições e
políticas do Estado-providência, uma alteração dos instrumentos de política,
uma alteração dos objectivos da política ou, mesmo, uma alteração dos
valores fundamentais em que assenta o Estado-providência. Pode dizer-se
que “em geral, as alterações das políticas do Estado-providência que têm
ocorrido na Europa Ocidental pode ser vista como uma relação complexa
entre processos path dependent e de path deviation, que têm ocorrido quer

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ao nível de uma área específica de actuação política (por exemplo, pensões
de reforma) ou ao nível de todo o sistema de Estado-providência, do welfare
arrangement” (pfau-effinger, 2004:1-12).

Podem dar-se alguns exemplos destes “desvios de percurso” (path


deviations), observando algumas medidas de política recentemente tomadas
em alguns países (pfau-effinger, 2004:1-12). Um deles é a dissolução da
protecção contra o despedimento que teve lugar, nos anos 1990s, no sistema
dinamarquês de Estado-providência, para garantir uma maior flexibilidade
no mercado de trabalho. A adopção de um procedimento num tipo diferente
de Estado-providência, por exemplo num Estado liberal como no Reino
Unido, terá um significado completamente diferente. De facto, no sistema
dinamarquês, em que o subsídio ao desemprego garante uma elevada taxa de
substituição do rendimento, o efeito sobre a pobreza é incomparavelmente
inferior ao que se verifcaria no Reino Unido. Uma medida deste tipo no Reino
Unido traduzir-se-ia numa alteração dos objectivos de política ou mesmo
numa alteração do sistema de valores do Estado-providência, havendo assim
um path deviation.

Processos de difusão

Outra linha de orientação teórica para explicar a generalização de formas


de Estado-providência em toda a Europa e, de forma mais alargada, ao
nível mundial, assenta na perspectiva da difusão, segundo a qual “nenhum
Estado moderno está em pleno isolamento, independente da comunidade
internacional que o rodeia, pelo que o estudo dos factores que influenciam
a criação de um sistema de segurança social num país deve ir para além das
fronteiras da comunidade nacional e deve também ser considerado ao nível
internacional” (rys, citado em collier & messick, 1969). Alguns
Estados imitam legislação de outros países (por exemplo, o sistema italiano
de seguro de doença e de pensões de velhice de 1898 é uma síntese das
legislações francesa e belga; os primeiros programas de segurança social
austriacos são uma adaptação da legislação alemã). Mesmo não havendo
imitação, há muitos casos de forte influência, nos sistemas nacionais
adoptados de segurança social, da legislação de outros países. Por exemplo,
como é referido em collier & messick (1969), é reconhecido que o
governo de Lloyd George adoptou programas sociais no Reino Unido muito
semelhantes aos que tinham sido anteriormente adoptados na Alemanha e na
Bélgica. Vimos atrás a influência, na legislação da Suécia, do modelo alemão
de protecção social na velhice. Houve uma forte influência da legislação
europeia, especialmente da alemã, nos EUA quando vários grupos de trabalho
deste país apoiaram vários estudos sobre sistemas de segurança social
europeus, tendo estes estudos sido publicados em 1911 pelo Commissioner
of Labor dos EUA.

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collier & messick (1969) identifica dois padrões distintos de difusão:
o que designa por hierárquica e o espacial. Por difusão hierárquica entende
a que tem lugar a partir de um centro mais avançado onde a inovação teve
lugar, para unidades menos avançadas que adoptam estas inovações. Tem-se
verificado que, ao observar o calendário internacional de adopção de medidas
de política de segurança social, há uma tendência para terem sido os países
mais prósperos a adoptarem políticas inovadoras de segurança social antes
dos menos desenvolvidos (orenstein, 2003) ou as medidas de política
de segurança social surgirem numa fase mais inicial de modernização nos
países que adoptaram mais tarde essas medidas (collier & messick,
1969). A par disto, existem também padrões regionais de difusão no espaço
europeu que traduzem um tipo diferente de influência das inovações de
política social na europa.

No desenvolvimento dos sistemas de segurança social, desde o pós-guerra,


houve organizações internacionais que desempenharam um papel muito
importante na difusão de orientações de política social e que vieram marcar
a evolução dos sistemas ao nível mundial. A título exemplificativo, mas
também pela importância real que tiveram para essa evolução, vamos
considerar dois: i) a Conferência da OIT em Filadélfia, em 1944, que
iniciou a criação, ao nível mundial, dos sistemas de segurança social: ii) a
publicação do relatório Averting the Old Age Cisis: Policies to Protect the
Old and Promote Growth do Banco Mundial, em 1994, que contribuiu para
a difusão mundial do sistema multipilar de segurança social. Poderiamos
também referir, a propósito da influência de outros países nas legislações
nacionais e reformas dos sistemas de segurança social, a actual prática do
Método Aberto de Coordenação na União Europeia, a partir do ano 2000
e da Cimeira de Lisboa, segundo alguns autores com responsabilidade na
forma como os diversos Estados Membros têm vindo a conduzir as medidas
de política de reformas dos seus sistemas de segurança social, através de
métodos de aprendizagem comum de experiências de política. Analisaremos
este metodo de coordenação de políticas no próximo capítulo.

Um dos factores que contribuiu para a difusão mundial dos sistemas de


protecção social foi a realização da 26ª Sessão da Conferência da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) em Abril-Maio de 1944, realizada em
Filadélfia, e em que participaram 44 países. A agenda incluiu, entre os sete
pontos da ordem de trabalhos da conferência, um dedicado à “Segurança
Social: princípios e problemas que resultam da guerra”, tendo sido adoptadas
duas resoluções, uma delas sobre as políticas económicas dirigidas a
objectivos sociais e outra respeitante a cláusulas sociais nos acordos de
paz. O objectivo destas resoluções era de ajudar os países a definir as suas
políticas sociais. No texto da Declaração sobre os objectivos e propósitos
adoptados na Conferência, é estabelecido que “poverty anywhere constitutes

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a danger to poverty everywhere”, afirmando a necessidade de uma “guerra
contra a miséria” e o “direito de a todos os seres humanos, independentemente
do credo, raça e género, se assegurar o bem-estar material e espiritual em
condições de liberdade e dignidade, de segurança económica e igualdade
de oportunidades” (simpson, 1944). Foram aprovadas recomendações,
designadamente sobre “segurança de rendimento” (cobrindo todo o campo
da segurança social e certas formas de assistência social, em termos de
cobertura, elegibilidade, benefícios, condições de contribuição para o sistema
e administração) e cuidados de saúde. Ficou aprovada a recomendação de
que os Estados-membros, “tão rapidamente quanto as condições nacionais
o permitirem” adoptem os princípios definidos sobre a segurança social e os
cuidados de saúde. Por diversos meios, a OIT viria a ter uma forte influência
na criação de sistemas de pensões em vários países.

Outra fonte importante de difusão de novas medidas de política de segurança


social foi a que teve lugar aquando da publicação, em 1994, do relatório
do Banco Mundial, Averting the Old Age Cisis: Policies to Protect the Old
and Promote Growth. Tal como a OIT constituiu uma fonte de difusão do
primeiro sistema de pensões, 50 anos após a sua criação na Alemanha, o
Banco Mundial foi a instituição de difusão do sistema multipilar, 13 anos
após a inovação deste sistema realizada no Chile em 1981 (orenstein,
2003).

O sistema de pensões originado pelo modelo da OIT consistia numa


modalidade de “pensões de benefício definido”, com gestão feita pela
administração pública. Este sistema assentava num financiamento do tipo de
repartição, ou PAYG (“pay-as-you-go”), em que os trabalhahores contribuem,
com uma parte do seu salário, para assegurar o pagamento, no mesmo ano
dessa contribuição, das pensões dos reformados. O valor destas pensões está
definido como uma percentagem (“taxa de substituição”) do salário ganho,
devendo a administração garantir essa pensão. Este sistema é conhecido
como “sistema de repartição”. Contrasta com outro sistema, dito “sistema
de capitalização”, que constitui um sistema de “pensões de contribuições
definidas”, em que os trabalhadores contribuem com parte do seu salário
para uma conta de capital, cujo valor vai aumentando à medida que esses
descontos do salário vão sendo feitos e o valor acumulado for capitalizando.
Sendo as contribuições definidas, já o valor da pensão não o é, dependendo
do valor capitalizado.

O sistema de repartição, ou PAYG, constitui uma forma adequada de


funcionamento de um sistema de pensões quando é criado e se pretende
garantir, à população idosa no presente, o direito a um rendimento de
substituição do salário. De facto, um sistema de capitalização pressupõe
acumulação de poupanças em tempo anterior, impossível antes de o sistema

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© Universidade Aberta
ser criado. Por outro lado, a criação e sustentabilidade de um sistema de
repartição, ou PAYG, pressupõe a existência de crescimento demográfico
com equilíbrio adequado entre gerações, crescimento económico sustentado
e confiança política. Todas estas condições foram criadas no pós-guerra. Não
admira, pois, que este tenha sido o sistema criado sob a influência da OIT.

Reconhecidas as vantagens da criação dum sistema PAYG, são também


conhecidas algumas das suas desvantagens, ou problemas que se colocam à
sua sustentatibilidade. Um deles é o da confiança, que exige uma administração
pública eficaz e imune a influências que possam corromper o sistema. Esta foi
uma das razões porque não foi bem sucedido na América Latina. Outro factor
é o envelhecimento. O sistema PAYG defronta problemas de sustentabilidade
quando, por envelhecimento da população, não se consegue assegurar, com
a mesta taxa de contribuição da população que trabalha, a mesma taxa de
substituição de rendimento de quem se reforma. Este é um problema actual
e generalizado a todo o mundo ocidental onde este modelo foi implantado.
Outra fragilidade está no crescimento salarial, a base em que assenta o
financiamento das pensões. Um reduzido crescimento salarial, como ocorre
em muitos países, significa um crescimento lento, que pode ser insuficiente,
da base de financiamento das pensões, em crescimento.

O Chile foi um país onde o governo de Pinochet, em 1981, reformou o sistema


de segurança social do tipo de repartição, ou PAYG, que tinha sido criado
neste país em 1924, tendo realizado uma mudança radical para um sistema
obrigatório de capitalização, com contribuição definida. As contribuições
anteriormente pagas pelos trabalhadores foram transformadas em contas de
poupança para capitalização. O governo chileno, por outro lado, garantia um
nível mínimo de pensão aos pensionistas que tivessem uma pensão abaixo de
um certo limiar, bem como um programa means-tested de assistência pública
para a população pobre. O Chile, o primeiro país da América Latina a criar
um sistema de segurança social, em 1924, foi também o primeiro a reformar
o seu sistema e, ao fazê-lo, a criar um sistema assente em três pilares de
protecção social, que viria a difundir-se por todo o mundo.

O sistema multipilar de pensões de reforma consiste na existência de três


fontes de financiamento destas pensões. O primeiro pilar é uma componente
de financiamento público, com base em impostos, e visando objectivos
redistributivos. Destina-se a assegurar um valor mínimo de rendimento
para todos os que trabalharam um certo número mínimo de anos. Este pilar
pode assumir formas distintas: pode ser um programa means-tested para a
população pobre, ou pode ser um complemento da pensão para assegurar
uma pensão mínima. Pode ser também um subsídio de valor uniforme. O
segundo pilar é de natureza obrigatória, segundo um sistema de capitalização
e de gestão privada, ainda que requerendo uma cuidadosa regulação,

31
© Universidade Aberta
podendo assumir a forma de contas pessoais de poupança ou fundos de
pensões de base profissional. O terceiro pilar é constituído por esquemas
privados e voluntários de pensões. Este sistema multipliar foi apresentado
no citado relatório afirmando-se, no prefácio, que “this study suggests that
financial security for the old and economic growth would be better served
if government developed three system, or ´pillars´, of old age security: a
publicly managed system with mandatory participation and the limited goal
of reducing poverty among the old; a privately managed, mandatory savings
system; and voluntary savings. The first covers redistribution, the second
and third cover savings, and all three coinsure against the many risks of old
age”. Este sistema multipilar propagar-se-ia a vários países, europeus e do
continente americano, constituindo na actualidade um modelo de referência
para algumas propostas de refoma da segurança social, como veremos mais
adiante.

1.4 O Estado-providência em Portugal: uma digressão


histórica

Importa agora apresentar algumas notas históricas sobre a evolução da


segurança social em Portugal. As suas origens remontam às corporações
medievais das artes e ofícios, cuja extinção apenas tem lugar em 1834. O
direito de associação continua, no entanto, a existir e regulado por lei que
sujeitava a constituição das associações à autorização prévia do governo. A
primeira associação instituída em Portugal após a extinção das corporações
foi fundada em 1839 e, após o final do sec. XIX, assiste-se a uma expansão
do movimento associativo de base operária, assente no crescimento
económico que tem lugar em Portugal no período do fontismo, e inspirada
nos movimentos político-ideológicos com maior difusão no meio operário
da época.

As associações mutualistas, organizações sem fins lucrativos que uniam os


associados e que, mediante uma quota, se protegiam conjuntamente contra
certos riscos sociais, constitui, então, o embrião de formas de previdência
colectiva face aos riscos sociais que ocorrem em resultado da industrialização:
doença e morte, desemprego, acidentes de trabalho e doenças profissionais,
invalidez, velhice. No entanto, o seu carácter insuficiente, em particular a
inexistência de pensões de reforma, e o descontentamento generalizado que
tal gera, origina tensões e revoltas sociais no final da Monarquia. As várias
tentativas de criar caixas de pensões de reforma haveriam de, todas elas,
fracassar. Outro domínio de riscos sociais (e dos direitos) era o dos riscos
profissionais (desastres de trabalho) que, no entanto, no Código Penal de
1897 estabelecia o princípio da responsabilidade patronal.

32
© Universidade Aberta
Já na primeira República, em 1916, foi criado o Ministério do Trabalho.
A necessidade de reformas sociais, estabilizadoras do ambiente social e
do regime republicano, perturbadas pelas convulsões sociais (população
operária) e dos efeitos da I Guerra Mundial, levou à necessidade de aprovar
um vasto conjunto de diplomas em 10 de Maio de 1919: o Decreto-Lei
nº 5636 (seguro social obrigatório na doença), 5637 (seguro social obrigatório
nos desastres no trabalho), o Decreto-Lei nº 5638 (seguro social obrigatório
na invalidez, velhice e sobrevivência), o Decreto-Lei nº 5639 (Bolsas Sociais
de Trabalho) e o Decreto-Lei nº 5640 (criação do Instituto de Seguros Sociais
Obrigatórios e de Previdência Social). É criado um sistema inovador de
protecção social, poucos anos após a sua criação original, na Alemanha.
Mas não foi concretizado, tendo ficado, malogradamente, sem execução. O
Instituto de Seguros Sociais Obrigatórios e de Previdência Social existiria
até à sua extinção no Estado-Novo, em 1933, ano em que seria criado o
Instituto Nacional do Trabalho e Previdência (INTP).
Já no período do Estado-Novo é revista alguma legislação antiga respeitante
ao mutualismo, face ao insucesso dos seguros sociais obrigatórios. É neste
período que são lançadas as bases da previdência, com a aprovação da
Constituição de 1933 e o Estatuto do Trabalho Nacional, nesse mesmo ano.
Pouco tempo depois surge a Lei 1884 de 16 de Março de 1935, que constitui
a Lei de Bases de Organização da Previdência. A estrutura da previdência, tal
como ficou consagrada nesta Lei, pode ser considerada como um conjunto
diversificado de organismos que compõem três sectores distintos: a) o
sector corporativo, composto pelo conjunto das instituições de previdência
dos organismos corporativos (Caixas Sindicais de Previdência, caixas de
previdência das Casas do Povo, e Casa dos Pescadores); b) o sector privado,
composto pelas Caixas de Reforma ou de Previdência e as Associações
de Socorros Mútuos; c) o sector público, constituído pelas Instituições de
Previdência dos Servidores do Estado e dos Corpos Administrativos (Caixa
Geral de Aposentações e Montepio dos Servidores do Estado).
Nos anos 1940s foram dados alguns passos no sentido de um alargamento
de âmbito das instituições existentes, generalizando a previdência a mais
trabalhadores, criando condições para que a falta de iniciativa dos interessados
não colocasse trabalhadores na situação de não ter protecção social. Isto
aconteceu pela atribuição ao governo do poder de iniciativa de criação de
Caixas de Reforma ou de Previdência, tendo sido realizados progressos na
uniformização de regimes das Caixas Sindicais de Previdência e das Caixas
de Reforma ou de Previdência. Destaca-se, neste período, o alargamento dos
direitos à saúde através da criação dos serviços medico-sociais, e a criação
do abono de família. É interessante ter-se em atenção que o abono de família,
criado em 1942, constituiu uma grande inovação de política social tendo
Portugal sido o décimo primeiro país, a nível mundial, a criar este tipo de
medida (pereirinha, arcanjo, carolo, 2008).

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Os anos 1960s são marcados pela Reforma da Previdência Social de 1962,
realizada pela Lei 2115, de 18 de Junho de 1962, cuidadosamente preparada
e longamente discutida durante cinco anos antes da sua aprovação. Trata-se
de uma reforma de grande alcance, cujos efeitos perduraram por um longo
período, que ultrapassou a Revolução de 25 de Abril de 1974, até à aprovação
da Lei de Bases da Segurança Social de 1984. A Lei 2115 veio introduzir
significativas alterações na organização institucional da previdência,
desenvolvendo a extensão do sistema, alargando o seu campo de aplicação
material e pessoal e contribuindo para o desenvolvimento de um Regime Geral
de Segurança Social. No período pós-1969, sob o Estado Social marcelista,
ocorreu um preenchimento de lacunas de protecção social resultantes quer
da não participação no mercado de trabalho de franjas da população (com
destaque para os trabalhadores rurais), quer da não inclusão no sistema da
previdência de certas profissões “específicas” (ex. cabeleireiras, jornaleiros
e sobretudo domésticas) (pereirinha, carolo, 2008).

A Revolução de 25 de Abril de 1974 viria a instaurar a democracia em


Portugal e, num contexto socio-político muito diferente do do passado, a
introduzir reformas de pendor igualitarista, criando-se medidas de orientação
Beveredgiana, correctoras de desigualdades, de carácter universal. Salienta‑se
a criação, em 1979, do Serviço Nacional de Saúde, de carácter universal
e gratuito, e a Lei de Bases da Segurança Social, em 1984, que determina
as características fundamentais do actual sistema de segurança social em
Portugal, ainda que mantendo muitas das características essenciais do sistema
reformado em 1962. As alterações que ocorreram posteriormente nas Leis de
Base da Segurança Social, quer em 2000, em 2002 e em 2007, não alteraram
substancialmente o sistema, visando essencialmente a sua sustentabilidade
financeira (pereirinha, arcanjo, nunes, 2008).

1.5 Trajectórias de crescimento do Estado-providência no


pós‑guerra

Vejamos qual foi a tendência observada da “dimensão” do Estado-providência


ao longo da sua história, isto é, desde as primeiras medidas de protecção
contra riscos sociais no final do sec. XIX até à actualidade. Para o fazer,
vamos proceder a uma análise quantitativa considerando como “dimensão”
do Estado-providência o valor da despesa social, tomada em relação ao PIB
de cada país. Pretende-se, com esta análise, conhecer as diferenças entre
países, bem como as tendências no longo prazo, do valor económico da
provisão de bem-estar realizada em cada país, como percentagem do valor
económico total criado nesse país, ou seja, do esforço realizado em cada país
na provisão de bem-estar.

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Tem havido, nos últimos anos, bastante investigação sobre a despesa social
(lindert, 2004, castles, 2006; adema & ladaique, 2005), em
grande parte facilitada pela publicação das séries OECD Social Expenditure
Database (SOCX), na sua versão “antiga” (a partir de 1960) e na sua versão
“nova” (a partir de 1980). Trata-se de uma importante base de dados para os
países da OCDE, contemplando uma desagregação da despesa social, isto é,
do valor total da despesa realizada no país para realizar direitos sociais, em
vários items de despesa, de forma a garantir comparabilidade entre países.
Deve-se a lindert (2004) a construção de séries para alguns países a
partir de 1880, ligando essa informação aos dados da OCDE que apenas se
iniciam em 1960.

O conceito de “despesa social” está definido pela OCDE como “the provision
by public and private institutions of benefits to, and financial contributions
targeted at, households and individuals in order to provide support during
circumstances which adversely affect their welfare, provided that the
provision of the benefits and financial contributions constitutes neither a
direct payment for a particular good nor an individual contract or transfer”
(citado em adema & ladaique, 2005:7). Inclui assim benefícios sociais
monetários (por exemplo, pensões, subsídios de desemprego, etc), serviços
sociais fornecidos em géneros (por exemplo serviços de saúde, de cuidados
pessoais, creches, centros de dia, etc) e isenções fiscais com finalidades
sociais (por exemplo, benefícios fiscais com planos privados de saúde ou
de reforma).

Apresenta-se, no Quadro 1.2, informação sobre o peso da despesa social (na


concepção apresentada) no PIB, em 1995, para um conjunto de países da
OCDE e publicadas em lindert (2004). Será, com um âmbito compatível
com o que é apresentado neste quadro, que apresentaremos mais adiante (no
Quadro 1.3) a evolução deste indicador desde 1880.

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Quadro 1.2 – Despesa social em alguns países da OCDE em 1995, em
percentagem do PIB

Subsídios de Assistência
Países total Pensões Saúde Habitação
desemprego social

Australia 14,8 4,1 1,3 3,4 5,8 0,3


Canada 18,1 5,2 1,3 1,4 7,1 3,1
EUA 13,7 5,2 0,3 0,8 6,7 0,6
Irlanda 18,3 4,7 2,7 3,4 6,2 1,3
Japão 12,2 5,3 0,4 0,5 5,8 0,2
Nova Zelândia 18,6 6,4 1,1 2,9 7,4 0,8
Reino Unido 22,5 10,6 0,9 2,8 6,1 2,1
Dinamarca 30,9 11,6 4,6 6,0 6,2 2,4
Finlândia 31,6 14,2 4,0 5,8 6,5 1,1
Noruega 27,6 12,4 1,1 5,1 7,8 1,1
Suécia 33,0 14,8 2,3 6,2 7,5 2,2
Alemanha 24,9 10,3 2,4 3,4 8,1 0,8
Austria 21,4 10,5 1,4 2,8 6,3 0,4
Belgica 27,1 12,2 2,8 3,7 7,8 0,6
França 26,9 10,9 1,8 3,9 8,9 1,4
Países Baixos 25,7 10,4 3,1 2,5 8,7 1,0
Espanha 20,4 9,8 2,5 1,2 6,8 0,2
Grécia 14,4 9,6 0,4 0,4 3,9 0,1
Itália 23,7 15,2 0,9 1,7 6,0 0,0
Portugal 15,2 6,7 1,0 1,8 5,6 0,1

Fonte: lindert (2004:177-8), com base na OECD Social Expenditure Database (SOCX).

Há duas condições que devem ser verificadas para um certo item de despesa
ser considerado “social”: por um lado, ter alguma finalidade social e, por outro
lado, os programas que os regulam envolverem resdistribuição inter-pessoal
de recursos ou serem de participação obrigatória. Os cinco programas sociais
em que o total da despesa social se encontra decomposto correspondem a
esta concepção. No entanto, constitui uma forma imperfeita de medir, em
termos comparativos para os diferentes países, o papel do Estado na provisão
do bem-estar. Algumas funções do Estado com essa finalidade, através de
actividades de regulação, não assumem a natureza de despesa pública. Por
outro lado, as diferenças entre países na dimensão de algumas rubricas
de despesa significam percentagens diferentes da população total coberta
pelos riscos sociais (extensão dos direitos sociais pela população), mas
também o nível de generosidade desta cobertura (por exemplo, diferentes
taxas de substituição do rendimento no caso das pensões ou do subsídio de
desemprego) e a dimensão dos riscos (por exemplo, diferentes valores para
a percentagem da população idosa, para a taxa de desemprego, etc). Acresce
a estas limitações a dificuldade de medição de forma comparável entre os
vários países, dada a diversidade de sistemas de protecção social em todo o

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mundo, não obstante o esforço de harmonização que vem sendo feito pelas
organizações internacionais (pela ocde, neste quadro e, como veremos no
capítulo seguinte, pelo eurostat para os países da União Europeia).
No Quadro 1.2 os países são apresentados de forma agrupada, de modo a
fazer sobressair algumas semelhanças e diferenças entre países relativamente
aos seus sistemas de protecção social, tal como os iremos ver no capítulo
três. Não vamos ainda analisar estas características, pelo que a natureza
desta classificação, tal como é apresentada, tem uma base essencialmente
geográfica: o primeiro grupo é essencialmente constituído pelo conjunto
dos países de cultura anglo-saxónica, quer localizados na Europa ou fora
da Europa, a que se acrescenta o Japão. O segundo grupo é formado pelos
países escandinavos. O terceiro grupo é constituído pelos países do centro
da Europa, onde se iniciaram as primeiras formas de protecção contra riscos
sociais. O quarto grupo é constituído pelos países do sul da Europa. Veremos
mais adiante (capítulos dois e três) que, não obstante a natureza “regional”
desta classificação dos países, ela ajusta-se muito bem a tipologias clássicas
de formas de Estado-providência tendo em conta, na identificação dos traços
tipológicos, critérios rigorosos de análise dos sistemas de protecção social.
Vemos que há uma grande diversidade, entre os países, no que respeita à
percentagem do valor económico criado que devotam à protecção de riscos
sociais, variando entre valores baixos, rondando 12-15% nos países de cultura
anglo-saxónica ou nos países do sul da Europa, e valores relativamente
elevados, acima de 30%, nos países escandinavos. Também é diversa, entre
os países, a composição dessa despesa por natureza dos riscos cobertos.
Não é possível, com base na informação de que dispomos, interpretar estas
diferenças. Mais adiante retomaremos esta questão, quando analisarmos as
tipologias de Estados-providência.
Se é diferente o nível relativo da despesa social e a sua composição por tipos
de riscos sociais cobertos, é também diferente o seu percurso histórico. O
ano que observámos atrás, em análise comparativa entre países (1995), é o
último de uma série, para o mesmo indicador, que se apresenta no Quadro
1.3 e que tem início em 1880.
No final do sec. XIX eram poucos os países que apresentavam um valor
positivo de despesa social e, para estes, o valor máximo representava cerca de
1% do PIB. Até meados dos anos 1920s era a Dinamarca que liderava o nível
relativo de despesa social, sendo o país em que o desenvolvimento do Estado-
providência foi mais significativo. Fora da Europa, era a Nova Zelândia e
a Australia os países que lideravam esse desenvolvimento. Foi, porém, nos
anos 1930s e 1940s que esse crescimento foi mais significativo, quer na
Europa quer no resto do mundo. Foi o período da criação de grande parte dos
programas sociais que hoje caracterizam os modernos Estados‑providência,
como já vimos atrás. Os anos 1960s e 1970s foram, porém, os anos de grande
crescimento do Estado-providência, ao qual se seguiu, até à actualidade, uma
fase de estagnação, ou estabilidade, nesse crescimento.

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Quadro 1.3 – Transferências Sociais nos países da OCDE, 1880-2001, em percentagem do PIB

                           
1880 1890 1900 1910 1920 1930 1960 1970 1980 1980 1990 1995 1990 2001
                  a) a) c) b) b)

Australia 0 0 0 1,12 1,66 2,11 7,39 7,37 12,79 10,90 13,57 14,84 14,20 18,00
Canada 0 0 0 0 0,06 0,31 9,12 11,80 14,96 12,91 17,38 18,09 18,60 18,20
EUA 0,29 0,45 0,55 0,56 0,70 0,56 7,26 10,38 15,03 11,43 11,68 13,67 13,40 14,80
Irlanda .. .. .. .. .. 3,74 8,70 11,89 19,19 16,20 18,05 18,30 18,60 13,80
Japão 0,05 0,11 0,17 0,18 0,18 0,21 4,05 5,72 11,94 10,48 11,57 12,24 11,20 16,90
Nova Zelândia 0,17 0,39 1,09 1,35 1,84 2,43 10,37 9,22 15,22 16,22 22,12 18,64 .. ..
Reino Unido 0,86 0,83 1,00 1,38 1,39 2,24 10,21 13,20 16,42 16,94 18,05 22,52 19,50 21,80

Dinamarca 0,96 1,11 1,41 1,75 2,71 3,11 12,26 19,13 27,45 26,44 26,97 30,86 29,30 29,20
Finlândia 0,66 0,76 0,78 0,90 0,85 2,97 8,81 13,56 19,19 18,32 24,66 31,65 24,80 24,80
Noruega 1,07 0,95 1,24 1,18 1,09 2,39 7,85 16,13 20,99 18,50 26,44 27,55 .. ..
Suécia 0,72 0,85 0,85 1,03 1,14 2,59 10,83 16,76 25,94 29,78 32,18 33,01 30,80 29,90

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Alemanha d) 0,50 0,53 0,59 .. .. 4,82 18,10 19,53 25,66 20,42 19,85 24,92 22,80 27,40
Austria 0 0 0 0 0 1,20 15,88 18,90 23,27 23,43 24,54 21,39 24,10 26,00
Belgica 0,17 0,22 0,26 0,43 0,52 0,56 13,14 19,26 30,38 22,45 23,11 27,13 26,90 27,20
França 0,46 0,54 0,57 0,81 0,64 1,05 13,42 16,68 22,55 22,95 23,70 26,93 26,80 28,50
Países Baixos 0,29 0,30 0,39 0,39 0,99 1,03 11,70 22,45 28,34 26,94 27,59 25,70 27,60 21,80

Espanha 0 0 0 0,02 0,04 0,07 .. .. .. 12,97 17,01 19,01 19,50 19,60


Grécia 0 0 0 0 0 0,07 10,44 9,03 11,06 8,67 13,95 14,43 20,90 24,30
Itália 0 0 0 0 0 0,08 13,10 16,94 21,24 17,10 21,34 23,71 24,80 25,80
Portugal 0 0 0 0 0 .. .. .. .. 10,10 12,62 15,23 13,90 21,10
                             
Fontes: LINDERT, P. (2004), CASTLES, F.G. (2006)
                             
Notas a) Com base na série “antiga” OCDE, 1960-80 b) Com base na série “nova” OCDE, 1980-90 c) Estimativa de LINDERT (2004)
  d) Alemanha Ocidental para o período 1960-90                  
                             
Legenda 0 – valor nulo .. – valor desconhecido
1.6 Políticas de redução (“retrenchment”) do Estado‑providência

Nos anos 1980s surgiu, na literatura sobre o Estado-providência, o conceito


de “welfare state retrenchment”, que podemos traduzir por redução do
Estado‑providência. Trata-se de um conceito que qualifica orientações de
política visando alterar, reduzindo, o papel do Estado na esfera social e que
tem, como protagonistas principais, a chegada ao poder de Margaret Thatcher
no Reino Unido em 1979 e Ronald Reagan nos EUA em 1981. Foi também
relevante a literatura sobre a “reestruturação”, “desmantelamento” ou
“redução” do Estado-providência que entretanto foi produzida, evidenciando
a preocupação com a alteração das políticas públicas sociais, quantificando
e documentando estas alterações ou explicando a sua ocorrência.

É discutível se de facto ocorreu uma redução tão drástica quanto os conceitos


atrás descritos, e usados na literatura, dão a entender. Os valores do Quadro 1.3
evidenciam um menor ritmo de crescimento do peso das despesas sociais no
PIB a partir de 1980 quando comparado com as décadas anteriores. Apesar da
dificuldade na medição das alterações das políticas, em particular da redução
do papel do Estado nessas políticas, verifica-se que esta percentagem não
diminuiu. Na verdade, como refere pierson (1996), existe uma resistência
do Estado-providência à mudança que encontra justificação no peso da
história dos sistemas de protecção social, que origina inércias institucionais.
Como este autor refere, “o welfare state representa o status quo, com todas
as vantagens políticas que esse status quo confere. As não‑decisões em
geral favorecem o welfare state. Alterações mais significativas requerem
geralmente a concordância de numerosos actores. Quando o poder está
disperso entre diferentes instituições (…) é difícil realizar reformas radicais”
(pierson, 1996).

Há também factores que tornam politicamente inviáveis alterações radicais


do Estado-providência. Os beneficiários dos programas sociais tendem a
estar relativamente concentrados e, além disso, os programas de segurança
social com maior maturidade originam interesses organizados de defesa
destes programas. Por outro lado, os contribuintes para o funcionamento
desses programas, quem paga impostos, encontram-se dispersos. Assim
sendo, qualquer política de redução da despesa em programas sociais, que
tornasse necessária uma menor carga fiscal, originaria custos eleitorais por
aqueles que tivessem os seus programas sociais reduzidos que não seriam
compensados pelos ganhos provenientes daqueles que vissem a sua carga
fiscal diminuida (pierson, 1996).

Mas a existência de uma política de retrenchment, isto é, de redução do


Estado-providência, tem caracterizado a orientação de muitas decisões de
reforma dos sistemas de protecção social desde os anos 1980s. Veremos,

39
© Universidade Aberta
mais adiante (no capítulo 5) algumas características das recentes reformas
da segurança social. Neste capítulo, de natureza mais introdutória, faremos
uma breve resenha dos contributos teóricos para a explicação desta orientação
de políticas públicas. Usaremos, para esse efeito, a síntese da literatura feita
em starke (2006).

Entre as várias correntes de pensamento sobre os factores explicativos


das políticas de redução do Estado-providência, conta-se o pensamento
neo‑funcionalista, segundo o qual estas alterações de política devem ser
encaradas à luz das alterações socio-económicas que originam, quer por
factores internos quer externos, alterações das pressões políticas para
variações da despesa social. De acordo com esta abordagem teórica,
encontramos nas sociedades contemporâneas factores internos que justificam
essas mudanças, como sejam a redução da taxa de crescimento económico,
redução do crescimento da produtividade do trabalho, bem como o aumento
do desemprego, o aumento do trabalho a tempo parcial, as alterações nas
estruturas familiares e factores demográficos (envelhecimento). Estas
alterações constituem factores de agravamento da despesa. Porém, de forma
indirecta, devido ao aumento da pressão fiscal que originam, constituem
também factores com impacto na redução das despesas.

A política social não é, porém, apenas o resultado de alterações sócio‑


-económicas, mas também da luta política sobre decisões de natureza
distributiva. Esta é a perspectiva das teorias do conflito. De facto, verifica-se
que há um impacto significativo dos partidos de esquerda e do poder sindical
na expansão do Estado-providência. As alterações nas configurações políticas
dominantes na sociedade explicariam alterações nas orientações das políticas
sociais, designadamente a sua redução.

Mas deve também ter-se em consideração o papel das instituições na reforma


dos sistemas de protecção social. Esta é a perspectiva do institucionalismo.
Há que distinguir, a este respeito, entre dois tipos de instituições. Por um
lado, há as instituições políticas, que estabelecem as regras do jogo e
das conflitualidades políticas, por exemplo a forma de funcionamento do
parlamento, as formas de representação política dos interesses profissionais.
Por outro lado, existem as instituições do Estado-providência, isto é, as
estruturas da provisão do bem-estar social, e que identifica formas, ou
princípios orientadores dessa provisão (por exemplo, universalismo vs.
selectividade). Consoante as características destas instituições assim teremos
um efeito maior ou menor no tipo de orientação política das reformas do
Estado-providência. No que respeita às instituições políticas, há autores
que consideram que em sistemas de elevado grau de fragmentação do poder
(seja ela em termos verticais ou horizontais), é menos provável que ocorram
políticas de redução do Estado-providência, dado que, nestas circunstâncias,

40
© Universidade Aberta
é mais elevado o número de actores políticos com poder de veto. Em países
onde, pelo contrário, existir um mais elevado grau de concentração do poder
político, é mais provável que ocorram reformas deste tipo. Relativamente às
instituições do Estado-providência, alguns autores consideram que é mais
provável que ocorram políticas de redução da política social nos países onde
os sistemas de protecção social são mais generosos, onde as despesas sociais
são mais elevadas, como são os regimes de Estado-providência continentais
e escandinavos. Já outros autores consideram que tal não depende do grau
de generosidade dos sistemas ou do nível das despesa social mas, antes, da
estrutura das classes sociais que suportam os regimes de Estado-providência,
seja eles a classe média (como é o caso dos países escandinavos ou os
regimes corporatistas, continentais) ou, ao invés, no caso dos países de
orientação liberal, de Estado residual, dependentes da lealdade de uma classe
social numericamente fraca e politicamente residual. É, neste sentido, mais
provável que políticas de redução da despesa social ocorram no primeiro
tipo de sociedades. Ainda segundo outros autores, seguidores da teoria da
path-dependency, consideram que as instituições, com a sua pesada herança
histórica, são dificilmente reformáveis, sendo por isso improváveis políticas
de redução, antes ocorrendo variações incrementais no contexto de um quadro
institucional estável.

O papel das ideias na política social e nas suas reformas constitui uma outra
orientação do pensamento sobre o Estado-providência e sobre as mudanças
e reformas que vai tendo. Quando se fala em ideias políticas estamo-nos a
referir a “políticas alternativas específicas bem como princípios organizativos
de que estas propostas políticas se encontram imbuídas (por exemplo, o
neo-liberalismo)” (beland, 2005). Tem havido recentemente bastante
literatura sobre o papel das “ideias” (no sentido exposto) para a política
social, o que explicaria a emergência de novos paradigmas para a análise
da sociedade e das políticas sociais e sua reorientação. Recordando o que
foi visto anteriormente sobre o conceito de problema social1, não podemos 1
PEREIRINHA, J. (2008),
deixar de ter em consideração o facto de que o reconhecimento social e cap.3.

político da necessidade de intervenção tem subjacente um sistema de valores


normativos, de algum paradigma social. É nestes termos que muito do
progresso da política social se faz.

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Leituras complementares

Há uma extensa literatura sobre o welfare state, pelo que se torna difícil
seleccionar bibliografia complementar. Porém, após a leitura deste
capítulo, e complementando o que foi lido, sugerem-se algumas leituras de
aprofundamento.

• pierson, c. & castles, f. (eds) (2006) The Welfare State Reader.


Polity.

Trata-se de um livro de selecção de textos clássicos sobre o Estado‑providência.


A sua consulta permite contactar com uma grande variedade de textos de
autores consagrados, alguns dos quais de difícil acesso.

• flora, p. & heidenheimer, a. j. (eds) (1984) The development


of welfare states in Europe and America. Transaction Publishers.

Trata-se de uma obra de referência sobre a análise histórica do


Estado‑providência.

• lindert, peter h. (2004) Growing Public: social spending and


economic growth since the eighteenth century. Cambridge University
Press, volume I, II

É uma obra fundamental para conhecer as trajectórias de evolução do


Estado‑providência, na Europa e resto do mundo, tomando por base a despesa
social nos vários items que correspondem às diversas funções do Estado no
domínio da Política Social.

• starke, p. (2006) The Politics of Welfare State Retrenchment: A Literature


Review. Social Policy & Administration, vol. 40, nº 1: 104-120

É um texto muito recente que faz uma boa síntese das principais ideias
de polémicas sobre a redução (“retrenchment”) do Estado-providência.
Recomenda-se vivamente a sua leitura, pela sua grande actualidade.

Palavras-chave

Ao longo do capítulo foram utilizados vários conceitos que formam um


glossário que vai sendo enriquecido ao longo do livro. Sugere-se e recomenda-
-se que os leitores redijam pequenos textos de definição de alguns dos
conceitos abaixo descritos e que constituem as palavras-chave que ajudam
a identificar o conteúdo deste capítulo.

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Estado-providência/Welfare State
path-dependency e path-deviation
welfare arrangement
welfare retrenchment
processos de difusão
sistema de pensões de benefício definido / de contribuições definidas
sistema multipilar de pensões de reforma (1ª, 2º e 3º pilares)

Questões para revisão e reflexão

1. Descreva, em traços gerais, a evolução da natureza das políticas sociais


dos Estados na Europa desde o final do sec. XIX até à actualidade e,
desta forma, como evoluiu a cobertura dos riscos sociais nas sociedades
contemporâneas.

2. Diga a sua opinião sobre a importância que tiveram, para a construção dos
modernos Estados-providência, as reformas de Bismark na Alemanha e de
Beveridge no Reino Unido. Por que razão se entende serem estas reformas
fundadoras de duas famílias distintas de protecção social?

3. Reflicta sobre a adequação do indicador “percentagem da despesa social no


PIB” como medida da importância da política social num dado país e como
instrumento de medição das diferenças internacionais dessa importância.

4. Pode falar-se na existência de uma redução do Estado-providência no


mundo contemporâneo? Apresente argumentos a favor e contra a evidência
de tal redução.

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Página intencionalmente em branco

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2. Objectivos, funções e instrumentos do Estado-providência

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Página intencionalmente em branco

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Sumário

2.1 Dimensão social da integração europeia: análise evolutiva

2.2 A estratégia de Lisboa e a Agenda Social Europeia

2.3 A dimensão e as funções sociais do Estado na União Europeia

Leituras complementares

Palavras-chave

Questões para revisão e reflexão

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© Universidade Aberta
Objectivos

• Que os leitores conheçam as principais etapas de evolução da


dimensão social da construção da União Europeia, identificando
os principais marcos nessa evolução e conheçam os principais
documentos que marcaram essa construção;

• Que os leitores fiquem informados sobre a dimensão social do


Estado‑providência na União Europeia e a diversidade que apresentam
nos vários países que actualmente a constituem;

• Que os leitores entendam o significado de “modelo social europeu”,


e compreendam, ainda que de forma bastante genérica, o papel
(limitado) que as instituições comunitárias desempenham em
termos de política social, remetendo para os Estados nacionais
essa responsabilidade o papel de coordenação de políticas ao nível
supranacional.

