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TRADUÇÃO

Luiz Paulo Rouanet


Títulooriginal:
Un síngufierpluriel- Lapsychanalyse à l'épreuve du groupe
5, rue Laromiguiêre75240 ParisCedex 05
O Dunod, Paris'2007
ISBN978-2-10-050836-5

Sumário

Preparação: MaurícioBalthazarLeal
Capa:Viviane BuenoJeronimo
Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610): Prefácio........................................
......................................................................................... 11
The caUing of Saint Matthew, 1598-1601.Reme.
Church of San Luigidei Francesi.Oil on canvas.
322x 340 an C 201O.Photo Scala, Florence Introdução .. ·........................................................................................................................ 17
Diagramação:MaurélioBarbosa
Revisãotécnica: Pablo Godoy Castanho Os três pilares do psiquismo.......................................................................................... 18
Revisão:SandraGarciaCustódio A contribuição da clínica psicanalltica do grupo e do sujeito no grupo
para o tratamento de sofrimentos psíquicos "de outro modo inacessíveis"............... 19
O conceito de intersubjetividade e a formação do sujeito no vínculo,
nas alianças inconscientes e nos espaços psíquicos comuns e partilhados................. 21
A superação epistemológica da oposição entre indivíduo e grupo............................. 24

I. Como seapresentoua questãodo grupo na psicanálise........................................... 29


Os pioneiros da invenção psicanalltica do grupo......................................................... 31
Pichon-Rivieree ogrupo operativo...........................................................................
32
S.-H. Foulkese a correnteda grupanálise.................................................................34
W R. Bion e a mentalidadede grupo........................................................................
35
J.Elegere o depósitodo núcleoaglutinadono grupo................................................36
Balançoe desenvolvimento dasprimeiraspesquisas psicanalíticas sobreosgrupos......... 37
Edições Loyola Jesuítas
Rua 1822,341 - lpiranga A corrente francesa de pesquisas psicanallticas sobre o grupo.................................... 39
04216--000São Paulo, SP O interessepelo grupona Françado pós-guerra.......................................................39
T 55 11 3385 8500 Osenunciadosfundadoresdosanosde 1960e a primeirarupturaepistemológica..... 40'
F S511 20634275
O desenvolvimentodas pesquisaspsicanalíticassobreo grupo do início dos
editorial@loyola.com.br
vendas@loyola.com.br anosde 1970até nossosdias.....................................................................................
45
www.loyola.com.br
Todos os direítos ~utvados. Nenhuma pa<te desta obra pode ser 2. O problema epistemológico do grupo na psicanálise................................................ 47
,rprodurida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer
meios (eletr6nico cu mednico. incluindo fotocópia • gravação} ou A especificidade do objeto e do método da psicanálise. A extensão de seu campo.......... 48
arquivada em qu;1lquersistema ou banco de dados sem ~issio
esaita da Editc;,n. A realidadepslquicainconsciente.............................................................................
49
Um dispositivoapropriadoao objetivodo trabalhopsicanalltico............................. 52
ISBN978-85-15-03758-2 A extensãocontroladadas práticaspsicanalíticasé um efeitoda infinitude de
C EDIÇÕES LOYOLA,São Paulo, Brasil,2011 nossoconhecimentodo inam.sciente.........................................................................53
A complexidade dos níveis lógicos do problema psicanalítico do grupo .................. . 54 Formas e processos dos grupos internos ..................................................................... . 104
. 54
O singularprivado,o comum, o partilhado,o diferente.......................................... O inconscientecomogrupointernooriginário........................................................ . 104
Estatuto dasformaçõespsíquicasnos trêsespaçospsíquicos..................................... 55 A fantasia comoparadigmaestruturaldo grupointernooriginário........................ 105
Principios epistemológicos para a análise das relações entre os espaços da realidade Osgruposinternosprimários................................................................................... . 106
psíquica incluídos no grupo ...............................................•.......................................... 56 Os gruposinternossecundários ................................................................................
. 108
O prindpio de constânciae de transversalidadeda matériapsíquica...................... 57 Osprocessosda grupalidadepsíquica...................................................................... . 109
O prindpio de complementaridade......................................................................... . 57 Os gruposinternose a transferência ........................................................................
. 111
O prindpio de plúrifõcalidade.................................................................................
. 58 Em conclusão............................................................................................................
. 112
O prindpio polifôtlico..............................................................................................
. 58
O prindpio de complexidade.................................................................................... 58 6. Formas e processos da realidade psíquica do grupo
O prindpio de incerteza...........................................................................................
. 59
O aparelho psíquico grupal .......................................................................................... . 113
O pri,:»dpiode indeterminaçãomultifatorial.......................................................... . 60
Particularidades da clínicanasfronteirasdosespaçosintrapsíquicose interpsíquicos 60 O modelo do aparelho ps!qtlico grupal ....................................................................... . 115
Conclusão ................................................................................................................. . 61 Os enunciadosbásicosdomodelodo aparelhopsíquicogrupal................................ 116
As determinaçõesda realidadepsíquicade grupo....................................................
. 116
A relação entre sujeito e grupo segundo o modelo do aparelho psíquico grupal .............. 117
3. O grupo como situação psicanalítica ......................................................................... . 63
O grupoé objetode invesrimentos pulsionaise de representações
inconscientes .......... 117
O método da psicanálise: considerações gerais ........................................................... . 64 Osgruposinternossão osorganizadorespsíquicosinconscientesdos vínculos
Trêsproposiçõessobreo métododa psicanálisê........................................................ . 65 com o grupoe do aparelhopsíquicodo grupo ........................................................... 118
As relaçõesentre métodoe teorização......................................................................
. 65 O grupo comocena, cenário,lugar de uma açãopsíquica,de uma figuração
Dispositivo,situaçãoe enquadrepsicanalíticos......................................................... 66 dramatizada.............................................................................................................
. 118
O grupo como dispositivo, situação e enquadre psicanalíticos .................................. . 69 O grupo é para seussujeitosum lugar e um meiode realizações psíquicas.............. 119
As características
morfológicasdas situaçõesde grupo ............................................ . 69 O sujeitonogrupo e o sujeitodogrupo ..................................................................... 120
As regrasestruturantes.
As transferências e a contratransferência em situaçãode grupo 72
A organização das psiques pelo aparelho psíquico grupal .......................................... . 120
Trêsproposiçõ.espara concluir .................................................................................. . 75
As duas sériesde organizadores:psíquicose socioculturais ....................................•..121
O trabalhode aparelhagemna fase inicialdogrupo............................................... . 122
4. Clínica do trabalho psíquico em situação de grupo .................................................. 77 A formaçãodo aparelhopsíquicogrupal e as exigênciasde trabalhopsíquicopara
Apresentação do grupo ................................................................................................. . 79 que seproduza a aparelhagem................................................................................. . 124
As cincoprimeirassessões ......................................................................................... . 79 Osprocessosde aparelhagem................................................................................... . 127
As modalidadesde aparelhagem ..............................................................................
. 129
Perspectivas de análise .................................................................................................. . 91
Trêsposiçõesda mentalidadegrupal:posiçãoideológica, posiçãomitopoética
A fantasia organizadorapsíquicainconscientedogrupo......................................... . 91
e posiçãoutópica......................................................................................................
. 132
A fantasia organizadoraatrai cenáriosfantasmáticose posiçõessubjetivas............. 92
O interesseteóricoe clínicodo modelode aparelhopsíquicogrupal......................... 133
O acessoà fantasia individuale o processode subjetivação .....................................
. 94
Como o processogrupalabrea Marco acessoa sua história.O trabalhoda
intersubjetividade....................................................................................................
. 95 7. Os processos associativos nos grupos
········•·····•··························································
135
Observaçõessobreo objetivoe osprocessosdo trabalhopsicanalíticona situação Especificidade do processo associativo nos conjuntos plurissubjetivos ..................... . 136
psicanalíticade grupo..............................................................................................
. 97 A pluralidadede discursos,a interdiscursividade e ospontosde ligaçãodos
processosassociativos................................................................................................
. 137
5. O grupo como formação intrapsíquica Retomo à clínica. Os processos associativos e as cadeias associativas no grupo com
Grupalidade psiquica e grupos internos ...................................................................... . 99 Marc e os outros ............................................................................................................ . 138
Grupos internos e grupalidade psiquica ...................................................................... . 100 Análisede trêscadeiasassociativas ........................................................................... 138
Osgrupos internos ...................................................................................................
. 101 Genealogiae estruturaçãodos organizadoresdoprocessoassociativo...................... 144
A grupalidadepsíquica............................................................................................
. 102 Os processosassociativosapóso sonhode Michele................................................... . 147
Debatesobrea concepçãode grupos internos........................................................... . 102 Interdiscursividade e polifonia no processo associativo grupal. O trabalho do
A organizaçãogrupalda matériapsíquica.............................................................. . 103 pré-consciente
················"······················································································ 148
A genealogiados organizadoresdo processoassociativocomo indicadorda
l O. As aliançasinconscientes ................................... ........ ...................... ........ ......... ........... 197
interdiscursividade....................................................................................................
148
Interdiscursividadeepolifonia.................................................................................. 149 As alianças inconscientes organizam o vínculo intersubjetivo e o inconsciente de
Perspectivassobreo processoassociativoe o trabalhodo pré-consciente.................. 151 seus sujeitos....................................................................................................................
199
As alianças inconscientes estruturantes........................................................................200
O pactofraterno e o contratocom o Pai....................................................................200
8. As funções fóricas
O contratode renúnciad realizaçãodiretadosfins pulsionaisdestrutivas.............. 201
Porta-palavra,porta-sintoma, porta-sonho................................................................. 153
Os contratose pactosnarcísicos.................................................................................
203
A categoria do internÍedÚrio no pensamento de Freud.............................................. 155
As alianças inconscientes ofensivas,defensivase alienantes........................................ 204
Intermediárioe de/continuidadeintrapsfquica........................................................155
As aliançasofensivas............................
:....................................................................204
Intermediárioe mediaçãoem Psicologiadas massas e em Totem e tabu................ 156
O pacto denegativo....................................................................................................
204
As funções fóricas...........................................................................................................
157 O pacto denegativonosgrupos:exemplosclfnicos....................................................204
As funções ,loporta-palavra ..................................................................................... 158 O pacto denegativoe as aliançasinconscientesna cura individual.A propósitode
As funções doporta-palavra nosgrupos:estudosclínicos.........................................161 duas curasinauguraisdapsicanálise........................................................................ 209
A função fórica do porta-sonho................................................................................163 A comunidadede denegaçãoe a aliançadenegadora...............................................215
O porta-sintoma....................................................................................................... 164 O contratoperverso...................................................................................................
216
O porta-ideale outrasfunçõesfóricas.......................................................................164 Alcancemetapsicológico e interesseclfnicoda noçãode aliançasinconscientes........ 217
A dupla determinação das funções fóricas ...................................................................165
As posiçõesimpostaspela organizaçãodo grupo e as determinaçõesintersubjetivas 11. O sujeito do inconsciente, sujeito do vínculo ..........................................................
,.. 219
dasfunçõesfóricas.....................................................................................................165
A matriz intersubjetiva da subjetivação........................................................................220
As detenninaçõesintrapsíquicasda função fórica do portador................................ 167
O conceitode sujeito................................................................................................. 221
Algumas característicascomuns a todas asfunçõesfóricas....................................... 169
A sujeição..................................................................................................................
222
O acessoà fantasia secundáriae o processode subjetivação.Libertaçãodo "Nós"
9. O espaço onírico comum e partilhado e do "Um'; e acessoao Eu.......................................................................................... 223
A polifonia do sonho.....................................................................................................173 Subjetivaçãoe intersubjetividade.............................................................................. 224
Algumas razões para revisitar a teoria do sonho.......................................................... 174 A posição do sujeito do inconscientena intersubjetividade........................................ 225
O encerramentoepistemológicodo espaçopsíquicodo sonho................................... 175 O sujeitodo inconscienteé sujeitodo vínculo...........................................................225
Revisõesda teoriado sonho ......................................................................................
176 Algumas reformulações metapsicológicasconcernentes à teoria do inconsciente..... 227
Trêsproposiçõessobreo sonho...................................................................................177 A duplapertençametapsicológica dos conceitospropostos.......................................227
A polifonia do sonho no grupo.....................................................................................178 Tópicasdo inconsciente.............................................................................................
228
O estofooníricodo grupo..........................................................................................178 Dinãmica compostade conflitospsíquicos................................................................ 228
O sonho no estofooníricodo grupo:exemplosclínicos............................................. 180 Elementosde uma economiacruzada....................................................................... 229
As funções do sonho nosgrupos................................................................................ 182
Sobreo que incide o trabalhode análisedo sonho em grupo?.................................. 183 Conclusão geral....................................................................................................................
231
O espaço onírico comum e partilhado na situação da cura psicanalítica.
Bibliografia...........................................................................................................................
233
Estudos clínicos..............................................................................................................
184
Os dois irmãose a matriz materna de seus sonhos...................................................185 fndice de palavras-chave ..................................................................................................... 241
Sonhos do analista,sonhosdo analisando................................................................186
fndice onomástico................................................................................................................
245
O espaçooníricooriginário:o berçopsíquicodo recém-nascido...............................188
Os conceitos de espaço onírico comum e partilhado, de umbigo intersubjetivo do
sonho e de polifonia do sonho podem nos esclarecersobre os processos gerais
do sonho 1........................................................................................................................ 191
Um espaçooníricocomum e partilhado entre váriossonhadores.............................192
Os dois umbigosdo sonho......................................................................................... 192
A polifonia do sonho................................................................................................. 193
Paracontinuar..........................................................................................................195
Prefácio