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© Universidade Aberta
Após termos visto, no capítulo anterior, o significado e a origem histórica do
Estado-providência, e feita uma descrição sumária do seu desenvolvimento
no mundo, chegou a vez de começarmos a analisar os modernos Estados-
providência tal como actualmente existem na Europa. Este capítulo tem esse
objectivo, visando caracterizar a sua actuação nas funções que desempenham
nos diversos Estados que constituem a actual União Europeia (UE-27).

A União Europeia é um espaço económico e político que engloba várias


realidades nacionais, bastantes distintas entre si em termos económicos,
culturais e também no que respeita às suas instituições políticas e às
instituições dos seus Estados-providência. O nascimento e alargamento
da actual União Europeia, desde o Tratado de Roma até à actualidade, foi
diversificando este espaço. Por outro lado, começando por ter objectivos de
integração económica, as dimensões sociais da criação do espaço económico
foram ganhando importância, originando decisões que determinaram diversos
níveis de intervenção política na formulação das políticas sociais. Destacam‑se
claramente os níveis nacional (dos Estados Membros, responsáveis pela
preparação e execução das políticas) e o nível supra-nacional (da Comissão
Europeia e das várias instâncias do poder na União) em que se definem
estratégias e se formam linhas de orientação que marcam a Política Social e
as formas de actuação dos Estados-providência nacionais.

Actualmente, no âmbito da discussão sobre as funções sociais do Estado,


recorre-se com frequência ao conceito de “modelo social europeu”
caracterizado por “sistemas que oferecem elevados níveis de protecção social,
pela importância do diálogo social e por serviços de interesse geral cobrindo
actividades vitais para a coesão social, e que está actualmente baseado,
para além da diversidade dos sistemas sociais dos Estados-Membros, num
conjunto nuclear de valores comuns” (Conclusões da Presidência, Nice 2000).
Este capítulo pretende ser um primeiro passo no sentido de se compreender
o significado e o alcance deste conceito. Nele vamos tratar três aspectos
fundamentais com vista a este objectivo. Em primeiro lugar, começaremos
por apresentar a evolução da dimensão social da construção europeia, tal
como foi sendo consagrada nos vários tratados e documentos fundamentais,
e da forma como a articulação entre os níveis nacionais e supranacional foi
sendo realizada, permitindo que haja actualmente a defesa política de um
modelo social europeu. Em segundo lugar, faremos uma análise das funções
dos Estados-providência na União Europeia permitindo, assim, uma visão
actual das políticas sociais nos vários Estados-membros, bem como do
peso económico do Estado nas suas funções sociais, e em que medida os
sucessivos alargamentos da actual União Europeia vieram trazer, para este
espaço, heterogeneidade acrescida. Finalmente, analisaremos a Agenda
Social europeia e os principais documentos que enformam a Política Social
Europeia (conceito que deve ser discutido) na actualidade.

49
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2.1 Dimensão social da integração europeia: análise
evolutiva

Desde a criação da CEE com 6 Estados-membros, pelo Tratado de Roma em


1957, até à actualidade, foram vários os marcos importantes no processo da
construção da dimensão social da Europa até à criação da União Europeia
actualmente com 27 Estados-membros. É este duplo movimento, em que
se consubstancia a construção do actual modelo social europeu, que vamos
tratar desde já. Por um lado, temos o alargamento do espaço comunitário a
um conjunto mais vasto e heterogéneo de países, com crescente diversidade
institucional dos sistemas de protecção social. Por outro lado, a história da
actual União Europeia, desde a criação da CEE em 1957, está caracterizada
por um conjunto de documentos políticos que permitem conhecer a forma
como a política social foi ganhando importância no espaço europeu. Vamos
tratar de seguida, de forma sumária, destas duas questões.

Os antecedentes da criação da CEE

A criação da Comunidade Económica Europeia (CEE) pelo Tratado de


Roma, em 1957, teve objectivos eminentemente económicos. Na leitura do
Relatório Spaak (1956), que está na base deste Tratado, as escassas referências
que se encontram relativamente a política social referem-se a domínios
requeridos para assegurar a realização de um mercado comum, como sejam:
a harmonização da legislação, designadamente “dos regimes nacionais que
afectam a igualdade de salários para homens e mulheres, a duração do trabalho
semanal e a duração do período de férias” (Relatório Spaak, pp. 14-15), o
estabelecimento de princípios de liberdade de movimento de trabalhadores
entre os países desse espaço económico, bem como a necessidade de criação
de fundos financeiros para apoio à reconversão industrial das empresas
em dificudade económica ou falência, e no apoio à formação e mobilidade
profissional dos trabalhadores.

Nos tratados que precederam a criação da cee, relativos à criação da ceca


(pelo Tratado de Paris em 1951) e do euratom (pelo Tratado de 1957) está
visível uma orientação política em que, através da criação de um mercado
comum, se pretende “atingir uma expansão económica, o crescimento do
emprego e um aumento dos níveis de vida nos Estados-Membros” e em
que a “Comunidade promoverá progressivamente as condições para que
se alcancem os níveis mais elevados possível da produtividade, com a
contínua salvaguarda do emprego e de forma a não provocar perturbações
fundamentais e persistentes nas economias dos Estados-Membros” (Tratado
de Paris, 1951, artº 2). Assim, não prevendo actuações específicas no que
respeita às dimensões sociais da criação de espaços económicos integrados, a

50
© Universidade Aberta
criação de um mercado comum não deixou nunca de ter em vista objectivos
de progresso de bem-estar que se desejava, e esperava, como resultado dessa
integração.

Criação da CEE: o Tratado de Roma, 1957

Na criação da Comunidade Económica Europeia (cee) está presente a


preocupação com as suas dimensões sociais, ainda que com carácter secundário
relativamente aos objectivos de natureza económica. A preocupação com a
remoção das barreiras à mobilidade da mão-de-obra está muito presente no
seu Tratado fundador, o Tratado de Roma de 1957. Ainda que atribua uma
muito elevada prioridade aos objectivos económicos, este Tratado contém um
conjunto de artigos sobre Política Social (Título III, artigos 117º a 128º).

A introdução da dimensão social na construção do espaço económico


europeu sempre foi uma questão controversa. Foi muito marcada, no período
de negociação do Tratado, pela oposição entre as posições da França e
da Alemanha sobre os efeitos dos custos sociais na competitividade das
suas economias, sendo a posição da França muito mais favorável a uma
harmonização das medidas de política (sem o que, pela natureza mais
avançada dos direitos sociais neste país, colocaria a França numa posição
de desvantagem comparativa face aos outros países da cee), enquanto a
Alemanha defendia uma menor regulação das medidas sociais. A solução
versada no Tratado constitui um compromisso entre as duas posições
(hantrais, 1995: 2-3). O princípio do “igual pagamento” entre homens e
mulheres (artº 119º), do pagamento das férias (artº 120º) e da implementação
de medidas comuns para os trabalhadores migrantes (artº 121º) constituem
evidências das vitórias das posições da França no Tratado.

No artigo 117º do Tratado de 1957 estipula-se que “os Estados-Membros


acordam entre si a necessidade de promover a melhoria das condições de
trabalho e dos níveis de vida dos trabalhadores, de forma a tornar possível
a sua harmonização”. Para alcançar esse objectivo, os Estados-Membros
“acreditam que esse progresso resulta não apenas do funcionamento do
mercado comum, que contribuirá para a harmonização dos sistemas sociais,
mas também dos procedimentos previstos no Tratado e da aproximação
das disposições legislativas, regulamentares e administrativas”. Tenhamos
em consideração o facto de, aquando da sua criação, a CEE ser constituída
por um conjunto de países que seguem um modelo de protecção social
de orientação Bismarkiana e de natureza corporatista (França, Alemanha,
Itália, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo). Os sucessivos alargamentos
foram dando lugar a uma crescente heterogeneidade europeia em termos
dos modelos de intervenção social do Estado: em 1973 com a entrada de
países representando modelo liberal, de Estado residual (UK e Irlanda) e

51
© Universidade Aberta
social-democrata (Dinamarca), nos anos 1980s com a entrada de países do
Sul (Grécia em 1981 e Espanha e Portugal em 1986), o reforço dos modelos
social-democrata e corporatista em 1996 (Áustria, Finlândia e Suécia) e, já no
sec. XXI, os países do ex-bloco socialista. O propósito da harmonização dos
sistemas de protecção social, aquando da fundação da CEE, viria a ter uma
natureza e viabilidade distintas à medida que o seu alargamento foi originando
uma crescente heterogeneidade em termos de modelos de protecção social.

A criação do Fundo Social Europeu (FSE) (artºs 123 a 128º do Tratado de


Roma) constituiu um instrumento importante para as finalidades económicas
da criação da CEE, visando assegurar o emprego e o reemprego da população
trabalhadora e encorajar a mobilidade geográfica e profissional no interior
do espaço comunitário. De acordo com o artº 123º do Tratado de Roma,
“em ordem a melhorar as oportunidades de emprego dos trabalhadores no
mercado comum e contribuir, portanto, para aumentar o nível de vida, é criado
um Fundo Social Europeu (…); terá por função tornar mais fácil para os
trabalhadores obterem emprego e aumentarem a sua mobilidade geográfica e
profissional dentro da Comunidade”. Mas importa referir que as despesas do
FSE representavam, no final da década de 1980, cerca de 7% do orçamento
comunitário, em comparação com 67% que representava a despesa com a
agricultura (kleinman, 2002:85).

A Carta Social Europeia do Conselho da Europa, em 1961

A par da criação de um espaço económico marcada, desde o início, com


algumas (mas muito limitadas) preocupações sociais, é ao nível do Conselho
da Europa que os avanços com as preocupações sociais na Europa ganham
relevo. O Conselho da Europa, contando actualmente com 46 países membros,
é uma organização intergovernamental com sede em Estrasburgo criada em
1949 (em Londres, contando inicialmente com 10 países membros) com o
objectivo de promover a defesa dos Direitos Humanos e a defesa e protecção
dos direitos e liberdades fundamentais, para “realizar uma união mais estreita
entre os seus membros de modo a salvaguardar os ideais e os princípios
que são o seu património comum e favorecer o seu progresso económico e
social”.

O primeiro tratado a ser concebido pelo Conselho da Europa e assinado pelos


seus Estados membros, em 1950 (Roma), foi a Convenção para a Salvaguarda
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (também designada
Convenção Europeia dos Direitos do Homem). Esta Convenção é considerada
um instrumento que visa “assegurar a protecção efectiva dos direitos e
liberdades fundamentais e estabelecer os mecanismos jurisdicionais capazes
de garantirem o seu respeito”, ainda que cobrindo apenas os direitos civis e
políticos. Em 1961 (Turim) é concebida e assinada uma Carta Social Europeia

52
© Universidade Aberta
para completar os direitos civis e políticos garantidos pela Convenção
Europeia dos Direitos do Homem, e consagrando direitos sociais. Trata-se
de um conjunto de direitos nos domínios da saúde, da educação, do trabalho
e da protecção social, inspirada nas recomendações das Nações Unidas.
Entra em vigor em 1965, após a sua ratificação por cinco Estados membros.
Por esta Carta Social os Estados membros comprometem-se a respeitar um
conjunto de direitos sociais descritos nos artigos 1º a 19º: direito ao trabalho;
direito a condições justas de trabalho; direito a condições de trabalho seguras
e saudáveis; direito a uma justa remuneração; direito dos trablhadores
a organizarem-se; direito à negociação colectiva; direito das crianças e
jovens à protecção; direito das trabalhadoras femininas à protecção; direito
à orientação profissional; direito à formação profisional; direito à protecção
na saúde; direito à segurança social; direito à assistência social e médica;
direito a beneficiar de serviços sociais; direito da população com deficiência
para a formação profissional, reabilitação e realojamento; direito da protecção
social, legal e económica da família; direito das mães e das crianças à
protecção social e económica; direito a ter uma profissão remunerada no
território de outras partes contratantes; direito dos trabalhadores migrantes
e suas famílias à protecção e assistência.

Mais tarde, em 1988, o Protocolo Adicional à Carta Social Europeia alargou


o âmbito dos direitos sociais, em termos de igualdade de oportunidades e de
tratamento dos trabalhadores em matéria de emprego, sem discriminação de
género, direito dos trabalhadores a serem informados e consultados e tomarem
parte na melhoria das condições e ambiente de trabalho, bem como o direito
das pessoas idosas à protecção social.

A Convenção dos Direitos Humanos e a Carta Social do Conselho da Europa


viriam mais tarde a ser inspiradores da Carta Comunitária dos Direitos
Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, adoptada pelos Chefes dos Estados
Membros da CEE em Estrasburgo, 8-9 Dezembro de 1989. Este documento
viria a constituir uma peça fundamental da construção da Política Social
Europeia, como adiante veremos.

Programa de Acção Social da Comunidade, 1974

Foi muito limitado o alcance dos primeiros passos da política social da


Comunidade Europeia. Vinham sendo crescentes, ao longo dos anos
1960s, as preocupações sociais. Começava a generalizar-se o sentimento
de insuficiência do papel social da Comunidade Europeia e a necessidade
de desempenhar um papel de maior importância face aos problemas sociais
existentes no espaço comunitário. Foi esse o sentido essencial da Conferência
de Haia em Dezembro de 1969, em que foi acordado que a Comunidade
Europeia deveria prosseguir objectivos económicos e políticos incluindo

53
© Universidade Aberta
uma “política social concertada”. A Cimeira de Paris, de 1972, conclui no
mesmo sentido, reconhecendo-se a necessidade de os Estados membros
terem uma actuação mais vigorosa no campo social (collins & salais,
2004:424).

Um passo importante nessa direcção foi dado pela Resolução do Conselho


de 21 de Janeiro de 1974 ao estabelecer o primeiro Programa de Acção
Social, para o período de 1974 a 1976, considerando que “a política social
da Comunidade tem um papel a desempenhar e deve dar uma contribuição
essencial para alcançar [objectivos sociais], quer através de medidas da
Comunidade quer da definição, pela Comunidade, de objectivos para as
políticas sociais nacionais” (Council Resolution 1974). Foi, nestes termos,
uma antecipação do princípio da subsidiaredade no domínio da Política
Social. E esses objectivos sociais são: “pleno emprego, e de melhor qualidade,
ao nível da Comunidade e aos níveis nacional e regional, como condição
essencial para uma efectiva política social; melhoria das condições de vida e
de trabalho que torne possível a sua harmonização ao mesmo tempo que se
mantém essa melhoria; uma participação crescente do capital e do trabalho
nas decisões económicas e sociais da Comunidade, e dos trabalhadores na vida
da empresa” (Council Resolution 1974). Pode afirmar-se que “o Programa de
Acção Social de 1974 constituiu a base em que assentou o desenvolvimento
da política social da Comunidade na década que se seguiu, (…) nas áreas da
educação e formação, saúde e segurança no trabalho, direitos e pobreza dos
trabalhadores e da mulher, tendo conduzido à criação de redes europeias e
observatórios para simular a actuação e monitorizar os progressos no campo
social “ (hantrais, 1995:5-6).

Os anos 1980s: a dimensão social e o Acto Único Europeu

A década de 1980s é marcada por um conjunto de acontecimentos que dão


lugar a um especial vigor na afirmação da Política Social na Comunidade
Europeia. François Mitterrand é eleito presidente (socialista) da França, tendo
lançado a ideia da criação de um “espaço social” na Europa e proposto um
programa de reforma dos Tratados, direccionando a Comunidade Europeia
para uma nova orientação da política social. Jaques Delors é eleito Presidente
da Comissão, para quem a criação de um espaço social era um complemento
natural para a realização do mercado interno, em construção. Tratava-se de
construir uma “Europa sem fronteiras” em 1992. Para Jacques Delors, “é a
dimensão social da Europa que permite que a concorrência floresça entre as
empresas e os indivíduos numa base razoável e justa (…) qualquer tentativa de
aprofundar o Mercado Comum que esqueça esta dimensão social será votada
ao fracasso” (delors, 1985 citado em hantrais, 1995:6). A Política
Social passou a ser entendida como um “pré-requisito funcional da integração

54
© Universidade Aberta
europeia” (room, 1994, citado em hantrais, 1995:6), como um meio
requerido para fortalecer a coesão económica, devendo portanto ser encarada
na mesma base em que o são a política económica, a política monetária ou
a política industrial (hantrais, 1995:6). O Conselho Europeu aceitaria,
em 1985, o relatório do grupo ad hoc sobre “People´s Europe”, coordenado
por Adonnino em que se faziam várias recomendações de política para
permitir alcançar o objectivo de uma “Europa sem fronteiras” para o ano de
1992. É também nesta década que são admitidos os países do Sul (Grécia,
Espanha e Portugal), o que vai originar, no seio da Comunidade Europeia,
um conjunto de novos desafios, atendendo à natureza específica dos novos
países membros.

O Acto Único Europeu, assinado pelos então 12 Estados-membros em 1986,


constituiu a primeira revisão dos Tratados da Comunidade Europeia. Os
seus propósitos eram de natureza essencialmente económica, de assegurar a
realização do mercado interno Europeu e a livre circulação dos bens e serviços
e dos factores de produção (trabalho e capital). Pouco progresso revela no
domínio social, não obstante o propósito dos signatários, enunciado no seu
preâmbulo, de “trabalharem em conjunto para promover a democracia com
base nos direitos fundamentais reconhecidos nas constituições e legislação
dos Estados membros, na Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos
e Liberdades Fundamentais e na Carta Social Europeia, nomeadamente a
liberdade, a igualdade e a justiça social”. A principal alteração foi a nova
redacção do artº 118º do Tratado da CEE, prevendo soluções facilitadoras
de processos de decisão em matéria de política social, introduzindo a regra
da maioria qualificada (e não de unanimidade) em domínios importantes da
política social (condições e ambiente de trabalho, de saúde e de segurança
dos trabalhadores), bem como o princípio do desenvolvimento do diálogo
social e da obtenção de acordos entre o capital e o trabalho em domínios da
política social.

A Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores,


1989

Os propósitos atrás enunciados de promover a realização de direitos


sociais, contidos no preâmbulo do Acto Único Europeu, acabaram por ter
concretização na adopção pelos Estados membros (com a excepção do Reino
Unido), em 8-9 Dezembro 1989 (em Estrasburgo), da Carta Comunitária dos
Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, também conhecida, de
forma mais abreviada, por Carta Social (que não deve ser confundida com
a Carta Social Europeia do Conselho da Europa). Constitui, de certo modo,
a dimensão social do Acto Único Europeu.

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© Universidade Aberta
A Carta Social é uma “declaração solene”, um documento de compromisso
político, não de cumprimento obrigatório, que consagra para os trabalhadores
da Comunidade Europeia um amplo conjunto de direitos. Trata-se dos
direitos dos trabalhadores, enquanto tal (sujeitos de relações laborais) e
não de direitos de cidadania, para toda a população da Comunidade. Esta
Carta Social foi acompanhada por um Programa de Acção Social [com
(89) 586 final, November 1989], visando a sua implementação, respeitando
um conjunto de princípios orientadores fundamentais: o princípio da
subsidiariedade (responsabilidade nacional, dos Estados membros, pelas
políticas), a diversidade dos sistemas nacionais, das culturas e das práticas
e a preservação da competitividade das empresas. Este Programa de Acção
compreende um conjunto de 47 iniciativas relativamente a cada uma das
áreas de direitos consagrados na Carta Social. Trata-se de um importante
documento, pelo que traduz de propósito de marcar a perspectiva de actuação
da CEE no domínio dos assuntos sociais.

O Tratado da União Europeia, Maastricht 1992

Um marco muito importante no processo de construção europeia foi o


Conselho Europeu de Maastricht, em Dezembro de 1991, que originou o
Tratado da União Europeia, em Fevereiro de 1992. Ficou incorporado, neste
Tratado, um Acordo sobre Política Social, um corpo de 7 artigos em que
os Estados membros se comprometem a aplicar a Carta Social de 1989, e
em que “(…) terão por objectivos a promoção do emprego, a melhoria das
condições de vida e de trabalho, uma protecção social adequada, o diálogo
entre parceiros sociais, o desenvolvimento dos recursos humanos tendo em
vista um nível de emprego elevado e duradouro e a luta contra as exclusões.
Para o efeito, a Comunidade e os Estados-membros, desenvolverão acções que
tenham em conta a diversidade das práticas nacionais, em especial no domínio
das relações contratuais, e a necessidade de manter a capacidade concorrencial
da economia comunitária” (artº 1º). Mas, atendendo às dificuldades negociais
com o Reino Unido, que discordava da inclusão de um Capítulo Social no
Tratado, ficou consagrado um Protocolo sobre Política Social que permitia
aos outros 11 países membros, excluindo portanto o Reino Unido, proceder
à implementação deste Acordo, com base nas instituições, procedimentos e
mecanismos do Tratado.

Nesse Acordo, ficou consagrado que em algumas áreas de política social as


decisões são tomadas por maioria qualificada (saúde e segurança no trabalho,
condições de trabalho, informação e consulta aos trabalhadores, igualdade
entre homens e mulheres, integração de pessoas excluídas do mercado de
trabalho). Outras, porém, permaneciam sujeitas à regra da unanimidade
(em especial a protecção social). Outro princípio de grande importância

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que ficou consagrado neste Acordo foi o do papel dos parceiros sociais
nas decisões de política social, quer pela importância dada à consulta dos
parceiros sociais a que se obriga a Comissão, quer pela importância dada
ao diálogo entre parceiros sociais na obtenção de acordos e outras relações
contratuais. É reafirmado o princípio da subsidariedade, no artigo 3ºb do
Tratado, segundo o qual “A Comunidade actuará nos limites das atribuições
que lhe são conferidas e dos objectivos que lhe são cometidos pelo presente
Tratado. Nos domínios que não sejam das suas atribuições exclusivas, a
Comunidade intervem apenas, de acordo com o princípio da subsidiariedade,
se e na medida em que os objectivos da acção encarada não possam ser
suficientemente realizados pelos Estados-membros, e possam pois, devido
à dimensão ou aos efeitos da acção prevista, ser melhor alcançados ao nível
comunitário”.

O Tratado da União de 1992 é considerado por muitos como o fim de uma


era, iniciada em 1985 com a Presidência de Delors, de rápida integração
política e social (kleinman, 2002), passando a ser dominada pelos critérios
de convergência e com o Pacto de Estabilidade e política de austeridade
orçamental e a transição para o euro em Janeiro de 1999. Mas, como
veremos a seguir, o início dos anos 1990s é ainda marcado pela publicação
de documentos muito importantes para a política social na União.

O Livro Verde e o Livro Branco da Política Social Europeia, 1994

Em Junho de 1993, o Conselho Europeu de Copenhaga dedicou especial


atenção aos problemas económicos e sociais que a Comunidade Europeia
enfrentava e às possibilidades que o novo Tratado oferecia para os resolver.
Uma das preocupações centrais que então preocupava os Estados-membros
era a situação do desemprego. No diagnóstico da época, apesar de a
Comunidade ter experimentado, nos anos anteriores, um razoável crescimento,
impulsionado pelo objectivo de criação de um amplo mercado interno, o
desemprego tinha tendencialmente aumentado, a taxa de crescimento do
produto potencial diminuído e a posição concorrencial face aos EUA e ao
Japão sofrido uma degradação. O Conselho Europeu reafirmaria então “a
determinação da Comunidade e dos seus Estados-membros em restaurar a
confiança pela implementação de uma estratégia clara, que abranja tanto
o curto como o médio e longo prazo, a fim de restaurar o crescimento
sustentável, reforçar a competitividade da indústria europeia e reduzir o
desemprego” (Conclusões da Presidência, Junho 1993, p. 4).

O Conselho Europeu convidou então a Comissão Europeia a apresentar um


Livro Branco sobre a estratégia a médio prazo de promoção do crescimento,
da competitividade e do emprego, surgido em 1994 (“Crescimento,
Competitividade, Emprego. Os desafios e as pistas para entrar no século XXI

57
© Universidade Aberta
– Livro Branco”) e onde se diagnosticavam os sintomas e as causas da crise
do emprego e se apontavam medidas de política a seguir. Neste documento
afirma-se que “a principal razão dos fracos resultados na Comunidade
em matéria de emprego no decurso das duas últimas décadas reside nos
condicionalismos impostos às políticas macroeconómicas por conflitos não
resolvidos no domínio da repartição do rendimento e por um ajustamento
estrutural insuficiente” (Livro Branco, 1994: 60). As soluções passam por
políticas anti-inflacionistas, estabilidade macroeconómica e finanças públicas
controladas, por mercados de trabalho flexíveis.

Os anos de 1993 e 1994 são também marcados pela publicação, pela


Comissão Europeia, de alguns documentos muito relevantes no domínio da
política social. A Comissão fez uma ampla consulta sobre o futuro da Política
Social Europeia através da publicação, em 1993, de um Livro Verde sobre
Política Social [com (93) 551, 17 Novembro 1993], a que se seguiu um
Livro Branco intitulado “European Social Policy: A Way Forward for the
Union” [com(94) 333 final, 27 Julho 1994], que alguns autores consideram
o documento mais completo e mais sistemático sobre o papel da União
Europeia na Política Social. Pretendia-se, com esta publicação, desenvolver
o quadro de uma renovação da Política Social num período de grande
dinamismo económico e que, por sua vez, veio originar um novo Programa
de Acção Social de médio prazo (1995-1997). Mas, como observam alguns
autores, estes documentos estão muito marcados por alguma ambiguidade
que resulta de uma conflitualidade, sempre presente, entre finalidades de
regulação social e de garantia de direitos e, por outro lado, a necessidade de
promover políticas dirigidas a um aumento da eficiência e competitividade
(kleinman, 2002:91-2).

O Livro Branco da Política Social coloca a política de emprego como um


dos domínios da política social. Mas deve ir para além desta área de política.
O objectivo da UE deve ser o de preservar e desenvolver o modelo social
europeu. Neste documento está presente a ideia de que “existe um conjunto
de valores que constituem a base do modelo social europeu. Estes valores
incluem a democracia e os direitos individuais, contratação colectiva livre,
economia de mercado, igualdade de oportunidades para todos e bem-estar
social e solidaridade. Estes valores, que estão enquadrados pela Carta
Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, são
mantidos em conjunto pela convicção de que o progresso económico e social
devem andar lado a lado. A competitividade e a solidariedade devem, ambos,
ser tomados em consideração na construção de uma Europa com sucesso
no futuro” ([com(94) 333 final], p. 2). A questão central que era colocada
à Comunidade era, então, a de reconciliar objectivos económicos e sociais
face ao desemprego crescente e ao objectivo de manter, neste espaço, uma

58
© Universidade Aberta
economia competitiva, assegurando que o progresso económico e o progresso
social andem lado a lado.

Um domínio de análise que constitui preocupação política, versada no


Livro Branco, é o facto de, nesse ano (1994), se estimarem em 52 milhões
o número de pessoas pobres (à época considerando como pobres as pessoas
que têm um rendimento familiar por adulto-equivalente inferior metade do
rendimento médio nacional). Por outro lado, foi considerado que o fenómeno
da “exclusão social” (conceito que entretanto já tinha entrado para o léxico
da Política Social na Europa) “é um fenómeno endémico, que decorre das
alterações estruturais que afectam as nossas economias e sociedades, [e]
desafia a coesão social de cada Estado-membro e da União como um todo”
([com(94) 333 final], p. 37).

O conceito de “exclusão social” é apresentado neste documento nestes temos,


no seu âmbito conceptual requerido para o diagnóstico da realidade social e
também no seu alcance político, que acabaria por ter uma enorme influência
no pensamento social na Europa: “Os processos de exclusão são dinâmicos
e de natureza multidimensional. Estão ligados não apenas ao desemprego
e/ou a baixos rendimentos, mas também a condições de habitação, níveis
de educação e oportunidades, saúde, discriminação, cidadania e integração
na comunidade local. Em resultado, prevenir e combater a exclusão social
exige uma mobilização global de esforços e a combinação de medidas
económicas e sociais. Ao nível Europeu, isto implica também que a exclusão
social deverá ser colocada no quadro das políticas da União” ([com(94)
333 final], p. 37). 1
O procedimento de co-deci-
são foi introduzido pelo Trata-
do de Maastricht, constituindo
um avanço relativamente ao
O Tratado de Amsterdão (1998) e os Conselhos Europeus de 2000 procedimento de cooperação,
o qual permitia ao Conselho,
por unanimidade, ignorar o
O Tratado de Amsterdão (1998) foi essencialmente dirigido à melhoria dos parecer do Parlamento. O
processos de decisão e de formulação de políticas. Veio criar a obrigato- procedimento de co-decisão
coloca assim o papel legislati-
riedade de a Comissão consultar os parceiros sociais nas propostas de leis vo destas duas instituições em
laborais. Veio estabelecer que as decisões do Conselho sejam tomadas por pé de igualdade. Em caso de
1 desacordo entre o Conselho e
unanimidade, mas em co- decisão com o Parlamento Europeu no que res- o Parlamento, cabe a um co-
peita a matérias relacionadas com o Fundo Social Europeu. Foi alargado o mité de conciliação, composto
por representantes de ambas
uso da co-decisão por forma a permitir uma mais ampla aplicabilidade da instituições, chegar a um texto
votação por maioria. Foram consagrados direitos alargados a trabalhadores aceitável para ambas as partes.
Em caso de insucesso do
migrantes, facilitando a mobilidade no espaço europeu. As alterações intro- procedimento de conciliação
duzidas no Tratado visaram aproximar a União dos cidadãos, desenvolvendo com o Parlamento, a decisão
a cooperação entre os Estados Membros. legislativa não é tomada, ca-
bendo à Comissão apresentar
uma nova proposta e dar início
Em termos de substância, porém, foi de particular relevância a inclusão, a um novo procedimento
no Tratado de Amsterdão, de um capítulo do emprego, criando assim uma administrativo. (Presidência
Portuguesa da UE, 2007,
política de emprego da União, no Título VIII (artigos 125-130), deste Tratado. www.eu2007.pt).

59
© Universidade Aberta
No novo artigo 109n (art. 125 do Titulo VIII) do Tratado de Amsterdão
estabelece-se que “os Estados Membros e a Comunidade (…) trabalharão
em vista a desenvolver uma estratégia coordenada para o emprego e, em
particular, visando promover uma mão-de-obra qualificada, treinada e flexível
e mercados de trabalho adaptados à mudança, tendo em vista alcançar os
objectivos [definidos para a Comunidade]”. Esta orientação veio originar
a Estratégia Europeia do Emprego, na sequência do Conselho Europeu
de Essen 1994 em que se fixaram objectivos de promoção do emprego. A
Estratégia Europeia do Emprego visava então objectivos de convergência das
políticas de emprego e dos níveis de emprego no seio da União, levando os
Estados Membros a conceber Programas Nacionais de Emprego (em Junho
de 1998), assentes em quatro princípios fundamentais: empregabilidade,
empreendedorismo, adaptabilidade e igualdade de oportunidades.

O Conselho Europeu de Lisboa, realizado em Março de 2000, e o Conselho


Europeu de Nice, realizado em Dezembro de 2000, são marcados por
importantes decisões políticas que fazem deste ano um importante marco
na evolução da União Europeia e da orientação da política social no espaço
da União. Também nesse ano ocorre a proclamação, conjuntamente pelo
Conselho Europeu, a Comissão e o Parlamento Europeu, da Carta dos
Direitos Fundamentais que combina, num único texto, o conjunto dos direitos
civis, políticos, económicos e socais que devem constituir referência para os
quadros legais dos Estados Membros.

O Conselho Europeu de Lisboa viria a originar um acordo entre os Estados


Membros sobre novos objectivos estratégicos para a União com vista a
fortalecer o emprego, as reformas económicas e a coesão social. O Conselho
Europeu de Nice viria aprovar a Agenda Social Europeia que define, de
acordo com as conclusões do Conselho Europeu de Lisboa, um conjunto de
prioridades de acção nos cinco anos seguintes (2000-2005) nas áreas sociais.
Esta Agenda Social Europeia constituiria um passo significativo no sentido
do reforço e modernização do modelo social europeu. A esta estratégia e
agenda social dedicaremos a nossa atenção na secção seguinte.

O Tratado de Nice seria adoptado e ratificado em 2002, originando o


alargamento da União Europeia a mais 10 países, pelo Tratado de Adesão
de Setembro de 2003. Dois anos depois, pelo Tratado de Adesão de Junho
de 2005, teria lugar o alargamento a mais dois países, com a composição
actual de 27 Estados Membros. Os Quadros 2.1 e 2.2, que analisaremos mais
adiante, apresenta alguns dados estatísticos sobre os países que aderiram à
União Europeia nas diferentes fases de alargamento.

60
© Universidade Aberta
2.2 A estratégia de Lisboa e a Agenda Social Europeia

No ano 2000 os diagnósticos da situação macroeconómica na Europa eram


favoráveis. Como era afirmado no texto de conclusões da Presidência do
Conselho Europeu de Lisboa, realizado em 23 e 24 de Março de 2000, “A
União está a experimentar a seu melhor comportamento macro-económico
da última geração. Em resultado da política monetária orientada para a
estabilização económica, apoiada numa sólida política orçamental no
contexto de moderação salarial, inflação e taxas de juro baixas, os deficits
do sector público reduziram-se drasticamente e a balança de pagamentos
da UE está saudável. O euro foi introduzido com sucesso e está a gerar os
benefícios esperados para os consumidores e para a actividade económica
e os negócios. O futuro alargamento da União criará novas oportunidades
para o crescimento e para o emprego”. Mas também se defrontavam, na
União Europeia, algumas debilidades sendo, como preocupação principal, o
desemprego. Nos termos em que o Conselho se afirmava positivamente para
a acção, “com a actual situação económica melhorada, é tempo de levar a
cabo reformas económicas e sociais como parte de uma estratégia positiva
que combine competitividade e coesão social”.

A “estratégia de Lisboa” consistiria na intenção, a concretizar na década


seguinte, de “tornar [a União] na economia mais competitiva e dinâmica
baseada no conhecimento e capaz de de garantir um crescimento económico
sustentável e com mais e melhores empregos e maior coesão social”. Esta
estratégia exigiria: i) preparar a transição para uma economia baseada no
conhecimento, através de políticas de informação e de I&D e de processos
de reforma estrutural de competitividade e inovação; ii) modernizar o
modelo social europeu, investindo em pessoas e combate à exclusão social;
iii) manter um clima económico favorável ao crescimento, usando políticas
macroeconómicas adequadas. Vejamos em que assentava essa estratégia
relativamente à sua dimensão social e da política social.

Modernização do modelo social europeu

Os Estados Membros consideraram que a necessidade de modernizar o modelo


social europeu deveria assentar no “investimento nas pessoas [educação e
formação], desenvolvendo um Estado-providência activo e dinâmico como
crucial para colocar a Europa na economia do conhecimento e assegurar
que a emergência desta nova economia não comprometa os problemas
actualmente existentes de desemprego, exclusão social e pobreza” (Conselho
Europeu de Lisboa, 23-24 Março 2000, Conclusões da Presidência). Com essa
finalidade, fixaram objectivos nos seguintes domínios: i) realizar progressos
nos sistemas de educação e de formação, adaptando-os às necessidades de

61
© Universidade Aberta
uma sociedade de conhecimento, visando aumentar a qualidade do emprego;
ii) realizar progressos na criação de mais empregos e de melhor qualidade,
melhorando as taxas de emprego no médio-prazo, devendo essas orientações
estar presentes nos Planos Nacionais de Emprego dos Estados Membros;
iii) modernizar a protecção social, adaptando os seus sistemas tornando-os
Estados-providência activos para assegurar trabalho remunerado, promover
a inclusão social e igualdade de género e garantindo serviços de saúde de
qualidade; iv) promover a inclusão social, tomando decisões para erradicar
a pobreza.

A Agenda de Política Social: uma nova concepção de Política Social

A Comissão Europeia lançou então um programa de acção a cinco anos, de


2000 a 2005, com o objectivo de atingir este objectivo estratégico. Trata-se
de uma nova Agenda da Política Social 2000-2005, que visa articular três
grandes domínios de actuação, política económica, política de emprego e
política social, pretendendo-se uma nova concepção de política social: ser
encarada “como um factor produtivo”. Vejamos o que significa encarar a
Política Social nestes termos.

Podem distinguir-se os objectivos prosseguidos por cada uma das três áreas de
actuação política acima referidas nos seguintes termos: a política económica
visa alcançar objectivos de competitividade, a política de emprego visa
objectivos de aumento do emprego com qualidade e a politica social visa
objectivos de coesão social. Sabe-se como os objectivos de competitividade
e de coesão social são conflituantes: promover a coesão social, reduzindo
desigualdades e défices de bem-estar (estamos no domínio da equidade), pode
ser conseguida com instrumentos que podem comprometer objectivos de
competitividade (estamos, aqui, no domínio da eficiência). É um conhecido
trade-off da política económica e da política social.

Por outro lado, a política social, além de ser considerada frequentemente em


termos dos “custos económicos” que a sociedade tem de suportar para se
realizarem direitos sociais, surge também como solução compensatória de
custos sociais decorrentes de eventos económicos ou de decisões económicas,
por exemplo as que se referem a alterações estruturais que se pretendam
efectuar na economia. E pode mesmo considerar-se que a Política Social
pode ter um papel muito importante num processo de modernização da
sociedade. Sistemas modernos de protecção social podem desempenhar
um papel importante para garantir mudanças estruturais numa economia,
possibilitando uma mão-de-obra eficiente e bem preparada profissionalmente.
A protecção social não só contribui para redistribuir recursos ao longo do
ciclo de vida e entre pessoas e grupos mas também permite criar mais e
melhor emprego e, portanto, tem também benefícios económicos. Também

62
© Universidade Aberta
uma política de educação e de formação fortalece simultaneamente a
competitividade e a coesão social: um aumento do emprego permite melhor
sustentar sistemas eficientes de protecção social e a coesão social previne e
minimiza o subemprego dos recursos humanos. Pode assim considerar-se
que a Política Social é um “factor produtivo”, exigindo-se então uma gestão
adequada da interdependência de políticas de modo a sustentar o progresso
económico e social.

O método aberto de coordenação

A Agenda de Política Social, nos termos acabados de referir, não se traduz,


ao nível Europeu, em políticas harmonizadas. Os Estados membros, em
resultado do processo de integração, vêm convergindo em termos dos
desafios que vêm defrontando, o que obriga a que as políticas de emprego
e as políticas sociais devem ser objecto de alguma coordenação, embora
essa coordenação, desejável, seja feita com base numa grande diversidade,
em termos institucionais, das políticas nesses Estados. Essa coordenação,
não podendo assim assumir a forma de harmonização das políticas, deve
traduzir‑se em formas que garantam as competências legais de cada Estado.
Essa forma de coordenação, surgida no Conselho Europeu de Lisboa de
Março de 2000, designa-se de Método Aberto de Coordenação (MAC).

Este método consiste numa forma de coordenação de políticas em que os


Estados-membros acordam entre si na identificação e promoção de políticas
nos domínios da protecção social e da inclusão social com o objectivo de
aprendizagem a partir da experiência dos outros, consistindo assim num
método flexível e descentralizado envolvendo: i) o acordo, entre os países
membros, num conjunto de objectivos comuns, fixados ao mais alto nível;
ii) acordo entre esses países relativamente a um conjunto de indicadores
comuns que permitam monitorizar o progresso realizado em direcção a esses
objectivos; iii) a preparação de relatórios nacionais estratégicos em que os
Estados Membros concebam políticas, num horizonte temporal acordado,
para alcançar esses objectivos; iv) avaliação destas estratégias conjuntamente
com a Comissão Europeia e os Estados Membros.

A experimentação deste método de coordenação, na Estratégia Europeia de


Emprego, no Programa Comunitário de Acção para combater a exclusão, nas
reformas de pensões na União Europeia, constitui uma forma de conciliar a
definição de objectivos estratégicos na União com a diversidade de formas
institucionais de actuação política. Para nos apercebermos dessa diversidade
analisemos, de seguida, a dimensão e as funções sociais dos Estados-
-providência na União Europeia.

63
© Universidade Aberta
2.3 A dimensão e as funções sociais do Estado na União
Europeia

Para se conhecer o peso económico do Estado-providência na União Europeia


temos de nos socorrer de informação estatística harmonizada, o que exige
um sistema estatístico que permita a quantificação destas funções do Estado,
para o qual é necessário, à partida, dispor de: i) um sistema de informação
dos regimes de protecção social, descrevendo os benefícios relativos às
várias funções do Estado, de modo a que possam ser comparados entre os
vários Estados Membros; ii) uma nomenclatura internacionalmente aceite
das operações do Estado na área social; iii) formas de recolha e concatenação
da informação obtida de cada um dos Estados Membros, validação dessa
informação e sua agregação e apresentação de forma normalizada.

Estas condições estão garantidas através do MISSOC (“Mutual Information


System on Social Protection in the Member States of the European Union”),
onde se apresenta de forma pormenorizada a informação relativa aos
sistemas de protecção social de cada um dos países da União Europeia e do
ESSPROS (“European System of Integrated Social Protection Statistics”),
uma nomenclatura de todas as operações de transferência que caracterizam
o conjunto de todos esses sistemas. A informação, fornecida pelos Estados
Membros, é validada e agregada e apresentada de forma normalizada pelo
EUROSTAT, apresentando essa informação regularmente nas publicações
anuais “Social Protection in Europe” ou, mais recentemente, nas publicações
anuais “Joint Report on Social Protection and Social Inclusion”.

A informação sobre protecção social, que se apresenta no Quadro 2.1, obtida


das estatísticas do EUROSTAT e assente nos sistemas de informação acima
referidos, permite conhecer a dimensão da protecção social do Estado, para
cada um dos países, pela percentagem que representam o total da despesa nas
várias funções sociais do Estado no PIB de cada país, no quadro relativamente
ao ano de 2005, último valor conhecido à data da redacção deste texto.

Os sistemas de informação distinguem, em termos agregados, várias fun-


ções do Estado na área da protecção social, as mais importantes das quais
se apresentam no quadro. Estas funções são as seguintes:

Velhice: rendimento de substituição e de apoio em dinheiro ou em género


(excepto os cuidados de saúde) que se relacione com a velhice, incluindo
as pensões de velhice e a provisão de bens e serviços (excepto os cuidados
médicos) aos idosos.

Doença e cuidados de saúde: rendimento de substituição e de apoio em


dinheiro que se relacione com a doença física ou mental, excluindo inva-
lidez. Os cuidados de saúde destinados a manter ou melhorar a saúde ou

64
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curar doenças, independentemente da sua origem, inclui subsídio de doença,
cuidados médicos e o fornecimento de produtos farmacêuticos.
Invalidez: rendimento de substituição e de apoio em dinheiro ou em géneros
(exceptuando cuidados de saúde) que se relacionem com a incapacidade
de pessoas com deficiências físicas ou mentais para realizar actividades
económicas e sociais, incluindo pensões de invalidez e a provisão de bens e
serviços (que não de serviços de saúde) às pessoas com deficiência.

Sobrevivência: rendimento de substituição e de apoio em dinheiro ou em


género (exceptuando cuidados de saúde) que se relacionem com a morte de
um membro da família (por exemplo, pensões de sobrevivência).

Família e crianças: apoio em dinheiro ou em géneros (exceptuando cuidados


de saúde) que se relacionem com os custos da gravidez, maternidade e adopção
e com cuidados pessoais às crianças ou outros membros da família.

Desemprego: rendimento de substituição e de apoio em dinheiro ou em


género que se relacionem com o desemprego, incluindo os subsídios de
desemprego e formação profissional financiado por agências públicas.

Habitação: ajudas ao custo da habitação, incluindo intervenções pelas


autoridades públicas de ajuda às famílias para suportar os custos da
habitação.

Exclusão Social: outras despesas não classificadas nas funções anteriores,


incluindo benefícios em dinheiro ou géneros (exceptuando cuidados de
saúde) especificamente dirigidos a combater a exclusão social e que não
sejam cobertos pelas outras funções, incluindo os benefícios de apoio
de rendimento, reabilitação de alcoólicos e toxicodependentes e outros
benefícios (que não sejam cuidados de saúde).

No Quadro 2.1 apresentam-se indicadores sobre o peso económico do


conjunto destas funções, medindo o valor da despesa em que incorrem
(despesa social total em protecção social) em percentagem do PIB, e a
importância relativa de cada uma dessas funções, pelo peso que têm as
despesas em cada uma dessas funções na despesa social total em protecção
social. Foi tomada a opção de organizar os países pela ordem pela qual foram
aderindo à actual União Europeia, nas sucessivas fases de alargamento.
Deparamo-nos com uma grande diversidade entre os Estados-membros no
que respeita à dimensão económica do Estado‑providência, sendo os países
mais “antigos” (os fundadores da actual UE) aqueles em que este peso é mais
importante (é entre eles que se encontram também os fundadores do Estado-
-providência na Europa). É menor o peso económico das funções sociais do
Estado nos países do Sul da Europa e, de forma muito visível, alguns dos
países que mais recentemente aderiram e pertenciam ao conjunto dos países
socialistas do leste Europeu.

65
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Quadro 2.1 – Despesa em Protecção Social por grupos de funções 2005

Composição da despesa em protecção social (%)


Despesa
Velhice e Doença e Habitação
protecção Família e
País sobrevi- cuidados Invalidez Desemprego e esclusão
social/ crianças
vência de saúde social
PIB
Formação da CEE (1957)
BE 29.7 44.7 27.1 7.0 7.2 12.2 1.8
DE 29.4 43.5 27.3 7.7 11.2 7.3 2.9
FR 31.5 43.9 29.8 5.9 8.5 7.5 4.3
IT 26.4 60.7 26.7 5.9 4.4 2.0 0.3
LU 21.9 36.6 25.7 13.1 16.9 5.0 2.8
NL 28.2 42.3 30.9 9.9 4.9 5.9 6.2
1º alargamento (1973)
DK 30.1 37.5 20.7 14.4 12.9 8.6 5.8
IE 18.2 26.6 40.9 5.3 14.6 7.5 5.1
UK 26.8 45.0 30.9 9.0 6.3 2.6 6.3
2º alargamento (1981)
EL 24.2 51.2 27.8 4.9 6.4 5.1 4.5
3º alargamento (1986)
ES 20.8 41.4 31.6 7.3 5.6 12.4 1.7
PT (1) 24.7 47.2 30.4 10.4 5.3 5.7 1.0
4º alargamento (1996)
AT 28.8 48.6 25.5 8.0 10.7 5.8 1.4
FI 26.7 37.3 25.9 12.9 11.6 9.3 3.0
SE 32.0 40.5 24.3 15.4 9.8 6.2 3.8
5º alargamento (2004)
CY 18.2 46.6 25.3 3.7 11.8 5.8 6.7
CZ 19.1 42.6 35.3 7.8 7.5 3.6 3.1
EE 12.5 44.0 31.9 9.4 12.2 1.3 1.2
HU 21.9 42.5 29.9 9.9 11.8 2.9 3.1
LT 13.2 46.4 30.3 10.4 9.3 1.8 1.8
LV 12.4 48.4 26.0 9.1 11.0 3.9 1.6
MT 18.3 52.4 26.3 6.7 4.7 7.4 2.5
PL 19.6 59.8 19.9 10.5 4.4 2.9 2.5
SI 23.4 44.4 32.3 8.5 8.6 3.3 2.9
SK 16.9 42.5 29.5 9.2 11.3 4.3 3.2
6º alargamento (2006)
BG 16.1 51.1 29.0 8.4 6.8 1.9 2.7
RO 14.2 41.3 36.2 7.0 10.2 3.2 2.1
EU-15 27.8 45.7 28.6 7.9 8.0 6.2 3.5
EU-27 27.2 45.9 28.6 7.9 8.0 6.1 3.5

Fonte: eurostat Statistics in Focus 46/2008; (1) 2004

66
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Quadro 2.2 – Indicadores gerais sobre Protecção Social 2005

Subsídio Financ. Financ.


PIB per Pensão de Financ.
População de de- Contrib. Contrib.
País capita velhice Estado
(milhões) semprego patronais trabalhad.
(pps)/ano (pps)/mês (%)
(pps)/mês (%) (%)
Formação da CEE (1957)
BE 10,4 27135 2022 538 24.7 51.4 22.0
DE 82.5 25797 2789 324 35.6 35.0 27.7
FR 62,6 25077 2671 399 30.6 44.7 20.9
IT 58,5 23474 2683 78 41.4 41.7 15.3
LU 0.5 59202 2461 285 45.3 26.9 24.4
NL 16.3 29374 2389 456 19.9 33.4 34.4
1º alargamento (1973)
DK 5.4 28375 2055 371 63.2 10.3 18.5
IE 4.1 32197 834 241 53.9 24.7 15.3
UK 60.1 26715 2429 50 50.5 32.4 15.5
2º alargamento (1981)
EL 11.1 21589 1652 71 30.7 35.5 22.9
3º alargamento (1986)
ES 43.0 23069 1540 328 33.3 48.9 15.6
PT (1) 10.5 16891 1360 184 42.2 31.7 15.7
4º alargamento (1996)
AT 8.2 28852 3218 217 33.1 37.9 27.4
FI 5.2 25774 1787 393 43.7 38.8 11.4
SE 9.0 27721 2256 330 48.0 41.0 8.8
5º alargamento (2004)
CY 0.7 20753 1294 85 53.7 19.7 15.0
CZ 10.2 17156 1183 39 18.1 54.3 26.4
EE 1.3 14093 580 11 20.4 79.0 0.4
HU 10.1 14393 1044 38 34.8 42.0 15.9
LT 3.4 11914 640 10 39.6 53.8 6.0
LV 2.3 11180 578 36 35.3 47.1 16.9
MT 0.4 17330 1367 183 34.5 43.5 19.2
PL 38.2 11482 885 26 39.2 28.0 22.3
SI 2.0 19462 1255 52 31.7 27.4 40.0
SK 5.4 13563 843 23 14.0 62.0 22.4
6º alargamento (2006)
BG 7.8 7913 472 17 36.1 42.4 18.3
RO 21.7 7933 409 19 11.7 49.7 23.5
EU-15 316.2 … 2404 254 37.9 38.2 20.7
EU-27 491.0 22400 2096 215 37.6 38.3 20.8

Fonte: eurostat News Release 19/2008; eurostat Statistics in Focus 46/2008; (1) 2004

O quadro apresenta também a importância relativas das várias funções sociais


da protecção social. Deve ter-se cuidado na leitura desta informação, uma
vez que a importância relativa de cada uma destas funções e, naturalmente,
o valor da despesa social total, depende não apenas da generosidade dos
benefícios, mas também do volume da população coberta, pelo que estes
dados não são suficientes para caracterizar a “qualidade” dos direitos sociais

67
© Universidade Aberta
consagrados nos vários países. O Quadro 2.2 acrescenta alguma informação
adicional, com a inclusão do valor da despesa média de alguns benefícios
sociais (destacamos a pensão de velhice e o subsídio de desemprego, que
podem ser comparados com o PIB por habitante de cada país), expressos em
PPS (“purchasing power standards”), uma forma de ter em consideração,
não apenas a conversão numa unidade monetária comum, o euro (usando a
taxa de câmbio), mas também as diferenças de poder de compra (usando os
índices de preços no consumidor), sendo portanto comparáveis em termos
de poder aquisitivo.

Os quadros apresentados devem ser portanto considerados como uma primeira


informação objectiva da importância económica do Estado-providência na
União Europeia. É o primeiro retrato social que se pode ter da União Europeia
mas, como se viu, insuficiente para se conhecer o que de facto são os vários
Estados-providência neste espaço económico e político. Para o fazermos
temos de ter uma abordagem diferente e na sequência desta, que faremos no
próximo capítulo.

Leituras complementares

É muito abundante a literatura existente sobre o modelo social europeu e a


dimensão social do processo de integração europeia. Além de obras situadas
no âmbito académico, devem consultar-se os próprios documentos oficiais
(tratados, relatórios, etc) onde se pode encontrar a informação fundamental
sobre este processo. Para uma descrição factual, com boa referenciação dos
documentos oficiais, deve ler-se a última edição do seguinte livro, de que se
referencia a primeira edição:

• hantrais, l. (1995) Social Policy in the European Union.


Macmillan.

Para uma análise mais interpretativa, onde existe a preocupação de descrever


a formação do espaço social na actual União Europeia, integrando várias
dimensões de análise (económica, legal, política), devem consultar-se as
seguintes obras:

• kleinman, m. (2002) A European Welfare State? European Union


Social Policy in Context. Palgrave, Macmillan.

• adnett, n. & hardy, s. (2005) The European Social Model:


modernisation or evolution? Edward Elgar.

68
© Universidade Aberta
Recomenda-se, finalmente, a leitura da obra seguinte, que foi escrita para a
Presidência Portuguesa de 2000, quando se realizou o Conselho Europeu de
Lisboa, escrito por autores que iremos referenciar no capítulo seguinte

• Ferrera, M. Hemerijk, A., Rhodes, M. (2000) O Futuro da


Europa Social, Celta.

Palavras-chave

Os alunos deverão redigir, a partir da consulta de obras de referência,


um parágrafo com o significado, em termos sintéticos, de cada um destes
conceitos

modelo social europeu


método aberto de coordenação
Agenda Social Europeia

Questões para revisão e reflexão

1. Acha que se pode falar em “política social europeia” como uma


responsabilidade supranacional pela garantia de provisão de direitos sociais
na União Europeia?

2. Acha que o conceito de Política Social que decorre do Conselho Europeu


de Lisboa constitui algum corte com concepções anteriores de Política Social,
em particular no que respeita à sua relação com a Política Económica?

3. Faça um paralelismo entre o método aberto de coordenação (em política


social) e as formas de responsabilidade supranacional da União Europeia em
política económica. Procure fazer uma interpretação dessas diferenças.

4. Situe Portugal, em termos comparativos com os outros países da União


Europeia, no que respeita à dimensão e funções sociais do Estado.

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3. Modelo Social Europeu e Regimes de Estado-providência

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Sumário

3.1 Análises comparativas de Estados-providência

3.2 Esping-Andersen e os três mundos do capitalismo de bem-estar

3.3 Variedade de tipologias de Estado-providência

3.4 A Europa do Sul: realidade ou modelo?

3.5 As reformas e o futuro do Estado-providência na Europa

Leituras complementares

Palavras-chave

Questões para revisão e reflexão

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Objectivos

• Que os leitores compreendam a importância das análises comparativas


de política social, nas diferentes finalidades em que estas análises
podem ser feitas e, nesse contexto, a necessidade de se utilizarem
tipologias de Estado-providência, adequadas aos objectivos de análise
em que se inserem;

• Que os leitores fiquem a conhecer a contribuição de esping-adersen no


estudo de regimes de Estado-providência e para a construção de uma
tipologia desses regimes, compreendendo os fundamentos teóricos
em que assenta essa contrução;

• Que os leitores fiquem a saber algumas das mais importantes


contribuições posteriores sobre tipologias de Estado-providência,
tendo percebido em que medida diferentes critérios ou orientações
teóricas podem originar diferentes tipologias;

• Que os leitores conheçam as características dos Estados-providência


nos países do Sul da Europa, em que medida as tipologias “clássicas”,
correspondendo a modelos de Estado-providência, permitem
representar estes países; que tenham opinião fundamentada sobre a
existência, ou não, de um modelo “próprio” dos Estados-providência
do Sul da Europa.

74
© Universidade Aberta
Quando analisamos os Estados-providência na União Europeia, no que
respeita à sua dimensão económica, às funções que realiza, aos direitos
sociais que consagra e aos princípios normativos em que assentam a sua
actuação e financiamento, deparamo-nos com diferenças muito significativas
entre os diversos Estados-membros, como se viu no capítulo anterior. Estas
diferenças, que radicam nas suas diferentes origens históricas, conferem ao
espaço político da União Europeia uma heterogeneidade com importantes
efeitos na análise da Política Social, como veremos neste capítulo e nos
seguintes. Tem também efeitos muito significativos na forma como se encaram
os grandes desafios colocados aos Estados-providência para a realização,
de forma sustentada, dos direitos sociais que consagram. Por isso, essa
heterogeneidade deve ser devidamente analisada. A forma mais adequada,
e que vem sendo seguida na literatura, consiste em identificar padrões, ou
modelos, de Estados-providência, correspondentes a diferentes regimes de
intervenção do Estado na Política Social dos diversos países. Vamos tratar,
neste capítulo, destes modelos, ou regimes, de Estado-providência tal como
vêm sendo tratados na literatura recente.

3.1 Análises comparativas de Estados-Providência

É muito abundante a literatura recente sobre análises comparativas de


Política Social. Entre as obras científicas publicadas sobre este assunto, são
muito frequentes as que procuram identificar semelhanças e diferenças entre
os actuais Estados-providência e, com base nessa comparação assente em
critérios pré-definidos, propor tipologias de Estado-providência. Algumas
dessas análises assentam em comparações de “regimes de bem-estar”, para
significar, segundo esping- andersen (1999), “as formas segundo
as quais a produção de bem-estar é afectada entre o Estado, o Mercado e
as Famílias” (p. 73). Isto é, ao referirem-se a regimes, estes autores não
estão a comparar políticas sociais particulares, ou Estados-providência
específicos, mas antes a comparar as “formas” como essas políticas se
encontram estruturadas, em termos dos princípios presentes na concepção
e na organização dessa produção de bem-estar. Veremos ao longo deste
capítulo que os vários autores que têm feito estas análises comparativas têm
abordado esta questão segundo diferentes orientações, originando diferentes
tipologias de regimes de bem-estar.

Estas análises comparativas e as diferentes propostas de tipologias de


regimes de bem-estar daí resultantes não visam, em geral, meros objectivos
classificatórios. Isto é, a criação de tipologias de regimes de bem-estar não
é um fim em si mesmo, já que teria pouco interesse académico ou de análise
de política social a mera classificação de Estados-providência em categorias.

75
© Universidade Aberta
Estas análises e a criação de correspondentes tipologias constituem um meio
para atingir outras finalidades, de grande interesse analítico. Vejamos algumas
das mais importantes.

Algumas destas análises têm em vista identificar características comuns aos


vários Estados-providência por forma a permitirem entender a natureza
dos problemas que defrontam na sustentabilidade da garantia dos direitos
sociais. Mesmo enfrentando factores comuns (por exemplo o envelhecimento
populacional, o abrandamento do crescimento económico e da evolução do
emprego, fenómenos que ocorrem genericamente nos países europeus), os
diferentes Estados-providência podem sentir diferentemente o efeito destes
factores na garantia de provisão do bem-estar, consoante as características
das instituições de bem-estar e os princípios em que assentam o seu
funcionamento. Por exemplo, em países em que a protecção social segue
princípios universalistas, quer na provisão quer no financiamento (na base da
tributação geral), o efeito demográfico do envelhecimento não se faz sentir do
mesmo modo que em países que seguem mais uma lógica de seguro social,
assentando o seu financiamento em contribuições segundo uma lógica de
repartição (ou “pay-as-you-go”), em que são as gerações mais jovens que
suportam, pelas suas contribuições para o sistema, o financiamento das
pensões de reforma. Uma análise dos problemas que os Estados‑providência
defrontam e das linhas de reforma dos sistemas de protecção social ganha
bastante se se previlegiar a análise dos países “agrupados” segundo
critérios de afinidade que contemplem as semelhanças relevantes para esta
análise, como vimos neste exemplo. Os critérios de classificação serão
naturalmente os que melhor se adequem à finalidade da análise. A título
exemplificativo, alguns trabalhos recentes centrados nas análises sobre o
futuro do Estado‑providência, como ferrera, hemerijck & rhodes
(2000), esping‑andersen et al. (2002) ou castles (2004), seguem
esta metodologia.

Outras análises comparativas têm objectivos teóricos, procurando encontrar


as semelhanças e as diferenças nas suas origens históricas, nas condições
sociais e políticas que estiveram presentes nas suas origens ou nos processos
de difusão de inovações políticas nos diversos países e que configuraram
as suas instituições de provisão de bem-estar. Ou encontrar, nessas origens
históricas, a fundamentação para distintos princípios organizativos da
produção do bem-estar. Trata-se de um tipo de análise comparativa na linha do
estudo das origens e desenvolvimentos históricos do Estado-providência (e.g.
flora & heidenheimer, 1981 e flora, 1986) e, mais recentemente,
na investigação sobre regimes de Estado-providência com origem no trabalho
seminal de esping-andersen (1990) e de que resultou importante acervo
de literatura académica (ver o survey de literatura produzido por arts &
gelissen, 2002). Além do importante interesse académico desta literatura,

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© Universidade Aberta
e dos fundamentos teóricos em que assentam os critérios de classificação dos
Estados-providência, têm constituído uma base teórica muito sólida para as
análises das reformas das políticas sociais (myles & pierson, 2001).

Para além de objectivos de diagnóstico das situações sociais e análise de


políticas ou de objectivos teóricos de descrição e compreensão das diferenças
das instituições de provisão do bem-estar há também, em muitas análises
comparativas, objectivos de política social, num espaço geográfico e político
da União Europeia marcado pela heterogeneidade dessas instituições. A
dificuldade em estabelecer objectivos de uniformização de políticas sociais
e a necessidade de encontrar formas alternativas para construir a dimensão
social da União Europeia exige uma permanente atenção às diferenças
existentes nesse espaço. Essa necessidade tem-se traduzido na sistematização
de informação comparável entre os vários países membros, de uma enorme
relevância para efectuar análises comparativas entre esses países. A
necessidade de sistemas de informação para toda a União que garanta total
comparabilidade entre os vários Estados membros é particularmente requerida
pelo Método Aberto de Coordenação (Open Method of Coordination, OMC),
em que os Estados Membros acordam entre si um conjunto de objectivos
comuns em áreas relevantes da política social (emprego, protecção social,
políticas de inclusão social), tendo acordado num conjunto de indicadores
que permita a monitorização da situação social para avaliação das políticas
em toda a União.

A título de exemplo, importa referir as seguintes fontes de informação, no


âmbito da União Europeia, às quais daremos relevo ao longo deste livro: i)
o missoc (Sistema Mútuo da Informação sobre a Protecção Social) que,
de forma permanentemente actualizada, descreve pormenorizadamente,
para cada país da União Europeia e para cada uma das prestações sociais
compreendidas nos sistemas de protecção social destes países, os princípios
de base e a legislação que regula estas prestações, o campo de aplicação,
os riscos sociais cobertos, as condições de acesso, a natureza, método de
cálculo e valor das prestações, etc; ii) o relatório anual “Joint Report on
Social inclusion, Pensions, Healthcare and Long Term care” da Comissão
Europeia, que descreve a evolução das políticas de protecção social em
todos os países da União Europeia, com abundante informação estatística e
fichas individuais, por países, em que se analisam as principais tendências
recentes nos domínios económico e social, os principais desafios colocados
aos sistemas de protecção social e as principais medidas de política tomadas
por cada um dos países; iii) o relatório anual “The Social Situation in the
European Union” que analisa, para o conjunto dos países, a evolução da
situação social, com base num conjunto uniforme de indicadores sociais,
numa base comparativa entre os vários países da UE. Trata-se de um
relatório de grande importância para o conhecimento da realidade social da

77
© Universidade Aberta
União Europeia, à qual a Comissão Europeia tem dado grande importância
pelo desenvolvimento de indicadores sociais e novas fontes de informação
estatística. Entre essas novas fontes de informação deve ser realçado: iv) o
EU-SILC (Statistics on Income and Living Conditions), que se sucede ao
ECHP (European Community Household Panel). Trata-se de um inquérito
em painel por amostragem de agregados familiares para todos os países
da União Europeia, iniciado em 2003, sobre o rendimento e condições de
vida das famílias, em que se garante total comparabilidade na selecção das
amostras, nos conceitos e métodos de inquirição.

Acresce ainda a existência de estudos específicos realizados sob os auspícios


da Comissão Europeia em que a preocupação com a comparação inter-países
está bem presente. É de salientar o importante relatório “Adequate and
sustainable pensions, Synthesis report 2006” da Comissão Europeia, que
constitui uma profunda análise dos sistemas de pensões em todos os países
da União Europeia, com base em informação estatística actual e comparável
entre os vários países da UE, ao qual daremos especial relevo mais adiante,
neste livro, quando abordarmos a protecção social.

Estão assim documentadas algumas das mais relevantes e actuais fontes de


informação para análises comparativas de políticas sociais no quadro da
União Europeia. São também dominantes, no mundo académico, as análises
comparativas em estudos de investigação sobre a realidade social e as
políticas sociais, muitas vezes realizadas no contexto de redes universitárias
de investigação. Constituem quadros de referência, para essas análises
comparativas, as tipologias de regimes de Estados-providência que têm vindo
a ser produzidos e aos quais vamos dar, de seguida, alguma atenção.

3.2 Esping-Andersen e os três mundos do capitalismo de


bem‑estar

É questionável se o trabalho empírico que tem sido realizado por muitos


autores e que tem conduzido à criação de tipologias de regimes de
Estado‑providência tem valor teórico, havendo quem defenda que “uma
ciência empírica madura enfatiza a construção de teorias e não a formulação
de tipologias” (arts & gelissen, 2002:139). Mas alguns trabalhos de
investigação com esta preocupação têm sido dirigidos com vista a propor
tipos ideais, ou seja, modelos de Estados-providência, significando isto
que se pretendem identificar princípios fundamentais em que assentam
os Estados-providência, sendo certo que a realidade tem natureza híbrida,
podendo-lhe corresponder formas mistas destes modelos, tipos ideais ou

78
© Universidade Aberta
regimes de Estado-providência. Ao fazê-lo, na identificação destes princípios,
estamos perante trabalho teórico.

Uma das primeiras propostas de regimes de Estado-providência deve-se a


titmuss (1974). Segundo este autor, haveria três modelos de política social:
i) o modelo de estado de bem-estar residual (residual welfare model), segundo
o qual a intervenção do Estado na satisfação das necessidades sociais só tem
lugar se, e/ou quando, tal não ocorrer através da família e do mercado; será
um papel de última instância do Estado, com carácter subsidiário e temporário
relativamente ao sector privado lucrativo e informal (família) na sociedade;
ii) o modelo de mérito económico (Industrial Achievement-Performance
model), em que a satisfação das necessidades sociais se faz de acordo com
o mérito e a produtividade do trabalhador; é um modelo de bem-estar que
faz depender a realização dos direitos sociais dos resultados económicos
de cada cidadão; iii) o modelo redistributivo institucional (Industrial
Redistributive model), em que o Estado assume um papel (institucional) de
primeira instância na provisão do bem-estar, garantindo a provisão universal
do bem-estar. Trata-se, como se vê, de uma tipologia de formas ideais de
provisão de bem-estar, muito centrada na apreciação do sistema de valores
presentes na oferta de serviços sociais. As abordagens posteriores assentam
em perspectivas diferentes, como veremos.

Uma das contribuições mais importantes para a literatura sobre regimes de


Estados-providência deve-se a esping-andersen (1990). Segundo este
autor, o Estado-Providência é um certo tipo de estado democrático, assente
num conjunto de princípios constitutivos, não sendo uma mera adição de
políticas sociais, mas antes um conjunto complexo de dimensões legais e
organizacionais que configuram um sistema, e é nestes termos que deve ser
analisado e compreendido. Deve ser entendido como um conjunto complexo
de aspectos legais e organizacionais, sistematicamente interrelacionados, em
que é possível identificar princípios subjacentes às formas como o Estado,
o Mercado e a Família se interrelacionam nesse sistema.

Os Estados-providência são construções sociais que resultam de uma


evolução histórica (lutas sociais, reformas, etc) que originaram a sua
aglomeração em três clusters, a que correspondem três lógicas distintas de
princípios e formas organizativas desses sistemas, isto é, três tipos ideais ou
modelos de Estado-providência: 1) o modelo conservador-corporativo; 2) o
modelo social democrata; 3) o modelo liberal. A identificação, no momento
actual, desses clusters de Estados-Providência que resultaram desse processo
histórico pode ser feita com base em três critérios: i) a qualidade dos direitos
sociais; ii) a natureza da estratificação social; iii) a relação entre o Estado,
o Mercado e a Família. Dediquemos alguma atenção a cada uma destas
dimensões de análise.

79
© Universidade Aberta
Desmercadorização

A análise da qualidade dos direitos sociais, segundo Esping-Andersen,


assenta no uso do critério de de-commodification (ou desmercadorização)
dos direitos sociais, que permite analisar em que medida “um serviço
social ou uma transferência de recursos é atribuída como um direito e pode
manter e garantir a sua realização sem depender do mercado” (esping-
-andersen, 1990:21-22). Trata-se de um conceito que Esping-Andersen
colheu, como fonte inspiradora, de polanyi (1944), conceito que foi mais
tarde retomado por offe (1984) na análise das contradições existentes num
sistema capitalista com instituições de provisão de bem-estar.

Segundo Esping-Andersen, “a razão de ser da política social moderna situa‑se


no processo pelo qual quer as necessidades humanas quer a mão-de-obra
se tornaram mercadorias e, portanto, o nosso bem-estar ficou dependente
da nossa relação com o dinheiro” (esping-andersen, 1990:35). De
facto, estando a satisfação das necessidades dependente da compra de bens
e serviços no mercado, a capacidade de realização de direitos básicos está
dependente da distribuição do rendimento. Sendo o trabalho uma mercadoria,
objecto de troca também em mercados, estamos numa situação de completa
dependência da realização de direitos sociais relativamente ao mercado, que
cria uma dupla mercadorização: das necessidades (no mercado de bens e
serviços) e das pessoas (no mercado de trabalho). Um programa de política
social tem um potencial de desmercadorização tão mais elevado “quanto mais
o acesso a esse programa for fácil (i.e., sujeito a poucas restrições) e a garantia
do direito a um nível de vida adequado estiver garantido, independentemente
da duração e sucesso da carreira profissional anterior, da prova de necessidade
ou de contribuição financeira prestada” (op. cit, p. 47).

O potencial de desmercadorização de um programa social é tão mais elevado


quanto maior for a taxa de substituição de rendimento, pois se esta taxa de
substituição for reduzida, isto é, se o nível dos benefícios sociais for inferior
ao nível do rendimento de actividade que vem substituir (por exemplo,
comparando o nível de subsídio de desemprego com o salário auferido antes
do desemprego, ou o valor da pensão de reforma em comparação com o
salário antes da reforma), isto traduz-se numa maior dependência do nível do
benefício social relativamente ao rendimento obtido na actividade económica
e, portanto, um menor grau de desmercadorização do direito.

Há diferenças significativas entre os países europeus no que respeita a formas


de atribuição do direito a transferências sociais, que correspondem a distintos
graus de desmercadorização dos direitos. Nos países anglo-saxónicos há
uma tradição de atribuição assistencialista de benefícios sociais, dependendo
essa atribuição de prova de carência de meios (means-tested benefits). Este
tipo de benefícios, que existem genericamente em todos os países europeus,

80
© Universidade Aberta
não desmercadoriza os direitos sociais, pelas restrições que coloca ao
seu acesso e, também, normalmente pela sua diminuta generosidade. A
natureza assistencial traduz-se no facto de este programa social actuar como
garantia do direito em última instância, colocando portanto no rendimento
da actividade económica, em primeira instância, a base económica em que
assenta a realização do direito. Esta função social do Estado corresponde ao
modelo residual de política social, segundo Titmuss, como vimos atrás.

Outro tipo de transferências sociais, cujas raízes se encontram na tradição dos


seguros sociais originalmente criados na Alemanha de Bismark, são aqueles
que, como as pensões de reforma, subsídios de desemprego, entre outros,
são atribuídos a quem tiver tido uma carreira contributiva com uma duração
mínima fixada por lei, sendo o benefício calculado em função da remuneração
do trabalhador. O acesso a este tipo de prestação social está dependente,
numa lógica actuarial, da prestação do trabalhador no mercado de trabalho:
quanto mais longa tiver sido a carreira profisional que originou contribuições
para o sistema e quanto maior for o salário, tanto maior o benefício social.
Neste tipo de benefício, que se enquadra na categoria do modelo de mérito,
de Industrial Achievement-Performance model, segundo Titmuss, o grau
de desmercadorização é tanto maior quanto menos dependente estiver da
lógica actuarial em que assenta, isto é, quanto menos tempo for exigido para
ter direito ao benefício, quanto menos dependente estiver do nível salarial
e quanto maior for o nível de generosidade da transferência (isto é, quanto
mais elevada for a taxa de substituição do rendimento).

Nos modernos Estados-providência encontramos outro tipo de transferências


originárias nos princípios universalistas de raiz Beveregiana, em que o
acesso aos programas sociais é um direito de cidadania, independente da
quantidade e qualidade da prestação no mercado de trabalho. Corresponde
ao modelo redistributivo institucional (industrial redistributive model)
segundo Titmuss, e encontra-se bem representado nos países nórdicos. É
neste tipo de programas sociais que encontramos um mais elevado nível de
desmercadorização dos direitos sociais.

esping-andersen (1990) realizou uma análise empírica da


desmercadorização para um conjunto de 18 países que estudou, através da
selecção de um conjunto de indicadores sobre três prestações que permitem
caracterizar os sistemas através dos riscos sociais cobertos: as pensões,
o subsídio de doença e o subsídio de desemprego. Pretendeu medir o
potencial de desmercadorização das políticas sociais através das regras de
acesso aos benefícios sociais (regras de elegibilidade, como medida das
restrições aos direitos) e pelo grau de substituição do rendimento dessas
prestações sociais. Obteve, como resultado, três grupos de países: a) com
nível de desmercadorização elevado, acima da média do conjunto (Áustria,

81
© Universidade Aberta
Bélgica, Países Baixos, Dinamarca, Noruega e Suécia); b) com nível de
desmercadorização próximo da média do conjunto dos países estudados
(Itália, Japão, França, Alemanha, Finlândia, Suiça): c) com nível de
desmercadorização baixo, inferior à média do conjunto dos países (Austrália,
EUA, Nova Zelândia, Canadá, Irlanda e Reino Unido). Verifica‑se, em termos
de análise empírica, o que se conhece das marcas da história dos Estados-
-providência no mundo actual.

Estratificação social

Outra importante dimensão de análise, que permite identificar princípios


distintos entre os diferentes Estados-providência, é o grau e tipo de
estratificação social que consagra. De facto, “os Estados-providência são
instituições fundamentais na estruturação de classe e da ordem social.
Os aspectos organizativos do Estado-providência ajudam a determinar a
articulação da solidariedade social, das divisões de classe e da diferenciação
de estuto” (esping-andersen, 1990: 55). Ao observar os diferentes
Estados-providência no mundo actual, esping-andersen (1990)
reconhece existirem três modelos, ou tipos ideais, de estratificação: a) modelo
conservador; b) modelo liberal; c) modelo social-democrata. Vejamos cada
um deles em particular.

O que caracteriza o modelo conservador de política social é o facto de os


programas sociais reterem e conservarem, pela forma como estão concebidos
e organizados, as relações de estatuto social existentes na sociedade. Na
actualidade encontramos duas formas, que podem coexistir no mesmo
Estado-providência, mas que têm origens históricas distintas: o estatismo e
o corporativismo. As formas de paternalismo estatista, próprio dos sistemas
Bismarkianos de protecção social, encontra a sua origem na forma como
os seguros sociais criados na Alemanha no final do sec. XIX são geridos
pelas autoridades públicas, numa lógica instrumental da autoridade central
(monárquica) da ordem social. O corporativismo tem a sua origem nas
organizações corporatistas medievais e incorporadas, nos tempos modernos,
em princípios mutualistas e de associativismo corporativo. Não é por acaso
que é nos países continentais da Europa que surgem estas formas embrionárias
de um modelo corporativo de protecção social, já que é nestes países que se
verificam processos de industrialização mais tardios e, por outro lado, onde
é mais forte a influência da Igreja Católica (é relevante, a este respeito, o
princípio católico da subsidiaridade). O reconhecimento estatal das diferenças
de estatuto e de privilégios e, por outro lado, a existência de grupos organizados
com base em estatutos diferenciados, vêm originar formas de protecção social
com esquemas de seguro social igualmente diferenciados. Esta é uma das

82
© Universidade Aberta
características do modelo conservador-corporatista de protecção social, tal
como o conhecemos actualmente nos países da Europa continental.

O modelo liberal de política social constitui uma forma oposta às formas


de conservadorismo próprio dos regimes anteriores, de peso significativo
do Estado. O modelo liberal clássico, pelo contrário, caracteriza-se pelo
primado do mercado, e a adesão livre aos seus mecanismos, como forma
de organização da produção do bem-estar, cabendo ao Estado um papel
mínimo na garantia de direitos sociais. Sem Estado não haverá garantia
de protecção de privilégios de classe. Mas com o mercado, geram-se os
privilégios e as diferenciações que resultam do seu próprio funcionamento
enquanto mecanismo de produção de bem-estar. Uma das características do
Estado liberal é o de garantia, em última instância, de protecção contra riscos
sociais. Uma forma de o fazer é através de programas sujeitos a condição
de recursos (means tested benefits), característico de um Estado residual.
As desigualdades que o mercado gera são replicadas no sistema liberal de
protecção social, e que se caracterizam por formas dualistas de protecção,
com a prevalência de formas estigmatizantes de protecção de riscos sociais
próprias dos programas de natureza selectiva que caracterizam este modelo de
política social. Este modelo origina “uma curiosa mistura de individualismos
auto-responsáveis e dualismos: um grupo na base da escala social que
depende de formas de protecção social estigmatizantes; um grupo de classe
média que são predominantemente os clientes de formas de seguro social;
e finalmente um grupo privilegiado capaz de tirar partido do mercado para
garantir o seu bem-estar” (esping-andersen, 1990: 65).

Finalmente, o modelo social-democrata, ou de princípios socialistas. É nos


países nórdicos que se concretizam muitos dos ideais socialistas surgidos na
literatura do sec. XIX e nas lutas operárias do início do sec. XX, traduzido
nos princípios de universalismo popular como extensão e consolidação dos
direitos democráticos nos anos 1920s. Esta coincidência entre o universalismo
e a democracia nos países escandinavos (finais do sec. XIX e nos primeiros
anos do sec. XX) constitui um facto marcante para o surgimento de formas
avançadas do modelo social-democrata de política social.

esping-andersen (1990) conduziu um trabalho empírico sobre os


18 países estudados para caracterizar os modelos de estratificação social
que os caracteriza, tendo construído indicadores que permitam identificar,
nos Estados-Providência, princípios corporativistas (em que medida a
segurança social é diferenciada e segmentada em programas distintos de
acordo com diferentes estatutos socio-profissionais), liberais (a natureza
residual do Estado através de um peso mais relevante de benefícios means-
tested e o maior grau de responsabilidade individual na cobertura de riscos
sociais) ou social-democratas (grau de universalismo das prestações e um

83
© Universidade Aberta
maior igualitarismo nas prestações sociais). Através destes indicadores,
esping-andersen (1990) concluiu pela existência de vários grupos de
países com níveis elevado, médio e baixo de conservadorismo, liberalismo
e social‑democracia. Assim, dos 18 países estudados, são países com a)
elevado grau de conservadorismo: Áustria, Bélgica, França, Alemanha e
Itála; b) elevado grau de liberalismo: Austrália, Canadá, Japão, Suíça, EUA;
c) elevado grau de social-democracia: Dinamarca, Finlândia, Holanda,
Noruega e Suécia.

Relação entre o Estado e o Mercado

Outra dimensão importante para a caracterização dos regimes de Estado-


-providência é a repartição, entre o sector público e o sector privado, na
protecção social, que constitui “o contexto estrutural da desmercadorização,
dos direitos sociais e da estratificação social dos regimes de bem-estar”
(esping-andersen, 1990: 80). Com base num conjunto de indicadores
sobre a composição pública e privada dos regimes de pensões, o autor
confirma a existência de três grupos distintos de regimes de pensões:
a)  sistemas predominantemente públicos, em que o elemento privado de
mercado tem natureza marginal, mas em que a segurança social tende a
ser marcada por interesses profissionais, em particular de funcionários
públicos (Áustria, Bélgica, França, Alemanha, Itália e Japão); b) sistemas
residuais, em que o mercado tende prevalecer (Austrália, Canadá, Suíça,
EUA); c) sistemas universalistas, em que os direitos sociais são garantidos
a toda a população, erradicando privilégios de estatuto e de mercado (Nova
Zelândia, Noruega, Suécia e, ainda que de forma menos clara, a Dinamarca
e os Países Baixos).

Os regimes de Estado-providência

esping-andersen (1990) conclui assim, da conjugação destes três


critérios de análise, sobre três regimes de Estados-providência, que podemos
sintetizar da seguinte forma:

a) Regime Social-Democrata

Trata-se de um regime, a que pertencem a Dinamarca, a Finlândia e a


Suécia, caracterizado por um elevado grau de desmercadorização e onde
são dominantes os princípios sociais-democratas de estratificação social,
constituído por um conjunto de benefícios sociais universais, generosos e
altamente redistributivos, não dependentes das contribuições individuais. A
política social é dirigida à maximização das capacidades de independência
individual, em particular o encorajamento da participação feminina

84
© Universidade Aberta
no mercado de trabalho (especialmente no sector público), e em que a
promoção do emprego aparece como condição de sustentação económica
da solidariedade geral.

b) Regime Liberal

É um regime de que fazem parte os EUA, o Canadá, a Austrália, o Reino


Unido e a Irlanda. Tem um reduzido nível de desmercadorização, em que
o funcionamento do mercado é encorajado pelo Estado, quer directa e
activamente (por esquemas privados de Segurança Social) quer indirecta e
passivamente (através de means-tested benefits, benefícios sociais modestos
para a população que comprovadamente necessite de apoio). Segue princípios
liberais de estratificação social, com uma estrutura dual da sociedade (em
que existe uma minoria de baixos rendimentos, dependente da assistência,
coexistindo com grupos populacionais dependentes da segurança social
privada), sendo os programas sociais em geral pouco redistributivos. Neste
regime, a população feminina é encorajada a participar no mercado de
trabalho (particularmente no sector dos serviços).

c) Regime Corporativo

Pertencem a este regime a Áustria, Bélgica, França, Alemanha, Países Baixos


e Luxemburgo. Apresentam um nível moderado de desmercadorização, e
são caracterizados por princípios corporatistas e estatistas de estratificação
social, com benefícios de substituição de rendimentos baseados no estatuto
socio‑profissional (solidariedade estrita, de base profissional), em que está
presente a influência da política social de inspiração católica, segundo o
princípio da subsidariedade (em que ao Estado compete intervir apenas
quando se tiver esgotado o papel da família, em termos de capacidade para
gerir os riscos sociais. A participação feminina no mercado de trabalho é
desencorajada, preservando-se os estatutos familiares tradicionais de homem
bread-winner (principal fonte do sustento familiar).