O presentelivro dirige-sea uma audiênciade leitoresmaisvasta do que aquela


formada pelos psicanalistasde grupo praticantes.Foi escrito com a ideia de que as
pesquisasque empreendinosúltimosquarenta anossobreos grupos e agrupalidade
psíquica poderiam contribuir para um debate relevanteno campo da psicanálise
contemporânea'. Toda a questão resideem compreender como o sujeito singular,'
aquele com quem lidamos no divã, é também um sujeito cujo inconsciente é
mantido e moldado nos vínculosintersubjetivosdos quais elefazparte, nas alianças
inconscientesque o precedem e que ele contrata por conta própria, nos espaços
psíquicoscomuns que ele partilha com outros. A abordagem psicanaliticade gru-
pos é um dos meios para colocaressa questão e para encontrar alguns elementos
de resposta. Porém, para ter êxito, é preciso primeiramente compreender como
funciona um grupo e como se forma uma realidade psíquica que lhe é própria.

1. Na sequência do Congres de La Nouvelle-Orléans (março de 2004), cujo tema foi


"A psicanálise e suas fronteiras'; a Comissão de Publicações da Associação Internacional
de Psicanálise me propôs escrever um livro que responderia a essa questão: "Em que a
abordagem psicanalítica de grupos importa aos psicanalistas?''. Aceitei com gratidão
responder à questão proposta, pois ela testemunha uma abertura da qual a psicanálise
necessita. A versão inglesa deste livro foi publicada simultaneamente por Klara King, em
Londres, sob o título Links,Alliancesand SharedSpaces:Groups and the Psychoanalyst.
O projeto deste livro foi iniciado e apoiado por Emma Piccioli e Cesare Sacerdoti, a quem
desejo agradecer calorosamente. Sou igualmente grato a Christine Anzieu, André Misse-
nard e Jean Henriet por terem se disposto a efetuar uma leitura atenta dos primeiros
esboços desta obra.
Para esta edição em português, gostaria de agradecer ao senhor Luiz Paulo Rouanet, por
sua bela tradução, e ao senhor Pablo Godoy Castanho, pela ajuda que me forneceu na
revisão técnica deste texto.
12 Um singular plural Prefácio 13

Eu tentara fornecer a essa questão um primeiro esboço, não de resposta, mas os processos associativos,osmecanismos de defesa e as modalidades de interpre-
de problemática, propondo um modelo bastante geral a fim de explicar a concor- tação. Tentei apreender na clínica assim constituída os principais processos do
dância entre as psiques e a realidade psíquica original daí resultante, sem todavia trabalho psicanalítico em situação de grupo.
deixar de lado a parte que nessas formações originais cabe à psique dos sujeitos Esse terceiro volume do poüptico que se construía progressivamente en-
que compõem esse grupo. Esse duplo ponto de vista me parecia indispensável frentava um debate epistemológico central: era preciso, uma vez mais, pergun-
para efetuar a ligação entre a psicanálise dos processos grupais e a psicanálise dos tar-se em que um dispositivo de acesso a processos e a formações psíquicos de
processos individuais. Essemodelo foi publicado em 1976,com a ajuda e o apoio outro modo inacessíveisabre caminho para novos desenvolvimentos nas con-
de Didier Anzieu, sob o título-programa O aparelhopsíquicogrupal.Construções cepções psicanalíticas do inconsciente. Ou para dizê-lo de outra forma: como
dogrupo.Eu desenvolviaa ideia de que uma tópica, uma dinâmica e uma economia pensar o sujeito do inconsciente e o inconsciente no grupo a partir do momento
próprias caracterizam esse espaço psíquico comum e partilhado. Dito de outro em que o âmbito metodológico desenha novas configurações do objeto funda-
modo, há urha c-riaçãode entidades psíquicas que não se produzem sem o agru- mental da psicanálise?
pamento. O livro descrevia sua organização e seu funcionamento. O trabalho sobre o espaço onírico e o sonho nos conjuntos plurissubjeti-
Alguns anos depois, retomei esse modelo e reformulei seus principais enun- vos relançou sobre novas bases o submeter a testes essas hipóteses, desta vez
ciados.Eu me concentravamenos na metapsicologiadesse aparelho de ligar e trans- situando o núcleo da pesquisa no espaçoe na experiência psíquica concebidos por
formar as psiques do que nas formas de subjetividade que são nele engendradas. Freud como os mais íntimos, os mais "egoístas';os menos expostos aos efeitos de
O principal problema consistia então em estabeleceraquilo em que o conceito de intersubjetividade.
· grupo pode ser pensado com a hipótese do inconsciente. Preocupava-me também O que Freud pensou a respeito do sonho não descreve todas as experiências
com seu corolário: em que o conceito de inconsciente se transforma com a hipótese oníricas de que pode dar conta a psicanálise. O sonho não é mais visto hoje so-
do grupo? O grupo e o sujeitodo grupo ( 1993) apresentava uma primeira versão de mente como realizaçãoalucinatória do desejo e como via real de acessoao incons-
minhas investigaçõessobre as aliançasinconscientes.Pude especificaro objetivo das ciente. Se continuamos a compreender o sonho no interior do espaço da realidade
pesquisasque até então eu empreendera: a partir dos conhecimentos do inconsciente intra psíquica em que ele é necessariamenteproduzido por um sonhador singular,
aos quais a situação de cura individual e a situação psicanalítica de grupo nos o estudo de suas condições internas, de seus processos, de seus conteúdos e de
facultam o acesso, situar e pôr em ação as hipóteses e os conceitos que tornam seu sentido mostra que o sonho é também urna experiência criadora, reparadora,
possívela inteligibilidadeda aparelhagementre essesdois espaços.Cada uma dessas transformadora. Mas continua a ser o caso que a concepção do sonho no espaço
duas situações é o local de surgimento, mas também a matriz de transformação da intrapsíquico liga-se estreitamente ao conhecimento que temos da psique a partir
experiência psíquica estruturada pelo inconsciente. Trata-se, enfim, de encontrar do dispositivo de cura individual.
na psicanálise a matéria e a razão de uma teoriageraldo grupo que possa fazer Por outro lado, alguns psicanalistasvoltaram sua atenção, na clínica da cura
sentido para a compreensão da psique individual e para a psique de grupo. Eu me individual, para a formação, para a consistência e para o destino dos sonhos cru-
baseavaem vários estudos clínicos a fim de sustentar que o sujeito do inconsciente zados do analista e do analisando, para as interferências entre seus sonhos de
é sujeito do grupo e, de modo mais geral, sujeito da e na intersubjetividade. sessões e para o estatuto dos sonhos contratransferenciais do analista.
Minhas proposições iniciais comportavam necessariamente uma parte espe- Enfim,as práticas psicanalíticasque se deram como objeto a realidade psíqui-
culativa, ainda que eu tenha me preocupado em assentar minhas pesquisas sobre ca nas configurações de vínculos, e que o exploraram especialmente em situação
bases clínicas suficientemente sólidas. Eu precisava explicar e definir com a maior de grupo e de família, conduziram-nos a levar em consideração outras ordens de
precisão possível o âmbito metodológico de minha prática. A fala e o vínculo.Os determinação do sonho. Os efeitos do vínculo em espaços psíquicos comuns e
processosassociativosnosgrupos( 1994) foi a ocasião para mostrar em que consiste partilhados se inscrevem também nos espaços oníricos e nos próprios sonhos.
o dispositivo psicanalítico de grupo em sua relação com as exigências metodo- Infletem seus conteúdos e funções.A questão central passa a ser esta: como pen-
lógicas da psicanálise. Expus nessa obra as características morfológicas da situa- sar a experiência onírica quando a relação dos sonhadores com seus sonhos é
ção de grupo (pluralidade, face a face, interdiscursividade), a fim de definir suas atravessada pelos sonhos de outros sonhadores? Foi a essa questão que tentei
incidências, a partir do enunciado da regra fundamental, sobre as transferências, responder em A polifoniadosonho (2002).
14 Um singular plural Prefãcio 15