3.3 Variedade de tipologias de Estado-providência

O trabalho teórico e de verificação empírica de Esping-Andersen, acabado


de apresentar, constituiu uma referência fundamental para as análises
comparativas de Estados-providência, nos vários sentidos apresentados no
início deste capítulo. A sua tipologia de regimes de Estado-providência não
só constitui uma referência fundamental para estes estudos, como constituiu
também o ponto de partida para trabalho teórico e empírico posteriores, tendo
por base múltiplas críticas a que foi sujeito pela orientação teórica seguida
ou pela natureza incompleta que assume para a literatura sobre este tema.

85
© Universidade Aberta
Entre os surveys recentes sobre esta literatura, devem consultar-se os textos
recentes de arts & gelissen (2002) e arcanjo (2006).

Uma das críticas à obra de Esping-Andersen (1990), que surgiu logo


após a sua publicação, foi o facto de a tipologia proposta por este autor não
permitir a classificação dos países do sul da Europa. Este autor inclui a Itália
no conjunto dos países de regime conservador-corporatista o que poderia
conduzir à inclusão, nesta categoria, de outros países do Sul da Europa
(Portugal, Espanha e Grécia) cujos modelos predominantes de protecção
social, pelas suas origens históricas, poderiam ser classificados neste grupo
e que, além disso, têm outras características comuns, designadamente a
influência católica (se exceptuarmos a Grécia) e forte “familiarismo”, um
conceito que é posteriormente trabalhado por Esping-Andersen (1999)
para significar “um regime de bem-estar que afecta o máximo de obrigações
de bem-estar à família” (op.cit, p.45). Mas outros autores consideraram que,
por estas características próprias dos países do Sul, estes constituiriam uma
sub-categoria do tipo continental-conservador de Estado-providência, às quais
se deveria acrescentar o facto de serem Estados-providência rudimentares,
com uma história mais recente e portanto com um menor grau de maturidade
dos sistemas de protecção social. Daí que talvez fizesse sentido considerar-se
como formando uma categoria própria de regime de bem-estar.

Uma das primeiras reacções à tipologia de Esping-Andersen propondo uma


tipologia alternativa foi de autoria de lEIbfried (1992), defendendo a
existência de quatro “regimes de pobreza”, um critério entendido como
relevante para este autor, significando este conceito as diferentes funções que
as instituições de Estado-providência têm no combate à pobreza nos seus
países. Haveria assim, segundo este autor, quatro regimes de bem-estar que
corresponderiam, nos termos do critério escolhido, a diferentes modelos de
política social em que se realizaria a cidadania social: i) o modelo “moderno”,
do regime escandinavo, com direito ao trabalho e à garantia da provisão
do bem-estar, que se caracteriza por ser um modelo de Estado-providência
empregador (políticas sociais activas) de primeira instância e compensador
(políticas sociais passivas, de natureza reparadora) de última instância; ii)
modelo “institucional”, do regime bismarkiano, que consagra o direito à
segurança social, estritamente ligado ao mercado de trabalho, um modelo
de Estado-providência compensador de primeira instância e empregador de
última instância; iii) modelo “residual”, próprio do regime anglo-saxónico,
que consagra o direito às transferências, compensador de última instância;
iv) o modelo “rudimentar”, característico de um modelo próprio dos países
do Sul da Europa e que o autor designa por Latin-Rim e que se caracteriza
por não ter direitos sociais plenamente institucionalizados, particularmente
no que respeita a mínimos sociais ou, para usar a expressão do autor, uma
promessa não completamente institucionalizada.

86
© Universidade Aberta
Repare-se que a classificação de Leibfried assenta em critérios distintos dos
seguidos por Esping-Andersen e visa, pois, objectivos de análise diferentes.
Enquanto Esping-Andersen baseia a sua classificação nos criérios de
qualidade dos direitos sociais, estratificação e articulação entre o Estado e o
Mercado que caraterizam os sistemas de protecção social, tal como se podem
actualmente observar e que resultam dos processos históricos que estão na
sua origem, Leibfied lança um olhar sobre os Estados-providência no que
respeita a um aspecto particular, ainda que bastante relevante: a forma como
incorporam a pobreza e os direitos sociais de quem está próximo dos níveis
mínimos do bem-estar. O surgimento de um “quarto modelo” (do Sul da
Europa) para um quadro tipológico mais completo dos Estados‑providência
viria a ser abordado e desenvolvido por outros autores, como veremos
adiante.

Outra reacção tem a ver com a forma como os países Austrália e Nova
Zelândia são classificados por Esping-Andersen, na categoria de regime
liberal de Estado-providência. Trata-se de uma crítica formulada por
castles & mitchell (1993) que questionam que se considerem
exclusivamente as transferências sociais como instrumento redistributivo que
caracteriza os Estados-providência, havendo mecanismos de regulação das
desigualdades do rendimento ao nível da formação do rendimento primário
(controlo salarial e segurança do emprego) que, tendo efeitos significativos
sobre as desigualdades e a pobreza, antecipam e tornam menos necessários os
mecanimos redistributivos do rendimento disponível. Embora nestes países
as transferências means-tested tenham importância muito significativa, as
orientações políticas de esquerda, determinantes para processos correctores
de desigualdades do rendimento primário, levam os autores a não considerar
adequada a classificação destes países no regime “liberal”. Propõem assim
uma classificação nas seguintes categorias, em que o peso das despesas, do
seu financiamento por impostos e seu efeito equalizador são usados como
critérios: i) liberal, em que o nível de despesas é baixo, não dispondo de
instrumentos de política social que corrijam as desigualdades do rendimento;
ii) conservador, com níveis elevados de despesa social, mas com instrumentos
de correcção das desigualdades com pouca expressão; iii) hegemonia de
não-direita (esquerda) política (“non-right hegemony”), em que existe um
nível elevado de despesa, dispondo de instrumentos de política social de
correcção das desigualdades do rendimento; iv) radical, que são países em
que, como na Austrália e a Nova Zelândia, têm baixos níveis de despesa social
e conseguem reduzir a desigualdade dos rendimentos “antes” dos impostos
e transferências (isto é, reduzem a desigualdade do rendimento primário).

É interessante destacar outra contribuição, no final dos anos 1990s, devida


a korpi & palme (1998), desta vez assente num conjunto de critérios
considerados muito relevantes para se poder compreender os aspectos

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© Universidade Aberta
institucionais de funcionamento do Estado-providência. Estes autores
consideram que as diferenças que os Estados-providência apresentam nestes
aspectos institucionais reflectem o diferente papel que desempenham, na
sociedade, os conflitos entre diferentes grupos de interesse. As estruturas
institucionais existentes permitem, por outro lado, estabelecer quadros de
definição de interesses e identidades entre grupos de cidadãos, que se reflectem
no desenho das políticas de protecção social. Observando programas sociais,
estes autores consideraram como critérios para identificar estas dimensões
institucionais, na perspectiva teórica em que se situam, as condições de acesso
ao programa, os princípios presentes no método de cálculo dos benefícios
sociais e o modo de governação do programa. Propuseram então os seguintes
tipos de Estado-providência: i) Segurança Básica, onde se encontram países
tão diversos como o Reino Unido e Irlanda, ou a Dinamarca, Holanda e
Suíça ou o Canadá, os EUA e Nova Zelândia, e em que as condições de
acesso se baseiam na cidadania ou nas contribuições, em que o benefício tem
natureza uniforme (flat-rate benefit); ii) Corporatista, para vários países do
Continente Europeu (França, Alemanha, Austria, Bélgica e Itália) e o Japão,
em que as condições de acesso se baseiam na categoria profissional do titular
e na participação na actividade económica, em que o benefício é calculado
em estreita relação com o salário auferido (earnings-related benefit);
iii) “Encompassing”, relativo a países escandinavos como a Finlândia, a
Noruega e a Suécia, em que o acesso ao programa se baseia na cidadania
e na participação na actividade económica, sendo o valor da transferência
calculado segundo o princípio do benefício uniforme (flat-rate benefit) ou
segundo o princípio da relação com o salário (earnings-related benefit);
iv) Selectivo (“targeted”), como a Austrália, em que o acesso ao programa
depende do exercício da prova de condição de recursos, sendo o valor da
transferência calculado de acordo com o princípio do benefício mínimo;
v) Voluntário com subsídio estatal (“Voluntary State Subsidized”), em que
as condições de acesso se baseiam no princípio de adesão (voluntária) ao
programa e no valor das contribuições, sendo a transferência social calculada
segundo o princípio do benefício uniforme (flat-rate benefit) ou o princípio
da relação com o salário (earnings-related benefit).

Algumas destas críticas viriam a ser tomadas em consideração por Esping-


Andersen que, em obra posterior (esping-andersen, 1999)
incluiria nas suas análises a dimensão do “familiarismo” para caracterizar
os Estados-providência, sendo assim um reconhecimento de especificidades
dos países do Sul da Europa e de que os critérios presentes na sua obra
original não os permitiam considerar. Esping-Andersen, aliás, apresenta o
conceito de desfamiliarização (“de-familialization”) como conceito paralelo
ao de desmercadorização (“de-commodification”), numa análise que faz
do papel da família e, nela, do papel da mulher na provisão do bem-estar,
e “em que medida as famílias absorvem riscos sociais” (op. cit., p. 51).

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© Universidade Aberta
Por nível ou grau de desfamiliarização, Esping-Andersen entende o nível
ou grau de redução em que os cidadãos se encontram na sua dependência
relativamente aos cuidados da família em termos de provisão de bem-estar.
Esta desfamiliarização pode ser conseguida fazendo transitar esses cuidados
familiares para o mercado (comprando serviços até aí prestados pela família)
ou para as instituições do Estado-providência (pelo fornecimento de serviços
públicos de provisão de bem-estar). O conceito de “desfamiliarização” estaria
assim relacionado com o de “desmercadorização”: um regime de bem-estar
que seja desfamiliarizante, ao reduzir o esforço de produção de bem-estar
requerido à família, gera condições para os membros da família, em particular
a mulher, se mercadorizarem (participação no mercado de trabalho). Este
seria, então, um conceito a acrescentar na caracterização dos regimes de
Estado-providência em que, além do modelo de Estado-providência, se
deveria acrescentar a dimensão “relevância da família” no welfare mix.

Outra tipologia de Estado-providência que, pelo uso generalizado que vem


sendo feito nos textos da Comissão Europeia, se tornou muito conhecida,
deve-se a ferrera (1996). A sua construção assenta em quatro critérios
de identificação: 1) a cobertura de riscos e elegibilidade; 2) a estrutura
dos benefícios; 3) os mecanismos de financiamento; 4) as configurações
institucionais. A tipologia de ferrera traduz-se nas seguintes quatro categorias
de Estado-providência, cuja caracterização estatística é feita em ferrera,
hemerijck & rhodes (2000): i) Escandinávia, “em que a protecção
social é um direito de cidadania, a cobertura é universal e todos têm direito
às mesmas prestações de base (elevadas, quando comparadas com os padrões
internacionais) (..), oferecem um vasto leque de serviços sociais públicos e
medidas activas de emprego, que explicam as elevadas taxas de actividade
quer de homens quer de mulheres (…) e a receita fiscal desempenha um
papel importante (embora não exclusivamente) no financiamento das
despesas sociais” (op.cit., pp. 36-38); ii) Reino Unido (na verdade, incluindo
também a Irlanda), em que “a cobertura da protecção social é muitíssimo
inclusiva, embora não completamente universal (excepção feita aos serviços
de saúde)” (op.cit, p. 42), e em que a assistência social, com prestações
sujeita a condição de recursos (means tested) tem relevância; iii) Europa
Continental, em que os benefícios sociais são proporcionais ao salário
auferido e o financiamento assenta nas contribuições, segundo uma lógica
predominante de seguro, muitas vezes com regras de cálculo diferenciadas
por categorias socioprofissionais, em que a cobertura á bastante inclusiva,
ainda que fragmentada por lógicas corporativas, e as taxas de substituição
do rendimento são elevadas; iv) Europa do Sul, com uma forte influência
bismarkiana na sua génese, mas apresentando um grau de desenvolvimento
rudimentar, que importa analisar com alguma atenção particular, dada a sua
natureza específica e, como se viu acima, a natureza polémica que apresenta
a argumentação sobre a sua existência como categoria autónoma.

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© Universidade Aberta
3.4 A Europa do Sul: realidade ou modelo?

Uma questão que tem preocupado vários investigadores, como se viu na


secção anterior, é o de saber se as tipologias de Estado-providência devem
incluir a explicitação de um modelo próprio do países do Sul da Europa ou se
aquelas tipologias que o não façam são suficientemente abrangentes para neles
incluírem estes países os quais, neste caso, não teriam nenhuma característica
específica para além das que essas tipologias revelam. Neste caso estariamos
perante um conjunto de países cujas características do Estado‑providência
diferem apenas em termo de grau de outros modelos, ou regimes, de Estado-
Providência (designadamente dos países da Europa Continental, de tipo
corporativo). Será, pelo contrário, que os critérios usados por essas tipologias
não são suficientes para abranger estes países, de tal modo que poderíamos
falar num modelo de Estado-providência do Sul da Europa?

Vimos que esta foi a orientação seguida em ferrera (1996) e ferrera,


hemerijck & rhodes (2000). Viu-se também, na secção anterior, que
esping-andersen (1999) introduziu a dimensão familiar de análise da
provisão de bem-estar para ter em consideração a realidade dos países do
Sul da Europa. Importa ver, com mais algum pormenor, o que caracteriza
este conjunto de países, quer no que têm em comum entre si, quer o que
os distingue, como grupo, do conjunto dos outros países no que respeita à
provisão do bem-estar.

Fixemos então a nossa atenção nos países classificados como Europa do


Sul por ferrera, hemerijck & rhodes (2000), isto é, Portugal,
Espanha, Grécia e Itália. Observando o que os caracteriza em comum,
podemos considerar vários aspectos relevantes para a produção do bem‑estar
(silva, 2002). São países que, em termos dos seus processos históricos,
experimentaram regimes autoritários durante uma parte importante do
sec. XX, precisamente durante o período de nascimento e difusão do
Estado‑providência na Europa. As suas transições para a democracia
ocorreram, em alguns destes países em períodos bastante próximos entre
si. A ausência de um movimento operário, durante o período das ditaduras
vividas por esses países, caracterizam o contexto político em que as suas
instituições de provisão do bem-estar foram criadas e determinaram algumas
das suas características.

Acresce que, em alguns destes países, o desenvolvimento das instituições do


Estado-providência ocorrera numa fase de crescimento económico (a partir
dos anos 1950s). A par disso, a influência da Igreja Católica e de alguns
princípios do pensamento social da Igreja e, bem assim, do pensamento
e acção do corporativismo, levam a que assuma bastante visiblidade a
sua influência, e a semelhança entre alguns destes países, no desenho das

90
© Universidade Aberta
suas políticas sociais: o princípios da subsidiaridadade, o papel da família
patriarcal na provisão do bem-estar, a articulação e boa convivência entre os
interesses do capital e do trabalho, o papel assistencial do Estado, supletivo do
que deve caber à sociedade civil, pelos princípios e práticas das instituições
de mutualidade e de caridade.

Para alguns destes países (Grécia, Espanha e Portugal), as suas transições para
a democracia foram rápidas e acompanhadas por importantes reivindicações
e o surgimento, em soluções políticas tomadas, de ideias igualitaristas. Pode
mesmo considerar-se que “as políticas sociais foram um elemento decisivo na
procura de consenso e na legitimação dos regimes democráticos, na medida
em que as reivindicações sociais, podendo ser expressas, tinham, ainda que
parcialmente, de ser concretizadas de forma a legitimar e consolidar os novos
regimes” (silva, 2002:36).

Há assim especificidades que caracterizam o conjunto dos países do


Sul da Europa que permitem compreender que possam ter algumas
características comuns, distintas dos outros países onde nasceram as primeiras
instituições do Estado-providência. Ainda que as origens das instituições
do Estado‑providência nestes países esteja muito marcada pela família
bismarkiana de protecção social, assente nos princípios do seguro social e das
estruturas corporativas do seu tecido económico e social, o que nos levaria
a considerar estes países como parte do regime conservador-corporativo de
Estado-providência. Mas estes países têm características próprias que os
dintnguem dos outros países deste regime. Estas diferenças foram assinaladas
por ferrera (1996) e silva (2002) como argumentos para a defesa de
um modelo próprio de Estado-providência destes países.

Estes países seguem, como se disse, pela sua origem histórica, princípios
bismarkianos dominantes dos seus sistemas de protecção social,
aproximando-se dos países do regime continental-corporativo, ainda que
as despesas sociais representem uma percentagem menor do PIB. Mas, o
que é mais significativo, apresentam grande fragmentação nos sistemas
de pensões, com taxas de substituição do rendimento muito elevadas para
alguns grupos sócio-profissionais, existindo grupos em que os níveis de
protecção social são mais incipientes, com prestações sociais baixas, para
os trabalhadores irregulares, não qualificados e de baixos salários, e os que
trabalham na economia informal. Mas, a par deste dualismo de protecção
social, encontramos sistemas de saúde públicos e universais, resultado
das transformações democráticas sofridas e dos ideiais universalistas e
igualitaristas que os caracterizaram. Mas o “baixo grau de penetração das
instituições públicas de protecção social” que caracteriza estes países e
frequentemente acompanhado de formas de particularismo institucional,
de clientelismo político, e “em que os partidos políticos, designadamente
aos níveis regional e local, trocam favores e benefícios por apoio político”
(silva, 2002:41).

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© Universidade Aberta
3.5 As reformas e o futuro do Estado-providência na Europa

Os Estados-providência têm vindo, nos últimos anos, a ser sujeitos a


significativas pressões financeiras. Estas pressões têm originado reformas dos
sistemas de protecção social. Tal como identificámos padrões de intervenção
social do Estado (modelos de Estado-providência), importa agora ver até
que ponto existem padrões de alteração dessas formas de intervenção,
isto é, padrões de reforma dos Estados-providência. Contribuições muito
significativas têm sido dadas por pierson (2001a, 2001b) para esta reflexão,
justificando-se a apresentação de algumas das ideias fundamentais deste
autor.

Segundo pierson (2001a), “os Estados-providência enfrentam pressões


financeiras sem precedentes, que estão essencialmente relacionadas com
um conjunto de mudanças ´pós-industriais´ que têm ocorrido no seio das
democracias industriais avançadas, em que os perfis do emprego nas sociedades
mais avançadas se têm tornado mais baseados no sector dos serviços, os
Estados-providência mais maduros, as populações mais envelhecidas e
em que têm também ocorrido alterações radicais nas estruturas familiares”
(p. 82). São assim, como muitos outros autores reconhecem, quatro factores
muito significativos da pressão sobre os regimes de Estado‑providência que
importa analisar.

Embora frequentemente se aponte para causas externas, são essencialmente


factores de natureza endógena que têm provocado a redução do crescimento
da produtividade do trabalho nas economias ocidentais mais avançadas. Um
dos factores que tem sido apontado para esse abrandamento é a profunda
alteração da estrutura de emprego, que se tem deslocado da industria para
os serviços, um sector onde os crescimentos da produtividade do trabalho
são mais difíceis de conseguir, facto reconhecido por muitos economistas, e
que os dados estatísticos comprovam. O menor crescimento económico que
este facto provoca tem, naturalmente, efeitos sobre a provisão do bem-estar,
quer pela maior contribuição que terá sobre o desemprego, quer pelo efeito
adverso sobre as receitas fiscais.

Como alguns autores salientam, os governos confrontam-se com o “trilema


de uma economia de serviços”, pela dificuldade em conciliar objectivos de
crescimento do emprego, de equidade dos ganhos salariais e de controlo
orçamental, três objectivos de política económica que os governos pretendem
alcançar, mas que conflituam entre si. Para que o emprego no sector dos
serviços possa crescer, ou se espera que tal aconteça no sector privado
à custa de um agravamento das desigualdaddes salariais, ou através de
um crescimento do emprego no sector público, agravando-se o deficit
orçamental. pierson (2001a) identifica diferentes respostas a este trilema

92
© Universidade Aberta
nos vários regimes de Estado-providência: enquanto nos Estados-providência
social‑democrata o crescimento do emprego ocorreu através da expansão do
sector público, não agravando as desigualdades salariais, mas à custa de um
agravamento orçamental, os regimes liberais fizeram esse crescimento no
sector privado, à custa de um agravamento da desigualdade e da pobreza e os
regimes da Europa Continental controlaram o crescimento do sector público
e, pela regulação acrescida do mercado de trabalho e de agravamento de
custos fiscais, o crescimento do emprego no sector privado sofreu restrições,
agravando-se o desemprego nestas economias.

Outro factor, também de natureza endógena, responsável por crescentes


pressões financeiras sobre os Estados-providência é a crescente maturação
dos sistemas de protecção social, o que significa um adensamento dos
compromissos do Estado, impeditivos de qualquer redução de encargos com
as despesas sociais. O envelhecimento da população é outro factor, com
efeitos de agravamento das despesas sociais, quer na área das pensões quer
na área dos serviços de saúde. Outro factor é o conjunto de outras alterações
demográficas e a alteração das estruturas familiares e que se traduzem quer no
aumento da taxa de actividade feminina, na redução das taxas de fertilidade,
no aumento das famílias monoparentais e na diminuição da dimensão das
famílias. Faremos, mais adiante (capítulo 5) referência mais aprofundada ao
efeito destes factores sobre os sistemas de protecção social.

Há, assim, pressões fortes para a reforma dos sistemas de protecção social.
E, sabendo-se que muitos dos factores acima referidos se sentem em todos
os países, os seus efeitos podem ser diferentes entre esses países e também
diferentes, entre esses países, as respostas políticas em termos da reforma
dos sistemas. Tal como se fez atrás sobre os modelos de Estado-providência,
cuja análise comparativa é essencial para a sua compreensão, o mesmo se
pode dizer relativamente à necessidade de se fazerem análises comparativas
dos processos de reforma dos sistemas.

Esta análise exige um quadro conceptual próprio, como foi o que pierson
(2001b) introduziu na literatura do que este autor designou da “nova política”
do Estado-providência. Segundo este autor, as alterações que os poderes
políticos possam introduzir, através de reformas, nos Estados-providência,
na perspectiva dos actores políticos actuantes nesses processos de reforma,
são de três tipos: i) a re-mercadorização; ii) a contenção de custos; iii) a
recalibragem. Vejamos o significado, para este autor, de cada um destes
conceitos e, de seguida, a sua relevância para a análise comparativa das
experiências de reforma.

O conceito de re-mercadorização parte do conceito, já atrás exposto e central


na obra de Esping-Andersen, de mercadorização. Ocorre re-mercadorização
se uma reforma se traduzir em “restringir as alternativas à participação

93
© Universidade Aberta
no mercado de trabalho, quer restringindo a elegibilidade quer reduzindo
benefícios” (pierson, 2001b:422). Quando se refere a contenção de custos,
o autor quer significar uma política de austeridade nos gastos dos programas
sociais, reduzindo as despesas em que incorre o Estado com estes programas.
O conceito de calibragem refere-se a “reformas que visam tornar os
Estados‑providência mais consistentes com os objectivos e exigências actuais
de provisão social” (p.425), e que pode ser conseguida por racionalização
(isto é, modificando programas sociais, não alterando os seus objectivos e
princípios que os enformam, mas adaptando-os a novas ideias que tenham
entretanto surgido que permitam melhor alcançar esses objectivos), ou por
actualização (isto é, adaptando os programas sociais a novos objectivos e
novas exigências sociais). A análise das reformas exigiria então que se fizesse
a distinção entre estas diferentes modalidades de alteração dos Estados-
-providência, não sendo frequentemente fácil fazê-lo quando eles se traduzam
no mesmo tipo de resultado: diminuição dos gastos sociais. É matéria de
trabalho teórico muito recente e actual, certamente inacabado pelos debates
teóricos que se travam nesta área e pelos ainda escassos trabalhos de análise
concreta das reformas já realizadas. Mas é importante destacar o trabalho
realizado por pierson (2001b: 431-456) na análise das características das
reformas, numa perspectiva comparativa entre os países pertencentes aos
três regimes de Estado-providência de Esping-Andersen. Apresenta-se um
sumário deste resultados no Quadro 3.1.

Quadro 3.1 – Os três mundos da reforma dos Estados-providência

Liberal Social-democrata Conservador

Apoio político do
Moderado Elevado Elevado
Estado‑providência

Pressões
para efectuar Moderadas Moderadas elevadas
ajustamentos
Re- Contenção Contenção
Agenda de
mercadorização/ de custos/ de custos/
reforma dos
contenção de recalibragem recalibragem
sistemas
custos (racionalização) (actualização)

Sem clivagem
Neoliberal
dominante;
(“retrenchment” “stand pat” vs.
Linhas de conflito ajustamento
vs. mercadorização reforma negociada
incremental
compensada)
negociado

Tradução e adaptação pelo autor do Quadro 7.2 de pierson (2001b:455)

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Os diferentes Estados-providência diferem em múltiplos aspectos mas, para
efeitos da análise das suas configurações, é muito relevante a distinção que
entre si se pode fazer no que respeita ao apoio político que as funções sociais
do Estado têm nesses diferentes regimes. Nos regimes liberais esse apoio
político é fraco, não havendo uma base de apoio forte às funções do Estado
na provisão do bem-estar. Assistimos em alguns dos países deste regime a
uma fraca organização e poder sindical, com sistemas eleitoriais baseados
em dois partidos (trabalhista/conservador; democrata/republicano), com
governação de carácter mono-partidário, com fraco apoio popular a soluções
públicas de provisão, dada a institucionalização de soluções de mercado para
a protecção social, o que enfraquece a apoio da classe média a soluções de
provisão pública. Assumindo os gastos sociais um valor menor do que em
outros regimes de Estado-providência, e dada a natureza dual deste regime
e o moderado apoio político que o suporta, são também moderadas as
pressões para efectuar ajustamentos. As reformas a que se assiste nos países
deste regime são em grande medida do tipo re-mercadorização (reduzindo
as condições de elegibilidade e do valor dos benefícios, muito visível
nas alterações de subsídio de desemprego) ou de contenção de custo, não
necessariamente associados a soluções neo-liberais envolvendo redução de
direitos (algumas alterações feitas nos sistemas nacionais de saúde desses
países). Estas alterações são, portanto, bastante conformes às características
deste regime. Isto chega a ser visível ao observar as linhas de conflito que
estas reformas geram nestes países, em que as soluções de “retrenchment”
(redução da dimensão social do Estado), podem ser acompanhadas, ou
complementadas, com soluções compensatórias para os grupos sociais mais
desprotegidos da sociedade, como forma de protecção dos efeitos nocivos,
para o seu bem-estar, destas reformas (mercadorização compensada).

Nos países de regime social-democrata de Estado-providência existe


ume elevado apoio político às funções sociais do Estado, que radica em
organizações sindicais fortes e interventivas, em particular as relativas ao
sector público, uma elevada participação da mulher no mercado de trabalho
e na sociedade, com parceiros sociais activos e participativos no diálogo
social. Sendo países com gastos sociais elevados, a população considera a
provisão pública de serviços como importantes factores de bem-estar (nos
serviços pessoais e de apoio à família, nos serviços de educação e formação
para as políticas activas de emprego). Daí que sejam moderadas as pressões
políticas para efectuar ajustamentos. E estes, quando são feitos, são de
contenção de custos e recalibragem no sentido da racionalização. Não são
reformas geradoras de clivagens sociais, assumindo as reformas um carácter
de “ajustamento incremental negociado”. Na verdade, para estes países, “o
seu maior problema no longo prazo é reconciliar a necessidade de prosseguir
a contenção de custos com a manutenção da solidariedade em torno do
Estado-providência” (pierson, 2001b:444).

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No regime conservador de Estado-providência encontramos um apoio
político forte às funções sociais do Estado. São muito relevantes as formas
de protecção social associadas ao mundo do trabalho, em países em que o
poder sindical é forte e em que há, nos seus sistemas eleitorais, formas de
representação proporcional, raramente de governação mono-partidária, em
que as classes médias se encontram politicamente representadas e em que
a opinião pública apoia estas funções. Mas a arquitectua dos sistemas de
protecção social torna-os vulneráveis às variáveis demográficas e económicas,
levando a pressões elevadas no sentido dos ajustamentos das políticas, dados
os riscos de sustentabidade da realização dos direitos sociais no médio/
longo prazo. Há assim linhas de conflito que se desenham entre grupos que
pretendem conservar a sua situação e os que as pretendem reforma, o que
neste contexto será de reforma negociada. Sendo as reformas de contenção de
custos, assumem a forma de recalibragem por actualização, dada a natureza
mutável dos riscos sociais, obrigando a redefinições dos programas sociais
adaptando-os a esses novos riscos, comportando eventualmente novos
objectivos e princípios organizativos.

É em torno destas questões que actualmente se desenvolvem algumas linhas


de pesquisa sobre as alterações do Estado-providência onde sobressai,
com bastante clareza, a necessidade de conduzir estas análises em termos
comparativos, matéria em permanente actualização e constante debate teórico
de que se pretendeu deixar apenas alguns traços actuais.

Leituras complementares

Como se disse no início deste capítulo, é muito abundante a literatura sobre


regimes de Estado-providência e, em geral, de análise comparada de políticas
sociais. Por esse motivo, apenas se indicam algumas obras que justificam, por
motivos indicados, leitura complementar, sem se ter como objectivo conhecer
em profundidade as contribuições teóricas recentes nesta matéria.

Recomenda-se a leitura do trabalho seminal que constitui a grande obra de


referência actual sobre esta matéria:

• esping-andersen, g. (1990), The Three Worlds of Welfare


Capitalism. Polity.

Centrados nesta obra, e a partir dela, aconselham-se três linhas de


aprofundamento desta matéria. A primeira é a leitura de dois textos que
procuram fazer survey da literatura que se lhe seguiu. O texto seguinte é
de leitura obrigatória para quem pretender conhecer, ainda que de forma
genérica, os contributos teóricos e empíricos sobre esta matéria:

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• arts, w., gelissen, j. (2002) Three worlds of welfare capitalism
or more? A state-of-the-art report. Journal of European Social Policy,
12(2): 137-158.

O texto seguinte, procurando também fazer uma leitura crítica da literatura,


inclui também referências aos ex-países de leste, em geral ainda ausentes
nas obras mais conhecidas sobre estes assuntos:

• arcanjo, m. (2006), Ideal (and Real) Types of Welfare State.


ISEG, Departamento de Economia, WP 06/2006/DE/CISEP.

Uma segunda linha de desenvolvimento é contactar com outra tipologia, que


vem sendo muito utilizada nos textos da Comissão Europeia:

• ferrera, m., hemerijck, a., rhodes, m. (2000), O Futuro


da Europa Social. celta Editora.

Finalmente, a terceira linha de desenvolvimento de leituras complementares


dirige-se ao conhecimento da realidade dos países do Sul da Europa, a que
pertence Portugal. Recomenda-se a leitura das duas obras seguintes:

• ferrera, m. (1996), The “southern model” of welfare in Social


Europe. Journal of European Social Policy, 6(1): 17-37

• silva, p. a. (2002), “O modelo de welfare da Europa do Sul:


reflexões sobre a utilidade do conceito”, in Sociologia, Problemas
e Práticas, nº 38, pp. 25–59.

Palavras-chave

Os alunos deverão redigir, a partir da consulta de obras de referência,


um parágrafo com o significado, em termos sintéticos, de cada um destes
conceitos

(des)mercadoização de direitos / (de)commodification


estratificação social
Industrial Achievement-Performance model
Institutional Redistibutive model
means-tested benefits
modelo conservador-corporativo
modelo liberal
modelo residual
modelo social-democrata/socialista

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regime corporativo
regime de Estado-providência
regime liberal
regime social democrata

Questões para revisão e reflexão

1. Acha que poderia utilizar a tipologia de Esping-Andersen para analisar,


em termos comparativos, as transformações recentes (reformas) da protecção
social que têm ocorrido nos países europeus?

2. Acha que o conceito de (de)commodification pode ser utilizado para analisar


a alteração da qualidade dos direitos sociais que decorram de uma reforma
dos sistemas de protecção social ou de sistemas de sáude? Exemplifique.

3. Acha que faz sentido falar-se de um “modelo” de Estado-providência do


Sul da Europa?

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4. Pluralidade de Actores: o welfare-mix

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Página intencionalmente em branco

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Sumário

4.1 “Welfare pluralism” e o triangulo de bem-estar na actualidade

4.2 Os três sectores da política social: uma distinção conceptual

4.3 O terceiro-sector da política social: conceito(s) e dimensão económica

4.4 Justificações para a actuação do Terceiro Sector

4.5 O terceiro sector em Portugal

Leituras complementares

Palavras-chave

Questões para revisão e reflexão

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Objectivos

• que os leitores fiquem a conhecer a variedade de entidades que


constituem a oferta de bens e serviços que garantem a provisão de
bem-estar nas sociedades modernas que constitui um pluralismo
providencial (welfare pluralism) nas sociedades modernas, saibam
como as suas acções se complementam nessa funções, bem como as
justificações teóricas para a existência desta forma mista de prover
o bem-estar social;

• que os leitores saibam distinguir os três sectores de provisão do


bem‑estar (Mercado, Estado e Terceiro Sector) e os caracterizem,
nessa distinção, no seu papel para a Política Social em termos dos
princípios que enformam a sua constituição e natureza de actuação;

• que os leitores conheçam as diferentes concepções do Terceiro Sector


que encontramos em diferentes contextos socio-políticos no Mundo e
tenham informação sobre a sua dimensão económica e a importância
relativa das diversas funções sociais que realizam;

• que os leitores fiquem a conhecer a realidade do Terceiro Sector em


Portugal, em termos da sua dimensão, funções e variedade de formas
organizativas em que se consubstanciam.

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Quando nos referimos atrás a uma quase identidade entre Estado-providência
e Política Social dos países Europeus na actualidade, não pretendemos com
esta afirmação dizer que o Estado é o único actor social relevante na condução
da Política Social nesses países. Na verdade, além dos serviços públicos,
existem outras entidades, de natureza privada, que contribuem para a provisão
de bem-estar, quer fornecendo bens e serviços quer transferindo rendimento
para as famílias. Ao fazê-lo, quer tenham uma motivação mercantil quer
o sejam por motivos de altruísmo, dão um contributo para a garantia dos
direitos sociais que, em algumas sociedades, pode ter expressão relevante.
Essa relevância pode resultar do facto de, nessas sociedades, o Estado estar
pouco presente na garantia desses direitos, deixando aos actores privados
esse papel. Mas também pode resultar de uma vontade política de envolver
actores privados, que podem ter natureza muito diversa, nas funções sociais
que pretende que sejam garantidas na sociedade. Esta é a tendência que
tem vindo a verificar-se nos modernos Estados-providência. Isto é, há uma
pluralidade de actores sociais, públicos e privados, com características muito
diversas que, conjuntamente, contribuem para a provisão do bem-estar
nas sociedades modernas. Por isso se faz frequentemente referência a um
pluralismo providencial, ou welfare-mix, como características das sociedades
modernas, colocando ao Estado um papel distinto do que seria no caso de
ele ser o único actor a fazer essa provisão.

É deste assunto que vamos tratar neste capítulo. Vamos identificar o conjunto
dos actores sociais que intervêm na provisão do bem-estar e procurar a sua
tipificação, distinguindo-os e analisando as formas de relacionação que têm
entre si neste papel de provisão do bem-estar. Dedicaremos especial atenção
ao designado “terceiro sector” da Política Social, isto é, ao sector privado de
natureza não lucrativa, também designado por “sector da economia social”.
Confrontaremos diferentes concepções e modalidades de “terceiro sector”
nas sociedades actuais, e apresentaremos informação sobre a dimensão
económica deste sector, em particular em Portugal, possibilitando assim uma
análise comparativa da sua relevância (dimensão e funções principais na sua
actuação) no mundo actual. Assim poderemos ter um melhor fundamento para
o papel destas instituições na Política Social. Apresentaremos também uma
explicação teórica (sucinta) para a existência desta diversidade de actores
nas sociedades modernas.

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4.1 “Welfare pluralism” e o triângulo de bem-estar na
actualidade

Quando pretendemos identificar os agentes sociais que desempenham algum


papel na provisão do bem-estar numa sociedade, isto é, que fornecem bens e
serviços que permitam, com esse fornecimento, garantir direitos fundamentais
da população, temos de fazer uma distinção fundamental entre produção
(qual o agente que produz o bem ou o serviço) e financiamento (isto é, qual o
agente que suporta o custo da sua produção e fornecimento à população).

Ao analisarmos a provisão de bem-estar através da produção e fornecimento,


à população, de bens e serviços numa sociedade (por exemplo, alimentação,
serviços de educação ou saúde, serviços de habitação, etc), temos de fazer
uma distinção entre três categorias de agentes: o cidadão (portador de direitos
sociais, a quem se dirige essa produção, o destinatário desse fornecimento,
que consome esse bem ou serviço), o agente produtor desses bens ou
serviços (que pode ser uma empresa, um serviço público, ou outra categoria
de agentes) e o agente financiador, que suporta o custo desse fornecimento
(que poderá ser o próprio cidadão/consumidor, ou o Estado, ou qualquer
outra entidade). Há assim três actividades distintas: de consumo, de produção
e de financiamento. E a essas actividades podem corresponder um mesmo
agente ou agentes distintos. Importa analisar essas diferenças. Sendo que
o cidadão é sempre quem consome esse bem ou serviço (é a ele que se
dirige a produção do bem ou serviço cujo consumo origina bem-estar; é ele
próprio o portador dos direitos sociais cuja garantia de realização é feita pela
produção e fornecimento desse bem ou serviço), vamos então analisar as
possíveis combinações das outras duas dimensões: produção e financiamento.
Descrevemos no Quadro 4.1 as combinações mais relevantes dessas duas
dimensões relativamente à produção de bens e serviços que realizam os
direitos sociais numa sociedade, distinguindo diferentes exemplos de agentes
com papel de produtores (produção pública, privada ou por outros agentes)
e com responsabilidade de financiamento dessa provisão (financiamento
público, pelos consumidores e outras situações).

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Quadro 4.1 – A economia mista de bem-estar

Produção
Privada Ajuda mútua/
Financiamento Pública Voluntária Informal
lucrativa Solidariedade
Público Estado →b ↑c →d ↑e
Empresarial

Consumidores ↓a Mercado
Terceiro
Mutualista
Sector
Voluntária

Sendo sempre o cidadão (consumidor) que consome o bem ou serviço, já


muitas vezes não é o mesmo agente que o produz e o que suporta o seu custo.
Esta não coincidência é a situação normal nos bens de consumo privado.
Quando um bem (por exemplo, uma refeição) ou um serviço (por exemplo,
uma consulta num dentista) é comprado e pago pelo consumidor, a produção
é feita por um agente (a loja, no caso de um produto alimentar; o consultório
do dentista, no segundo caso), mas o financiamento da compra do bem ou
do fornecimento do serviço é feito pelo consumidor. Os mecanismos de
mercado, como se sabe, fazem essa distinção, típica de mecanismos de troca,
feita através de um preço que regula essa troca. No Quadro 4.1, a solução
de mercado é a situação em que a produção é privada e o financiamento é
também privado, mas feito pelos consumidores. O caso de auto-consumo (ser
o próprio consumidor a produzir o bem ou serviço que consome, típico das
actividades rurais, mas que ocorre também no caso de auto-locação, quando
há habitação em casa própria) é uma situação em que há produção privada,
realizada pelo próprio consumidor, que também suporta o custo.

Mas quando o Estado intervém, procurando que não sejam os mecanismos


de mercado a regular a satisfação das necessidades, opera-se uma alteração
nas combinações entre produção e financiamento realizada pelos agentes
que importa considerar nas suas diferentes modalidades. Uma delas é
aquela que corresponde ao fornecimento universal e gratuito, pelo Estado,
de bens e serviços à população (como acontece em muitos países com a
educação pública obrigatória e gratuita ou em vários países com serviço
nacional de saúde, universal e gratuito). Trata-se de um fornecimento aos
cidadãos, consumidores desses bens ou serviços, assente na produção
pública (por serviços públicos, Escolas, Hospitais, Centros de Saúde) e no
seu financiamento público (sendo o fornecimento gratuito, será o Estado que
suporta integralmente os custos do seu fornecimento).

105
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Temos assim duas situações que correspondem a soluções que podemos
considerar como soluções puras de mercado ou, alternativamente, como
1
Veja-se a fundamentação soluções públicas puras, de Estado. Recordemos o que noutro contexto1 foi
para a actuação pública em
pereirinha (2008a), quando há
analisado a propósito de argumentos contrários às soluções de mercado e
fracassos de mercado (capítulo que justificariam a intervenção do Estado. A justificação encontra-se quer em
5) e, em particular, quando há
informação assimétrica, com razões que se relacionam com as consequências sociais do funcionamento
grande relevância na protecção do mercado (em termos de eficiência e em termos de equidade), quer com
de riscos sociais (capítulo 6).
Revêem-se seguidamente, de as próprias características do mercado enquanto mecanismo de afectação de
forma sintética, algumas das recursos (fracassos de mercado). Vejamos algumas dessas razões (spicker,
justificações teóricas então
apresentadas. 1995:112-113).

O funcionamento do mercado assenta no exercício da liberdade de escolha,


pelos consumidores, dadas as preferências desses consumidores, o seu poder
aquisitivo dado pelo orçamento de que dispõem e dos preços dos bens e
serviços no mercado. A realização de direitos sociais através da sua produção
e fornecimento pelo mercado, através do preço (que faz, portanto, racair o
financiamento desse fornecimento no próprio consumidor) levanta algumas
consequências adversas para a garantia desses direitos. Por um lado, pode
acontecer (e esta é situação frequente) que haja procura para esses bens e
serviços (isto é, que haja pessoas interessadas na sua aquisição) mas essa
procura não ser solvente (isto é, quem está interessado na aquisição do
bem ou serviço não dispor de meios para o adquirir, isto é, financiar o seu
fornecimento). Em casos como este, de procura não solvente, pode justificar‑se
que outra entidade financie, total ou parcialmente, esse fornecimento. Essa
entidade pode ser o Estado. Mas pode também ser outro tipo de entidade (uma
Fundação, outro consumidor com maior poder de compra de comportamento
altruísta, etc). Pode haver razões suplementares para que, além dessas
entidades serem financiadoras do fornecimento, poderem ser também
produtoras. Mas este é assunto para ser visto e discutido mais adiante, e que
correspondem a soluções mistas assinaladas com ↑ e →.

Pode também acontecer que o consumo privado de um bem ou de um


serviço beneficie, em termos de bem-estar, não só o próprio consumidor,
mas também outras pessoas na sociedade, isto é, que haja externalidades
no consumo. Isto acontece em algumas áreas como a educação e a saúde.
Se alguém decide prolongar a sua escolaridade, não é apenas o próprio que
beneficia desse prolongamento. Também tiram disso partido as empresas
que encontram, no mercado de trabalho, alguém com mais formação para os
seus quadros. Também beneficia desse prolongamento toda a sociedade, que
conta com mais um seu elemento com um nível de instrução mais elevado. A
necessidade de internalizar tais externalidades pode recomendar que outras
entidades, as que também beneficiam desse consumo, contribuam para esse
financiamento, seja a empresa, seja a sociedade no seu conjunto: no último
caso, seria o Estado, em nome da sociedade.

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Também ocorrem frequentemente situações em que a sociedade (e os actores
políticos, com legitimidade para a representar nas opções políticas) consi-
dere que as preferências individuais não sejam as melhores, e considere que
alguns bens e serviços devam ser consumidos, ainda que não correspondam
às suas preferências. Isso significaria a obrigatoriedade de consumo imposta
aos cidadãos, o que acontece quando a realização de direitos sociais possa
estar em causa no caso de tal consumo não se realizar. São os chamados bens
de mérito, e estão neste caso a imposição de escolaridade obrigatória ou de
planos nacionais de vacinação. É de salientar, em particular, o fenómeno da
miopia, isto é, de preferências enganadoras face a situações de risco, o que
justificaria a imposição de seguro, como são os casos do seguro obrigatório
de acidentes, de segurança social obrigatória, etc. A imposição de consumo,
porque é feita em nome de benefícios para a sociedade no seu conjunto, pode
justificar a participação do Estado no seu financiamento. Isto é, as escolhas
sociais podem ser diferentes das escolhas individuais, o que justificaria este
papel do Estado. Mas também pode justificar que outras entidades o possam
fazer.
Os casos acima vistos não põem em causa o funcionamento do mercado
enquanto produtor. Aceitando-se esse papel do mercado, os argumentos
apresentados apontam no sentido de deslocar, para outros agentes que não
o consumidor, o seu papel de financiamento do fornecimento desse bem ou
serviço consumido. Isto significaria, no quadro 4.1, a deslocação na vertical
na coluna de “produção privada” (seria a situação ↑ c, assinalada no Quadro
4.1).

Mas o funcionamento do mercado em condições de eficiência exige, como


se sabe, a satisfação de um conjunto de condições que por vezes não se
verificam em relação a alguns bens e serviços, pela natureza desses bens
e serviços e pela forma como o mercado pode actuar para a sua produção.
São os designados fracassos de mercado, que podem exigir, por razões de
eficiência, outras soluções e, uma delas, é a produção por entidades públicas.
Assim se deslocaria a solução para a coluna “produção pública”. Um dos
argumentos para esse deslocamento tem a ver com a assimetria de informação
nos mercados, pela natureza do bem ou serviço transaccionado. Como se
sabe, uma das condições de produção eficiente pelo mercado é a existência de
informação perfeita sobre o bem e sobre os agentes intervenientes no mercado.
Por vezes ocorrem situações de imperfeição “a priori” da informação que
originam situações de selecção adversa quando, na actividade de provisão
de protecção de riscos, não for possível distinguir entre os riscos “bons” e
os riscos “maus” e, concomitantemente, diferenciar os prémios de seguro
entre esses riscos. Isto originaria uma produção não eficiente de serviços
de seguro, pela fixação de um prémio de valor médio que não reflectiria o
risco efectivo de cada situação concreta. No caso dos riscos maus (no caso
de seguro de saúde, quando se tratasse de população idosa, com doenças
crónicas, com deficiência), ocorreriam custos superiores aos que a entidade

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seguradora estaria preparada para suportar, podendo originar a sua exclusão.
Tornar-se-ia necessário, então, garantir a sua provisão através de soluções
de “pooling” obrigatório, com intervenção pública (por exemplo, através de
sistemas de segurança social). Outra forma de informação imperfeita, desta
vez “a posteriori”, ocorre em caso de risco moral, que diz respeito a situações
em que os agentes segurados conseguem controlar as situações contingentes,
podendo alterar a probabilidade de ocorrência do facto contingente e,
portanto, o risco (por exemplo, em caso de desemprego). Uma forma de evitar
risco moral em casos em que possam ocorrer, por exemplo na protecção ao
desemprego, a solução da intervenção do Estado como produtor de serviços
de seguro (segurança social pública) pode ser considerada a adequada, como
vimos anteriormente.

Outra razão para que a solução pública de produção seja preferível a


soluções privadas é a existência de economias de escala na produção de
alguns bens e serviços. Este é um argumento por vezes apresentado para a
existência de um Serviço Nacional de Saúde. Pode haver ganhos de eficiência
na produção de serviços de saúde ao nível nacional, pelas vantagens que
resultam na não duplicação desnecessária de serviços, ou por ganhos de
poder de monopsónio na aquisição de bens e serviços para o funcionamento
das unidades hospitalares. Pode também justificar-se a produção pública
quando for necessário garantir uma adequada distribuição geográfica dos
serviços, que poderá levar à decisão de localização da produção em locais
onde o mercado possa não ter interesse em fazê-lo e, portanto, comprometer
objectivos políticos de cobertura regional de serviços. Esta é uma justificação,
de novo, para um Serviço Nacional de Saúde.

Estes argumentos servem para justificar que haja produção pública de bens e
serviços, deslocando para essa coluna a origem do bem ou serviço produzido.
Mas há outras soluções em que, havendo diferentes combinações entre
produção e financiamento, e com agentes económicos distintos, importa
considerar como característica das economias mistas de bem-estar, ou de
welfare pluralism.

Uma delas é o Estado delegar no sector privado parte das responsabilidades


de produção, fazendo com o sector privado parcerias que garantam o seu
fornecimento pelo sector privado, ainda que o Estado mantenha parte ou a
totalidade do financiamento. São as soluções de parcerias publico-privadas
(PPP), que têm sido recentemente adoptadas em Portugal em vários sectores,
designadamente na área da Saúde (seria a situação → b, assinalada no
Quadro 4.1). Mas é também o que ocorre quando, usando de novo o exemplo
dos serviços de saúde, alguém recebe do Estado a comparticipação da
despesa em consultas ou medicamentos adquiridos ao sector privado (seria
a situação ↑ c, assinalada no Quadro 4.1). Mas pode haver, ainda seguindo

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o exemplo dos serviços de saúde, outro tipo de solução mista: o pagamento
de uma taxa moderadora nos serviços de saúde. Neste caso, o utente do
Serviço Nacional de Saúde paga parte do custo do serviço, comparticipando
em parte do financiamento desses serviços (seria a situação ↓ a, assinalada
no Quadro 4.1).

Outras situações, características do welfare pluralism, pode envolver agentes


de outra natureza: não são agentes do sector público (Estado), nem são agentes
do sector privado lucrativo (Mercado). São os agentes que genericamente
compõem o habitualmente designado Terceiro Sector. Comecemos por ver
qual a natureza destes agentes, onde se podem identificar diferentes categorias
na sua actividade de produção (spicker, 1995: 113-115) que englobam
várias formas consoante as características socio-culturais de cada sociedade,
e que se representam nas últimas colunas do Quadro 4.1.

Uma dessas categorias é o sector informal da sociedade, que engloba


uma enorme variedade de actores sociais que, não estando formalmente
organizados (não são empresas legalmente constituídas, não têm obrigações
fiscais), realizadas no seio das famílias, pelas famílias, amigos e vizinhos, nos
cuidados pessoais a idosos, crianças, pessoas doentes e a carecer de apoios
não fornecidos por outras entidades, públicas ou privadas, ou que o fazem
em primeira instância, em resultado da sua urgência e natureza especial
destes cuidados. A sua presença é uma característica muito importante do
perfil do sistema de welfare nos países da Europa do Sul e, em particular,
na sociededa portuguesa.

Outro conjunto de agentes constitui o sector voluntário, também de natureza


muito diversa, desde pequenas organizações de âmbito local até instituições
formalmente organizadas de âmbito nacional ou internacional, cobrindo
um conjunto muito amplo de actividades: saúde e reabilitação, educação,
organização cultural e de ocupação de tempos livres, trabalho comunitário,
etc. Contando com trabalho exercido com carácter voluntário, sem retribuição
monetária, estes agentes actuam muitas vezes complementarmente com
agências governamentais, tirando partido de vantagens que oferecem
relativamente a estas, pela melhor aceitação que poderão ter junto de grupos
carenciados ou marginais na sociedade.

Um grupo particular de trabalho voluntário é o que é exercido por ajuda


mútua ou solidariedade, onde se enquadram, em Portugal, as designadas
Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), responsáveis
pela provisão de grande parte das necessidades de valências de saúde e de
apoio à família, crianças e idosos. E também as associações mutualistas,
as fundações, cooperativas, misericórdias, etc. Pela sua importância em
Portugal, dedicaremos a estas instituições particular atenção mais adiante,
neste capítulo. É frequente o Estado contractualizar com o Terceiro Sector

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(instituições de solidariedade, as IPSS em Portugal) a produção de serviços
(cuidados pessoais, serviços de saúde e de educação, etc), com a garantia
de financiamento desses serviços (que corresponderia à situação → d do
Quadro 4.1). Muitas das actividades realizadas por este Sector contam com
a participação financeira do Estado, subsidiando as suas actividades (que
corresponderia à situação ↑ e do Quadro 4.1).

Estamos assim perante uma multiplicidade de actores sociais que intervêm


na provisão de bem-estar na sociedade. Observando o que atrás dissemos,
pode dizer-se que este conjunto de actores se enquadram em três categorias
distintas: o Estado (o conjunto de serviços públicos que produzem bens e
serviços), o Mercado (os agentes económicos privados, que actuam com
objectivos de lucro) e um Terceiro Sector, frequentemente assim designado
dadas as suas características de grande heterogeneidade, variáveis entre as
diferentes sociedades onde se encontram neste papel de provisão social de
bem-estar. A este Terceiro Sector dedicaremos especial atenção mais adiante.
É este “triângulo de bem-estar” que constitui o pluralismo providencial
(welfare pluralism) que caracteriza, na actualidade, a provisão social de
bem-estar nas economias modernas.

4.2 Os três sectores da política social: uma distinção conceptual

A existência de três sectores distintos na provisão do bem-estar exige que


dediquemos alguma atenção à sua caracterização (EVERS, 1990). Interessa
fazê-lo através da identificação de alguns princípios que caracterizam a sua
natureza e forma de funcionamento que possam ser relevantes para analisar
o seu distinto papel na provisão do bem-estar (Figura 4.1).
Trata-se de diferentes tipos de entidades que desempenham funções
económicas. São, de facto, organizações económicas, ainda que estejamos
a observar a sua função social na sociedade. Repare-se que se está a analisar
a provisão de bem-estar social, isto é, de garantia de direitos sociais, que se
traduz numa afectação desejada socialmente de recursos económicos a esses
direitos. É então como organizações económicas, enquanto exercem essas
funções, que iremos caracterizar estas organizações.

À luz do que foi dito, há três aspectos, ou dimensões de análise, que devemos
considerar na sua caracterização: i) os princípios de racionalidade económica
que os caracterizam; ii) os mecanismos de regulação económica que utilizam
nas suas funções; iii) os princípios constitutivos das organizações e das
suas formas de regulação económica. Vejamos cada um deles, procurando
interpretar as suas diferenças tendo em consideração os objectivos sociais
que têm em vista.

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Mercado Estado
(organizações privadas fins lucrativos) (organizações públicas)
· lucro · bem-estar social
· troca (mercadoria) · (re)distribuição
· anonimidade/escolha · cidadania/equidade

Terceiro Sector
(organizações privadas
não-lucrativas)
· micro-solidariedade
· reciprocidade
· pertença/membership

Figura 4.1 – Welfare Pluralism: o triângulo do bem-estar

São sectores distintos no que respeita aos princípios de racionalidade


económica que orientam a sua actuação. Vejamos o funcionamento das
instituições do mercado (as empresas). Estas organizações tomam decisões
relativamente à produção e, em alguns casos, relativamente ao preço dos
bens que produzem, visando obter um lucro o mais elevado possível. O
seu princípio de racionalidade económica é o da maximização do lucro.
São distintos os princípios de racionalidade económica das organizações
públicas, já que não vendem o que produzem, não sendo objectivo dos
serviços públicos produzir lucro, já que não faz sentido, para grande parte
destas organizações económicas, a obtenção de excedente (se lhes for afecta
uma dotação orçamental, pretende-se que ela seja utilizada, existindo controlo
sobre o seu uso) nem faz sentido algum a apropriação particular, ou pública,
de qualquer excedente que pudesse ser criado. Constitui, isso sim, objectivo
destas organizações, garantir o bem-estar social. Essa é a finalidade da sua
existência e da actividade económica que realiza. Vejamos, agora, quais
são os princípios de racionalidade económica das organizações do terceiro
sector. São organizações sem fins lucrativos, pelo que o seu objectivo não
é a maximização do lucro, o que não significa que estas organizações não
pretendam obter excedente económico, necessário para garantir o seu
funcionamento e a expansão da sua actividade. Mas não há apropriação
privada do excedente, pelo que o conceito de lucro e o objectivo da sua
maximização não fazem sentido para estas organizações. Também não visam
maximizar o bem-estar social, pois a sua vocação não é de natureza universal,

111
© Universidade Aberta
para a sociedade no seu todo. A sua contribuição para a realização de direitos
sociais assenta em práticas de micro-solidariedade, restrita a grupos, de
pequena ou média dimensão, mas não de âmbito universal.

São também sectores distintos no que respeita aos mecanismos de


regulação económica que utilizam nas suas funções económicas. No
caso do mercado, é através da troca que as organizações realizam as suas
funções económicas: adquirem os seus inputs nos mercados de factores e
vendem os seus outputs nos mercados de bens e serviços. Havendo direitos
de propriedade bem definidos, o mercado permite que, através da troca,
se transaccionem os direitos de propriedade sobre esses bens. Os bens
produzidos destinam-se a ser vendidos, trocados por moeda que corresponde
à contrapartida monetária, dada pelo consumidor, do bem ou serviço
fornecido pelo produtor/vendedor. Já é completamente distinto o
mecanismo de regulação económica no caso de organizações públicas.
Neste caso não há troca, e não é à troca que a sua produção se destina. Os
serviços públicos existem e funcionam para afectar recursos a finalidades
consideradas desejáveis socialmente, operando uma afectação desejada
socialmente de recursos económicos. O que os serviços públicos fazem é
redistribuição de recursos, tendo em vista finalidades sociais de garantia
de direitos sociais, segundo princípios de justiça ao garantir que cidadãos
em igualdade de circunstâncias sejam tratados de forma adequadamente
igual, independentemente dos recursos económicos que tiverem (equidade
horizontal). Mas o seu financiamento, assente no sistema fiscal, está
dissociado do fornecimento do bem ou serviço por essas organizações
públicas. O pagamento de impostos directos não está ligado (consignado)
à realização de algum acto de consumo em algum serviço público. Haverá
na sociedade cidadãos que pagam impostos e não usufruem do recurso a
serviços públicos; do mesmo modo haverá cidadãos que utilizam serviços
públicos e não pagam impostos. Também há, no sistema fiscal, preocupação
de equidade, fazendo contribuir proporcionalmente mais quem tiver mais
recursos (a equidade vertical própria dos sistemas fiscais progressivos). Ao
mecanismo da troca, característica das organizações de mercado, contrapõe-
se o mecanismo de redistribuição, próprio das organizações públicas. Nas
organizações do terceiro sector encontramos uma outra forma de regulação do
seu funcionamento: não é a troca, pois estas organizações não visam praticar
a exclusão assente no preço. Também não visam redistribuir recursos, pois
não têm alcance nem poder ou legitimidade para o fazerem, ao contrário
do Estado. O mecanismo regulador por excelência destas organizações e
do sector informal é o da “reciprocidade”, conceito usado por polanyi
(1944) para designar um dos princípios de comportamento não estritamente
associados com a economia (o outro princípio é o da “redistribuição”), que é
prévio ao princípio do mercado como mecanismo regulador das economias.
É um princípio que se aplica, em geral, a todas as interacções sociais e que

112
© Universidade Aberta
se traduz no facto de que “um favor dado requer um favor de retorno que é
socialmente sancionado e facilmente reconhecido como equivalente ao favor
inicial” (hamilton, 1965). Este mecanismo está francamente presente
nas relações familiares, de parentesco, de amizade e de vizinhança na forma
como recursos económicos são afectados, onde o mecanismo de troca não
está presente (não há relação mercantil), nem o mecanismo de redistribuição
opera (pois não há, nessas relações, nenhuma entidade que, em nome de
algum imperativo moral, tenha autoridade sancionatória na sociedade que
obrigue a transferências entre indivíduos para obter resultados sociais mais
justos).

Outra diferença entre estas organizações diz respeito aos distintos princípios
constitutivos que as caracterizam. Vejamos o que queremos significar. Nas
organizações de mercado impera o princípio da livre escolha do consumidor
e, em contrapartida, o produtor trata de forma anónima, não preferencial,
todos os consumidores, estritamente com base nos votos monetários que
estes lhes dirigem, para a realização da troca. Já nas organizações públicas
esses princípios são bem diferentes. Não há princípios de livre escolha na
essência do fornecimento individual do serviço prestado. Ele assenta, ao
invés, no princípio da equidade. Não existe livre escolha na procura de um
bem mas, antes, realização de equidade no exercício de um direito. Duas
lógicas bem distintas como princípios constitutivos destas organizações.
Também não vigora, nestas instituições, o princípio da anonimidade, como
nas organizações de mercado. Não é o voto monetário que determina o
fornecimento do bem ou do serviço, mas sim o respeito pela cidadania, cujo
direito é realizado por esse fornecimento. Nas organizações do terceiro sector
não estão presentes nenhum destes princípios. Antes se encontra presente,
como princípio constitutivo destas entidades, a noção de “pertença” ao grupo,
de que se é membro e desse facto beneficia em termos de bem-estar.

Vejamos exemplos de organizações económicas que se dirijam à realização de


direitos numa área particular: a saúde. Existem vários tipos de organizações
económicas que podem exercer, pela sua actividade económica, funções
de provisão de bem-estar nesta área. Admitamos que alguém adoece. Que
soluções encontra para este problema?

Uma solução é recorrer a um médico num consultório particular. É uma


organização de mercado, que funciona segundo princípios racionais de
maximização de lucro, cobrando um preço pelo serviço prestado. Esse preço
permite a este médico não prestar o serviço se souber que o doente não pode
pagar este preço: o preço é um instrumento de exclusão, que permite ao
mercado excluir dele quem procura o serviço e não tiver possibilidades de o
pagar. Mas, na área social, funciona também como instrumento de exclusão
do direito: quem não tiver possibilidade de pagar o preço não realiza o direito

113
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à saúde. Há aqui uma anonimidade na relação do doente com o mercado:
seja quem for o doente (o tipo ou grau de doença, a nacionalidade ou estatuto
social), é o seu voto monetário que conta.

Consideremos agora outra solução: recorrer a um Centro de Saúde.


Qualquer cidadão nacional o pode fazer, independentemente do seu estatuto
sócio‑económico. Não é cobrado nenhum preço. Se não tiver possibilidades
de pagar a taxa moderadora, fica isento do seu pagamento. Ao permitir o
acesso universal a este serviço público de Saúde, e ao fazê-lo de forma
gratuita, isto é, não usando o “preço” como mecanismo de exclusão, está
a respeitar-se a cidadania e um dos direitos sociais de cidadania: o direito
de acesso aos cuidados de saúde. Não existe nenhum mecanismo de troca
nesta relação entre o doente e os serviços públicos de saúde. O Orçamento de
Estado dota o Serviço Nacional de Saúde de recursos para o fazer funcionar
segundo estes princípios e, para que estes recursos existam, o Estado recorre
à fiscalidade, sendo os impostos não consignados a nenhuma despesa
particular. Isto significa que ninguém paga impostos a título de pagamento
dos serviços públicos (em particular de saúde) que consome: fá-lo segundo
uma lógica redistributiva, segundo princípios de equidade (equidade vertical
característica dos sistemas fiscais). Ninguém utiliza serviços de saúde
porque pagou impostos: fá-lo segundo uma lógica de necessidade, segundo
princípios de equidade horizontal em que pessoas com a mesma necessidade
de serviços de saúde tem direito à utilização dos mesmos recursos. Há assim
mecanismos redistributivos no funcionamento dos serviços públicos de saúde
e sua afectação aos utentes.

Mas existe ainda mais um conjunto de alternativas a que o doente pode


recorrer. Pode ser que algum familiar seja médico. Ou pode pedir a um
médico amigo que o vá observar. Também pode acontecer que o clube de
bairro a que pertence conte com a contribuição de um médico disponível
para visitar os membros do clube que adoeçam. Se alguma destas situações
ocorrer, estamos perante a actuação do Terceiro Sector, no sentido que
apresentámos acima. Não há mecanismos de troca a regular o fornecimento
deste serviço (não há o pagamento de uma consulta). Nem há mecanismos
de redistribuição presentes neste fornecimento (não existe nenhum processo
redistributivo a garantir o financiamento deste serviço nem a regular o seu
fornecimento). Existe um mecanismo de reciprocidade que permite, neste
caso, garantir o fornecimento deste serviço, assente na relação familiar, na
relação de amizade ou na relação de “pertença” ao grupo restrito (clube de
bairro) onde funcionam acções de solidariedade.

Veremos mais adiante (na secção 4 deste capítulo) as diferentes formas como
estes três sectores da política social actuam na provisão do bem-estar, e as
justificações teóricas que habitualmente se apresentam para estas formas de
actuação. Retomaremos, nessa altura, a leitura do Quadro 4.1.

114
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4.3 O terceiro-sector da política social: conceito(s) e dimensão
económica

Quando atrás nos referimos à existência de um Terceiro Sector da Política


Social (ou Terceiro Sistema, como é designado pela Comissão Europeia),
chamámos a atenção para a sua grande heterogeneidade em cada país
que estivermos a analisar, ilustrada pelos exemplos que nessa altura
apresentámos. Mas essa heterogeneidade aumenta se alargarmos a sua análise
ao quadro internacional. À diversidade de entidades que compõem este
sector acrescenta‑se uma variedade de concepções, suportada em heranças
culturais distintas, entre os diferentes países que dão até origem a diferentes
designações. Assim, encontramos o conceito de “economia social” (economie
sociale) na cultura francófona (França, Bélgica), o conceito de “sector
voluntário” (voluntary sector) no Reino Unido, e o sector das “organizações
sem fins lucrativos” (non-profit organisations) nos EUA. Vejamos cada um
destes sectores em particular, ainda que de forma sumária.

O conceito de “economia social” (economie sociale) aparece bem descrito


pelo Conselho Valónio (Bélgica) de Economia Social, criado em 1989, nos
seguintes termos: “A economia social compõe-se de actividades económicas
exercidas por sociedades, principalmente cooperativas, mutualidades e
associações cuja ética se traduz nos seguintes princípios: i) finalidade de
serviço aos membros ou à colectividade em vez do lucro; ii) autonomia de
gestão; iii) processo de decisão democrática; iv) primado das pessoas e do
trabalho sobre o capital na repartição dos rendimentos”. Trata-se de um sector
com características muito próprias, com expressão em outros países europeus,
além da Bélgica, como a França que cria, em 1981, um organismo designado
Delegação para a Economia Social e reconhece, em 1983, as Uniões de
Economia Social. Ou em Espanha, com a criação do Instituto Nacional de
Promoção da Economia Social e a publicação, em 1992, do Livro Branco
da Economia Social Espanhola.

A economia social tem as suas origens e fundamentos filosóficos no sec.


XIX e surge, pela palavra de Charles Gide, na Exposição Universal
da Economia Social de Paris, em 1900, como uma concepção nova, com
novos princípios e uma nova ética, dos comportamentos económicos nas
sociedades modernas, tendo em consideração as transformações que então
estão em curso, em particular nas relações salariais, defendendo a importância
da solidariedade nas relações sociais (reis, 2006:64-66). Tem a sua origem
nos pensadores utópicos do sec. xix, como Owen, Fourier, Saint-Simon e
Proudhon, que se vieram a traduzir em novas concepções de organizações
económicas, como as cooperativas e as mutualidades. Com Robert Owen, no
Reino Unido, é defendido um modelo social ideal fundado na organização dos
indivíduos em associações e pequenos grupos que contrariam o isolamento

115
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dos indivíduos permitem a libertação do homem. Já em França, com
Saint‑Simon, surge uma corrente de associativismo que vem desenvolver o
pensamento cooperativo e que vem originar novas formas (cooperativas) de
organização da produção (reis, 2006:56-63).

A existência, em alguns países europeus na actualidade (referimo-nos


especilmente a França, Bélgica, Espanha, Portugal, Itália, países de tradição
latina) de organizações como cooperativas (de produção, de consumo), de
mutualidades, de associações, é o resultado de uma evolução histórica que
remonta a esses tempos e onde se observam (de forma e graus diversos
conforme o tipo de instituições) os princípios éticos acima referidos.

A esta economia social “clássica”, cujas origens históricas e fundamentos


sociais acaba de ser exposto, contrapõe-se uma concepção moderna, de
criação política e expressão europeia e que corresponde ao que, para
a Comissão Europeia, é a noção de Terceiro Sistema. A realização da
Conferência “A Economia Cooperativa, Mutualista e Associativa” em 1986,
sob os auspícios do Comité Económico e Social, é considerado o ponto de
partida para a progressiva inclusão das organizações de economia social
como instrumento de actuação da política económica e social e que vem
originar a criação, em 1990, pela Comissão das Comunidades Europeias, de
uma unidade de Economia Social no âmbito da DG XXIII. Mais tarde, em
1997, a Comissão Europeia adopta o conceito de Terceiro Sistema, visando
integrar o conjunto das organizações que, tendo raiz cultural e organizacional
em alguns países europeus (cooperativas, fundações, associações), podem
ser postas ao serviço da promoção do emprego. A noção de Terceiro Sistema
surge com forma mais englobante e menos culturalmente conotada com a
realidade latina que se verifica apenas em parte dos países da União Europeia
(reis, 2006:74-78).

O “sector voluntário” (voluntary sector) é um conceito relativamente recente


para designar várias entidades que, no Reino Unido, desenvolvem múltiplas
actividades sociais e que se confundem com as mais tradicionais designações
de: i) “charities” (com origens históricas que remantam à legislação de 1601,
com objectivos assistenciais e actualmente também no sector da educação);
ii) “sector comunitário” (pequenos grupos que actuam ao nível local, não
estando necessariamente organizadas em termos formais); iii) “voluntários”
(sector privado não lucrativo englobando a actuação voluntária, que envolve
actualmente um número muito significativo de pessoas) (deakin, 1998).

O sector das “organizações sem fins lucrativos” (non-profit organisations)


é um conjunto muito vasto de instituições que, existindo por todo o
mundo, englobam “hospitais, universidades, clubes sociais e desportivos,
organizações profissionais, centros de dia, grupos ambientalistas, agências
de aconselhamento familiar, centros de formação profissional, organizações

116
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de direitos humanos e muitas outras” e que reúnem um conjunto de
características: em particular “são i) organizações, isto é, têm presença e
estrutura institucional; ii) privadas, isto é, estão institucionalmente separadas
do Estado; iii) não distribuem lucros, isto é, não repartem lucros aos seus
gestores ou proprietários; iii) são autónomas, isto é, controlam a sua própria
actividade; iv) voluntárias, isto é, não é legalmente requerido a quem nelas
trabalha que sejam membros dessas entidades, contando com contribuições
voluntárias para o seu funcionamento, quer em tempo quer em dinheiro”
(salamon et al., 1999:3-4).

Este conjunto de entidades assume um conjunto muito variado de formas


e funções nos vários países do Mundo, e a sua análise constitui objecto de
estudo comparativo na Universidade Johns Hopkins que na fase (período
1994-99) que originou o estudo que se cita neste capítulo (salamon, et
al., 1999), envolveu 22 países (da Europa Ocidental, Central e Oriental,
outros países desenvolvidos e América Latina), e em que participaram 150
investigadores. Alguns resultados desse estudo permitem concluir sobre:
i) a importante dimensão económica deste sector em termos de Valor
Acrescentado (se a totalidade das entidades analisadas para o conjunto dos
22 países fosse considerada, o valor total das suas despesas anuais teriam um
valor idêntico ao PIB da Itália ou do Reino Unido); ii) volume de emprego
muito significativo, quer de emprego remunerado quer de trabalhadores
voluntários, representando no total cerca de 10% do emprego nos países
ocidentais; iii) apresenta uma expressão maior nos países mais desenvolvidos
em comparação com o Terceiro Mundo, revelando diferenças, entre os países
desenvolvidos, no seu peso na economia: representa, a título de exemplo,
12,6% do emprego remunerado na Holanda, 10,5% na Bélgica e cerca 7,8%
nos EUA e apenas, também a título de exemplo, 3,7 % na Argentina, 2,2% no
Brasil e 0,4% no México; iv) predominam, na sua actividade, os serviços de
provisão de bem-estar, mas com diferenças entre países: os serviços sociais
predominam nos países continentais da Europa, enquanto os serviços de
cultura e recreio predominam nos países do leste europeu; v) a maior parte
das receitas não são da filantropia mas, antes, provenientes do sector público
(em 40%) e da venda de serviços produzidos (49% das receitas); vi) revelam
um grande crescimento do emprego (salamon et al., 1999).

4.4 Justificações para a actuação do Terceiro Sector

Compreendido porque nos referimos à existência de três sectores de Política


Social, devemos agora prestar alguma atenção às razões que explicam a
actuação do Terceiro Sector e como se articula com o Estado na provisão do
bem-estar. Vamos centrar a nossa atenção sobre o sector das “organizações

117
© Universidade Aberta
não-lucrativas” e descrever brevemente como a teoria económica explica a
sua existência nas economias modernas.

As organizações não-lucrativas são instituições económicas com natureza


híbrida, combinando algumas características das organizações com fins
lucrativos com algumas características próprias das administrações públicas.
À semelhança das organizações com fins lucrativos, as suas decisões
económicas são tomadas segundo critérios de racionalidade económica, por
lógicas inerentes à sua participação no mercado, e não segundo processos
políticos de decisão, como acontece nos serviços públicos. De igual modo,
contam também (ainda que não exclusivamente) com receitas provenientes
da venda da produção, não obtendo receitas da tributação para financiarem
a sua actividade como sucede com as administrações públicas. Têm em
comum com as organizações públicas o facto de contarem (ainda que não
exclusivamente) com a participação do Estado no financiamento das suas
actividades (subsídios, isenções fiscais), isto é, o seu financiamento assenta
também em critérios de natureza política. Além dos subsídios do Estado e
das receitas da venda da produção, estas organizações contam também com
donativos de particulares (pessoas singulares ou empresas). Têm de diferente,
relativamente às organizações com fins lucrativos, o facto de não haver
apropriação privada do excedente, sob a forma de lucro. É esta característica,
a “restrição de não-distribuição” (non-distribution constraint) que confere,
a estas organizações, a designação “sem fins lucrativos”.

A perspectiva clássica de explicação do papel destas organizações na vida


económica das sociedades modernas assenta na ideia de que estas organizações,
dada esta natureza híbrida, permite resolver alguns problemas decorrentes dos
2
Ver, a este respeito, pereiri- fracassos de mercado2 (por serem organizações que, participando no mercado,
nha (2008a), capítulo 5..
não seguem princípios de racionalidade caracterizados pelo objectivo de
maximização do lucro) e igualmente resolvem problemas decorrentes
da existência de fracassos do Estado, (porque não são organizações
governamentais, seguindo princípios não-políticos de racionalidade na
afectação de recursos), que adiante explicaremos.

Uma das teorias clássicas, que se enquadra nesta perspectiva explicativa, é


devida a weisbrod (1988), que sustenta que estas organizações permitem
satisfazer a procura de bens públicos que não puderem ser satisfeitas através
da provisão pública, o que constituiria um fracasso do Estado. A justificação
para este fracasso assenta no conhecido teorema do votante mediano. Este
teorema constitui um importante resultado da teoria económica da política,
sobre a solução de um sistema político, na afectação de recursos à produção
de bens públicos, com decisores políticos racionais. Numa sociedade
moderna de democracia representativa, pode admitir-se que os partidos
políticos tenham comportamento racional de maximização de votos, sendo
cada um dos cidadãos eleitores agentes racionais que procuram maximizar

118
© Universidade Aberta
a sua utilidade. Admitindo que as preferências dos eleitores tem um único
valor máximo (isto é, exista para cada eleitor um e um só valor de despesa
em bens públicos à qual esse eleitor confira um valor ordinal máximo), o
teorema do votante mediano diz-nos que, nestas condições, num processo de
decisão por maioria de votos, a política mais preferida, e que será portanto
a decidida, será aquela que é a mais preferida pelo votante mediano, isto
é, aquele que, numa ordenação dos cidadãos por ordem crescente do nível
mais preferido de despesa em bens públicos, fizer uma partição 50%/50%
do conjunto dos eleitores. Uma das implicações deste teorema é que, a fim
de obter a maioria dos votos, os políticos deverão identificar as preferências
deste votante mediano, orientando as medidas de política para estas
preferências. No caso de a sociedade ser heterogénea, com diversidade de
grupos sociais com preferências muito diversas (por exemplo, uma sociedade
com diversidade de grupos étnicos), poderão alguns grupos enfrentar a não
satisfação das suas preferências. Esta diversidade de procura constitui um
factor de surgimento, na sociedade, de instituições direccionadas para a
satisfação destas necessidades. Encontramos, nos EUA, uma verificação
deste teorema, onde a diversidade étnica, cultural e religiosa encontra, como
resposta à correspondente diversidade de tipos de procura não satisfeitas pelos
poderes públicos, respostas organizativas em múltiplas organizações sem fins
lucrativos. Ou, nas sociedades europeias (designadamente em Portugal), a
existência de preferências localmente definidas constitui um factor indutor
de formas organizativas de natureza voluntária (associações de moradores,
centros de dia paroquiais, etc) dirigidos às necessidades das populações.

Outra teoria bastante vulgarizada que justifica a existência de organizações


não lucrativas deve-se a hansmann (1987), sustentando que estas
organizações existem porque permitem resolver fracassos de mercado que
se verificariam, em certas circunstâncias e tipos de serviços, caso a sua
oferta fosse feita por organizações com fins lucrativos. Estas situações são
frequentes nos serviços de cuidados pessoais, creches, centros de dia e lares
de idosos, e dizem respeito à existência de assimetria de informação sobre
a entidade fornecedora do serviço. Nestes serviços, quando fornecidos
por entidades privadas com fins lucrativos, estas entidades produtoras
dispõem frequentemente de muito mais informação do que os utentes sobre
as caraterísticas do serviço prestado, sendo portanto muito difícil a estes
utentes controlar a qualidade dos serviços prestados. Por esse facto, as
entidades privadas com fins lucrativos têm, nesta assimetria de informação,
incentivo para tirar partido desta assimetria para aumentar os lucros. Pode
então considerar-se que, no caso de estas entidades não terem objectivos de
distribuição de lucros, este facto (restrição de não-distribuição) torna estas
entidades mais credíveis. Assim se justificaria a procura de serviços, como
os que foram exemplificadamente referidos, fornecidos por entidades sem
fins lucrativos.

119
© Universidade Aberta
Outra explicação para a existência de instituições sem fins lucrativos na
provisão do bem-estar assenta também na existência de outra forma de
fracasso do Estado: a imperfeição da informação que o Estado tem sobre a
disposição dos cidadãos para pagar (willingness to pay) pelo fornecimento de
bens públicos. No caso de bens privados fornecidos por entidades com fins
lucrativos, o consumidor atingirá o seu óptimo quando, dado um certo preço,
adquirir um bem na quantidade em que o benefício marginal (o benefício
obtido na última unidade consumida, cujo valor monetário é quanto está
disposto a pagar por essa unidade) igualar o custo marginal (o custo da última
unidade consumida) que, sendo os consumidores price-takers, iguala o preço.
Mas no caso da provisão pública, não existindo preço nem mecanismos
de mercado para regular a afectação de recursos através da troca, falta um
instrumento de avaliação dessa disposição para pagar que o mercado, pelo
preço e mecanismos de troca, revela. Sendo o serviço fornecido por uma
agência governamental, o equivalente preço(político)-imposto (ou preço
de Lindhal, como é conhecido na literatura) seria o valor do imposto que
igualaria este pseudo-preço do benefício marginal. Mas este pseudo-preço,
ou preço-imposto, não consegue ser conhecido de forma individualizável
entre os vários consumidores/cidadãos. O que o Estado faz é determinar
politicamente a quantidade e a qualidade da produção a realizar do bem ou
serviço público (frequentemente segundo princípios de equidade horizontal)
e criar um sistema fiscal segundo regras orçamentais decididas politicamente
(frequentemente segundo princípios de equidade vertical). Assim, para
alguns consumidores/cidadãos a quantidade e qualidade da produção pública
excede o que estes consumidores/cidadãos procuram (desejam consumir) aos
preços-impostos que defrontam, enquanto que para outros essa quantidade
e qualidade é inferior a essa procura. Haverá assim cidadãos insatisfeitos,
por excesso ou por defeito. Criam-se assim condições para, alternativamente
à provisão pública, essa provisão ser privada, por organizações sem fins
lucrativos que permitam igualar o preço à possibilidade de pagar dos seus
utentes.

4.5 O terceiro sector em Portugal

Tal como acontece na generalidade dos países da União Europeia, o Terceiro


Sector, ou sector da Economia Social em Portugal é uma realidade heterogénea,
bastante antiga (prévia à constituição moderna do Estado‑providência) e com
importância significativa na provisão do bem-estar, quer pela dimensão que
tem, pelas funções sociais que realiza e pelas formas de articulação que
apresentam com as funções sociais do Estado.

120
© Universidade Aberta
São muito antigas as primeiras formas de organizações de economia social
em Portugal, com origem em instituições de caridade medievais do séc. XII
(confrarias, corporações de mesteres) e com a criação das Misericórdias no
séc. XV, sob a égide da Igreja Católica. É no sec. XIX, com o desenvolvimento
da indústria e comércio e o crescimento urbano, que surgem as Associações
de Socorros Mútuos que, tendo sido instituições de seguro voluntário e
associativo de riscos sociais, são o embrião das primeiras formas de protecção
social em Portugal. Estas associações vão perdendo importância à medida que
a previdência social, sob a égide do Estado-Novo, vai ganhando expressão
na protecção contra os riscos sociais clássicos.

Após a Revolução de 25 de Abril de 1974, as movimentações populares


de defesa dos interesses das populações ganha forma e peso significativo,
como formas de manifestação activa da sociedade civil. Com a Constituição
da República Portuguesa de 1976 foi reconhecido o papel das instituições
particulares de solidariedade social, cujo estatuto foi aprovado em 1979
(Decreto-Lei nº 518-G2/79, de 29 de Dezembro), revista em 1983 (Decreto‑Lei
nº 119/83, de 25 de Fevereiro), alargando o seu âmbito de actuação à acção
social, saúde, educação, formação profissional, habitação.