Supus um espaço onírico comum e partilhado, no qual o sonho é trabalhado dirigida ao processo de subjetivação, ao tornar-se Eu num conjunto intersubje-
por uma e numa multiplicidade de espaços, de tempo, de sentido e de vozes. O tivo, que esta obra encontra seu fio condutor.
espaço interno do sonho, as condições de sua formação e de sua organização se O grupo primário é o espaço e o processo em que o Eu 2 pode advir, sob a
comunicam com o espaço onírico partilhado e comum a vários sonhadores. É nesse condição de que o sujeito, tendo efetuado e contratado nesse grupo as alianças
espaço que o sonho se fabrica, se sonha, e que se partilha no relato que dele é feito. estruturantes necessárias à formação de sua vida psíquica, deixe esse grupo e, no
Forneci vários exemplos. movimento de uma nova afiliação, ponha em jogo, para poder se apropriar deles,
Retomando a metáfora freudiana do umbigo do sonho enraizado no micélio os conteúdos de sua filiação.
psicossomático, introduzi a ideia de que existe um segundo umbigo do sonho, É uma aventura desse tipo que aborda Caravaggioem A vocaçãodeSãoMateus,
um local de passagem em que o sonho mergulha no inconsciente os mais antigos obra reproduzida na capa deste livro. O motivo religioso também tem seu inte-
vínculos interpsíquicos. O grupo familiar é o primeiro berço onírico do recém- resse, mas o que importa aqui éo alcance mais geral do movimento de subjetivação
nascido. Ess~s dois umbigos repousam sobre o "~o" de onde surgem que produz esse apelo:
os sonhos.
O conceito de polifoniado sonhointegra a noção de um espaço onírico plural, Tu, saias daí, abandona esses familiares e torna-te o que és.
comum e partilhado e o de dois umbigos do sonho. Ele descreve como o sonho é
trabalhado por uma e numa multiplicidade de espaços e de tempos, de imagens e Pouco importa que esse homem siga um outro, que ele se envolva em outro
de vozes. Em cada sonho, restos diurnos e noturnos dos próprios sonhos e dos grupo. O que conta aqui é o trajeto, a surpresa do apelo, na medida do espanto sús-
sonhos de alguns outros formam a matéria-prima do sonho, e essa matéria é poli- citado pela "vocação" na qual o sujeito se reconhece, e que decidirá sua partida.
fónica. O trabalho do sonho os transforma, em parte apagados, em parte legíveis, Este livro não poderia ter sido escrito sem as aberturas e o impulso que Didier
como num palimpsesto, amalgamados num texto que só se toma decifrável se dis- Anzieu forneceu a suas pesquisas e das quais O grupoe o inconsciente,publicado
pomos de uma hipótese suficientemente precisa para decodificá-los e para restituir em 1975, abriu caminho a várias gerações de praticantes e de pesquisadores. É à
a experiência onírica em seus procedimentos de criação poética. sua memória que dedico estas páginas.
Este livro, portanto, é uma espécie de obra de síntese, ao mesmo tempo em
que reúne algumas interrogações que poderiam constituir motivo de pesquisas
ulteriores. Por exemplo, como nossa concepção dos processos psíquicos incons-
cientes dos quais o grupo é o local poderia esclarecer o funcionamento do gru-
po dos primeiros psicanalistas, ou de certos grupos inovadores. Ou ainda, outro
exemplo, como o complexo fraternal, até há pouco esquecido pela clínica e pela
teorização psicanalítica, poderia reencontrar consistência e relevo à luz dessas
pesquisas.
Após alguns capítulos de introdução, decidi organizar minha exposição em
tomo de uma situação clínica princepsjá conhecida de meus leitores. Essa escolha
se justifica pela riqueza e pela complexidade dos níveis de realidade psíquica que
ela revela e que mantêm o gosto de compreender seus meandros. Suas numerosas
facetas, com efeito, autorizam diferentes níveis de leitura e trazem urna matéria
favorável para a análise de certos processos fundamentais, tanto do ponto de vista
da realidade psíquica comum e partilhada que especifica esse grupo quanto da-
quela que é própria a cada sujeito membro desse grupo.
É em definitivo o sujeito, o sujeito do inconsciente tal como o grupo, de
forma decisiva, o forma que é a preocupação central destas pesquisas. É na atenção 2. Ao longo de todo o livro traduzi/e por"Eu" e moi por"ego". (N. do T.)
Introdução

Uma interrogação constante atravessa as pesquisasque exponho neste livro,


forma seu fio condutor: procurei saber como se forma,se transforma ou se aliena a
psique do sujeito singular atravésdas diversas modalidadesde vínculos intersubje-
tivosque o precedem, que eleestabelecee que finalmenteo constituem, de maneira
decisiva,como sujeito do inconsciente. As alianças inconscientes que se estabele-
cem entre os sujeitos de uma configuração de vínculo (um casal,urna família,um
grupo ... ) são, desseponto de vista, poderosas interfacesentre a realidade psíquica
do vínculo e a de cada sujeito considerado em sua singularidade.
Essaspesquisas não são certamente estranhas às preocupações de Freud, que,
de modo especulativo,esboçou várias direções. Porém, o método do divã não lhe
permitiu desenvolvê-lasde maneira satisfatória,na medida em que ele não permite
um acesso direto às formações e aos processos psíquicospróprios às configurações
dos vínculos intersubjetivos,ainda que a formação de alianças inconscientes não
seja estranha à experiênciapsicanalítica da cura. No entanto, o campo trânsfero-
contratransferencial não se reduz a semelhante configuração, e se fornece um
vislumbre dela limita-se a acolher alguns de seus efeitosnum sujeito considerado
em sua singularidade, em condiçõesem que o psicanalistanão se apresenta ao ana-
lisando como um conjuntode outros reais,mas como um representante imaginário
ou simbólico de seus objetos e de seus personagens internos.
Diferentesdo dispositivoda cura individual são os dispositivosem que vários
sujeitosse encontram em presençade um psicanalistanum âmbito preciso, regrado
pelo método psicanalítico.Desde a segunda metade do século XX, o trabalho psi-
canalítico em grupo e com os grupos permitiu caracterizaro que designo como a
realidade psíquica inconsciente própria aos conjuntos plurissubjetivos, tais como
os grupos, as famíliase os casais.Um importante trabalho de teorização foi realizado
com base nessesdispositivos,e a maior parte dessasconstruções centrou-se nades-
crição das formações e dos processosda realidadepsiquicapróprios a essesconjun-
18 Um singular plural Introdução 19