O recente estudo de franco et al. (2005), inserido no âmbito do


Comparative Nonprofit Sector Project da Univeridade Johns Hopkins,
permite conhecer esta realidade em Portugal numa base comparativa ao
nível mundial. De acordo com este estudo, e tendo em vista esta análise
comparativa, o sector não lucrativo em Portugal compreende as seguintes
modalidades institucionais: i) associações, constituídas por iniciativa de
cidadãos, assumindo nalguns casos o estatuto de Utilidade Pública: associações
de consumidores, associações de estudantes, associações de defesa do
consumidor e de defesa do ambiente, associações de bombeiros voluntários,
etc.; ii) fundações, como forma institucional mais recente, reconhecidas só
após a aprovação do Código Civil de 1867, estando actualmente registadas
cerca de 350 instituições; iii) misericórdias, organizações afiliadas na Igreja
Católica e regidas pelo Direito Civil e pelo Direito Canónico, a primeira das
quais (de Lisboa) foi criada em 1498. Têm objectivos assistenciais, e estão
organizadas na União das Misericórdias Portuguesas que engloba as cerca
de 400 instituições actualmente existentes; iv) associações mutualistas, de
solidariedade social, organizadas sob a forma de estatuto de Instituições
Privadas de Solidariedade Social (IPSS), que se destinam a prover assistência
mútua aos seus membros e famílias: v) cooperativas, de produção ou de
consumo, que se regem pelo Código Cooperativo; vi) museus que, embora
muitos deles sejam instituições públicas, estão legalmente reconhecidos
como instituições sem fins lucrativos: vii) organizações de desenvolvimento
local, que actuam principalmente nas zonas rurais e destinadas a apoiar e
promover o desenvolvimento local das populações; viii) organizações não

121
© Universidade Aberta
governamentais, com actividade nos domínios culturais, ambientais, sociais,
cívico, etc., quer no âmbito nacional quer internacional.

Alguns resultados muito interessantes e actuais deste estudo permitem aos


autores concluir sobre a dimensão económica deste sector em Portugal, com
referência ao ano de 2002: i) o valor da despesa total destas instituições
representa cerca de 4,2% do PIB; ii) emprega cerca de 160,000 trabalhadores
a tempo inteiro e cerca de 67,000 como voluntários, o que representa cerca
de 4,2% da população activa; iii) na composição das suas receitas, cerca de
50% provêm da venda de bens e serviços, 40% de transferências do Estado
e apenas em 12% as receitas de filantropia. A este respeito, são na área da
Saúde e na da Educação que se encontram as instituições em que as fontes
de financiamento Estatal são dominantes.

Leituras complementares

Há uma literatura muito rica sobre o welfare pluralism e, em particular,


sobre o sector da economia social, ou terceiro sector. Apenas se indicam
algumas referências que, sem pretenderem abranger toda esta realidade,
complementem o texto deste capítulo. Assim, aconselha-se a obra já algumas
vezes referenciada sobre Política Social e que, de forma genérica, enquadra os
vários sectors que fazem provisão de bem-estar nas sociedades modernas:

• spicker, p. (1995), Social Policy: themes and approaches. Prentice


Hall. Capítulo 8 (“Delivering Welfare”), pp. 109-121.

Aconselha-se a consulta dos documentos sobre o Projecto do Sector Não-


-Lucrativo da Universidade Johns Hopkins e o seguinte texto que sintetiza
alguns dos seus principais resultados:

• salamon, l. et al. (1999), Global Civil Society: dimensions of


the Nonprofit Sector. The Johns Hopkins Center for Civil Society
Studies, Baltimore.

O Sector Não-Lucrativo em Portugal só recentemente foi estudado no âmbito


deste Projecto da Universidade Johns Hopkins, pelo que é fundamental ler
o relatório da equipa responsável pelo seu estudo:

• franco, r., sokolowski, s., hairel, e., salamon, l.


(2005), The Portuguese Nonprofit Sector in Comparative Perspective.
Universidade Católica Portuguesa e Johns Hopkins University.

122
© Universidade Aberta
O Terceiro Sector, ou Sector da Economia Social, tem sido objecto de estudo
em Portugal no âmbito da investigação para doutoramento. Estão publicadas
duas teses de doutoramento em Economia sobre este sector da Política Social,
cuja consulta se recomenda:

• Coutinho, M. (2003), Economia Social em Portugal: a emergência


do Terceiro Sector na Política Social.CPIHTS e APSS, Lisboa

• reis, m. (2006), Economia Social face às questões do emprego:


a função reguladora do Terceiro Sector no domínio da política
económica e social. Fundação Bissaya Barreto, Coimbra

Existe muita informação sobre a actividade do terceiro sector que está


acessível através da consulta de sites da Internet. Recomenda-se a consulta de
alguns que seleccionámos tendo, como preocupação principal, a de abranger
várias concepções, de origem francófona (economie sociale) e anglo-saxónica
(non-profit organizations, voluntary sector).

• econosoc (Le Carrefour de l´economie sociale) é um portal


dedicado à economia social e ao sector associativo belga:

http://www.econosoc.org/

• arnova (Association for Research on Nonprofit Organizations and


Voluntary Action) é uma organização americana (USA – Los Angeles)
que se dedica à investigação do sector não lucrativo, filantropia e
trabalho voluntário:

http://www.arnova.org/

• ciriec (Centre International de Recherches et d’Information sur


l’Economie Publique, Sociale et Coopérative) é uma organização
científica internacional, não governamental, sediada na Universidade
de Liége (Belgica) que tem por objectivo a recolha de informação,
investigação científica e publicação de trabalhos sobre os sectores
económicos e actividades orientadas para o serviço do interesse
colectivo em vários domínios, em particular da economia social,
cooperativas, mutuas e associações sem fins lucrativos.

http://www.ulg.ac.be/ciriec/

• conecs (database for Consultation, the European Commission and


Civil Society) é uma boa fonte de informação sobre organizações sem
fins lucrativos ao nível europeu. Trata-se de informação organizada
numa base voluntária, não responsabilizando a Comissão:

http://europa.eu.int/comm/civil_society/coneccs/index_en.htm

123
© Universidade Aberta
• Um site onde pode encontrar o Discussion Paper "The Commission
and NGOs : building a stronger partnership” on 18 January 2000
(COM (2000) 11) e os comentários recebidos:

http://europa.eu.int/comm/secretariat_general/sgc/ong/index_en.htm

• O actual estatuto do Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo


- Inscoop é de 1990 (Decreto-Lei nº.63/90 de 20 de Fevereiro)
e apresenta o Inscoop como “um instituto público que tem por
objectivo apoiar o sector cooperativo em geral, tendo em conta a
sua especificidade própria.” (artigo 1º do Estatuto).

http://www.inscoop.pt/

• The Johns Hopkins Institute for Policy Studies (IPS) faz parte da
Johns Hopkins University, dedicando-se à investigação do non-profit
sector:

http://www.jhu.edu/~ips/research/nonprofit/nonprofit.htm

e aconselha-se uma visita às publicações do Center for Civil Society


Studies:

http://www.jhu.edu/%7Eccss/pubs/

e, em particular, a consulta de um livro muito interessante de Lester


Salamon et al. sobre o Projecto de Estudo Comparativo do Sector
Não Lucrativo da Universidade Johns Hopkins:

http://www.jhu.edu/~ccss/pubs/pdf/spanishgcs.pdf

Palavras-chave

Os alunos deverão redigir, a partir da consulta de obras de referência,


um parágrafo com o significado, em termos sintéticos, de cada um destes
conceitos:

welfare pluralism
welfare mix
Terceiro Sector
Economia Social
sector não lucrativo (non profit organisations)
sector voluntário

124
© Universidade Aberta
Questões para revisão e reflexão

1. Procure interpretar, tendo em consideração a diversidade de princípios que


enformam cada um dos três sectores da Política Social, medidas de reforma
do Estado-providência que alterem o papel do Estado e reforcem o do sector
privado lucrativo e/ou não lucrativo, nesse papel.

2. Porque é que encontramos uma tão grande variedade de designações


para o conjunto dos actores sociais com responsabilidade na provisão do
bem‑estar que não são nem Estado (organizações governamentais) nem
Mercado (organizações privadas com fins lucrativos)?

3. Considere o direito à educação tal como se encontra estabelecido na


Constituição da República Portuguesa. Identifique: a) o conjunto dos actores
sociais que intervêm na provisão de serviços direccionados à realização
desse direito, tendo em consideração a distinta natureza destes actores à
luz do designado “triângulo de bem-estar” que actualmente caracteriza os
modernos Estados-providência; b) possíveis explicações para a existência
desta diversidade, tendo em consideração as teorias conhecidas para justificar
a sua actuação na provisão de bem-estar; c) as relações que se estabelecem
entre estes actores sociais na garantia deste direito.

125
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Página intencionalmente em branco

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5. Economia das Pensões

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Página intencionalmente em branco

© Universidade Aberta
Sumário

5.1 Função e natureza dos sistemas de pensões

5.2 Sistemas de pensões de repartição e de capitalização

5.3 Funcionamento agregado de sistemas de pensões

5.4 Mecanismos de garantia de recursos (ou de rendimento mínimo)

5.5 Sistemas de pensões, crise e reformas

Leituras complementares

Palavras-chave

Questões para revisão e reflexão

129
© Universidade Aberta
Objectivos

• Que os leitores conheçam a natureza dos diferentes sistemas de


pensões, percebendo a diferença entre sistemas de capitalização e de
repartição, identificando para cada um deles quais são as variáveis
críticas de que depende a sua sustentabilidade económica;

• Que os leitores percebam quais as principais zonas de conflitualidade


de objectivos que se colocam relativamente às políticas “means‑tested”
dirigidas à pobreza, quando os seus destinatários são população activa,
políticas de rendimento mínimo, especialmente quando conflituam
objectivos de equidade e de eficiência;

• Que os leitores disponham de informação actualizada sobre os


principais problemas que se colocam aos sistemas de protecção social
nos países da União Europeia, bem como as principais reformas dos
sistemas que têm vindo a ser realizados na União Europeia.

130
© Universidade Aberta
Vimos nos capítulos anteriores que a protecção contra riscos sociais é um
dos objectivos fundamentais da Política Social, constituindo uma forma
de actuação dos Estados-providência que visa garantir direitos sociais e,
portanto, o bem-estar social. Entre os riscos sociais cobertos, aquele que nos
países da União Europeia absorve uma parte mais significativa da despesa
em protecção social, cerca de 46%, é a protecção do risco de velhice. Trata-
-se do risco de perda de rendimento pelo facto de se atingir uma idade a
partir da qual não se exerce actividade económica e, portanto, não se obtém
rendimento primário. A existência de pensões de reforma constitui uma
resposta de Política Social e que, nas condições previstas nos diferentes
países, e segundo diferentes modalidades, garante rendimento de substituição.
Desta forma, assegura-se que, perante a ocorrência do risco de perda de
rendimento, haja a garantia de um rendimento. É deste assunto que vamos
tratar neste capítulo. Vamos analisar como funcionam os sistemas de pensões,
distinguindo diferentes modalidades de intervenção e diferentes formas de
obter o financiamento para esta garantia de rendimento. Vamos também
analisar como é que a sociedade o consegue assegurar ou, de outro modo,
que factores podem estar presentes, nas sociedades actuais, que possam por
em causa essa garantia. Veremos também quais as reformas que têm vindo
a ser feitas nos países da União Europeia em resposta a estes desafios de
“sustentabilidade económica” das pensões.

5.1 Função e natureza dos sistemas de pensões

Os sistemas de protecção social destinam-se a garantir a regularidade do fluxo


de rendimento ao longo da vida, protegendo este fluxo regular de rendimento
contra o risco de acontecimentos contingentes que o possam perturbar, como o
desemprego, a doença, a invalidez ou a velhice. Quando algum destes eventos
ocorre, os sistemas de protecção social garantem rendimento de substituição,
não perturbando o fluxo regular de rendimento ou, se tal ocorrer, para que
tenha um efeito menor nessa regularidade.

Vamos centrar a atenção nas pensões de velhice que, como já dissemos,


são as que têm maior peso nas despesas de protecção social nos países da
União Europeia, onde se observa grande diversidade de importância relativa
e lógica de funcionamento, quer pela forma como os recursos económicos
são garantidos para substituir rendimentos, quer na forma como o seu
financiamento é efectuado. Veja-se de novo, a este respeito, o Quadro 2.1
do capítulo 2.

Vejamos em que consiste o funcionamento dos sistemas de pensões de


velhice. Trata-se de garantir a transferência de recursos de um estádio da vida

131
© Universidade Aberta
dos cidadãos, em que estes obtém rendimento da sua actividade económica,
para um estádio posterior (idade mais avançada), em que não têm actividade
económica e, portanto, não auferem rendimento primário.

Esta transferência de rendimento pode ser feita de forma voluntária e


individual, através da poupança que os agentes formem quando obtém
rendimento primário, acumulando fundos e fazendo aplicações financeiras,
cujo capital acumulado e/ou rendimento utilizem quando chegarem à fase
da sua vida em que não obtém rendimento primário. Mas pode também ser
feita de forma obrigatória através de sistemas de protecção social em que
o trabalhador, ao longo da sua vida activa, seja obrigado a descontar uma
parte do seu salário para vir a obter rendimento depois de terminar a sua
carreira profissional. Estaríamos então num sistema de protecção social do
tipo “capitalização”.

Relativamente ao sistema de capitalização (funded), em que as contribuições


da população trabalhadora são utilizadas na compra de activos financeiros
e as pensões são financiadas pelo rendimento do capital, há ainda que
distinguir duas modalidades. Uma delas é a que assume a forma de planos de
capitalização de “contribuição definida” (funded defined contribution plans),
como acontece nos EUA e em vários países da América Latina (Argentina,
Chile e México) e Austrália. Nesta modalidade de protecção social, seguidos
pela maior parte dos planos privados de pensões, os trabalhadores têm
contas particulares de poupança para as quais contribuem com entregas
periódicas bem como, nos casos em que tal esteja previsto, as entidades
empregadoras.

Outra modalidade consiste em planos de capitalização de “benefício


definido” (funded defined benefit plans), que são característica dos planos
de poupança em que as empresas acumulam fundos de pensões, legalmente
separados dos activos das empresas, e pagam benefícios aos trabalhadores
de acordo com regras que reflectem o número de anos que cada um desses
trabalhadores esteve a trabalhar na empresa e o seu nível salarial nos anos
que precederam a reforma. Nestes planos de reforma, e por essa razão se
designam por “benefício definido”, as regras de cálculo da pensão de reforma
de cada trabalhador determinam o seu valor de forma independente do valor
acumulado no fundo de pensões pela empresa onde trabalha e do rendimento
desse activo acumulado, sendo a empresa responsável pelo pagamento desse
benefício. Deste modo, a empresa deve fazer uma boa gestão dos fundos
de pensões para que possam garantir os compromissos assumidos. É uma
modalidade seguida por algumas empresas e, também, em muitos sistemas
de pensões do Estado nos EUA.

Outra modalidade de planos de pensões é a que se designa de “repartição”,


“pay-as-you-go” (PAYG), ou “unfunded”. Neste sistema, a população

132
© Universidade Aberta
trabalhadora desconta para o sistema de protecção social montantes que
correspondem a uma percentagem fixada do seu salário. Este valor pago
regularmente pelos trabalhadores vai permitir ao sistema de protecção
social pagar, também regularmente, as pensões de reforma, segundo regras
estabelecidas. Existe assim uma transferência de rendimento a partir de uma
geração de população que trabalha, tem rendimento salarial e desconta para
o sistema de protecção social, para outra geração, de pessoas que já não
trabalham por terem atingido a idade da reforma. Não há assim uma lógica
de acumulação e capitalização de fundos que permita a transferência “intra-
-individual” de recursos ao longo do ciclo de vida do trabalhador mas, antes,
uma lógica de transferência “inter-individual” de rendimento entre pessoas
que se situam em fases diferentes do seu ciclo de vida, isto é, pertencentes
a diferentes gerações.

Quer nos sistemas de protecção social que sigam a modalidade de planos


de capitalização (de contribuição definida ou de benefício definido), quer
nos sistemas que sigam a modalidade de planos de repartição (ou PAYG), o
papel destes sistemas de pensões é de seguro. Trata-se de objectivo de seguro
que está presente nestes sistemas de pensões. Isto é, há uma contribuição
que o trabalhador e a entidade patronal efectuam para um fundo e, em
função dessa contribuição (porque contribuíram, pelo tempo durante o qual
contribuíram, pelo valor do salário sobre o qual foi calculado o valor dessa
contribuição), obterão um rendimento de substituição. Isto é, a um prémio de
seguro (contribuição para o sistema) corresponde a indemnização (pensão de
reforma) pela ocorrência do evento (longevidade para além da idade activa)
causador da perda correspondente (não receber salário). É a este tipo de
protecção social que dedicaremos especial atenção neste capítulo

Mas podem existir outras lógicas, que não de seguro, de garantia de


rendimento no caso de, por motivo de idade, este não poder ser obtido pela
actividade económica. Em alguns sistemas de protecção social, como sucede
em Portugal, existem lógicas não contributivas (isto é, não atribuídas a
quem previamente contribuiu financeiramente para o sistema) para atribuir
rendimento nestas condições: é o caso da pensão social, atribuída em caso
de carência económica a quem não contribuiu para o sistema de protecção
social (daí designar-se por “regime não contributivo” ou “de solidariedade”).
Não se trata de uma lógica de seguro mas uma lógica de solidariedade social,
visando objectivo de redução da pobreza.

Outro exemplo de actuação visando este objectivo é a garantia de uma


pensão mínima, de que é também exemplo o sistema de protecção social em
Portugal. Aos beneficiários do sistema de protecção social é garantido um
complemento de pensão quando o valor da pensão estatutária (isto é, o valor
obtido pela fórmula de cálculo que a relaciona com a carreira contributiva

133
© Universidade Aberta
e com o salário no fim de carreira) for inferior ao valor considerado como
mínimo pela legislação nacional. Este rendimento diferencial (complemento
de pensão) é atribuído segundo uma lógica de solidariedade, visando reduzir
a intensidade da pobreza para estes beneficiários do sistema. O financiamento
deste complemento de pensão assenta na fiscalidade (é de solidariedade geral
que se trata) e não na contribuição calculada como percentagem do salário
ganho. Pode afirmar-se também que há, neste caso, objectivo de redistribuição
do rendimento, já que actua sobre a distribuição do rendimento, diminuindo
a desigualdade da sua distribuição.

A impossibilidade de obtenção de rendimento primário em resultado da


longevidade origina, assim, a necessidade de existência de sistemas de
pensões. Como vimos, estes sistemas podem ter objectivos de seguro, de
redução da pobreza ou de redução da desigualdade do rendimento. Enquanto
relativamente ao primeiro destes objectivos a lógica própria da sua actuação
é de natureza contributiva, financiada pelo rendimento do trabalho e de
montante relacionado com esse rendimento, nos outros casos a sua lógica é
não contributiva, financiada pela tributação geral, de montante relacionado
com objectivos de redistribuição ou de diminuição de deficits de rendimento.
É relativamente à primeira destas formas de actuação que dedicaremos
a nossa atenção nas secções seguintes, sendo relativamente a ela que se
colocam importantes questões quanto à sustentabilidade económica da sua
actuação.

5.2 Sistemas de pensões de repartição e de capitalização

Vamos ver como funcionam, nas economias actuais, os sistemas de pensões


assentes numa lógica de seguro, isto é, com a atribuição das funções e do seu
financiamento assentes no valor do rendimento salarial. Como vimos atrás,
nos sistemas actuais de protecção social encontramos duas modalidades de
planos de pensões: sistemas de capitalização (funded) e sistemas de repartição
(unfunded), ou PAYG (pay as you go). Vamos descrever cada um destes
sistemas. Para o efeito, vamos formalizar um modelo simples ilustrativo da
formação do rendimento ao longo da vida para um trabalhador e que resulte
da actuação de diferentes sistemas de pensões (rosner, 2003).

Consideremos uma pessoa numa dada sociedade e admitamos o seguinte


conjunto de hipóteses para todas as pessoas nessa sociedade:

Hipótese 1: cada pessoa vive em dois períodos: período 1 (em que realiza
uma actividade económica e, portanto, obtém rendimento primário resultante

134
© Universidade Aberta
dessa actividade) e o período 2 (em que não tem actividade económica e,
portanto, não tem rendimento primário);

Hipótese 2: no período 1 a oferta de trabalho é rígida, o que significa que


uma variação do salário não influencia a quantidade de trabalho oferecida;

Hipótese 3: cada pessoa nesta sociedade apenas pretende consumir, não


transmitindo bens em herança, isto é, não há heranças voluntárias: os recursos
de que um agente dispõe ao longo da vida, e que obtém como rendimento,
são integralmente utilizados em consumo ao longo da sua vida;

Hipótese 4: não há incerteza relativamente ao momento da morte e, portanto,


não há heranças involuntárias; isto significa que cada pessoa tem os seus
planos de consumo, que consegue realizar ao longo da sua vida;

Hipótese 5: em cada período existem duas gerações, que se encontram em


períodos distintos da sua vida (períodos 1 e 2);

Hipótese 6: os agentes económicos são racionais, e têm por objectivo


maximizar a sua utilidade, que é função do consumo nos dois períodos:

(5.1) max U(C1, C2)

em que C1 é o consumo no período 1 e C2 o consumo no período 2.

Hipótese 7: a economia é fechada, o que significa que o valor da poupança


total é igual ao valor da poupança interna.

Vejamos, com base nestas hipóteses, como se pode descrever o comportamento


racional dos agentes, no caso de não existir nesta sociedade nenhum sistema
de pensões e, a partir desta situação, qual é o seu comportamento quando
nessa sociedade for introduzido um sistema de pensões do tipo capitalização
ou, alternativamente, um sistema do tipo repartição.

Não existe nenhum sistema de pensões

No caso de na economia não haver nenhum sistema de pensões, o


comportamento do agente pode ser descrita do seguinte modo:

(5.2) max U(C1, C2)

C1 = W – S

C2 = S.(1 + r)

em que W é o rendimento do trabalho, S é a poupança e r a taxa de juro. O


agente pretende maximizar a utilidade que obtém do consumo realizado ao

135
© Universidade Aberta
longo do ciclo de vida, tomando decisão sobre o plano de consumo óptimo,
isto é, o valor do consumo no período 1 e no período 2 que lhe permite
obter a utilidade máxima. O valor da despesa em consumo no período 1 é
determinado pelo valor do rendimento desse período, isto é, do rendimento
do trabalho. No período 2 não tem rendimento do trabalho, pelo que só terá
recursos para despender em consumo se tiver poupado rendimento no período
1 para poder ser despendido no período 2. Se tiver feito poupança de valor S
no período 1, significa que transfere esse valor para ser usado em consumo
no período 2. Mas obtém ainda o rendimento de valor r.S, pela aplicação
financeira que faz dessa poupança, tendo em atenção a taxa de juro r que
vigora nessa economia. Se fizer poupança de valor S no período 1, poderá
então fazer despesa de consumo de valor W – S no período 1 e de valor
S + r.S no período 2.

A poupança é então a variável de acção para este agente. O agente decidirá


sobre a poupança óptima, isto é a que determina o plano de consumo (C1, C2)
que maximiza a sua utilidade, tendo como dados o rendimento no período 1
(W, salários) e a taxa de juro r. Numa hipótese de economia fechada, o total
da poupança dos agentes forma a poupança total da economia.

Existe um sistema de pensões de capitalização

A partir da situação anterior, admitamos que é introduzido um sistema de


protecção social em que as pensões seguem a modalidade de capitalização.
Isto significa que o agente é obrigado a descontar uma parte do seu rendimento
salarial para um fundo que capitaliza à taxa de juro r. Nestas condições, o
comportamento do agente pode ser descrito como:

(5.3) max U(C1, C2)

C1 = W.(1-b) – S

C2 = S.(1+r) + b.W.(1+r)

em que b é a taxa de contribuição (percentagem do rendimento salarial)


para o sistema e r a taxa de juro. A diferença, relativamente à situação
anterior, é que há poupança voluntária (S) e poupança forçada (constituição
de fundos de pensões a partir de uma parte, b, do rendimento salarial). No
período 2 o valor da despesa em consumo é igual ao valor dos recursos
não dispendidos no período 1 (poupança S) e o rendimento das aplicações
financeiras da poupança à taxa r (o rendimento r.S), do capital constituído
pelo sistema de capitalização, que pode ser despendido em consumo (b.W)
e do rendimento que é obtido pela sua capitalização à taxa r que vigora na
economia (r.b.W).

136
© Universidade Aberta
O agente económico decidirá então sobre a poupança óptima (que maximiza
a sua utilidade) tendo, como dados, o rendimento salarial obtido no período
1 (W), a parte obrigatória de desconto para a segurança social (fracção b do
rendimento salarial) e a taxa de juro r.

Existe um sistema de pensões de repartição (ou “pay-as-you-go”)

Admitamos que, alternativamente, o sistema de pensões é do tipo repartição.


Nestas condições, o comportamento do agente pode ser descrito como:

(5.4) max U(C1, C2)

C1 = W.(1-β) – S

C2 = p + S.(1+r)

em que p é o valor da pensão, β é a taxa de contribuição (percentagem do


rendimento salarial) para o sistema de pensões e r é a taxa de juro. Nestas
condições, no período 1 o agente desconta uma fracção β do seu rendimento
salarial para o sistema de protecção social. No período 2 o agente dispõe de
recursos que são, para além do rendimento não despendido no período 1 (a
poupança S), o valor do rendimento das aplicações financeiras da poupança,
à taxa de juro r (o rendimento r.S) e o valor da pensão recebida do sistema
de protecção social (p).

O agente decidirá sobre o valor da poupança óptima (que maximiza a sua


utilidade) tendo, como dados, o seu rendimento salarial (no período 1), o
valor da pensão (obtido no período 2), a taxa de contribuição β e a taxa de
juro r. Nestas condições, o funcionamento do sistema de pensões tem dois
parâmetros, a pensão p e a taxa de contribuição β. No caso de se pretender
que o orçamento da segurança social esteja equilibrado (saldo = 0), estes
valores não são independentes, pois o valor a pagar da pensão p depende do
valor das contribuições que os agentes pertencentes à geração mais jovem
pagarem para o sistema. É fácil perceber que só poderemos ver a relação que
deve haver entre p e β se analisarmos, em termos agregados, o funcionamento
da economia, uma vez que esta relação não é fixada em termos individuais
mas é função do total de receitas do sistema (dado por “β” e pelo número
de agentes da geração mais jovem) e do total das despesas (dado por “p” e
pelo número de agentes que pertencem à geração idosa).

137
© Universidade Aberta
5.3 Funcionamento agregado de sistemas de pensões

Vamos continuar a análise, agora em termos agregados, comparando os


sistemas de pensões de repartição e de capitalização. Importa ver como estes
dois sistemas funcionam em termos agregados, e como se comportam em
resposta a variações demográficas e a alterações de variáveis económicas.

Continuando com as hipóteses atrás formuladas, admitamos que há dois


“períodos”, t e t-1, e que há duas gerações em cada período: i) a população
trabalhadora (que contribui para o sistema de protecção social); e ii) a
população reformada (que é beneficiária das prestações pagas pelo sistema
de pensões). Consideremos então as seguintes variáveis:

N t população empregada no período t


w

N t população reformada no período t


r

W t salário médio no período t


w

P t pensão média no período t

b t taxa de contribuição para o sistema de segurança social no período t

r t taxa de juro no período t


P t taxa substituição do rendimento no período t
qt =
Wt
Podemos calcular a taxa de crescimento do emprego entre o período t-1 e o
período t como:

N t − N t −1
w w
(5.5a) nt = w
N t −1
e a taxa de crescimento do salário médio entre o período t-1 e o período t
como:

W t − W t −1
(5.5b) wt =
W t −1

Sistema de repartição

Consideremos o sistema de pensões de repartição (ou PAYG), em que são as


contribuições para o sistema feitas pela população empregada (geração mais
jovem) que permitem pagar as pensões da população reformada (geração
mais idosa). Admitamos que o saldo do sistema é nulo, isto é, as receitas do
sistema (contribuições) igualam as despesas (prestações, pensões). Tem-se
então:

138
© Universidade Aberta
(5.6) N t .W t .bt = Nt .Pt
w r

Admitamos também que todos os trabalhadores chegam à idade da reforma


e que não há reformados num período que não tenham sido contribuintes no
período anterior, e portanto temos:

(5.7) N t = N t −1
r w

de onde vem:

(5.8) N t . W t . b t = N t −1. P t
w w

e portanto, tendo em consideração a expressão (5.5a):

(5.9) P t = W t . b t .(1 + n t )
Conclui-se então que o nível das pensões depende positivamente do salário
actual e da taxa de contribuição actual para o sistema (isto é, da geração
actual, que trabalha) e, também, da taxa de crescimento do emprego. Uma
diminuição da taxa de crescimento do emprego reflectir-se-á, ceteris paribus,
numa diminuição da pensão (admitindo a hipótese de orçamento equilibrado
do sistema, não gerando défices nem superavits).

Sistema de capitalização

Consideremos o sistema de pensões de capitalização, em que as prestações


são financiadas pelo capital acumulado (poupança formada no período
anterior) e pelo rendimento do capital. Admitindo as mesmas hipóteses (de
orçamento com saldo nulo e que a população reformada num dado período
é a população empregada no período anterior), vem:

(5.10) N t . P t = N t −1. W t −1. b t −1.(1 + r t −1)


r w

Admitindo de novo a hipótese apresentada em (5.7), obtém-se:

(5.11) P t = W t −1. b t −1 .(1 + r t −1)


Conclui-se então que o nível das pensões depende positivamente do salário
auferido pela população reformada quando era população empregada (i.e., o
salário no período anterior), da parte do salário com que contribuíram para
o sistema e da taxa de juro.

139
© Universidade Aberta
Comparação dos dois sistemas

Para compararmos os dois sistemas podemos admitir que a taxa de contribuição


para o sistema é fixada, que se mantém constante (bt = b) e analisar o efeito
sobre a taxa de substituição do rendimento (i.e., a relação entre o valor da
pensão e o salário médio) de variáveis económicas e demográficas. No sistema
de repartição temos que, da expressão (5.9) vem:

P t = b.(1 + n )
(5.12) qt = t
Wt
o que significa que a taxa de substituição do rendimento, dada a taxa de
contribuição para o sistema, depende da taxa de crescimento do emprego (a
variável fundamental para manter o sistema equilibrado). Um crescimento
maior do emprego permitirá, dado b, uma taxa de substituição do rendimento
mais elevada.

No sistema de capitalização temos que, da expressão (5.11) vem, tomando


em consideração as expressões (5.5a) e (5.5b):

(5.13) P t = b.(1 + rt −1 )
qt =
Wt 1+ wt
o que significa que, uma vez fixada a taxa de contribuição para o sistema,
quanto maior for a taxa de juro (à qual capitalizam as poupanças acumuladas)
tanto maior poderá ser, para um orçamento equilibrado, a taxa de substituição
do rendimento (i.e., a relação entre a pensão média e o salário médio). Por
outro lado, quanto menor for a taxa de crescimento do salário médio, ceteris
paribus, tanto maior será a relação entre a pensão e o salário (pois este,
tomado como referência, é menor em termos relativos).

Podemos, alternativamente, considerar a hipótese de fixarmos a taxa de


substituição do rendimento (qt = q) e analisarmos de que factores depende
então o valor da taxa de contribuição para o sistema. No sistema de repartição
temos que, da expressão (5.9) se obtém:

P t / Wt q
(5.14) bt = =
1+ nt 1+ nt
o que significa que a taxa de contribuição para o sistema, uma vez fixada a
taxa de substituição do rendimento, e para ter um orçamento de saldo nulo,
depende da taxa de crescimento do emprego: quanto menor esta for, tanto
maior terá de ser esta taxa de contribuição.

No sistema de capitalização temos que, da expressão (5.11) se obtém, tomando


em consideração a expressão (5.5b):
1 + w t +1
(5.15) b t = q.
1 + rt

140
© Universidade Aberta
o que significa que quanto maior for a taxa de crescimento do salário,
mantendo tudo o resto constante, tanto maior terá de ser a contribuição para o
sistema para manter o saldo equilibrado e garantir que a taxa de substituição
do rendimento não se altere. Por outro lado, quanto maior for a taxa de juro
tanto menor poderá ser a taxa de contribuição para o sistema que garanta o
seu orçamento equilibrado, para manter constante a taxa de substituição do
rendimento.

Estes resultados são muito importantes para se analisarem os efeitos


de alterações económicas, demográficas e do sistema de emprego na
sustentabilidade económica dos sistemas de pensões na actualidade. Mais
adiante, na secção 5.5, retomaremos este assunto.

5.4 Mecanismos de garantia de recursos (ou de rendimento


mínimo)

Vimos atrás alguns aspectos do funcionamento de sistemas de pensões que


têm, no Estado-providência, uma lógica de seguro. Foi possível identificar,
relativamente aos sistemas de pensões apresentados (de repartição e de
capitalização), as variáveis críticas de que depende a sua sustentabilidade
económica. Mas existem outras modalidades de protecção social que não
assumem a natureza de seguro, tendo natureza de solidariedade e destinadas
ao objectivo de redução da pobreza. Estão nesta situação as prestações de
garantia de recursos que garantem um rendimento mínimo, sujeito à prova de
falta de recursos, isto é, medidas de natureza “means tested”. Em relação a
estas medidas coloca-se uma questão importante quando os seus destinatários
forem pessoas em idade activa: em que medida a atribuição deste benefício
constituirá um desincentivo à oferta de trabalho e, portanto, a sua actuação,
que gera efeitos positivos em termos de equidade, não irá ter efeitos negativos
em termos de eficiência económica? É desse assunto que vamos tratar agora,
através da apresentação de um modelo simples representando a forma de 1
Para uma apresentação deste
1
actuação desta política . tipo de transferências sociais,
veja-se GREFFE (1978) e
MILANO (1989).
Consideremos uma família que possa ser beneficiária de uma transferência
desta natureza. Consideremos, por simplificação, as seguintes hipóteses
simplificadoras:

• todas as famílias têm uma mesma dimensão padrão, pelo que não
vamos considerar diferenças de dimensão das famílias na aplicação
da medida de política;

• o governo estabeleceu um limiar de rendimento mínimo, m por


família, o que significa que nenhuma família deverá ter um rendimento

141
© Universidade Aberta
inferior a esse valor m nesta sociedade, o que constitui um objectivo
de política social;

• as famílias têm um rendimento da actividade económica (por exemplo,


salários) de valor g.

Um dispositivo de garantia de recursos (rendimento mínimo) consiste na


atribuição de uma transferência de rendimento a todas as famílias que tiverem
um rendimento primário de valor g < m de forma a elevar o rendimento da
família até ao valor considerado mínimo, m. Isso significa que a medida
de política consiste na atribuição de uma afectação diferencial de valor s,
calculada como:

(5.16) s = m – g, sendo g < m


Vejamos a Figura 5.1 que representa o rendimento primário, obtido da
actividade económica (em abcissas) e o rendimento disponível, após as
transferências de rendimento mínimo (em ordenadas). Se o rendimento
primário for inferior a OD, o rendimento disponível (obtido após a
transferência) será igual a OA (= m), pois este é o rendimento mínimo
garantido nesta sociedade.

rendimento
disponível

B
(m) A

45º

O
D rendimento da
actividade económica

Figura 5.1

Com a garantia de rendimento mínimo de valor m, há desincentivo à procura


de trabalho para os trabalhadores com rendimento salarial inferior a m: quem
trabalhar e tiver um salário inferior a m, teria um rendimento inferior ao que
o Estado garante pelo rendimento mínimo, pelo que será compensador não
trabalhar.

142
© Universidade Aberta
Façamos a interpretação desta afectação diferencial de rendimento. Sendo
esta afectação diferencial obtida como a diferença s = m – g, em que s é um
subsídio pago ao beneficiário, esta afectação diferencial pode ser interpretada
como um imposto negativo sobre o rendimento primário, de acordo com uma
taxa t. A expressão (5.16) pode então exprimir-se como:

(5.17) s = m – t.g, t > 0


em que (5.16) é um caso particular, com t = 1, isto é, em que vigora a taxa
de 100% para os titulares de rendimento primário g < m.

Para reduzir os efeitos negativos sobre a oferta de trabalho (ou, dito de outro
modo, da procura de emprego), deve fazer-se com que o subsídio s diminua
com o rendimento primário g, mas diminuindo a um ritmo inferior ao do
aumento de g, mantendo os beneficiários com interesse em trabalhar. Isto
significa que a expressão acima seja:

(5.18) s = m – t.g, 0 < t < 1

A Figura 5.2 representa esta situação.

rendimento
disponível

B
(m) A

O
D D´ rendimento da
actividade económica

Figura 5.2

Vejamos as consequências desta alteração da política, e em que consiste. Para


garantir o rendimento mínimo no valor inicialmente fixado em OA (=m),
o campo de aplicação da medida de política alarga-se (de D para D´), isto
é, inicia-se a um nível de rendimento mais elevado o acesso à medida
de política, originando um custo mais elevado desta política. Isto é, para
aumentar a eficiência e manter o valor do rendimento mínimo, o custo desta
medida aumenta.

143
© Universidade Aberta
O valor do parâmetro t tem assim dois efeitos: i) sobre a oferta de trabalho;
ii) sobre o custo da medida. Quanto mais elevado for t, mais desencoraja a
oferta de trabalho, mas menor é o limite de acesso e, portanto, menor será
o seu custo. Quanto menor for t, tanto maior será o incentivo à oferta de
trabalho, mas maior será o seu custo. Vejamos os dois casos extremos, t =
0 ou t = 1. Com t = 1, tem-se s = m - g para g < m, e estamos na situação
apresentada na Figura 5.1, rendimento mínimo garantido, que desincentiva
ao trabalho os beneficiários deste rendimento mínimo garantido. Vejamos o
caso extremo em que t = 0, que é representado na Figura 5.3.

rendimento
disponível

B B´

(m) A

O
D D´ rendimento da
actividade económica

Figura 5.3

Neste caso tem-se s = m para g < m e estamos na situação em que não há


afectação diferencial mas, antes, uma afectação “universal”, de valor uniforme,
para todos os que tiverem rendimento primário inferior a m. Observando a
Figura, verifica-se que todos os que tiverem rendimento g < m recebem um
rendimento uniforme de valor s. Sendo a taxa de imposto negativo de 0%,
reduz-se ao mínimo o desincentivo à oferta de trabalho (ou, o que significa
o mesmo, à procura de trabalho) para quem tiver rendimento g < m. Mas há
desincentivo ao trabalho para os não beneficiários do rendimento mínimo
que tenham rendimento primário entre OD e OD´.

Uma forma de ver a solução para o problema do desincentivo encontra-se


representada na Figura 5.4.

144
© Universidade Aberta
rendimento
disponível

B´´
B

(m) A

O
D D´ D´´ rendimento da
actividade económica

Figura 5.4

A população que se encontra em OD, a população mais pobre, obteria um


rendimento adicional de valor m, a que corresponde um imposto negativo
de taxa marginal t igual a zero, não desincentivador à oferta de trabalho.
A população que se encontra acima de D, correspondendo a uma pobreza
menos extrema, o valor do subsídio corresponderia a uma taxa marginal
de imposto mais elevado, mas inferior a 100%, reduzindo assim o risco ao
desincentivo à oferta de trabalho.

Ficam assim ilustradas algumas das dificuldades que se defronta ao desenhar


um programa de protecção social dirigido à população pobre e que coloca,
no centro da decisão, as opções a tomar envolvendo a equidade (redução da
pobreza), a eficiência (efeito na oferta de trabalho) e o custo do programa.

5.5 Sistemas de pensões, crise e reformas

O Conselho Europeu de Laeken, realizado em Dezembro de 2001, “…tomou


conhecimento do Relatório conjunto sobre as pensões elaborado pelo Comité
de Protecção Social e pelo Comité de Política Económica. A adequação das
pensões, a sustentabilidade dos regimes de pensões e a sua modernização e
a melhoria do acesso às pensões complementares revestem-se de particular
importância para fazer face à evolução das necessidades” (Relatório das
Conclusões da Presidência, itálico nosso).

145
© Universidade Aberta
São assim três os macro-objectivos traçados para as reformas que devem ser
realizados, pelos Estados da União dos seus sistemas de protecção social: i)  a
adequação das pensões; ii) a sustentabilidade dos regimes de pensões; e iii)
a modernização dos sistemas. Na sequência deste enunciado de objectivos,
em 2002 teve lugar uma primeira vaga de Relatórios Nacionais de Estratégia
em que os vários Estados membros identificaram, em termos nacionais, estes
objectivos e desenharam políticas visando esses objectivos. Foi com base
nestes relatórios que a Comissão e o Conselho adoptaram o “Joint Report on
adequate and sustainable pensions”, em Março de 2003. O Conselho Europeu
em Março de 2003 convidou os países membros a realizarem as reformas dos
seus sistemas de pensões pela aplicação, nesse processo, do Método Aberto
de Coordenação (MAC). Os países apresentariam então, no Verão de 2005,
uma segunda vaga de Relatórios Nacionais de Estratégia.

No Relatório Conjunto de 2003, acima citado, era salientada a interdependência


entre a sustentabilidade financeira e a adequação das pensões no contexto de
sociedades em processo de envelhecimento, e a necessidade de reformas que
visem conseguir sistemas de pensões que garantam uma segurança adequada
de rendimento e sejam financeiramente sustentáveis. Chamava ainda a atenção
para a necessidade de criar incentivos para que os trabalhadores mais velhos
permanecessem por mais tempo no mercado de trabalho, fortalecer a relação
entre as contribuições e os benefícios sociais e reforçar o financiamento
público e privado dos sistemas, tendo especialmente em mente as implicações
de longo prazo que decorrem, para os encargos das pensões, do aumento da
esperança média de vida.