tos. Pichon-Riviere,Bion, Foulkes,Anzieu e alguns outros conceberam,cada um tempo subjetivas(a psique materna) e intersubjetivas(o encontro entre esta e a do
deles,uma teoria do grupo, considerando-o como uma entidade específica. infans).De modo correlato,o vínculo intersubjetivose inscrevena sexualidadee
Meu trabalho foi tentar uma articulação entre a realidade psíquica do grupo na fala e as marca com seus efeitos.Sexualidade,fala e vínculo cooperam de ma-
e a do sujeito singular, a fim de tentar explicara parte que cabe a este na formação neira distinta e fundamental para a formação do inconscientedo sujeito e para a
daquela, e a maneira pela qual o sujeito se forma na intersubjetividade como construção de seu Eu. No mesmo movimento, essestrês pilares contribuem para
sujeito do inconsciente. a formaçãoda realidadeps!quicainconscientedo vinculointersubjetivo.
Assim especificado, ô conteúdo dessas pesquisas ultrapassa o objetivo de Toda a obra de Freud é pontuada por proposiçõesque não limitam o conhe-
uma psicanálise aplicadáao grupo.Ainda que a clínica ocupe um lugar importante cimento do inconscienteà dimensãoda sexualidade,emboraele tenha situado esta
nesta obra, não redigi um tratado de psicoterapiapsicanalitica de grupo. O méto- no centro de sua descobertae tenha se dotado de um método paradigmático para
do psicanalitifO de grupo possui certamente um grande interesse terapêutico, explorarsua consistênciae para articulá-lacom esseoutro pilarque é a fala.A ideia
mas é também uma via de acesso a um problema fundamental: o da consistência de que o outro é para a psique de cada um objeto, modelo, apoio e adversário
inconsciente entre o vinculo intersubjetivo, o funcionamento inconsciente do (FREUD1921, G. - W.XIII, p. 71 ), de que "o destino do homem individual depende
sujeito no vinculo e o sujeito inconsciente enquanto sujeito do vinculo. Uma de suas relaçõescom os outros homens" (FREUD1932, G.-W.XV, p. 180; CEuvres
certa concepção do inconsciente se extrai do estudo das relações entre essestrês completes,XIX, p. 242-268) é também uma proposição insistente,mas pertence à
espaços da realidade psíquica. construção especulativada teoria psicanalítica.Ainda assimé uma hipótese forte,
Trata-se de um programa complexo,que comporta postulados, pressupostos cujo conceito teórico-clínico correspondente é o da identificação.No entanto,
ehipótesesqueteremosdeexplicitar.Contudo,deve-seadmitirque,seconseguirmos apenas com esse conceito,assimcorno com o de relaçãode objeto, não podemos
fundamentar essashipóteses na clinicae na teoria, e abrir alguns caminhos de pas- construir uma teoria psicanaliticado vinculo, pelo motivo de que no vinculo o
sagem entre esses três espaços psíquicos,será provável que certos conteúdos do outro é encontrado em sua concretudee não pode ser reduzidoao mundo interno
conhecimento psicanalíticoe que os limitesde sua prática sejam reavaliados. de seus sujeitos.Para validara hipótese dos três pilaresdo psiquismo e a ideia de
Nessa medida, as questões de que trata este livro deveriam reter nossa aten- que o vinculo se constrói numa realidadepsíquica originalque não se produziria
ção de psicanalistas,quer trabalhemos com o dispositivo do divã ou/e com outros sem o encontro intersubjetivo,era indispensávelsubmetê-losà prova da clínica
dispositivosadaptados à análise das configuraçõesde vinculo. Tentemosdizer em num dispositivoapropriado a essesobjetose conformeàs exigênciasmetodológicas
que essasquestões possuem sentido para os psicanalistas e como elas encontram da psicanálise.A partir daí, os psicanalistaspoderiam se sentir concernidos pelo
lugar na psicanálise. trabalho psicanaliticode grupo por pelo menos três motivos.

OS TRÊS PILARES 00 PSIQUISMO A CONTRIBUIÇÃO DA CLINICA PSICANAL!TICA DO GRUPO E 00 SUJEITO NO GRUPO


PARA O TRATAMENTO DE SOFRIMENTOS PS(QUICOS "DE OUTRO MODO INACESSÍVEIS"
O psiquismo humano repousa sobre três pilares principais: a sexualidadein-
fantil, a fala e os vincules intersubjetivos.Tal é o postulado básico de minhas pes- Um primeiro motivo diz respeito às contribuições específicasdo trabalho
quisas,e suponho que ele pode ser partilhado por muitos psicanalistas.Acrescento psicanaliticoem situação plurissubjetiva' para o tratamento dos sofrimentos psí-
que essestrês pilaresde fundaçãoencontram-se estreitamente relacionados:a longa quicos e das psicopatologias"dificilmente acessíveisde outro modo" 2• Abordar
dependência inicialdo recém-nascido,devida à sua pré-maturação ao nascimento,
é seu lugar geométrico,inflete sobre sua sexualidade,seus vínculos e seu acessoà 1. Refiro-me essencialmente ao dispositivo de grupo conduzido segundo as exigências do
fala e à linguagem. A fala e a linguagemvêm ao infans (aquele que não fala) mar- método psicanalítico. Sobre os critérios desse método, ver adiante, capítulo 3.
cadaspelo recalquede sua sexualidadeinfantile pelas condiçõesintersubjetivasnas 2. Retomo aqui os termos utilizados por FREUD (1923a, G.-W. XIII, 211) quando ele
quais seu ambiente primeiro - a mãe - as traz, transmitindo-lhe seus próprios define a psicanálise como uum procedimento de investigação de processos psíquicos que
conteúdos inconscientes e seu próprio recalque: essas condições são ao mesmo de outro modo são dificilmente acessíveis".
Um singular plural lntroduç4o 21
20

essas contribuições em termos de nosografia 3 é relativamente acessório em relação naquilo que S. Freud descreveu como a comunidade de renúncia à realização
a fatores mais gerais que contribuem de maneira decisiva para produzi-las. direta dos objetivos pulsionais destrutivos, e no que P. Castoriaclis-Aulagnier (1975)
O interesse que os psicanalistas demonstram desde a metade do século pas- teorizou corno o contrato nardsico. Essas alianças formam os enquadres ou pon-
sado pelo valor prático do grupo como dispositivo de trabalho psicanalítico e pela tos de apoio intersubjetivos da subjetividade, são as condições e garantias metapsi-
inteligibilidade dos processos que nele se produzem se inscreve num campo cul- quicas do espaço no qual "o Eu pode advir''. Elas asseguram a transmissão da vida
tural bem delimitado. De modo esquemático, poderíamos dizer que a moderni- psíquica entre as gerações. Seus defeitos ou falhas testemunham a regressão das
dade, pelas rupturas que ·ela introduz nos âmbitos silenciosos sobre os quais formas contratuais do vinculo para relações de força em prol de grupos que detêm
repousa a vida psíquica-'-os pertencimentos comunitários, as crenças partilhadas o poder de definir de maneira arbitrária e violenta as normas sociais e o lugar de
provedoras de certezas, as alianças fundadas sobre interditos fundamentais -, cada um, a ordem e os valores dominantes. Conduzem aqueles que as sofrem a
tomou necessário pensar as funções metapsiquicas4 do grupo. Chamo de meta- deteriorações sociais e psiquicas radicais.
psíquicas fo~ações e funções que enquadram a vida psíquica de cada sujeito. Elas Um terceiro conjunto concerne às falhas nos processos de transformaçãoe
se mantêm no pano defundo da psique individual e entreesta e os enquadres mais de mediação.O que é mais frágilem toda organização viva são as formações in-
amplos - culturais, sociais, políticos, religiosos - nos quais elas se apoiam. O termediárias e os processos articulares. Na vida psiquica, são as condições de pos-
desregramento, as falhas ou os defeitos dessas funções metapsiquicas afetam di- sibilidade do trabalho de simbolização e de formação da alteridade, mas também
retamente a estruturação e o desenvolvimento da vida psíquica de cada um. Che- da capacidade de amar, de trabalhar, de jogar e de sonhar. Essas formações e esses
guei à conclusão d~ que três grandes tipos de falhas estão em jogo. processos são os mais ameaçados pelas crises que afetam as garantias métapsí-
Um primeiro conjunto diz respeito às falhas ou defeitos dos dispositivos quicas. A principal consequência de sua falha está no esboroamento e na exclusão
intersubjetivos de paraex:citações (Reizschutz)e de recalque na estruturaçãodos do pré-consciente, no esmagamento da capacidade de pensar pelo desmorona-
apoiosda vidapulsional.Em lugar de objetos internos estáveis e confiáveis, desen- mento das representações verbais. O trabalho do pré-consciente está sempre es-
volvem-se formações clivadas e não subjetivadas, desfavoráveis aos processos de treitamente associado à atividade de simbolização e à construção do sentido no
simbolização e de sublimação. Um sofrimento nardsico intenso está na base das vinculo intersubjetivo.
condutas antissociais que se desenvolvem nessas condições. Essas falhas afetam
as condições de formação do inconsciente e do pré-consciente.
Um segundo conjunto é constituído pelas falhas nos processos de formação O CONCEITO DE INTERSUBJETIVIDADE E A FORMAÇÃO DO SUJEITO NO VINCULO, NAS

das identificaçõese das aliançasintersubjetivas estruturantes de base. Essas alianças ALIANÇAS INCONSCIENTES E NOS ESPAÇOS PSÍQUICOS COMUNS E PARTILHADOS

são a substância do vinculo intersubjetivo, estão em posição meta em relação às


formações intraps!quicas. Consistem nos pactos que instituem os principais in- Urna segunda razão para que os psicanalistas se sintam concernidos pela
terditos (proibição do assassinato do semelhante, do canibalismo, do incesto), abordagem psicanalítica do grupo e do sujeito no grupo reside na contribuição
que ela traz para a problemática da intersubjetividade. Essa questão interessa à
3. Nosografia: que diz respeito à descrição ou explicação das doenças. (N. do T.) maior parte dos psicanalistas contemporâneos, mas ela se opõe a suas tradições
4. Meta:quando essa preposição entre em composição com certos conceitos, ela indica culturais e a suas referências teóricas.
mudança de lugar, de condição ou de posição (metáfora, metabolismo, metatese) ou a Não é meu projeto apresentar a situação atual da intersubjetividade, mas
sucessão no tempo ou no espaço (meta ta phisika: a metafisica vem após a física em preciso explicitar corno trabalhei com esse conceito'. Utilizo essa noção em seu
Aristóteles;sobre o mesmo modelo: metamatemática, metapsicologia etc.). ~essa segunda
acepção que me interessa, pois ela indica que temos de pensar após o evento os dispositivos 5. Lembrarei somente que o conceito de intersubjetividade foi primeiramente construído
de fundo que enquadram os processosou as formações que observamos, e que, portanto, com as problemáticas filosóficase psicológicas da consciênciae do sujeito em suas rela-
lhes são preexistentes. Poder-se-ia admitir que o nível meta designa um nível de deter- ções com o reconhecimento de outrem. As fontes de inspiração dessas problemáticas são
minação desses fenómenos. ~ nesse sentido que falo de organizações metapsiquicas: o diversas,resultaram da fenomenologia,da linguística da enunciação,da psicologia da in-
espaço do grupo está em posição meta em relação ao espaço psíquico individual. teração (com G.-H. Mead), da etnologia. Quando o etnólogo e psicanalista G. Deverem:
22 Um singular plural Introdução 23

contexto europeu. Entendo por intersubjetividade não um regime de interações várias teorias da intersubjetividade. Na sequência do pós-hegelianismo, Lacan
comportamentais entre indivíduos que comunicam seus sentimentos por empatia, foi um dos primeiros a introduzir a noção, privilegiando seus efeitos de alienação
mas a experiência e o espaço da realidade psíquica que se especificapor suas relações sobre um sujeito essencialmente submetido ao desejo do outro, este não passando
de sujeitos enquanto sujeitos do inconsciente. A intersubjetividade é aquilo que de um representante inadequado do grande Outro. Lacan só descreve a realidade
partilham esses sujeitos formados e ligados entre si por suas sujeições reciprocas psíquica que se produz no epelo vínculo intersubjetivo para reter sua consistência
- estruturantes ou alienantes - aos mecanismos constitutivos do inconsciente: imaginária. Sua crítica do grupo é consequência disso.
os recalques e as negaçõesem comum, as fantasias e os significantes partilhados, os Mesmo que o conceito de intersubjetividade não apareça como tal em P.
desejos inconscientes e~ proibições fundamentais que os organizarn6 • Castoriadis-Aulagnier,é a essas conjunções de subjetividadesque ela dedica uma
O desenvolvimento das problemáticas não psicanalíticasda intersubjetividade atenção assídua. Essa preocupação se marca em três noções importantes: o con-
contrasta com a fraqueza da elaboração dessa questão na psicanálise, com algu- trato narcfsicoconcluído entre o sujeito e o "conjunto em que o Eu pode advir" e
mas poucas eiceções notáveis7• No campo da psicanálise pós-freudiana, coexistem sua função identificadora; a função de porta-palavra desempenhada pela mãe
que acompanha as experiências psíquicas do infanse a estruturação de sua psique
descobre,nos anos de 1930,que ele é "um outro para esses outros" cuja civilizaçãoele pelos enunciados de interdito; os estados de alienação e o tratamento pelo cole-
procura conhecer,abre nova perspectivasobre a questão. Essasabordagensmodernas tivo do desejo de autoalienação.
possuemalgunsantecedentes:bem antes de Hegele Husserl,antes da difusãoda filosofia Para levar em consideração o conjunto dos processos e das formações da
'doreconhecimentoe da reciprocidadecom Bubere Lévinas,a alteridadedo outro é pensa- intersubjetividade, é preciso recorrer a outra lógica dôs processos psíquicos. A
da em relaçãocom a alteridadeinterna.Montaignenos precedeem algunsséculosquando uma lógica dos processos e das formações internas é necessário articular uma
escreveque "há tanta diferençaentre nós e nós mesmosquanto de nós a outrem~Essa lógicadas correlaçõesde subjetividades,
uma lógica da conjunção e da disjunção, cuja
intuiçãode urna diferençainterna,de urna distânciade si a si no centro do sujeitocontém fórmula poderia ser assim enunciada: "Não há uma sem a outra e sem o conjunto
as premissasda moderna sentençade Rimbaud:"Eu é um Outro~ Fórmulacertamente que as constitui e mantém; uma sem a outra, mas no conjunto que as reúne''. Essa
intrassubjetiva,que desvelaum sujeitodividido,mas que deve ser conjugadacom um fórmula sustenta que não podemos deixar de estar na intersubjetividade. Isto
contrapontonecessáriopara fundartoda reciprocidadeintersubjetiva:a experiênciaqueEu significa, como pensou Winnicott a respeito do bebê, que o sujeito se manifesta e
é um Outro se baseia nessaexperiênciaprévia de que o Outro é um Eu para um outro só existe em sua relação com o outro, e acrescento: com mais de um outro. Isto
Eu. Pode-secom razãoconsiderarque essareciprocidade,simétricaou assimétrica,é uma significatambém que o caminho do "tornar-se Eu': do Ichwerdenfreudiano, assim
aquisiçãotardia, na espéciee para cada sujeito.Continuavalendoque essaconcepçãoda como as topadas e os impassesdesse futuro estão traçados na relação intersubjetiva
alteridadeque passa pelas vicissitudesda alteridadeinterna define a intersubjetividade com o outro: isto é verdadeiropara a criança, para o tomar-se homem e para o tor-
de maneirabem menosoperatóriaque a do interacionismo,que remeteem essênciapara nar-se mulher, para o tornar-se pai e para o tornar-se mãe.
feixesde comportamentosou, com Stolorowe Atwood(1992),para o contextualismo. A intersubjetividadenão é somente a parte constitutiva do sujeito que se dá na
6. Para maioresdesenvolvimentossobre a questãodo sujeito,da intersubjetividadee da subjetividadedo outro ou demais de um outro. Ela se constrói num espaço psíquico
subjetivação,cf. l<AEs1993;1998;2006. próprio a cada configuraçãode vínculos.Isto é o mesmo que dizer que a questão da
7. Pode-seperguntarpor que os psicanalistasse abstiveramdurante tanto tempodessede- intersubjetividade consiste no reconhecimento e na articulação de dois espaços
bate.Deve-seter emvistaváriasrespostas.Podeter havidoo temorde que pôr a intersubje- psíquicos parcialmente heterogêneos,dotados cada um de lógicaspróprias•.
tividadecomocondiçãodepossibilidade da vidapsíquicaseriaarriscarfazerderivaro campo
da psicanálisedo intrapsíquicopara o relacionalou para o interacional.Temorempartefun. 8. O prefixointerindicaque,alémde umanecessáriareciprocidade, simétricaou assimétrica,
dado,masque confundeo problema(a intersubjetividade comocofundamento,como cor- entre dois ou mais sujeitos,são as distânciasentre essessujeitosque tomam possívelo
poral,da psique) comuma de suas abordagensconceptuais(o interacionismocomporta- surgimentodos Eus.Enquantono conceitode transubjetividade,o prefixotrans designa
mental).Mas,sobretudo,a meradenúnciadessaderivaacabapor mascararcertonúmerode o que ocorre atravésdos sujeitose defineurna constantee uma continuidade,o prefixo
dadosbásicosdecisivospara o próprio psicanalista:que a questãoda intersubjetividade é inter assinalaa descontinuidade,
a distânciae a diferençaentreos sujeitosem relação,suas
postadesdea fundaçãoda psicanálisecomo uma das condiçõesda vida psíquica. distinçõesdefinindosuasrelaçôesde identidadeque podemse contrapor(cf. I<Ai!s1993).
24 Um singularplural Introdução 25

Entendida nesse registro, a problemática da intersubjetividade abre acesso indivíduo9• Tarde, Le Bon e Durkheim, Weber e Canetti, mas também Freud e
a sofrimentos psíquicos e a formas da psicopatologia contemporânea que só Moreno, sobre bases diferentes,participam desse movimento. Era preciso explicar
podem ser compreendidos, analisados e aliviados quando são articulados com os também o papel específicoque podiam desempenhar os pequenos grupos como
valorese funções que eles assumiram ou que continuam a assumir para um outro, variáveis de regulação entre o indivíduo e as massas e como lugar de processos
para vários outros e, finalmente, para o grupo, do qual o sujeito é parte consti- especlficos.Ainda que tenha sido o primeiro a introduzir a noção de psique de
tuída e parte constituinte. grupo (Gruppenpsyche), Freud não se interessou por esse nível da organização
Resumindo minha posição, diria que a problemática da intersubjetividade psicossocial.Foram K Lewine alguns outros que, mais tarde, com outros métodos
abre uma questão central da psicanálise: concerne às condições intersubjetivas e outros postulados, explicaram a dinâmica dos grupos, concebendo-os· como
da formação do inconsciente e do sujeito do inconsciente. Nessas condições, entidades específicas.É notávelque essaspreocupações pelas massas e pelo grupo
chamo de intçrsubjetividade a estrutura dinâmica do espaço psíquico entre dois tenham aparecido no mesmo momento em que começavam a se firmar os mitos
ou vários sujeitós. Esse espaço compreende processos, formações e experiên- e as ideologiasindividualistas.Os efeitosde ruptura introduzidos pela modernidade
cias específicos, cujos efeitos infletem o advento dos sujeitos do inconsciente e nas continuidades entre o grupo, a sociedade global e os indivíduos setraduziram
de seu futuro Eu no seio de um Nós. Segundo essa definição, estamos muito essencialmentenuma oposição do indivíduo à massa, às instituições e ao grupo.
distantes de uma perspectiva que reduziria a intersubjetividade a fenómenos de Freud supera essaoposição,mas não sem dificuldade,poisela atinge o projeto
interação. epistemológico inicial da psicanálise.Para constituir seu objeto, reconhecer-lhe a
identidade forte e transformadóra que a ela se impunha, Freud e, com ele, a psi-
canálise trataram o inconsciente e a realidade psiquica que ele gera no limite do
A SUPERAÇÃO EPISTEMOLÓGICA DA OPOSIÇÃO ENTRE INDIVIDUO E GRUPO espaço intrapsíquico e de suaacessibilidadepor meio da cura individual.O modelo
da cura se funda sobre o modelodo sonho, paradigma do espaçointrapsiquico e de
Existe uma terceira razão para nos interessarmos pela articulação entre as seus objetos.Seesse corte epistemológicoinvocavauma congruência metodológica
formações e os processos da realidade psíquica próprios ao sujeito singular e rigorosa, ao mesmo tempo punha fora de seu campo todo objeto que se situasse
aqueles que especificam a do grupo. De ordem epistemológica, ela concerne ao no exterior do espaçoprinceps,intrapsíquico.
campo dos objetos que a psicanálise se propõe a conhecer por meio de seu mé- Aindaque o pensamentoespeculativodescubra que o campo teórico dapsicaná-
todo específico.Devemos admitir que esses objetos jamais se limitaram ao estudo lise se estende além desse espaço- os trabalhos de "psicanáliseaplicada"dos pri-
exclusivoda psique individual, mesmo que o método de acesso ao conhecimento meiros psicanalistaso testemunham -, a necessidadede salvaguardara prática da
do inconsciente tenha sido feito a partir da situação paradigmática da cura indi- cura e a transmissão da psicanálisepor meio exclusivodo divãcontra práticas des-
vidual. A base principal do conhecimento psicanalítico repousa sobre essa situa- viantes ou temidas como taisimpuseram-se rapidamente ao grupo de pioneiros.
ção, mas ela sempre se confrontou, seja no modo especulativo, seja no modo das Essetemor-e as acusaçõesde má intenção que o alimentam-manifesta-se
aplicações,com objetos mais vastos e saberes constituídos em outras disciplinas: especialmente a propósito do grupo: são constantes no movimento psicanalítico,
a biologia, a linguística, a etnologia e a psicologia social. tanto em Freud, quando T.Burrow lhe propõe estender a prática da psicanálise
Entre os problemas que surgem quando se tenta pensar a articulação entre ao dispositivo de grupo'º, como em Klein, quando ela pressiona Bion a renunciar
sujeito singular e grupo no campo próprio à psicanálise,a oposição entre o indiví- a seu interesse pelo grupo, e ainda em Lacan, grande denunciador da obscenidade
duo e o grupo retorna regularmente. É a meu ver um falso problema e importa que os efeitos imaginários do grupo instauram e entretêm.
compreender que a insistência nessa oposição procede de várias fontes. Uma delas Essasposições não são somente medidas de preservaçãoda identidade da psi-
liga-se histórica e culturalmente à confrontação do pensamento ocidental com a canálise, das instituições da psicanálise e da ortodoxia das teorias que ela fundou
ascensão das massas urbanizadas e industriais na segunda metade do século XIX.
Ela conduziu vários pensadores europeus a desenvolverconcepções que pudessem 9. Jogo de palavras intraduzível. Em francês, La Joule est folie et elle rend fou l'individu.
explicar as forças e formações específicasque organizam as massase as instituições, (N.doT.)
e que determinam sua loucura e seus desvios. A massa é louca e toma louco o 10. Sobre esseepisódio, cf. RUITENBEEK 1966 e BURROW 1927.
Um singular plural Introdução Zl
26