Estimava-se na altura que, no horizonte de 2050, mantendo-se as políticas


inalteradas, as tendências demográficas, só por si, levariam a um aumento em
2.2 pontos percentuais a percentagem da despesa em protecção social no PIB
para a UE-25. Os rácios de dependência dos idosos (a população com 65 e
mais anos em percentagem da população com idade 15-64 anos) duplicariam
entre 2005 e 2050 (passando de 24% para 51%). O rácio de dependência
económica (a população com 65 e mais anos em percentagem da população
empregada) passaria de 37% em 2005 para 70% em 2050.
2
Ver, para uma descrição
pormenorizada das reformas
As reformas realizadas pelos Estados membros situam-se no âmbito de onze
realizadas nos países da União objectivos estratégicos acordados no Método Aberto de Coordenação (MAC)
Europeia, o relatório european e que se dirigem aos grande objectivos (adequação, sustentabilidade e mo-
commission, 2006 “Adequate
and Sustainable Pensions, dernização) atrás referidos. Vejamos, de forma sumária, alguns progressos
2
Synthesis Report 2006”. realizados .

146
© Universidade Aberta
Adequação das pensões

Foram identificados três objectivos estratégicos visando a adequação das


pensões:

Objectivo 1 - Assegurar que as pessoas mais idosas não são colocadas


em risco de pobreza e que podem gozar um nível de vida digno;
que possam partilhar o bem-estar económico e por isso participar
activamente na vida pública, social e cultural do seu país.

Trata-se de assegurar à população mais idosa um rendimento mínimo


garantido, cuja provisão é feita de forma diferente nos vários países da União
Europeia. Algumas reformas foram efectuadas em vários Estados Membros
visando melhorar os níveis mínimos de pensão e reduzir os níveis de pobreza
da população idosa.

Objectivo 2 – Garantir a todos os indivíduos pensões de nível


adequado, públicas e/ou privadas, que lhes permita manter um nível
de vida aceitável após a reforma.

As tendências do mercado de trabalho e algumas reformas dos sistemas de


pensões poderão ter como efeito uma tendência futura para a redução do valor
relativo das pensões, pela redução da taxa de substituição do rendimento para
alguns escalões etários. Para fazer face a este problema, algumas medidas
de política tomadas consistiram em promover o prolongamento da idade de
reforma, aumentando a taxa de emprego para a população mais idosa.

Objectivo 3 – Promover a solidariedade intra- e inter-geracional.

Algumas medidas tomadas por Estados Membros visaram aumentar o


conteúdo redistributivo dos sistemas de pensões.

Sustentabilidade

Foram identificados cinco objectivos estratégicos visando a sustentabilidade


dos sistemas de pensões:

Objectivo 4 – Alcançar um elevado nível de emprego através reformas


adequadas do mercado de trabalho no âmbito da Estratégia Europeia
de Emprego.

O aumento do emprego é um factor importante para garantir a sustentabilidade


dos sistemas de pensões, pelo que algumas medidas tomadas com este
objectivo (reduções de impostos, aumento dos benefícios fiscais) podem
ter efeito positivo, ainda que muito frequentemente não estejam integrados

147
© Universidade Aberta
num conjunto coerente de medidas visando a sustentabilidade dos sistemas
de pensões

Objectivo 5 – Assegurar que, através de políticas económicas e de


emprego, todos os ramos da protecção social, em particular os sistemas
de pensões, ofereçam incentivos para a participação de trabalhadores
mais idosos, que os trabalhadores não sejam encorajados à reforma
antecipada e que não sejam penalizados por permanecerem no mercado
de trabalho para além da idade normal de reforma e que os sistemas
de pensões facilitem a opção pela reforma gradual.

Várias medidas de reforma dos sistemas de pensões têm-se dirigido neste


sentido.

Objectivo 6 – Reformar os sistemas de pensões de forma apropriada


tendo em consideração o objectivo de manter a sustentabilidade das
finanças públicas. Ao mesmo tempo, a sustentabilidade dos sistemas de
pensões necessita de ser acompanhada por boas políticas orçamentais
incluindo, quando necessário, uma redução da dívida. As estratégias
adoptadas para alcançar este objectivo podem também incluir o
estabelecimento de fundos de pensões.

Várias reformas dos sistemas de pensões traduziram-se em aumento de


incentivos para o prolongamento da idade de reforma, alteração de método
de cálculo de pensões tendo em consideração todo o ciclo de vida por
forma a ter em conta o aumento da longevidade, fortalecer a relação entre
a contribuição para o sistema e o nível dos benefícios sociais, incentivo a
planos privados de reforma.

Objectivo 7 – Assegurar que os sistemas de pensões e as suas reformas


mantenham um equilíbrio justo entre a população activa e a população
reformada, não sobrecarregando a primeira e garantindo pensões
adequadas para a segunda.

Algumas reformas realizadas por alguns Estados Membros traduziram-se em


medidas visando um maior equilíbrio do esforço financeiro entre gerações,
através de alterações nas formulas de cálculo das pensões e sua indexação e
valor das taxas de contribuição para o sistema.

Objectivo 8 – Assegurar que, através de adequada regulamentação e


gestão, os esquemas privados e públicos de pensões garantam pensões
com as requeridas eficiência, disponibilidade e segurança.

Trata-se de um aspecto essencial para a gestão dos sistemas públicos e


privados. Nos sistemas PAYG os níveis de pensões adequados dependem
do nível da população activa, da população reformada e da taxa de emprego

148
© Universidade Aberta
(ver atrás, na secção 5.3). Nos sistemas de capitalização, a viabilidade
destes sistemas depende da capacidade de constituir reformas suficientes
para suportar financeiramente os encargos com as pensões e a capacidade de
transferir, ao longo do tempo, recursos financeiros. Este objectivo é, portanto,
fundamental para a sustentabilidade dos sistemas de pensões.

Modernização dos sistemas de protecção social

Foram identificados três objectivos estratégicos visando a modernização dos


sistemas de pensões:

Objectivo 9 – Assegurar que os sistemas de pensões sejam compatíveis


com o que se requer em temos de flexibilidade e segurança no mercado
de trabalho; que, sem prejuízo da coerência dos sistemas fiscais dos
Estados Membros, a mobilidade do trabalho dentro de cada Estado
e entre Estados, e formas de emprego não standard não penalizem
os direitos das pessoas às pensões e que o auto‑emprego não seja
desencorajado pelos sistemas de pensões.

Objectivo 10 – Rever as pensões com vista a assegurar que seja dado


igual tratamento a homens e mulheres, tendo em consideração as
obrigações no quadro da legislação europeia.

Objectivo 11 - Tornar os sistemas de pensões mais transparentes e


adaptáveis às alterações das circunstâncias de forma a que os cidadãos
possam ter confiança nesses sistemas. Desenvolver sistemas de
informação credíveis e facilmente compreensíveis sobre as perspectivas
de longo prazo dos sistemas de pensões no que respeita à evolução
provável dos níveis das pensões e das contribuições para os sistemas.
Promover os consensos mais alargados possível no que respeita a
políticas de pensões e suas reformas. Melhorar a base metodológica
para uma monitorização das reformas das pensões.

Estas são, em termos gerais, os objectivos estratégicos que têm estado


presentes nas reformas dos sistemas de pensões e que têm constituído objecto
do Método Aberto de Coordenação (MAC) no espaço da União Europeia.
Não é possível, pelo volume de informação sobre as diferentes experiências
nacionais, a complexidade de que se reveste este método de coordenação e
a complexidade técnica de algumas destas matérias, aprofundar este assunto
neste capítulo. Recomenda-se, portanto, a consulta de textos da Comissão e
estudos recentes sobre este assunto. É uma metodologia de coordenação ainda
muito recente, cuja avaliação técnica e política ainda está por fazer, ainda que
algumas análises recentes considerem que está a contribuir para o surgimento
de um novo paradigma de política social na União Europeia (eckardt,

149
© Universidade Aberta
2005), face aos grandes desafios que são colocados a estes sistemas e que,
resumidamente, se colocam aos seguintes níveis: i) as mudanças demográficas
(aumento do envelhecimento da população, traduzida no aumento do rácio
de dependência); ii) problemas do mercado de trabalho, que se traduz numa
insuficiente utilização da mão de obra, designadamente pelo aumento do
desemprego; iii) alterações sócio-culturais que se traduzem no aumento da
flexibilidade das relações laborais e no aumento das relações laborais de
natureza não permanente; iv) aumento das interdependências internacionais
(globalização) que agravam a pressão sobre os custos de mão de obra e a
concorrência entre diferentes sistemas fiscais e sistemas de protecção social
(eckardt, 2005:248). Trata-se, afinal, de uma forma de o “modelo social
europeu” procurar manter a sua capacidade de sobrevivência enquanto
sistema de garantia de direitos sociais.

Leituras complementares

Este capítulo trata de uma das áreas mais importantes de Política Social: a
protecção de riscos sociais consagrada, nos actuais Estados-providência,
em sistemas de protecção social, com características diferenciadas entre os
vários países da União Europeia. Podem tipificar-se algumas modalidades de
sistemas de protecção social, com particular relevância para os sistemas de
pensões, onde a abordagem económica, em modelos de gerações sobrepostas,
se torna necessária. Recomenda-se, por isso, a leitura do seguinte capítulo
do livro já várias vezes referenciado:

• Rosner, P. G. (2003), The Economics of Social Policy. Edward


Elgar. Capº 5 (The Economics of Pensions) (pp. 133-195).

Para uma visão mais aprofundada da Segurança Social, recomenda-se a


leitura do seguinte texto que constitui uma referência obrigatória no estudo
deste assunto:

• Feldstein, m., liebman, j. (2002), Social Security. In


auerbach, a. j., Feldstein, m. Handbook of Public Economics
4. North Holland.

Para o conhecimento da realidade europeia na UE-27, quer em termos dos


principais desafios que são colocados aos sistemas de protecção social quer
em relação às reformas em curso dos sistemas e do papel das instituições da
União Europeia nesse processo, deve ler-se o relatório:

• European Commission (2006) Adequate and Sustainable


Pensions. Synthesis Report 2006.

150
© Universidade Aberta
Palavras-chave

Os alunos deverão redigir, a partir da consulta de obras de referência,


um parágrafo com o significado, em termos sintéticos, de cada um destes
conceitos

sistema de repartição, PAYG, ou “unfunded”


sistema de capitalização, ou “funded”
sistema de “contribuição definida” vs de “benefício definido”
taxa de substituição do rendimento
sistemas de pensões “adequados” e “sustentáveis”

Questões para revisão e reflexão

1. Acha que o envelhecimento da população, como característica geral de


todos os países ocidentais, gera efeitos idênticos de risco de sustentabilidade
económica dos sistemas de pensões, quer eles sejam do tipo capitalização
ou do tipo repartição?

2. Refira as consequências que adviriam, para o funcionamento de um sistema


de protecção social do tipo repartição, se ele fosse reformado e integralmente
passasse a ser do tipo capitalização. Acha que tal seria possível?

3. Em que medida o Método Aberto de Coordenação, característico da política


social europeia, tem contribuído para alguma uniformidade das reformas dos
sistemas de protecção social na União Europeia?

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Página intencionalmente em branco

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6. Avaliação dos Efeitos Redistributivos
das Políticas Sociais

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Sumário

6.1 O rendimento disponível das famílias

6.2 Rendimento disponível mercantil e operações de redistribuição

6.3 Efeito redistributivo da despesa pública

6.4 Progressividade das actuações das políticas públicas

6.5 Decomposição do índice de Gini

6.6 Efeito redistributivo das transferências na União Europeia

6.7 Efeito das transferências sobre a redução da pobreza

ANEXO 1: Nota sobre a curva de concentração (generalização da Curva


de Lorenz)

ANEXO 2: Nota metodológica sobre a avaliação de efeitos redistributivos


de transferências

Leituras complementares

Palavras-chave

Questões para revisão e reflexão

155
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Objectivos

• Que os leitores compreendam o que significa avaliar os efeitos


redistributivos da política orçamental, quer no que respeita à tributação,
às despesas sociais no que respeita a transferências monetárias e no
fornecimento, a preços “políticos” (que não reflectem os custos de
produção), bens e serviços à população; que compreendam também
quais os princípios teóricos que devem ser respeitados nessa análise
de avaliação;

• que os leitores conheçam metodologias de avaliação do efeito, sobre


a desigualdade do rendimento, da tributação e das transferências,
identificando nessa avaliação a “intensidade” desses fluxos monetários
e o seu grau de progressividade;

• que os leitores saibam como avaliar a eficácia e a eficiência de


programas sociais dirigidos à pobreza e entendam o significado
dos indicadores que podem ser construídos tendo em vista essa
avaliação;

• que os leitores tenham ganho alguma sensibilidade às diferenças, entre


os países europeus, dos efeitos redistributivos das transferências e
da eficácia das transferências dirigidas à pobreza, relacionando essas
diferenças com os diferentes regimes de Estado-providência na União
Europeia.

156
© Universidade Aberta
Neste capítulo vamos apresentar aspectos metodológicos de análise dos
efeitos redistributivos das políticas sociais e alguns resultados de análise
feitos para países da União Europeia que permitam ilustrar estes efeitos e
diferenças, no seio da União Europeia, que se encontram entre países que
a constituem. Esta preocupação de análise da política social constitui um
domínio de grande relevância para a avaliação dos efeitos da intervenção
pública dirigida à provisão do bem-estar, por duas razões fundamentais.
Por um lado, porque essa intervenção pública actua sobre a distribuição
dos recursos (produzindo e fornecendo gratuitamente serviços, pagando
rendimentos de transferência, etc), afectando essa distribuição de acordo
com finalidades sociais de promoção do bem-estar. Deve então constituir
preocupação de avaliação dessas políticas medir o efeito que têm sobre a
distribuição dos recursos, contendo nessa avaliação critérios adequados (não
necessariamente unânimes) de justiça nessa avaliação (PEREIRINHA, 2003).
Por outro lado, esta provisão de bem-estar constitui requisito para garantir a
realização de direitos sociais que, como atrás vimos, são direitos-crédito, isto
é, que obrigam a sociedade, no seu conjunto, a contribuir para essa realização.
Mas essa contribuição traduz-se na afectação de recursos (pelo pagamento
de impostos, por exemplo) pagos pela população, segundo critérios que
caracterizam a política económica e social do país, e que originam algum
efeito sobre os recursos líquidos (i.e., após o pagamento destas contribuições)
da população e a sua distribuição entre os seus membros. A forma como
esses custos se repartem entre a população e o seu efeito no modo como
esses recursos líquidos (isto é, após o pagamento destas contribuições) se
repartem constituem naturalmente outra preocupação de análise da política
social, segundo critérios de justiça social. É sobre estes dois domínios de
análise que iremos concentrar a nossa atenção, descrevendo metodologias
de análise os efeitos sobre a distribuição dos recursos da actuação a política
social. Por razões que passaremos a explicar, a variável económica que irá
sintetizar o conceito de “recursos” cuja distribuição será analisada vai ser
o conceito de rendimento.

6.1 O rendimento disponível das famílias

Retomamos a opção, já considerada em capítulos anteriores, de considerar


o Agregado Doméstico Privado, ADP (que meramente por simplificação
vamos designar por família, não no sentido jurídico, sociológico ou fiscal,
mas no sentido económico, como atrás vimos) como unidade de observação
do rendimento e de medição do bem-estar.

Há dois conceitos de rendimento fundamentais para a análise que segue: os


conceitos de rendimento primário e de rendimento disponível. É essencial

157
© Universidade Aberta
1
Para compreender os concei- compreendermos as diferenças entre estes dois conceitos bem como a forma
tos fundamentais e os proces-
sos de criação e distribuição como, a partir do rendimento primário, se obtém o rendimento disponível1.
do rendimento ver PEREIRI-
NHA (2008), cap. 7. Por rendimento primário de uma família entende-se o valor do rendimento
que essa família aufere por ser proprietária de factores produtivos primários
usados na produção de bens e serviços na economia. Por rendimento
disponível de uma família entende-se o rendimento que essa família aufere
durante um período e de que dispõe, durante esse período, para poder decidir
quanto à forma da sua utilização em consumo ou poupança.

A passagem do rendimento primário ao rendimento disponível constitui um


passo importante para analisar as diferenças de bem-estar entre as famílias,
que constituirá objecto de análise neste capítulo. Alguns comentários prévios
são então necessários para enquadrar devidamente o estudo que agora iremos
fazer.

Em primeiro lugar, o rendimento primário das famílias constitui, como se


disse, o rendimento criado durante o período, em resultado da utilização dos
serviços dos factores de que as famílias residentes são proprietárias. Mas, de
acordo com o âmbito deste conceito, este não é necessáriamente o rendimento
de facto auferido pelas famílias, e disponível para ser utilizado em consumo
e poupança. Têm lugar, na economia, mecanismos de redistribuição do
rendimento correspondentes a alterações na repartição primária do rendimento
conducentes ao rendimento disponível, alterações no rendimento que não
correspondem à participação directa das famílias no processo produtivo.

Em segundo lugar, vamos iniciar o estudo do rendimento disponível em


termos nominais, embora saibamos que o poder aquisitivo deste rendimento
(factor determinante do bem-estar das famílias) depende da evolução dos
preços, o que leva a que seja o rendimento disponível em termos reais (isto
é, deflacionado com a evolução dos preços) que interessa considerar nessa
perspectiva.

Em terceiro lugar, ao analisar as diferenças de bem-estar entre as famílias


estamos interessados em conhecer os bens e serviços que são consumidos
pelas famílias, uma vez que o bem-estar das famílias é, em grande parte,
determinado pela satisfação obtida no uso que as famílias fazem dos bens e
serviços que consomem. Então, se a nossa preocupação última é a análise do
bem-estar das famílias, o conceito de rendimento disponível que devemos usar
deve ser aquele que melhor corresponder ao conceito de consumo, e que este
rendimento disponível possibilita realizar. Mas o valor dos bens e serviços
consumidos pelas famílias não é necessariamente igual ao valor dos bens e
serviços comprados (isto é, transaccionados no mercado) pelas famílias, pelo
que nos devemos deter sobre o conceito de rendimento disponível a usar.

158
© Universidade Aberta
Vejamos dois grupos de situações ilustrativas do que acabámos de dizer. Há
serviços fornecidos gratuitamente às famílias pelo Estado (por exemplo,
serviços de educação e de saúde). Trata-se neste caso de rendimentos
auferidos em espécie pelas famílias, isto é, sob a forma de serviços fornecidos
gratuitamente e que são consumidos pelas famílias, embora o não tenham
sido através de um acto de compra no mercado. É um rendimento auferido
em espécie, resultante da actividade não mercantil do Estado. Podemos
designar esta componente do rendimento das famílias como rendimento
disponível não mercantil, para com isto significar que se trata do resultado
da actividade de produção não mercantil do Estado e que se trata de um
rendimento disponível para consumo, que é usado directamente em consumo
no acto da utilização desses serviços e é também, no acto de utilização
desses serviços, que este consumo se traduz em rendimento das famílias. As
famílias não poderão transaccionar estes serviços fornecidos pelo Estado,
o rendimento é indissociável do consumo desses serviços. A consideração
destes fluxos de rendimento será feita adiante de forma mais cuidada, onde
veremos, designadamente, como tratar este rendimento quando há lugar
a algum pagamento, pelas famílias, pelo consumo destes serviços (por
exemplo, taxas moderadoras no caso dos serviços de saúde, propinas no
caso de serviços de educação, etc.).

Vejamos outra situação. Quando uma família aufere rendimentos em espécie,


isto é, sob a forma de bens e serviços, de outra origem, que não resulte do
fornecimento gratuito de serviços que corresponda à actividade não mercantil
do Estado (como, por exemplo, remunerações em espécie, ou autoconsumo,
ou fornecimentos em espécie de outra origem, como uma dádiva feita por
uma empresa a uma família, etc), esta família vai poder consumir estes bens
e serviços que obteve como rendimento, embora os não tenha adquirido
no mercado através de um acto de compra. Podemos designar o conjunto
destes rendimentos por rendimento disponível mercantil em espécie. Mas
uma parte significativa dos rendimentos de que as famílias dispõem para
usar em consumo (ou poupar, ou doar) têm forma monetária, e podemos
designar por rendimento disponível mercantil monetário esta componente
dos seus rendimentos.

Podemos então considerar que o rendimento disponível total da família i se


pode exprimir como:

(6.1) RDTi = RDMi + RDNMi

em que RDTi é o rendimento disponível total da família i, o qual se compõe


em rendimento disponível mercantil da família i (RDMi) e rendimento
disponível não mercantil da família i (RDNMi), e em que o rendimento
disponível mercantil da família i se exprime como:

159
© Universidade Aberta
(6.2) RDMi = RDMMi + RDMEi

em que RDMMi é o rendimento disponível mercantil monetário da família


i, e RDMEi o rendimento disponível mercantil em espécie da família i.

Retomaremos agora a ideia inicialmente exposta de que o conceito de


rendimento disponível que interessa considerar é aquele relativamente ao
qual as famílias poderão usar para consumo de bens e serviços (ou poupar,
ou doar), e a relação que estabelecemos com o conceito (embora ainda
impreciso) de bem-estar. O conceito a usar deverá então ser o de rendimento
disponível total, atendendo aos argumentos apresentados.

6.2 Rendimento disponível mercantil e operações de


redistribuição

O rendimento disponível (mercantil) que uma família aufere num certo


período resulta, por um lado, do rendimento que aufere pela sua participação
no processo produtivo, que corresponde ao seu rendimento primário e,
por outro lado, de operações de repartição do rendimento que se operam
entre essa família e outros agentes económicos, que não correspondem à
participação directa das famílias no processo produtivo. Algumas dessas
operações de repartição subtraem rendimento às famílias, outras adicionam
rendimento às famílias, existindo assim um saldo de operações de repartição
que se somam algebricamente ao rendimento primário para se obter o
rendimento disponível.

Podemos assim, nesta fase inicial de explicação, exprimir o rendimento


disponível mercantil da família i como:

(6.3) RDMi = RPFi + ∆ORFi


em que ∆ORFi é o saldo das operações de repartição relativas à família i,
isto é, o valor monetário dos fluxos de rendimento existentes entre outros
agentes e a família i, e que não correspondem a participação directa das
famílias no processo produtivo.

Mas tais fluxos (operações de repartição) envolvem sempre outros agentes


para além da família i. Dissémos que algumas das operações de repartição
adicionam rendimento ao rendimento primário das famílias, enquanto outras
retiram rendimento ao rendimento primário das famílias. E que tais operações
(aditivas ou subtractivas) podem ter lugar relativamente ao mesmo agente j
(por exemplo, o Estado paga às famílias subsídios de desemprego e recebe
impostos das famílias).

160
© Universidade Aberta
Podemos então classificar as operações de repartição que têm lugar entre
a família i e o agente j (o qual se refere a qualquer agente pertencente aos
sectores institucionais referidos acima) em duas categorias:

• ORFij( + ) Operações de repartição entre a família i e o agente j que



aumentam o rendimento da família i;

• ORFij( − ) Operações de repartição entre a família i e o agente j que



diminuem o rendimento da família i;

Existe então, entre a família i e o agente j, um saldo de operações de repartição


que pode ser expresso como:

(6.4) ∆ORFij = ORFij − ORFij


(+) (-)

E o saldo (total) das operações de repartição relativas à família i e envolvendo


todos os outros agentes para além desta família pode então ser expresso
como:

(6.5) ∆ORFi = ∑ ∆ORFij


j

Vamos agora ver as várias categorias de operações de repartição que se


estabelecem entre os vários agentes e as famílias, isto é, operações que, nas
equações acima, foram referidas como ORFij( − ) (operações de repartição
subtractivas) e ORFij( + ) (operações de repartição aditivas).

Existem, por um lado, operações de redistribuição de natureza subtractiva


[OR(-)] isto é, que “subtraem” rendimento ao rendimento primário dos
agentes. Isto acontece fundamentalmente através da imposição directa, pela
qual o Estado retira aos titulares dos factores produtivos, coercivamente,
uma parte dos seus rendimentos, e que representaremos por Td. Por outro
lado, existem operações de redistribuição de natureza aditiva [OR(+)],
isto é, que “adicionam” rendimento ao rendimento primário. Isto acontece
fundamentalmente pelas “transferências”, que são fluxos financeiros que os
agentes económicos recebem sem que seja por contrapartida da utilização de
factores produtivos de que são titulares, na activi­dade produtiva. Distinguem‑se
essencialmente dois tipos: Transferências internas (essencialmente do Estado)
TRi e Transferências externas, TRx

Sintetizando agora os vários tipos de intervenções da política orçamental do


Estado que importa considerar para analisar o seu efeito sobre a repartição
do rendimento disponível, podemos distinguir desde já as seguintes formas
de intervenção:

• impostos directos, isto é, formas de intervenção que actuam a subtrair


no cálculo do rendimento disponível mercantil;

161
© Universidade Aberta
• transferências monetárias, isto é, formas de intervenção que actuam
a somar no cálculo do rendimento disponível mercantil;

• o valor do rendimento disponível não mercantil, que actua a somar


ao rendimento disponível não mercantil, originando o rendimento
disponível total das famílias.

Os impostos directos

Quando apresentámos o conceito de rendimento primário das famílias,


incluímos o ELE neste conceito, significando o valor do rendimento criado em
resultado do uso do capital não humano de que as famílias são proprietárias,
bem como do capital humano utilizado na actividade produtiva por conta
própria.

Vejamos em primeiro lugar o caso de uma família que detenha (seja


proprietária de) parte do capital social de uma empresa que, em resultado
da sua actividade produtiva durante um período, gerou rendimento (VALcf).
Quando determinámos o rendimento primário desta família considerámos
que parte do ELE correspondente (a parte deste ELE que é proporcional à
participação que esta família detém no capital social da empresa) é rendimento
primário desta família.

Porém, nem todo o ELE que entra na composição do rendimento primário


desta família constitui rendimento de facto recebido pelas famílias, isto é,
rendimento disponível.

Sobre os lucros das empresas incidem impostos directos (no sistema fiscal
português, o IRC) e, do lucro líquido de impostos, uma parte é retida na
empresa (lucros não distribuídos). Só o lucro remanescente é distribuído
pelos sócios, proporcionalmente às suas quotas (parte do capital da empresa
de que são proprietários).

Sobre este ELE que é rendimento primário da família incidem assim duas
operações de repartição:

• o imposto sobre o lucro da empresa (o IRC), que constitui uma


operação de repartição entre o Estado e a família - no sentido que
vai reduzir a parte do ELE (rendimento primário da família) que vai
ser rendimento disponível dessa família;

• a retenção de lucros na empresa (lucros não distribuídos), enquanto


operação de repartição que se opera entre a empresa e a família - no
sentido que vai também reduzir a parte do ELE (rendimento primário
da família) que vai ser rendimento disponível da família.

162
© Universidade Aberta
Vejamos agora o caso do trabalho por conta própria. A retribuição auferida
por esta forma de actividade económica constitui ELE das famílias. Mas
nem todo este ELE constitui rendimento disponível das famílias: sobre ele
incidem também contribuições para a Segurança Social, que constitui uma
operação de repartição entre o Estado e as famílias.

Mas o Estado faz também incidir, sobre o rendimento das famílias, outros
impostos directos. E aqui devemos ter em consideração, no sistema fiscal
português, o IRS (imposto sobre o rendimento global da famílias, após
feitas as deduções fiscais previstas na lei), e de natureza progressiva (isto é,
com taxa média crescente com o rendimento). O IRS constitui assim outra
operação de repartição que ocorre entre o Estado e as famílias.

Relativamente ao sistema fiscal, deve referir-se que nos impostos, para


efeito de determinação do rendimento disponível das famílias em termos
nominais, não deverão ser considerados os impostos indirectos (IVA e outros
impostos indirectos). E percebe-se a razão para isto. Os impostos indirectos
incidem sobre o consumo e não sobre o rendimento e, portanto, não afectam
o rendimento disponível das famílias. Estes impostos têm, no entanto, efeito
sobre o rendimento disponível em termos reais uma vez que, ao contribuir
para a formação dos preços de mercado dos bens de consumo, as alterações
desta forma indirecta de tributação terão incidência na formação dos preços,
e portanto no rendimento real das famílias.

Temos assim uma visão global das operações de repartição que determinam
a formação do rendimento disponível das famílias, e a equação seguinte, que
resulta das equações (6.3) e (6.5) acima apresentadas:

(6.6) RDM i = RPFi + ∑ ∆ORFij


j

constitui a equação geral da formação do rendimento disponível da família


i, para i = 1, ..., n, portanto de validade geral para qualquer família e cujo
significado, após a descrição feita das principais operações de repartição, fica
agora entendido. Mas isso não significa que todos os termos desta equação
tenham valor significativo para todas as famílias: para algumas famílias
alguns termos terão valor nulo por sobre elas não incidirem algumas das
operações de repartição descritas.

Também, por simplificação, não considerámos operações de repartição que


possam eventualmente ter lugar entre famílias. Isto significa que podemos
calcular o rendimento disponível mercantil de todas as famílias como:
n
(6.7) RDM = ∑ RDM i
i =1

163
© Universidade Aberta
Vejamos as principais operações de repartição que adicionam rendimento
ao rendimento primário das famílias, e que têm origem nas várias categorias
de agentes considerados, na classificação acima considerada, como sectores
institucionais.

As transferências

Uma componente refere-se a transferências pagas pelo Estado às famílias


e que não são retribuição de nenhum factor produtivo de que estas sejam
proprietárias. Podemos distinguir vários tipos de operações consoante a sua
natureza e finalidade.

Algumas transferências destinam-se a protecção social de riscos individuais


em que incorrem as famílias. Estão nesta situação as pensões de invalidez
e velhice (que protegem as famílias do risco de perda de rendimentos do
trabalho em resultado de invalidez ou de atingir o limite da vida activa). Está
também nesta situação o subsídio de desemprego que se destina a proteger
a população activa do risco de não obtenção do rendimento do trabalho por
não obtenção de emprego remunerado.

Outras transferências destinam-se à compensação de encargos familiares


acrescidos que resultem da ocorrência de alguns eventos que o determinem
e que o Estado assume a responsabilidade de efectuar. Estão nesta situação
o abono de família, subsídio de funeral, subsídio de maternidade e aleitação,
etc.

Outras destinam-se a garantir recursos mínimos às famílias que não têm


capacidade económica de obter rendimentos, como são, em Portugal, os
casos da pensão social ou do subsídio social de desemprego ou do rendimento
social de inserção.

Entre os agentes económicos não residentes e as famílias residentes


ocorrem também fluxos de rendimento que não constituem remuneração de
factores produtivos que sejam propriedade destas famílias. São, neste caso,
transferências provenientes do Resto do Mundo para as famílias, as remessas
de emigrantes. Trata-se de um fluxo de rendimento que vai ser considerado
como uma componente do rendimento disponível das famílias.

Deve ter-se em atenção que considerámos as transferências recebidas pelas


famílias e provenientes do Resto do Mundo e não as transferências líquidas
(isto é, a diferença entre as transferências recebidas do Resto do Mundo e as
transferências enviadas a famílias não residentes). Vejamos a razão para tal.
As transferências provenientes do Resto do Mundo aumentam o rendimento
disponível das famílias que as recebem. Mas, em rigor, transferências para o
Resto do Mundo enviadas por famílias residentes para famílias não residentes

164
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não diminuem o rendimento das famílias que as enviam: a remessa de tais
transferências constitui uma forma de utilização do rendimento dessas
famílias.

Devemos ainda considerar as transferências das Empresas para as famílias, ou


seja, fluxos de rendimento que não sejam retribuição de factores produtivos
das famílias que sejam utilizados pelas empresas (os quais, como se sabe,
estão incluídos no rendimento primário). Exemplos de tais transferências:
concessão de bolsas de estudo a filhos de trabalhadores da empresa, pensões
de reforma pagas pelas empresas a ex-trabalhadores (esquemas privados de
reforma), etc.

6.3 Efeito redistributivo da despesa pública

Ao analisarmos o conceito de rendimento disponível mercantil das famílias,


fizemos referência à actuação de mecanismos de redistribuição do rendimento
primário resultante da intervenção do Estado. Considerámos então as
transferências monetárias e os impostos. Devemos ter em atenção, no entanto,
que a actuação do Estado com efeitos redistributivos não se restringe as
estes fluxos.

Vamos considerar outro tipo de actuação do Estado, que já foi referida atrás,
e que se traduz na produção de serviços não mercantis. Vimos que esta
actuação deve ser considerada para o cálculo do rendimento disponível total
das famílias, originando assim um conceito mais alargado do rendimento
disponível das famílias: rendimento disponível total.

A actuação do Estado na produção de serviços não mercantis tem relevância


para a análise da repartição do rendimento porque se trata de serviços
fornecidos gratuitamente às famílias, ou a preços reduzidos e muito inferiores
ao custo. Beneficiando as famílias, e podendo este benefício ser desigual
entre essas famílias numa sociedade, encontramos nesta forma de actuação
do Estado uma forma de este intervir na repartição do rendimento.

A produção destes serviços não mercantis pelo Estado pode ter duas
naturezas. Uma delas é a produção dos chamados bens públicos, isto é, de
bens que se caracterizam pelo facto de beneficiarem a colectividade no seu
conjunto, uma vez produzidos ninguem podendo ser deles excluídos e, por
outro lado, não existir rivalidade no consumo, isto é, o facto de surgir mais
um indivíduo na sociedade não reduz o consumo desses bens por parte dos
restantes indivíduos. Estão nesta situação de não exclusão e não rivalidade no
consumo serviços como a defesa, a segurança, etc. A natureza própria destes
bens leva a que seja o Estado a desempenhar o papel da sua produção numa

165
© Universidade Aberta
sociedade. Uma nota porém, desde já: a designação destes bens por “bens
públicos” tem que ver com a sua natureza específica (não exclusão e não
rivalidade no consumo) e não no facto de serem produzidos pelo Estado.

Mas o Estado produz igualmente um conjunto de serviços que, não tendo


as características dos bens acima indicados (isto é, podendo haver exclusão
no consumo e o aumento do seu consumo por parte de um indivíduo poder
originar restrições à possibilidadede consumo dos outros) são também
produzidos pelo Estado. São os designados bens privados de provisão
pública, e estão neste caso, por exemplo, os serviços de Educação e de Saúde
fornecidos pelo Estado.

Repare-se que, devido à diferente natureza destes dois grupos de bens,


o primeiro tipo (bens públicos) corresponde a serviços cuja afectação às
diferentes famílias se torna difícil de efectuar (como afectar a produção de
defesa pelo Estado às várias famílias?), pelo que o seu valor não é considerado
no rendimento das famílias (não é possível determinar a parte do seu valor que
corresponde a rendimento da família i). Já no que respeita ao segundo tipo
de bens (bens privados de provisão pública, como os serviços de educação
e saúde), correspondem a serviços em relação aos quais há decisões de
consumo por parte das famílias quanto à quantidade desses serviços que
pretendem consumir e, mesmo que o Estado não produzisse esses bens,
entidades privadas o fariam. Mas o Estado produz esses bens por várias
razões, algumas das quais pelos efeitos sociais positivos que pode determinar.
E é este o aspecto que nos interessa aqui tratar.

Relativamente a estes bens privados de provisão pública, há que considerar


dois conceitos relevantes para a nossa análise do seu efeito redistributivo:
(i) o valor do consumo desses bens, isto é, o valor dos serviços adquiridos
pelas famílias e produzidos pelo Estado; (ii) o valor da despesa das famílias
no consumo desses bens, ou seja, o valor efectivamente pago pelas famílias
que utilizam esses serviços.

O facto de estes bens serem produzidos pelo Estado significa que, pagando
as famílias preços simbólicos, ou de qualquer modo reduzidos (inferiores ao
custo) no uso desses serviços, o efeito do Estado que nos interessa considerar
é a diferença entre o valor do consumo desses bens (isto é, o custo em que o
Estado incorre na sua produção) e o valor da despesa das famílias (o valor
pago pelas famílias).

Podemos considerar que esta diferença corresponde a um fluxo em espécie com


a natureza de uma transferência do Estado para as famílias. E considerámo-lo
atrás como componente do rendimento disponível das famílias (rendimento
disponível não mercantil, RDNMi para a família i). E pode ver-se porquê,
agora com um pouco mais de atenção.

166
© Universidade Aberta
Imaginemos duas sociedades, uma em que a produção desses bens é feita
exclusivamente por entidades privadas (sociedade A), e outra (sociedade
B) onde essa produção é exclusivamente feita pelo Estado, sendo estes
serviços fornecidos gratuitamente aos cidadãos que os procuram. Estas duas
sociedades são muito diferentes: se compararmos uma família em A com um
rendimento nominal igual ao da outra família em B, podemos concluir que
estão em condições muito diferentes. No primeiro caso (A) tem de pagar
tudo o que necessita desses serviços e no segundo caso (B) pagará apenas
simbolicamente os serviços que consome. E no entanto auferem o mesmo
rendimento. Então, a melhor forma de garantir a comparabilidade entre
estas duas sociedades consiste em considerar, como parte do rendimento
das famílias, o valor destas transferências em espécie. Se o fizermos,
considerando como valor destas transferências:

“Valor do consumo desses serviços feitos pela famílias menos o valor


das despesas familiares no uso desses serviços”,

então chegamos a um conceito mais alargado de rendimento disponível que


podemos definir como:

(6.8) RDTi =RDM i +RDNM i

em que, para a família i:

RDNMi = valor do consumo destes serviços pela família i menos o


valor da despesa nesses serviços pela família i

em que o valor do consumo e o valor da despesa nestes serviços foi já


devidamente explicado.

6.4 Progressividade das actuações das políticas públicas

São assim dois tipos de intervenção que vamos tratar: algumas adicionam
rendimento às famílias, enquanto outras subtraem rendimento às famílias.

Formalizando um pouco, podemos dizer que, sendo x 1 o rendimento


disponível após a actuação destas intervenções, e x0 o rendimento disponível
antes da actuação destas intervenções, podemos ter:

(6.9) x1 = x 0 − ∆x

167
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em que:

• ∆x > 0 no caso de intervenções que subtraem rendimento (por


exemplo, os impostos directos);

• ∆x < 0 no caso de intervenções que adicionam rendimento (o caso


das transferências monetárias e o valor do rendimento disponível não
mercantil, explicado atrás).

Para analisar o efeito redistributivo destas intervenções interessa-nos


fundamentalmente a actuação percentual que exercem sobre o rendimento.
E poderemos, para o efeito, exprimir a taxa de actuação destas intervenções
como:

∆x
(6.10) t= 0
x
em que t > 0 no caso das intervenções que subtraem rendimento, e t < 0 no
caso das intervenções que adicionam rendimento (atendendo à forma como
definimos x0 e x1 acima).

Podemos classificar as actuações do Estado, no que nos interessa para analisar


o seu efeito redistributivo do rendimento disponível das famílias, em três
tipos:

1) Actuações proporcionais, no caso em que t é constante com o


rendimento das famílias, isto é, em que a actuação é percentualmente
igual para todos os rendimentos;

2) Actuações progressivas, no caso em que t é crescente com o


rendimento das famílias, isto é, em que a actuação é percentualmente
crescente com o rendimento, ou seja, percentualmente maior para os
rendimentos mais elevados;

3) Actuações regressivas, no caso em que t é decrescente com o


rendimento das famílias, isto é, em que a actuação é percentualmente
decrescente com o rendimento, ou seja, percentualmente menor para
os rendimentos mais elevados.

Vejamos como interpretar estes três tipos de actuações.

No caso de intervenções que subtraem rendimento (o caso dos impostos


directos), estas intervenções são de actuação proporcional se a sua percentagem
no rendimento antes destas intervenções forem constantes com o rendimento
(no caso dos impostos, isto significa uma interpretação de t como taxa de
imposto, e neste caso temos taxas de imposto constantes com o rendimento,
isto é, uma taxa de imposição directa igual para todos os rendimentos).

168
© Universidade Aberta
Será progressiva se a taxa de imposto aumentar com o rendimento, e será
regressiva se a taxa de imposto diminuir com o rendimento.

Mas vejamos agora o caso de intervenções que adicionam rendimento (por


exemplo, as transferências ou o rendimento disponível não mercantil).
A actuação destas intervenções é proporcional se a percentagem destas
transferências no rendimento antes das transferências for constante com o
rendimento (t constante com o rendimento das famílias). Será progressiva se
esta taxa de actuação t aumentar com o rendimento. Mas repare-se que isto
significa que o valor das transferências recebidas pelas famílias representa
uma percentagem cada vez menor do rendimento antes dessas transferências
à medida que o rendimento das famílias aumenta. Repare-se que não foi
engano dizer-se “menor”: se virmos a fórmula anterior que relaciona x1 com
x0, uma transferência significa que ∆x < 0, ou seja, t < 0. Dizermos que t é
crescente com o rendimento (actuação progressiva) significa neste caso que
a percentagem, no rendimento, destas transferências recebidas (e “receber”
é sinónimo de subtrair um valor negativo) é decrescente com o rendimento.
E podemos então também dizer que esta actuação é regressiva se t diminuir
com o rendimento, isto é (fazendo raciocínio análogo) que a percentagem, no
rendimento, destas transferências recebidas é crescente com o rendimento.

6.5 Decomposição do índice de Gini

O efeito redistributivo destas intervenções depende então do efeito que


a consideração destas intervenções, ao originar uma nova repartição do
rendimento, tem em termos da alteração da desigualdade ao compararmos
as duas repartições do rendimento (antes e depois destas intervenções).
Qualquer medida de desigualdade2 poderá permitir a avaliação desse impacto
2
Para conhecer as medidas
de desigualdade habitual-
redistributivo: o índice de Atkinson (com diferentes valores do parâmetro de mente utilizadas nas análises,
aversão à desigualdade, possibilitando assim diferentes valorizações dessas veja‑se PEREIRINHA (2008),
cap. 7.
transferências) ou a curva de Lorenz e o coeficiente de Gini, as medidas de
desigualdade mais usuais.

Vamos retomar o uso da curva de Lorenz e do índice de Gini associado, por


ser frequentemente utilizado para efeitos deste tipo de análise de efeitos
redistributivos.

Retomando o que se disse atrás, mas que sistematizaremos melhor


seguidamente, usando a curva de Lorenz e o coeficiente de Gini, o efeito
redistributivo depende da proporção que representa, no rendimento das
famílias, o valor destas intervenções. Utilizando a curva de Lorenz e o
respectivo coeficiente de Gini, se estas intervenções corresponderem a

169
© Universidade Aberta
proporções iguais para todas as famílias, isso significa que não se altera a
repartição do rendimento disponível, reduzindo a desigualdade se representar
uma proporção t crescente com o rendimento, e agravando a desigualdade se t
for decrescente com o rendimento (recorde-se o raciocício feito a propósito da
interpretação da curva de Lorenz). Vamos ver com mais atenção esta questão
seguidamente, fazendo uso de uma generalização da curva de Lorenz.

Efeito redistributivo dos impostos directos

Consideremos o caso dos impostos directos, para obtermos um resultado que


poderemos, por analogia, generalizar ao outro tipo de fluxos.

Seja, simplificadamente, x i0 o rendimento da família i antes dos impostos


(que vamos designar por rendimento bruto), Ti o valor dos impostos pagos
pela família i e x1i o rendimento depois dos impostos (que vamos designar
por rendimento líquido). Tem-se então, para a família i:

x i = x i − Ti
1 0
(6.11)
e designemos, por taxa de imposto da família i, o rácio:

(6.12) Ti
ti = 0
xi
e tenha-se:

n n n
(6.13) X = ∑ xi ; X = ∑ xi ; T = ∑ Ti
0 0 1 1

i =1 i =1 i =1

em que, portanto, a taxa média de imposição fiscal da economia é definida


como:

T
(6.14) t= 0
X
Podemos agora associar, a cada família, as seguintes variáveis:

• pi como a proporção das famílias com rendimento bruto total X0


inferior ou igual a x i0 ;

• qi como a proporção do rendimento bruto total, X0, recebido pelas


famílias com rendimento bruto inferior ou igual a x i0 ;

• ri como a proporção do total dos impostos T, pagos pelas famílias


com rendimento bruto inferior ou igual a x i0 ;

170
© Universidade Aberta
• si como a proporção do rendimento total líquido, X1 , auferido pelas
famílias com rendimento bruto inferior ou igual a x i0 ;

Podemos então exprimir o coeficiente de Gini3 do rendimento bruto, X0 , 3


Sobre o seu significado,
veja‑se PEREIRINHA
como: n −1 (2008), cap. 7.

i =1
qi
(6.15) G =1 − n −1
∑ pi i =1

o coeficiente de concentração dos impostos directos, T , como:


n −1

∑r
i =1
i

(6.16) CT =1 − n −1

∑p
i =1
i

e o coeficiente de concentração do rendimento líquido, X1 , como:


n −1

∑s
i =1
i

(6.17) G =1 −
*
n −1

∑p
i =1
i

Pode demonstrar-se4 que se tem a seguinte relação entre os coeficientes de 4


Ver Anexo 2.

concentração acima referidos:

(6.18) G* = G −
t
l−t
(
⋅ CT − G )

Façamos a sua interpretação. Note-se em primeiro lugar que, se as famílias


mantiverem a mesma ordenação quando ordenadas pelo rendimento antes dos
impostos e pelo rendimento depois dos impostos, G* e G, podem ambas ser
interpretadas como coeficientes de Gini, e CT será também o coeficiente de
Gini dos impostos se a ordenação das famílias pelos impostos for a mesma que
a ordenação feita pelo rendimento antes dos impostos. Se tal não acontecer,
falamos em coeficientes de concentração (pseudo-Ginis) relacionados com
curvas de concentração que são generalizações da curva de Lorenz5.

A partir desta fórmula podemos concluir que a concentração do rendimento 5


Ver Anexo 1
diminui se os impostos forem progressivos, e isso sucede se CT > G, uma
vez que temos 0< t <1 (e neste caso, vejam o que isso implica em termos
das respectivas curvas de concentração). Podemos então interpretar [CT - G]

171
© Universidade Aberta
como uma medida de progressividade dos impostos. Pode verificar-se que
CT = G no caso de impostos proporcionais (e portanto G* = G) e CT < G no
caso de impostos regressivos (e, neste caso, G* > G).

Podemos assim concluir que o efeito sobre a concentração do rendimento


dos impostos directos resulta da combinação de dois efeitos:

• da taxa de imposto

• do grau de progressividade do imposto.

Efeito redistributivo das transferências

Consideremos agora as transferências ou, em geral, qualquer intervenção


sobre o rendimento que aumente o rendimento. Podemos definir o rendimento
depois das transferências da família i, x i2 , como a soma do rendimento antes
das transferências, x i0 , mais as transferências, TRi :

x i = x i + TR i
2 0
(6.19)
Repare-se que, ao contrário da formulação geral apresentada atrás,
apresentámos agora o rendimento x i2 como a soma de duas componentes, e
em que TRi aparece como componente positiva.

Se considerarmos a intensidade das transferências para o conjunto da


economia como:

TR
(6.20) tr = 0
X
em que:
n n
(6.21) X = ∑ xi ; TR = ∑ TR i
0 0

i =1 i =1

vem tr > 0, e pode também deduzir-se, fazendo raciocínio e deduções


semelhantes, a expressão que relaciona o coeficiente de concentração do
rendimento após estas intervenções ( G * ) com o coeficiente de Gini do
rendimento antes destas intervenções ( G ), o coeficiente de concentração
destas intervenções (CTR) e a sua intensidade média (rácio tr), como:
tr
(6.22) G* = G + (CTR − G )
1+ tr
Pode dar-se uma interpretação análoga à que fizemos no caso dos impostos,
tendo em consideração a natureza aditiva das transferências.

172
© Universidade Aberta
6.6 Efeito redistributivo das transferências na UE

Apresentam-se seguidamente alguns resultados de um estudo de ras,


pommer & schut (2002) sobre o efeito redistributivo das instituições do
Estado-providência na União Europeia. Trata-se de um estudo que utiliza a
metodologia de análise que foi acima exposta e que permite alguma comparação
do efeito redistributivo de vários Estados-providência, que reflecte a natureza
distinta dos sistemas de protecção social e fiscal nos países estudados. Trata-
se de um estudo pioneiro nesta perspectiva de análise que enfrenta, como
principal dificuldade, a inexistência de informação estatística que permita um
estudo com um âmbito mais completo da actuação do Estado‑providência e,
por outro lado, uma adequada comparação entre os países estudados. Vale,
ainda assim, pela relevância dos resultados apresentados, que se apresentam
no Quadro 6.1, em que os países estudados foram agrupados pelo tipo de
regime de Estado-providência a que pertencem.

Quadro 6.1 – Efeito redistributivo das transferências sociais (anos 1990s)

Redução
Coeficiente de Gini Percentagem Factor de
País desigualdade Progressividade
Rendimento Rendimento das receitas correcção
Absoluta em %
mercantil disponível
Regimes social-democratas (nórdicos)
DK 0,553 0,378 0,175 32 0,834 0,250 -0,033
FIN 0,577 0,361 0,216 37 0,811 0,325 -0,047
S 0,583 0,352 0,231 40 0,833 0,357 -0,066
Regimes corporativos (continentais)
D 0,551 0,391 0,160 29 0,977 0,190 -0,025
NL 0,536 0,345 0,191 36 0,910 0,263 -0,048
B 0,534 0,349 0,185 35 0,883 0,252 -0,037
F (a) 0,497 0,308 0,189 38 0,870 0,285 0,060
A (a) 0,428 0,303 0,125 29 0,606 0,260 0,032
I (a) 0,483 0,334 0,150 31 0,821 0,254 0,058
Regimes liberais (anglo-saxónicos)
UK 0,599 0,428 0,171 29 0,896 0,218 -0,024
I R L
0,492 0,351 0,141 29 0,772 0,212 0.023
(a)
Regimes do Sul Europeu
E (a) 0,524 0,392 0,132 25 0,791 0,216 0,038
EL (a) 0,472 0,363 0,109 23 0,838 0,165 0,030
P (a) 0,480 0,380 0,100 21 0,745 0,187 0,039
Fonte: ras, pommer & schut (2002) (adaptado)
(a) para este país o rendimento mercantil é calculado líquido de impostos directos (fonte ECHP).

A ideia central do estudo é que a distribuição do rendimento líquido é


influenciada pelo papel redistributivo dos Estados-providência, em particular

173
© Universidade Aberta
pelos impostos e pelas transferências. Deste modo, o sistema fiscal e o sistema
de segurança social fazem uma “correcção” à distribuição do rendimento
originada pelo mercado, a qual consiste no rendimento do trabalho (por conta
de outrem e por conta própria) e no rendimento de propriedade. Importa
assim colocar a seguinte questão: em que medida as instituições do Estado-
-providência reduzem as diferenças de rendimento entre as famílias?

Há assim dois conceitos de rendimento cuja distribuição, uma vez comparada,


permite medir este efeito redistributivo: a) o rendimento mercantil (que
abrange os salários brutos, nele incluindo as contribuições patronais para a
Segurança Social, os lucros, os juros e as rendas); b) o rendimento disponível
(o rendimento após o pagamento dos impostos directos e das contribuições
para a Segurança Social e após o recebimento das transferências da Segurança
Social). A diferença de desigualdade do rendimento nas duas concepções
referidas permite medir o efeito conjunto das transferências e dos impostos
e contribuições para a redução da desigualdade. Permite assim responder
à questão colocada. Por outro lado, conhecendo a forma como este efeito
pode ser decomposto, nas componentes “percentagem no rendimento” e
“progressividade”, como se viu atrás (expressão 6.22), poderemos assim ver
em que medida a diferente natureza dos Estados-providência se manifesta
na sua distinta capacidade redistributiva.

Recordemos a expressão (6.22), da qual podemos deduzir a seguinte


expressão equivalente:
tr
(6.22a) G´ − G = (CTR − G ) + (G´ − G*)
1+ tr
em que o coeficiente de Gini do rendimento após estas transferências (G´)
menos o coeficiente de Gini do rendimento antes dessas transferências
(G) depende da intensidade média dessas transferências (rácio tr), da
progressividade dessas transferências (medida pela diferença entre o
coeficiente de Gini do rendimento antes destas intervenções ( G ) e o
coeficiente de concentração destas intervenções (CTR)) e uma diferença
entre G´ e o valor do concentração do rendimento após estas intervenções
( G * ), que constitui um “factor de correcção” (na última coluna do Quadro
6.1) resultante do facto de G´ e G* serem medidas de concentração que se
baseiam em diferentes formas de ordenação das famílias, como se sabe.

Não é fácil encontrar informação estatística que permita uma análise


comparativa entre países desta medida e factores de efeitos redistributivos.
Assim, os autores do estudo usaram dois tipos de fonte para fazer esta
análise, o que levou a que, para alguns (DK, FIN, S, D, B, UK), sendo a
informação baseada em dados do LIS (Louxembourg Income Study), o
rendimento mercantil seja calculado antes do pagamento dos impostos, e
para os restantes (F, A, I, IRL, E, EL, P), na ausência desta fonte, se usaram

174
© Universidade Aberta
os dados do European Community Household Panel (eurostat), em que
o rendimento mercantil é líquido de impostos. Daí que, ao compararem-se
os países, devemos ter em consideração o facto de para o primeiro grupo de
países se estar a avaliar o efeito conjunto dos impostos e das transferências,
enquanto para o segundo grupo de países se estar a analisar estritamente o
efeito das transferências. Devemos, portanto, ser cautelosos na análise deste
quadro.

Verificam-se diferenças significativas entre os países no que respeita ao


efeito redistributivo conjunto do sistema fiscal e do sistema de segurança
social. Dada a dificuldade em fazer-se análise comparativas correctas, apenas
fica um apontamento genérico sobre as principais diferenças encontradas.
Verifica-se, em primeiro lugar que, como tendência genérica, o efeito de
redução das desigualdades do rendimento é maior nos países escandinavos,
de regime social democrata: na Suécia a redução da desigualdade é de 40%, a
mais elevada entre os países analisados. No extremo oposto encontram-se os
países do Sul da Europa: em Portugal a redução da desigualdade é de 21%, a
menor entre os países analisados. Em segundo lugar, verifica-se que a redução
das desigualdades depende, em grau diferente entre os países, dos efeitos
“progressividade” e “intensidade” das transferências. O efeito “intensidade”
é particularmente elevado nos países escandinavos e baixo nos países do
Sul da Europa. Nota-se maior variabilidade, entre os países continentais, de
regime corporativo, no que respeita ao efeito de progressividade, atingido
valores muito elevados (ultrapassando mesmo os países escandinavos) na
Alemanha e nos Países Baixos.

Tenha-se em atenção que a metodologia descrita na secção anterior sobre a


análise do efeito redistributivo das transferências, tendo sido utilizada para
comparar países, com base num estudo feito com esse objectivo, poderia
ser utilizado para comparar medidas alternativas de política (em estudos de
simulação de políticas, quando em fase de preparação), ou em estudos de
avaliação de políticas após a sua realização.

6.7 Efeito das transferências sobre a redução da pobreza

Outra forma de analisar o efeito redistributivo de políticas públicas consiste


em medir o efeito destas políticas na redução da pobreza. Trata-se de um
aspecto importante de avaliação das transferências sociais destinadas à
redução da pobreza. Diferentemente do que foi feito nas secções anteriores,
em que se tomou em consideração toda a distribuição, trata-se agora de
ver o impacto que tais transferências têm sobre uma parte da distribuição,
a que respeita à população com rendimento inferior ao limiar de pobreza.

175
© Universidade Aberta
Trata‑se de uma “questão” diferente, em termos de objectivos de avaliação.
E, naturalmente, requer uma metodologia que é necessariamente diferente.

Este tipo de análise, como se disse acima, só faz sentido quando se


pretendem avaliar medidas de política dirigidas à pobreza, ou porque se
dirigem especificamente a população comprovadamente pobre (por exemplo,
medidas sujeitas a condição de recursos, por exemplo o Rendimento Social
de Inserção), ou de transferências monetárias de substituição de rendimentos
que, não estando estritamente associadas ao estatuto comprovado de pobreza,
atinjam especialmente população de baixos recursos (por exemplo, subsídio
de desemprego).

A metodologia habitualmente utilizada baseia-se na contribuição de


beckerman (1979) e baseia-se, para avaliar o efeito de uma dada
transferência, na comparação da medição agregada da pobreza antes e depois
dessa transferência ter sido realizada. Para se compreender o método, vejamos
a Figura 6.1, com base na qual iremos expor o método seguido, e que ficou
conhecido na literatura como o método dos “rácios de Beckerman”.

Admitamos que podemos identificar e medir dois conceitos de rendimento


distribuído pelas famílias: o rendimento antes de transferências (X0) e
o rendimento após as transferências (X1). Vejamos o que significa esta
diferença. Admitamos que queremos avaliar o efeito redistributivo de uma
certa prestação social, por exemplo, o complemento social para idosos, que é
atribuído à população de idade avançada com rendimento baixo. Antes de essa
transferência ter tido lugar, a população desse país tinha um rendimento X0.
Após essa transferência ter sido paga, e exclusivamente em resultado disso, o
rendimento será X1. Ou, se quisermos, no caso de querermos avaliar uma certa
medida de política em preparação, ensaiando uma simulação de políticas,
que X0 é o rendimento original da população e que X1 é o rendimento que
essa população terá se essa medida de política for aprovada.

Admitamos que estamos a fazer a avaliação do efeito, sobre a pobreza, de


uma certa transferência social pelas famílias de um certo país. Com base no
rendimento antes das transferências, é possível ordenar as famílias de forma
não decrescente, e que estão representadas no eixo das abcissas. O segmento
OST representa a linha de evolução do rendimento dessas OR famílias, assim
ordenadas. Repare-se que há OS famílias com rendimento igual a zero. O
rendimento total das famílias antes das transferências é, então, dado pela
área STR.

176
© Universidade Aberta
rendimento
T
Q´´

O´ Q´

S*

O R
S P Q famílias

Figura 6.1

Admitamos agora que essa transferência é paga às famílias, segundo


alguma regra, que não altere a ordenação das famílias, mas que aumente o
rendimento das famílias de menor rendimento, com variações de magnitude
decrescente com o rendimento, de tal forma que a “nova” linha de evolução
do rendimento após as transferências seja dada pelo segmento S*T. Repare-se
que a família com maior rendimento não veria o seu rendimento alterado após
a transferência. O “novo” rendimento total das famílias (i.e., o rendimento
total das famílias após as transferências) é dado pela área OS*TR. Isto
significa um aumento geral do rendimento das famílias, proporcionalmente
maior para as famílias de menor rendimento. O valor total das transferências
é representado pela área S*OST.

Uma forma de avaliar o efeito destas transferências consiste em analisar em


que medida a pobreza é reduzida em resultado das transferências. Ao fazê‑lo
estamos a analisar a eficácia dessas transferências. Quanto mais próximo
estiver de 1, ou 100%, tanto maior é a eficácia destas transferências, porque
tanto mais elevada é a percentagem da pobreza que se reduz (no limite, se
for 1 essa redução é total, ficando a pobreza erradicada).

Mas em que consiste “reduzir” a pobreza? Pode ter dois significados, ora a
pobreza seja medida pelo número de pobres (ou headcount) ou pelo défice
de pobreza (ou poverty gap), isto é, o valor do rendimento total que “falta” à
população pobre para deixar de ser pobre, isto é, atingir o limiar da pobreza.
No primeiro caso estamos a fazer uma avaliação da eficácia em termos de
incidência, no segundo caso estamos a avaliar a eficácia das transferências
em termos de intensidade.

177
© Universidade Aberta
Para avaliar a eficácia das transferências é necessário ter uma linha de pobreza
definida. Ela está representada, na Figura 6.1, pela recta horizontal ao eixo
das abcissas para o valor OO´.

Vejamos então como medir a eficácia das transferências em termos de


incidência, isto é, em que medida diminui a percentagem da população pobre
em resultado destas transferências. Repare-se que, antes das transferências, o
número de famílias pobres dado pelo segmento OQ e, após as transferências,
pelo segmento OP, o que significa que, em resultado das transferências, há
uma redução do número de pobres em PQ.

Podemos então medir a eficácia das transferências em termos de incidência


pela percentagem da população total que deixa de ser pobre:

PQ
(6.23a) EH1 =
OR
ou, alternativamente, pela percentagem da população pobre que o deixa de
ser em resultado das transferências:

PQ
(6.23b) EH2 =
OQ
Podemos também avaliar a eficácia das transferências em termos de
intensidade, isto é, calcular em que medida as transferências reduzem o
défice de pobreza (poverty gap). Repare-se que, de acordo com o método de
representação na Figura, o valor total das transferências é a área S*OST. Por
outro lado, o défice de pobreza é dado pela área O´OSQ´. As transferências
determinam a redução do défice de pobreza para O´S*P´, ou seja, opera
uma redução de S*OSQ´P´. Então, a medida da eficácia é então dada pelo
rácio:

S * OSQ ' P '


(6.24) ET =
O' OSQ '

Repare-se que há uma parte do défice de pobreza (O´S*P´) que não é


eliminado pelas transferências.

Mas há também uma parte das transferências que não contribui para a
redução do défice da pobreza. Trata-se do valor dado pela área P´Q´T. As
transferências pagas às famílias excedendo, neste montante, o valor que é
necessário para eliminar a pobreza. Podemos então avaliar a eficiência das
transferências, isto é, qual a percentagem das transferências pagas às famílias
que reduzem o défice de pobreza. A eficiência das transferências é tanto maior
quanto menos for a parte “excedentária”, isto é, a que não é necessária para
reduzir este défice.

178
© Universidade Aberta
Pode então usar-se, como indicador da eficiência das transferências, o
rácio:

S * OSQ ' P '


(6.25a) E C1 =
O' OST
em que o denominador é, como vimos, o total das transferências e o
numerador é a redução do défice de pobreza, e pode ser designado por
eficiência de redução da pobreza. Alternativamente, poderíamos medir esta
eficiência tomando, em numerador, não a redução do défice de pobreza
mas o valor das transferências que é paga à população que é pobre antes
das transferência. É o que se pode designar por eficiência vertical destas
transferências. Estariamos então a considerar “não excedentário” o valor das
transferências que fosse pago aos pobres, ainda que colocasse alguns, neste
caso PQ famílias, “acima” do limiar da pobreza e não meramente “sobre”
esse limiar.

S*OSQ'Q''
(6.25b) EC2 =
S*OST
Esta metodologia foi utilizada por rodrigues (2004) para avaliar o
efeito da prestação do rendimento mínimo garantido/rendimento social de
inserção sobre a redução da pobreza. Trata-se de um exercício de simulação
de política social, em que foram utilizados dados do Inquérito aos Orçamentos
Familiares do INE, de 2000.

O autor considerou a distribuição do rendimento obtida deste inquérito e,


com base nas regras de elegibilidade deste benefício social, estimou a valor
da prestação que caberia legalmente a cada família elegível, obtendo assim
uma “nova” distribuição do rendimento, após estas transferências sociais. O
autor calculou o limiar de pobreza como 60% do rendimento mediano por
adulto equivalente, e concluiu que estas transferências reduzem a taxa de
pobreza (incidência) de 19,5% para 19,0% da população total, originando
também uma redução de 15% do défice de pobreza (intensidade). Há portanto,
em consequência desta medida de política, uma modesta eficácia da política
em termos de incidência da pobreza, e uma mais significativa eficácia em
termos de intensidade da pobreza (pobres menos pobres).

O autor calculou também rácios de eficiência, tendo obtido resultados


interessantes. Assim, concluiu que a eficiência na redução da pobreza
(indicador EC1) foi de 89%, o que significa ter sido esta a percentagem das
transferências que efectivamente reduziu a pobreza. O valor da eficiência
vertical (indicador EC2) destas transferências foi de 92%, significando este
rácio a percentagem do valor total das transferências que foi paga às famílias
originalmente pobres. O que significa que, do total das transferências nesta

179
© Universidade Aberta
medida de política, 8% foi paga a famílias que inicialmente não seriam
consideradas pobres.

Vejamos agora a realidade da União Europeia e o efeito que as transferências


sociais têm sobre a pobreza nos vários países, observando o Quadro 6.2.

Quadro 6.2 – Efeito das transferências na redução da pobreza na UE-27 (2004)

%
Pobreza antes das Pobreza após as Redução (em % da taxa
transferências transferências incidência antes)
Regimes social-democratas (países nórdicos)
Dinamarca 30 12 60,0
Suécia 29 9 69,0
Finlândia 28 12 57,1
Regimes corporativos (países continentais)
Alemanha 23 12 47,8
Áustria 24 12 50,0
França 26 13 50,0
Itália 23 19 17,4
Bélgica 28 15 46,4
Países Baixos 22 11 50,0
Luxemburgo 23 13 43,5
Regime liberal (países anglo-saxónicos)
Reino Unido 31 19 38,7
Irlanda 32 20 37,5
Países do Sul da Europa
Espanha 24 20 16,4
Grécia 23 20 13,1
Portugal 26 19 26,9
Países que aderiram mais recentemente
Bulgária 17 14 17,6
República Checa 21 10 52,4
Estónia 24 18 25,0
Letónia 26 19 26,9
Lituânia 26 21 19,2
Hungria 29 13 55,2
Polónia 30 21 30,0
Roménia 24 18 25,0
Eslovénia 26 12 53,8
Eslováquia 22 13 40,9
Malta 21 15 28,6
Chipre 22 16 27,3

Fonte: EC Social Protection and Social Inclusion (2007)

180
© Universidade Aberta
Este quadro compara as taxas de pobreza (incidência) antes e após benefícios
sociais. Estes benefícios sociais são transferências sociais pagas às famílias
para além das pensões (de velhice e de sobrevivência). Ou seja, quer no
cômputo de rendimento antes quer no do rendimento após, estas pensões
estão incluídas. O que significa que as transferências cujos efeitos estão a
ser considerados estão próximos, em termos de âmbito, das políticas sociais
dirigidas à pobreza. Faz, portanto, algum sentido fazer a análise dos dados
deste Quadro, onde os países se encontram agrupados segundo a tipologia
clássica dos regimes de Estado-providência na Europa, tal como estão
consagradas na literatura recente.

O limiar da pobreza é calculado como 60% do rendimento mediano por


adulto-equivalente em cada um dos países da União Europeia. No conjunto
dos 27 países da UE, a incidência da pobreza antes destas transferências
sociais era, com referência a 2004, de 26% da população total e, quando
estas transferências são consideradas, passa a 16%. O que significa que
estas transferências têm, como efeito, libertar da pobreza monetária 38%
das pessoas que estão abaixo do limiar da pobreza no conjunto da União.
Mas esse efeito é diferenciado entre os diversos países, como se pode ver
no Quadro 6.2.

O efeito destes benefícios sociais na redução da incidência da pobreza tem


o seu valor máximo nos países escandinavos, do regime social-democrata
(em particular a Suécia, com uma redução de 69%). E apresenta o seu valor
mínimo nos países mediterrânicos, em particular a Grécia, Espanha e Itália.
Portugal fica acima dos valores do grupo a que pertence. Numa situação
intermédia encontram-se os países de regime corporativo, continentais (com
reduções de cerca de 50%, e de valores bastante uniformes entre si, com a
exclusão da Itália, como vimos) e os países anglo-saxónicos, de regime liberal
(com valores de redução da pobreza um pouco abaixo dos 40%). É nos países
que aderiram mais tarde à UE que encontramos uma maior heterogeneidade
no seu efeito redutor da pobreza.

Leituras complementares

Aconselham-se algumas leituras complementares deste texto, quer de


natureza teórica, quer de metodologias de análise e aplicações empíricas.
Um dos livros cuja consulta se recomenda, e que já foi refenciado par outros
capítulos, é:

• Rosner, P. G. (2003), The Economics of Social Policy. Edward


Elgar.

181
© Universidade Aberta
que, no capítulo 3 (Economic Aspects of Social Policy) trata, nas páginas
70-77, da avaliação do efeito, sobre a desigualdade, da tributação e
transferências e, no capítulo 8 (Poverty), nas páginas 312-334 trata do efeito
das transferências sobre a pobreza.

Um texto que merece ser lido, é uma referência importante na avaliação


de programas sociais em termos do seu efeito sobre a pobreza. Trata-se do
texto em que W. Beckerman apresenta os rácios de avaliação de eficácia e
eficiência de transferências sociais, como nós apresentámos resumidamente
neste capítulo:

• Beckerman, W. (1979), The impact of income maintenance


payments on poverty in Britain, 1975. The Economic Journal, vol.
89, No. 354, pp. 261-279.

A possibilidade de comparer o efeito redistributivo dos impostos e das


transferências encontra-se bastante limitada pela exigência que é colocada
aos dados estísticos requeridos. Daí que estas análises não possam ser feitas
a partir de estatísticas correntes, mas exijam estudos concretos com essa
finalidade. O estudo seguinte, de que foi apresentado uma parte dos seus
resultados, é um estudo conhecido que merece ser lido:

• Ras, M., Pommer, E., Schut, J.M. (2002), Income on the Move,
DG EMPL/E1 Study Series, July 2002

Finalmente, recomenda-se a leitura do seguinte texto, que constitui um


exemplo, com grande interesse e actualidade, de avaliação de programas
sociais dirigidos à pobreza, no caso presente do Rendimento Mínimo
Garantido/Social de Inserção.

• Rodrigues, C. F. (2004), The Redistributive impact of the


Guaranteed Minimum Income Programme in Portugal. ISEG/UTL,
Departamento de Economia, WP09/2004.

Palavras-chave

Os alunos deverão redigir, a partir da consulta de obras de referência,


um parágrafo com o significado, em termos sintéticos, de cada um destes
conceitos

eficácia de programas sociais


eficiência (horizontal; vertical) de programas sociais
rácios de Beckerman

182
© Universidade Aberta
operações (aditivas; subtractivas) de redistribuição
progressividade vs. regressividade de programas sociais

Questões para revisão e reflexão

1. Pode-se considerar que é indiferente, em termos do seu efeito redistributivo,


e portanto nas suas dimensões éticas, o financiamento de programas sociais
ser realizado por: i) contribuições e taxas, suportadas pelos beneficiários;
ii) tributação directa de toda a população; iii) tributação indirecta sobre o
consumo? Apresente argumentos que suportem as suas posições.

2. Admita que o governo decide apoiar um certo programa de formação


avançada no ensino superior, que sabemos ser de acesso restrito, por ser
muito caro para os alunos que os frequentam e que esse financiamento se
traduz num custo para o Estado igual ao do apoio à frequência do ensino
pré-primário. Acha que o seu impacto redistributivo é igual? Discuta em que
condições tal aconteceria.

3. Admita que pretende comparar o efeito sobre a pobreza, em termos de


eficácia e de eficiência, de dois programas sociais: i) o complemento social
para idosos; ii) subsídio de desemprego. Acha que pode fazê-lo e que poderia
comparar os resultados dessas duas análises? Discuta.

183
© Universidade Aberta
Anexo 1

Nota sobre a curva de concentração (generalização da Curva de


Lorenz)

Na apresentação do conceito de curva de Lorenz, feito em pereirinha


(2008), considerámos apenas um atributo ordenável e somável das famílias:
o seu rendimento primário. Foi este o atributo utilizado para analisar a sua
concentração entre as famílias. Mas repare-se que este rendimento primário foi
obtido por soma de duas componentes: Remi e ELEi . Poderá então interessar
conhecer a concentração do rendimento para cada uma destas componentes
do rendimento total e poderemos também querer saber qual a contribuição
que cada uma destas fontes de rendimento poderá ter para a concentração do
rendimento total das famílias. Repare-se que, embora estejamos a pensar em
duas componentes do rendimento primário, este raciocínio e a metodologia
que vamos apresentar pode ser usada, por analogia, no estudo do efeito de
impostos directos ou de transferências para a concentração do rendimento
disponível, o problema que tratámos neste capítulo.

Consideremos então que o rendimento primário é obtido como soma de


duas componentes: remunerações e excedente líquido de exploração.
Poderiamos construir curvas de Lorenz separadamente para cada uma destas
componentes, uma vez respeitadas as condições para a sua construção:
valores não negativos de cada uma dessas componentes do rendimento e a
ordenação das famílias de forma não decrescente de cada uma das fontes
do rendimento. Teriamos assim uma curva de Lorenz para a repartição das
remunerações entre as famílias, e uma curva de Lorenz para a repartição do
Excedente Líquido de Exploração entre as famílias.

Veja-se, com atenção, a exigência imposta à ordenação das famílias. Para a


representação da curva de Lorenz da concentração do rendimento primário,
procedemos a uma ordenação das famílias segundo o seu rendimento
primário. Se pretendermos analisar a concentração das remunerações entre
as famílias, teremos então de fazer um procedimento consistente com
aquele, isto é, ordenar as famílias segundo as remunerações. Ou seja, para
traçarmos a curva de Lorenz relativa a um certo atributo, para descrever a
concentração do valor total desse atributo entre as famílias, estas devem ser
ordenadas segundo o valor desse mesmo atributo para a determinação dos
correspondentes pi e qi. Isto não impede, no entanto, que possamos fazer
a representação da concentração de um certo atributo A para analisar a
concentração do valor total desse atributo A entre asfamílias, usando como
critério de ordenação das famílias um outro atributo, B. Não podemos, neste
caso, designar a curva correspondente como a curva de Lorenz do atributo

184
© Universidade Aberta
A. Diz-se, neste caso, que estamos a traçar uma curva de concentração que
é uma “generalização” do conceito de curva de Lorenz.

Mas vejamos um pouco melhor o problema em questão.

Consideremos dois atributos A e B das famílias. Admitamos que:

• os atributos A e B são ordenáveis;

• o atributo A tem valor positivo e é somável.

Daqui pode concluir-se que é possível construir a curva de Lorenz da


repartição do atributo A pelas famílias. Foi o que fizémos neste capítulo
relativamente ao atributo “rendimento primário das famílias”, em que as
famílias foram ordenadas de forma crescente do valor deste atributo.

Vejamos agora como construir uma curva de concentração do atributo A entre


as famílias, mas ordenadas segundo o outro atributo, B. Vamos supor que
existem n famílias, cada uma delas caracterizada por um par de atributos, A
e B. A família i é assim caracterizada pelo par de valores (Ai , Bi), em que
Ai é o valor do atributo A para a família i, e Bi é o valor do atributo B para
a família i, para i = 1, ..., n.

É possível proceder a uma ordenação das famílias segundo o atributo B.


Consideremos as famílias ordenadas de forma crescente do valor deste
atributo, ou seja, em que:

(1) B1 < ... < Bi < ... Bn


Considerando esta ordenação das famílias por ordem crescente do atributo
B, podemos agora formar o vector:

(2) (A1,..., Ai ,..., An )


em que vamos admitir que o valor deste atributo A é positivo.

Uma vez que as famílias se encontram ordenadas pelo atributo B, nada se


pode dizer sobre a ordenação das famílias segundo o atributo A. Podemos
igualmente obter o valor total do atributo A das famílias, como:
N
(3) ∑A
i =1
i >0

Podemos agora construir duas variáveis p e r e associar a cada família o par


(p,r), em que à família i corresponde o par de valores para estas variáveis,
(pi , ri), com o seguinte significado:

185
© Universidade Aberta
• pi como a proporção das famílias que têm um valor para o atributo
B inferior ou igual a Bi ;

• ri como a proporção do valor total do atributo A das famílias com o


valor do atributo B inferior ou igual a Bi.

Podemos então construir a função:

(4) r = r (p)
em que p ∈ (0,1] ∧ r ∈ (0,1]

Representemos graficamente esta função (Figura 1), em que a variável


p aparece representada no eixo das abcissas e a variável r no eixo das
ordenadas. E vamos introduzir, tal como fizemos para a curva de Lorenz,
duas simplificações nesta representação:

• vamos introduzir o ponto (0,0), isto é, prolongar a representação desta


função, iniciando-a a partir da origem dos eixos;

• vamos representar esta função como uma função contínua,

e vamos designar por “curva de concentração” do atributo A das famílias


ordenadas de forma crescente do atributo B esta representação gráfica da
função r = r (p).

Façamos a interpretação da “curva de concentração” representada na Figura


1. Consideremos, para o efeito, um dado ponto C da curva. A este ponto da
curva de concentração corresponde o valor pi para a variável p e o valor ri
para a variável r. Isto significa que:

1 Q(P)

C
ri

0 pi 1 P

Figura 1

186
© Universidade Aberta
• à proporção pi de famílias de mais baixo valor para o atributo
B corresponde a proporção ri do valor total do atributo A: esta
interpretação corresponde à “leitura” da curva a partir do ponto
(0,0);

• à proporção (1- pi) de famílias de mais elevado valor para o atributo


B corresponde a proporção (1- ri) do valor total do atributo A: esta
interpretação corresponde à “leitura” da curva a partir do ponto
(1,1).

Esta função apresenta as seguintes propriedades:

a) r(0) = 0, o que significa que não existe nenhuma família com valor do
atributo B inferior a Bi , e portanto a “nenhuma” família corresponde
“nenhum” valor para o atributo A;

b) r(1) = 1, isto é, à família com mais elevado valor para o atributo B


está associado, segundo a forma de construção da variável r, o valor
total do atributo A;

c) A função r(p) é crescente, isto é, à medida que a proporção das


famílias vai aumentando (para níveis mais elevados do valor do
atributo B), a proporção do valor acumulado do atributo A vai também
aumentando.

Há porém duas propriedades da curva de Lorenz que não se verificam na


curva de Concentração:

(i) r(p) < p não se verifica como propriedade da curva de concentração:


repare-se que, estando as famílias ordenadas de forma crescente
do atributo B, mas não necessariamente do atributo A, podem
ter-se situações em que, para uma dada proporção xi de famílias,
a proporção do valor total do atributo A correspondente a essas
famílias seja ri = r(pi ) > pi

(ii) A convexidade da função r(p) não se verifica como propriedade


da curva de concentração: podemos ter situações de convexidade
ou não convexidade para esta função (em todo ou parte do seu
domínio). Repare-se que, para sucessivos aumentos, de igual valor,
da proporção de famílias ordenadas de forma crescente do atributo
B, os aumentos correspondentes da proporção do valor total do
atributo A não são necessariamente cada vez maiores.

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Anexo 2

Nota metodológica sobre avaliação de efeitos redistributivos de


transferências

As transferências sociais têm efeito redistributivo. Analisar o seu efeito


redistributivo consiste em comparar a repartição do rendimento incluindo as
transferências com a repartição do rendimento que se observaria na ausência
de tais transferências.

Uma forma de comparar as duas repartições do rendimento (rendimento após


e rendimento antes das transferências) consiste em comparar a desigualdade
destas duas repartições do rendimento (PEREIRINHA, 1988).

Seja:

X rendimento antes das transferências

T(X) transferências (que admitimos ser uma função do


rendimento)

D(X) rendimento após as transferências

Tem-se então

(1) D(X) = X + T(X)


Se considerarmos a ordenação das unidades de rendimento segundo o
rendimento antes das transferências, X, podemos medir a concentração da
distribuição do rendimento X, usando o índice de Gini, como:

(2) G =1 − 2 ∫ F1 (x)f (x)dx
0

Podemos medir a concentração do rendimento D(X) usando o seguinte índice


de concentração (que não é índice de Gini):

(3) G * =1 − 2 ∫ F1[D(x)]f (x)dx
0

Notar que não é um índice de Gini, pois estamos a medir a concentração


do rendimento D(X) considerando a ordenação das unidades de rendimento
segundo X, e não segundo D(X). Se fosse Y=D(X), o índice de Gini de D(X)

seria G =1− 2 ∫ F1[D(x)]f (y)dy
´

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Podemos dizer que

(4) G´ = G * + (G´ − G * )

ou seja, o valor do indice de Gini G´ é igual ao índice de concentração G*


mais um factor de correcção (G´ − G* ) que resulta do efeito, sobre a medição
da concentração, da alteração da ordenação das unidades de rendimento.

A partir de (1) obtém-se:

(5) E [D(X) ]= E [X ]+ E [T(X) ]

e é possível demonstrar que:

(6) E [D(X) ].F1 [D(x) ] = E [X ].F1 (x) + E [T(X) ].F1 [T(x) ]


em que
x
1
E[X] ∫0
(7a) F1 (x) = t f (t) dt

x
1
F1 [T(x) ]=
E[T(X)] ∫0
(7b) T(t) f (t) dt

x
1
F1 [D(x) ]=
E[D(X)] ∫0
(7c) D(t) f (t) dt

De (6) obtém-se

(8) {E [X ]+ E [T(X)]}.F [D(x)] = E [X ].F (x) + E [T(X)].F [T(x)]


1 1 1

e daí:

E [X ] E [T(X) ]
(9) F1 [D(x)]= .F1 (x) + . F1 [T(x) ] =
E [X ]+ E [T(X) ] E [X ]+ E [T(X) ]

E [T(X) ] E [X ] E [T(X) ] E [T(X) ]


= .F1 (x) + . F1 (x) − .F1 (x) + .F1[T(x)] =
E [X ]+ E [T(X) ] E [X ]+ E [T(X) ] E [X ]+ E [T(X) ] E [X ]+ E [T(X) ]

E [T(X) ]
= F1 (x) + .  F1 [T(x) ]− F1 (x)  =
E [X ]+ E [T(X) ] 

e
= F1 (x) + .  F1 [T(x) ]− F1 (x) 
1+e 

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em que:

E [T(X) ]
(10) e=
E [X ]

e portanto
E [T(X) ] E [T(X) ]
e E [X ] E [X ] E [T(X) ]
(11) = = =
1+ e E [T(X) ] E [X ]+ E [T(X) ] E [X ] + E [T(X) ]
1+
E [X ] E [X ]
A expressão em (11) mede, então, a proporção das transferências no
rendimento total (após transferências).

A partir do resultado apresentado em (9) pode deduzir-se a concentração do


rendimento após as transferências, medida pelo coeficiente G* (que, como
vimos acima, não é um coeficiente de Gini)


(12) G * =1 − 2 ∫ F1 [D(x) ]f (x)dx =
0


 e 
=1 − 2 ∫ F1 (x) + .  F1 [T(x) ]− F1 (x)   f (x)dx =
0
1+ e 

e   
∞ ∞ ∞
=1 − 2 ∫ F1 (x) f (x)dx + 1 − 2 ∫ F1 [T(x)]f (x)dx − 1 − 2 ∫ F1 (x)f (x)dx  
0
1 + e  0  0  

isto é:
e
(13) G* = G + (C T − G )
1+ e
em que

(14) CT =1 − 2 ∫ F1[T(x)]f (x)dx
0

é o coeficiente de concentração (não é um índice de Gini) das


transferências.

De (4) obtém-se então


e
(15) G − G´ = (G − CT ). − (G´ − G * )
1+ e

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isto é, a alteração da concentração do rendimento que resulta das transferências
é decomposta nos seguintes efeitos:

• progressividade das transferências (G − CT )


e
• proporção das transferências no rendimento
1+ e
• factor de correcção (que resulta da alteração da ordenação das
unidades de rendimento) (G´ − G * ) .

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© Universidade Aberta
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© Universidade Aberta
309 ISBN: 978-972-674-584-6

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