com base na exploração do inconsciente e no tratamento dos conflitos internos indivíduo e o grupo persistiu na cultura psicanalítica, conservando ao mesmo
de um sujeito singular. É verdade que constituir o grupo como um dispositivo de tempo grandes resistências a introduzir"o conjunto", mais precisamente o grupo,
trabalho psicanalítico, pensá-lo como espaço no qual o inconsciente produz efeitos como um dos termos da formação do sujeito.
específicos,quer se trate desta ve:znão de denunciar, mas de conhecer, conceber suas O terceiro momento se afirma em 1921, na introdução de Psicologia de grupo
consequências no espaço intrapsiquico e na formação do sujeito do inconsciente, e análisedo ego.Essa introdução nos é particularmente preciosa: ela anuncia que,
é incorrer no risco de introduzir outro paradigma na epistemologia da psicanálise. "na vida psíquica do indivíduo tomado isoladamente (derEinulne), o outro (der
Mas assumir esse risco·é rambém abrir as fronteiras da psicanálise, como foi o Andere) intervém bastante regularmente enquanto modelo, apoio e adversário, e
caso para a psicanálise das crianças e dos pacientes psicóticos ou borderline. devido a isso a psicologia individual é também, de uma vez e simultaneamente,
Assumir esse risco é também aplicar a escuta psicanalítica aos efeitos do uma psicologia social, nesse sentido ampliado mas perfeitamente justificado''. Se
grupo que, d~sde a fundação da psicanálise, se propagam em suas instituições, admitimos que aquilo de que fala Freud se afirma ainda mais do lado do sujeito,
em seus grup"os e-na transmissão da própria psicanálise. mais do que do lado do indivíduo, encontramos nesse texto um dos enunciados
Vemos agora que a oposição entre indivíduo e grupo é mantida por vários fundadores de uma abordagem intersubjetiva do sujeito, ao mesmo tempo em
fatores. O debate epistemológico alimenta-se de diversos núcleos de resistência que a hipótese de que o conjunto dos outros forma uma Gruppenpsyche.
ao conhecimento dos efeitos grupais do inconsciente: uns são epistemofílicos, Se recebemos de Freud as premissas de um pensamento que busca essa pas-
outros institucionais. Podemos utilizar essas resistências como ponto de partida sagem entre o sujeito singular e o grupo, resta que essas aberturas permaneceram
de uma pesquisa. especulativas. Pelas razões supradeterminadas que supus, elas não foram postas
A despeito dessas resistências e de suas expressões táticas, a oposição entre à prova da clínica num dispositivo apropriado e congruente com as exigências
indivíduo e grupo não foi jamais realmente sustentada por Freud, a fundo. Na metodológicas enunciadas a partir da situação paradigmática da cura dos adultos
linguagem de sua época, ele formulou os primeiros esboços da superação dessa neuróticos. Será somente mais tarde- mais de dois terços de século hoje - que
oposição com conceitos construidos a partir da situação de cura individual. psicanalistas trabalharão com dispositivos de grupo (depois de família e de casal).
Três momentos dessa superação são exemplares. O primeiro aparece desde Eles construiram então modelos e conceitos para dar conta da consistência e das
Toteme tabu (1912-1913),com a hipótese (dieAnnahme) de uma psique de massa modalidades da realidade psíquica que descobriam.
(einerMassenpsyche),noção que descreve tanto uma realidade psíquica especifi- Nessa ocasião, poderia ter sido aberto um debate epistemológico, não só
ca quanto um continuum com a psique dos indivíduos que compõem o grupo. porque esses conceitos e essesmodelos obrigam a revisitar as hipóteses fundadoras
Essa noção se especifica em psique de grupo ou alma de grupo ( Gruppenpsyche, da psicanálise, mas também porque eles invocavam um exame crítico das condi-
Gruppenseele)em Psicologiade grupo e análisedo ego ( 1921). ções metodológicas que enquadram nossas concepções do inconsciente. Ora, nada
O segundo momento segue de perto o primeiro: em 1914, Freud escreve, em disso ocorreu, e que eu saiba nunca ninguém se perguntou por quê. É tempo,
Paraintroduziro narcisismo,que o indivíduo leva uma dupla existência:é o fim para portanto, de iniciar esse debate sobre a questão epistemológica decisiva: como pen-
si próprio e encontra-se submetido a "uma cadeia" da qual ele é elo, beneficiário, sar, com aquilo que a abordagem psicanalítica do grupo e do sujeito no grupo nos
servidor e herdeiro. Nesse mesmo texto, Freud nota que o narcisismo da criança se ensinou, as relações entre a construção da teoria da psicanálise, seu objeto fun-
apoia sobre os sonhos de desejo irrealizados de seus pais. Podemos ler essa observa- damental e o método que abre o acesso a seu conhecimento e a seus processos de
ção como consequência dessa dupla existência. Observamos então que não é so- transformação? Podemos esperar que aquilo que está em jogo do ponto de vista
mente do indivíduo, em sua ancoragem corporal e biológica, que fala Freud: trata-se propriamente psicanalítico aparecerá mais claramente ao final deste estudo.
do sujeito na medida em que está submetido a uma ordem intersubjetiva que o Espero ter começado a mostrar em que o conhecimento da realidade psíqui-
constitui: a dos desejos inconscientes daqueles que o precedem. ca que especifica os grupos em enquadre psicanalítico concerne aos psicanalistas.
Essa primeira proposição implica com efeito uma dupla determinação da Distingui três motivos principais: qualificar a experiência do inconsciente que
vida psíquica do "indivíduo", uma interna e outra externa, ambas provavelmen- tais dispositivos tornam possível; conduzir o tratamento dos sofrimentos psíqui-
te interdependentes, mas a questão não é posta diretamente nesses termos. Essa cos que se ligam nos vínculos, alianças e espaços psíquicos intersubjetivos e que
proposição permaneceu quase que letra morta, de tal modo a oposição entre o a cura individual só pode tratar através de seus efeitos num sujeito considerado
28 Um singular plural

em sua singularidade; elaborar as questões epistemológicase metodológicas que


essa prática engendra. O objetivo deste livro é desenvolver essas proposições e
fazer aparecer mais claramente aquilo que está em jogo do ponto de vista pro-
priamente psicanalítico.
Os quatro primeiros capítulos terão por objetivo apresentar o quadro geral
da abordagem psicanalíticados grupos. Precisaremos,em primeiro lugar,qualificar
os diversos problemas p·osfospela extensão do campo de investigaçãoe de práti-
cas da psicanálise.Recorutituiremos,em segundo lugar,algumas etapas significati-
vas do surgimento do interessepelo grupo no interior do movimento psicanalítico.
Em terceiro lugar, definiremos as dimensões próprias a um dispositivo e a uma
situação psicanalíticosde grupo. Forneceremos,por fim,um apanhado substancial
dos processose formações da realidade psíquica subjetivae intersubjetiva a partir
da clínica de um grupo de settingpsicanalítico que formará o fio condutor das
elaborações conceptuais posteriores.
Com base nisso e ao longo dos seis capítulos seguintes, descreveremos os
1
principais elementos de um modelo psicanalítico do grupo e do sujeito no grupo. Comose apresentoua
Essemodelo distingue e articula três níveis de realidade psíquica nos quais se questãodo grupo
manifestam os efeitos do inconsciente. O primeiro descreve o grupo como uma
na psicanálise
formação intrapsíquica:os conceitosde grupos internos e de grupalidade psíquica
dão conta disso. O segundo nível considera a realidade psíquica do grupo; este é
c~ncebido como uma formação específica,que ao mesmo tempo precede o sujei-
to, se constrói pela aparelhagem ou reunião de psiques de seus membros e adquire
autonomia em relação a estas. Os conceitos de aparelho psíquico grupal, alianças
inconscientes, espaço onírico comum, fantasias partilhadas, sintomas conjuntos,
cadeia associativae pensamento de grupo descrevemessasformações e esses pro-
cessos. O _terceironível trata dos processos, formações e pessoas que constituem
vínculo entre o grupo e os membros do grupo. Essaspessoas realizam especial-
mente as funçõesfóricasde porta-palavra,porta-sintoma,porta-sonho e porta-ideal
Quando essas proposições forem apresentadas, poderemos retornar à ques-
tão central que nos preocupa na qualidade de psicanalistas:compreender como
o sujeito do inconsciente se encontra inelutavelmente submetido a um conjunto
intersubjetivo de sujeitos do inconsciente. Se o sujeito do inconsciente é sujeito
do vínculo, não basta que o objetivo da psicanálise se enuncie como "ali onde era
isto, Eu deve se tornar"; é preciso também que o Eu se liberte das formações es-
truturantes e alienantes do grupo para assumir-se como herdeiro de sua história
tecida na intersubjetividade.
Como se apresentou a questão do grupo na psicanálise 31

As teorias psicanalíticas do grupo que se construiram na Europa, nos Estados


Unidos e na Argentina se atribuíram por tarefa inicial pensar o grupo enquanto tal,
independentemente de seus membros constituintes: o grupo como um conjunto
que forma uma entidade específica.Essa primeira abordagem, centrada no grupo,
era sem dúvida necessária para se ter acesso ao conhecimento psicanalítico da rea-
lidade psíquica que aí se constitui. Mas ela colocava também a questão da legitimi-
dade desse objeto em relação à psicanálise baseada na prática da cura individual. A
questão do sujeito singular (do indivíduo) em sua relação com o grupo só apareceu
bem mais tarde e de maneira relativamente marginal. A partir desse momento,
outras questões se apresentaram, sem que por isso tenham sido postas em debate.
É que a concepção do sujeito muda, e com ela o pensamento do inconsciente, se os
consideramos segundo o dispositivo da cura ou segundo o dispositivo do grupo.
O grupo foi inicialmente uma "aplicação" da psicanálise a sujeitos que não Está fora do propósito e dos limites deste capítulo escrever a história desses
podiam se beneficiar da cura ou de uma psicoterapia individual em suas formas desenvolvimentos. No entanto, é útil descrever não os acontecimentos e seus en-
clássicas. Revelou-se mais tarde que o dispositivo de grupo, devido a processos que cadeamentos, mas antes as principais orientações da pesquisa, as ênfases e as
geram suas características morfológicas próprias, podia apresentar um interesse tendências que finalmente constituíram os elementos do pensamento psicanalí-
notável para o tratamento de sujeitos que sofriam de problemas específicos: neu- tico sobre o grupo. Sobretudo, tentarei revelar em que o grupo constitui problema
roses graves, psicoses ou estados-limite. Outra aplicação do grupo, introduzida par- para a prática e a teoria psicanalíticas, esperando encontrar no levantamento de
ticularmente por Bion, permitiu tratar de maneira económica os sofrimentos psí- suas contribuições e de seus obstáculos a matéria para um debate sobre os objetos
quicos ligados a traumatismos efetivos coletivos, no caso em tempos de guerra. fundamentais da psicanálise, sobre a extensão de seu domínio e sobre as fronteiras
A essas três aplicações mais conhecidas acrescenta-se aquela em que o dis- que ela se dá em sua prática contemporânea.
positivo de grupo é utilizado para fins de formação pessoal para o conhecimento
dos "fenómenos de grupo': especialmente para o conhecimento por experiência dos
efeitos do inconsciente que se produzem naquela situação. Outra aplicação de obje- OS PIONEIROS DA INVENÇÃO PSICANALITICA DO GRUPO

tivo formativo diz respeito à aprendizagem de uma prática ou à formação de uma


identidade profissional. Éo caso quando uma parte da supervisão dos psicanalistas Quando psicanalistas se viram diante da necessidade de inventar uma alter-
em formação se faz em grupo, quando o grupo é um tempo de passagem na for- nativa para a cura individual, o dispositivo de grupo rapidamente pareceu ade-
mação dos psicanalistas (o cartel teve essa função na economia do "passe" em quado para o tratamento de certos pacientes. Esses psicanalistas, em sua maioria,
Lacan),ou quando o grupo é utilizado para estruturar a identidade e a experiência estavam envolvidos em situações em que deviam tratar de problemas de psiquia-
clínica dos médicos sob a conduta de psicanalistas médicos (grupos Balint). tria pesada, em dispositivos institucionais que os agravavam, segundo uma lógica
Todas essas práticas deram lugar a elaborações teóricas mais ou menos pre- louca da aparelhagem da loucura com os conjuntos coletivos cuja tarefa primária
cisas, mas permaneceram na maior parte das vezes à margem dos debates que sua é precisamente tratá-la: foi o caso de E. Pichon-Riviere, em Buenos Aires. Muitos
expressão deveria ter legitimamente despertado na comunidade psicanalítica. Bem deles, como S.-H. Foulkes, em Londres, tiveram de buscar alternativas terapêuticas
pelo contrário, a maioria dessas práticas suscitou e ainda suscita reações que vão diante dos fracassos da cura individual: os arranjos necessários eram então difi-
da indiferença silenciosa à tolerância desconfiada ou à rejeição passional violenta. cilmente pensáveis, dadas as rupturas teórico-clínicas que eles produziam em
Pelo menos por esse motivo, seria razoável examinar em que o grupo - como relação às próprias categorias da psicanálise. Outros ainda tiveram de enfrentar
configuração de vínculos, como objeto de investimentos (ou de contrainvestimen- situações de urgência, neuroses traumáticas engendradas pela guerra, e precisaram
tos) e de representações, e como meio dessas práticas - mobiliza questões igual- inventar dispositivos económicos (no sentido financeiro e psíquico do termo) para
mente importantes para a identidade, a transmissão e a instituição psicanalíticas. tratá-las, descobrindo assim sua eficácia: foi o caso de W.-R. Bion, no início da
Como se apresentou a questão do grupo na psicanâlise 33
32 Um singular plural

Segunda Guerra Mundial. Houve também aqueles que, entre os psicanalistas, psiquiatria confrontada com as disfunções do hospital: ele mesmo faz a expe-
entenderam por bem levar em consideração imperativos de saúde pública e de riência do grupo como um poderoso meio de ação social e um notável instrumento
gestão de recursos terapêuticos. Na França, o desenvolvimento das práticas de grupo terapêutico para o indivíduo. Nessa ação nascem vários conceitos prático-teóri-
terapêutico inspiradas pela psicanálise no final da Segunda Guerra Mundial se fez, cos, especialmente o de grupo operativo.
em parte significativa, sob o efeito dos objetivos da nascente seguridade social e Pichon-Riviere definiu o grupo operativo como "um grupo centrado na
do projeto de reforçar os processos de socialização prejudicados pela guerra e pela tarefa cuja finalidade é ensinar a pensar em termos de resolução as dificuldades
urbanização. Entre as primeiras tentativas, muitas se inscreviam na tradição que criadas e manifestadas no campo grupal, e não em cada um de seus membros, o
faz do grupo um instrumento a serviço do social ou do pedagógico. que seria uma análise individual em grupo. Ele tampouco se centra exclusivamente
Ora, a psicanálise visa a outro objetivo: livrar a psique de seus entraves psíqui- no grupo, como nas concepções gestaltistas, exceto pelo fato de que, a cada aqui-
cos. A psicanálise grupal se situa nesse projeto: seu objetivo é desatar os vínculos agora-comigoda tarefa, se trabalha em duas dimensões, realizando numa certa
intersubjetivos' geradores de perturbações nos vínculos e nos sujeitos do vínculo. Ao medida uma síntese de todas as correntes. Consideramos o paciente que expressa
abrir caminho para o conhecimento dessa parte da psique individual envolvida na o que ocorre no grupo como o porta-palavra de si mesmo e das fantasias incons-
"alma do grupo': ligada a ela por formações e processos que ultrapassam cada cientes do grupo" (1965; 1980, p. 128).
sujeito, esses psicanalistas foram confrontados com problemas clínicos, metodo- Ao comentar essa definição, M. Bernard' mostrou bem a importância em
lógicos e teóricos que os conduziram aos confins da psicanálise e de outras disci- Pichon-Riviere dí! referência à psicologia social norte-americana, por exemplo aos
plinas. Estas, fundadas cm outras concepções da vida psíquica, eram dotadas de cenceitos de grupo centrado na tarefa e de aprendizagem social. No entanto, com
hipóteses que deveriam, cedo ou tarde, revelar-se em oposição à hipótese consti- a noção do trabalho aqui-agora-comigo, Pichon-Riviere leva em consideração as
tutiva da psicanálise: a de um inconsciente psicossexual de origem infantil, sepa- dimensões do campo transferencial, já reconhecidas por Foulkes quando distingue
rado da consciência, mas agindo sobre ela de maneira específica e constante. a transferência horizontal (grupal) e a transferência vertical (individual).
As primeiras teorias psicanalíticas do grupo, como veremos, não se consti- Os princípios diretores de s~u pensamento só se manifestaram mais tarde.
tuíram logo de saídasobre bases metodológicas psicanalíticas. A importação de con- O modelo de Pichon-Riviere propõe uma compreensão do grupo em termos mais
ceitos extraterritoriais para o campo da psicanálise se efetuou ao risco de teoriza- marcados por uma psicologia social psicanalítica 2• Estas linhas escritas em 1972
ções às vezes bastardas e de práticas ambíguas, mas ela teve também ocasião de recapitulam muito bem as principais hipóteses de sua pesquisa:
naturalizar problemáticas até então excluídas do campo da pesquisa psicanalítica:
os conceitos de intersubjetividade, pertencimento e alienação resultaram dessa A psicologia social que temos em vista se inscreve numa crítica da vida cotidiana.
aculturação. Segundo sua herança cultural e o gênio próprio de seus fundadores, O que abordamos é o homem imerso em suas relações cotidianas. Nossa cons-
as diferentes correntes ou escolas psicanalíticas elaboraram corpusteóricos para ciência de suas relações perde seu caráter trivial na medida em que o instrumento
explicar formações e processos psíquicos dos quais o grupo é o lugar. No entanto, teórico e sua metodologia nos permitem pesquisar a gênese dos fatos sociais.
a construção de urna metapsicologia da intersubjetividade e de uma teoria do [ ... ] A psicologia social que postulamos tem por objeto de estudo o desenvol-
sujeito do inconsciente, na medida em que ele é conjuntamente sujeito do grupo, vimento e a transformação de uma relação dialética que se estabelece entre a
efetuou-se mais tardiamente. f: o caminho para o qual progressivamente orientei estrutura social e a fantasia inconsciente do sujeito, e que se baseia nas relações
fundadas sobre as necessidadesdeste. Em outros termos, trata-se da relação entre
minhas pesquisas.
a estrutura social e a configuração do mundo interno do sujeito, relação que é
abordada através da noção de vínculo. ( ... ] O sujeito não é somente um sujeito
em relações, é também um sujeitoproduzidonuma práxis: não há nada nele que
Pichon-Riviere e o grupo operativo
não seja a resultante da interação entre indivíduo, grupos e classes. Essa relação
Na Argentina, as primeiras pesquisas de E. Pichon-Riviere sobre a utilização
1. Cf. PuGBT et ai. 1982.
do grupo como instrumento de formação e de terapia precedem em alguns anos
as iniciativas de Foulkes e de Bion. A ideia inicial tem sua origem na prática da 2. O subtítulo de El procesogrupalé Dei psicoanálisisa la psicologiasocial.
Um singular plural como se apresentou a questão do grupo na psicanãlise 35
34

sendo objeto da psicologia social, o grupo constitui o campo operacional privi- Dessas três proposições deriva, para Foulkes, a de que o grupo possui pro-
legiado dessa disciplina, e isto porque ele permite a busca do jogo entre o psicos- priedades terapêuticas específicas.Ele justifica desse modo a prática da análise de
social (grupo interno) easociodinãmica (grupo externo) por meio da observação grupo que elabora em Londres no início dos anos de 1940:
das formas de interação, dos mecanismos pelos quais os papéis são atribuídos e
A ideia do grupo como matriz psíquica, terreno comum das relações de operação,
assumidos. E é a análise das formas de interação que nos permite estabelecer as
incluindo todas as interações dos membros participantes do grupo, é primordial
hipóteses sobre os processos determinantes.
para a teoria e o processo da terapia. Todas as comunicações sobrevêm no in-
terior desse quadro de referência. Um fundo de compreensão inconsciente, no
Vê-se bem aqui saa tentativa de articulação, mais do que de síntese, entre
qual se produzem reaçõese comunicações bem complexas, está sempre presente
certas hipóteses psicanalíticas e outras emprestadas tanto da psicologia como das
(FOULKES 1964; ed. fr. 1970,p. 109).
diversas correntes filosóficas: a escola gestaltista, a psicologia da aprendizagem,
0 interacionísrno grupal, a dialética marxista e sartriana. Quanto à psicanálise, Foulkes vê toda doença como se produzindo no interior de uma rede com-
vários conceitos pichon-rivierianos são inspirados pelo pensamento de M. Klein plexa de relações interpessoais, e nesse sentido ele considera que "a psicoterapia de
e de S.Isaac, especialmente quando ele lhes toma emprestadas certas características grupo é uma tentativa para tratar a rede inteira de perturbações, seja no ponto
de sua concepção da fantasia, mas modificando-as consideravelmente. Pichon- de origem no grupo de origem - primitivo-, seja situando o indivíduo pertur-
Riviere define de maneira explícita que o objetivo do grupo operativo é o baliza- bado em condições de transferência num grupo estranho" (1964). O grupo possui
mento e a interpretação das fantasias inconscientes subjacentes que emergem da propriedades terapêuticas específicas que exprimem as cinco ideias fundamentais·
tarefa manifesta, e que se condensam no grupo em medos específicos, como o do da grupanálise foulkesiana:
ataque do ego (angústias paranoicas) e o da perda do objeto (angústias depres- l. o partido de escutar, compreender e interpretar o grupo enquanto tota-
sivas), e em resistências à mudança. Todavia, para Pichon-Riviere essas fantasias lidade no "aqui-agora";
não são de origem pulsional: são o resultado das experiências relacionais dos mem- 2. a tomada em consideração apenas da transferência "do grupo" sobre o
bros do grupo. Éeste um ponto de debate entre esse autor notavelmente inventivo analista, e não das transferências laterais;
e inovador e alguns de seus contemporâneos e sucessores. 3. a noção de ressonânciafantasmática inconsciente entre os membros do grupo;
4. a tensão comum e o denominador comum das fantasias inconscientes do
grupo;
S.-H. Foulkes e a corrente da grupanálise 5. a noção de grupo como matriz psíquica e quadro de referência de todas
as interações.
No início dos anos de 1940, S.-H. Foulkes, J.Rickman e H. Ezriel fundam em Em sentido amplo, a grupanálise éum método de investigação das formações
Londres as bases do que constituirá a corrente da Group-analysis. Essa corrente se e processos psíquicos que se desenvolvem num grupo; baseia seus conceitos e sua
inscreve na perspectiva estrutural do gestaltismo. Formado em Frankfurt, Foulkes técnica em certos dados fundamentais da teoria e do método psicanalíticos, e em
conservou a ideia central da abordagem estrutural do comportamento inaugurada elaborações psicanalíticas originais requeridas pela tomada em consideração do
por Goldstein e a aplicou a sua concepção do indivíduo e do grupo. Sob o risco de grupo enquanto entidade específica. Num sentido mais restrito, a grupanálise é
simplificar, poder-se-ia caracterizar essa perspectiva por três proposições: o grupo uma técnica de psicoterapia de grupo e um dispositivo de experiência psicanalítica
é uma totalidade e a totalidade precede as partes, é mais elementar do que elas, do inconsciente em situação de grupo.
não é a soma de seus elementos; o indivíduo e o grupo formam um conjunto do
tipo figura-fundo; o indivíduo em um grupo é como o ponto nodal na rede de
neurónios. A prioridade teórico-clínica é dada ao grupo como entidade específica. W. R. Bion e a mentalidade de grupo
Essas três proposições apresentam o grupo como precessão do indivíduo e este
como um elemento do grupo, não como um sujeito parte envolvida na construção Ao mesmo tempo em que Foulkes inventa a grupanálise, e no mesmo hos-
do grupo. Minha concepção difere da de Foulkes sobre esse ponto. pital de Northfield, W. R. Bion propõe outra concepção original das formações e
Um singular plural Como se apresentoua questãodo grupona psicanálíse
36

dos processos de grupo. Como Foulkes,que busca uma alternativa aos limites da ção, isto é, uma não-individuação;esse tipo de relação se impõe como matriz ou
cura individual, Bion conta com a mobilização específicados processosde grupo como estrutura básica de todo grupo, e ele persiste de maneira variável durante
para o tratamento de certas patologias traumáticas, borderlinee psicóticas.Porém, toda a sua vida. Chamarei a essetipo de relaçãosociabilidadesincrética,para dife-
sua teoria do grupo e sua prática se constroem com base em outras hipóteses.Bion renciá-lo da sociabilidadepor interação[... ]" (1970;ed. fr. 1987,p. 48).A sociabi-
(1961) fundamenta sua análise sobre categorias centrais da psicanálise quando lidade sincréticase baseianuma imobilizaçãodas partes não diferenciadasou sim-
distingue duas modalidades do funcionamento psíquico em pequenos grupos: o bióticasda personalidade;num grupoou numa instituição,essaspartes são clivadas
grupo de trabalho, em quê prevalecemos processose as exigênciasda lógicasecun- das formaçõesdiferenciadasque, elas,são mobilizadasna sociabilidadepor intera-
dária que organizam a ~epresentaçãodo objeto e do objetivo de grupo, a organi- ção; esta corresponde a um jogo de trocas intersubjetivasque produz efeitosindi-
zação da tarefa e dos sistemas de comunicação que permitem sua realização; o viduantes e formas manifestasde interação.
grupo de bas~,em que predominam os processos primários sob a forma de pressu- O conceito de sociabilidadesincréticainclui o de núcleo aglutinado: alguns
postos básicos (basicassumption)em tensão com o grupo de trabalho. anos antes (1967), Blegersupôs que os primeiros conteúdos da psique do bebê
A mentalidadede grupo é a atividademental que se forma num grupo a partir se constituíam de um núcleo aglutinadoinicialmente depositado na psique ma-
da opinião, da vontade e dos desejos inconscientes,unânimes e anônimos de seus terna. Essenúcleo é a base, a partir de mecanismos de identificação projetiva, da
membros. As contribuições deles para a mentalidade de grupo, que constitui seu sociabilidadesincrética, receptáculoinconsciente que constitui a infraestrutura
continente,permitem certa satisfaçãode suaspulsões e de seus desejos;todavia,elas profunda de todo vinculo ulterior: esse núcleo será depositado no casal e na
· devem estarem conformidadecom as demais contribuiçõesdo fundo comum e ser família, depois em todo grupo e em toda instituição. ·
sustentadaspor ele.A mentalidade de grupo, desse modo, garante o acordo da vida Em suas construções conceituais,Bleger se apoia em trabalhos de pesquisa
do grupo com os pressupostosbásicosque organizamseu funcionamento. psicológica(a psicologiado desenvolvimentode relaçõessociaisde Wallon),mas
Os três pressupostos básicos (dependência, ataque-fuga, acasalamento) que lhe confere outro conteúdo. O mesmo ocorre com as noções de pertencirnento e
qualificamos diferentesconteúdos possíveisda mentalidade de grupo são os repre- de coesão do grupo, que eletoma emprestado das pesquisasda psicologiasocial.
sentantesdetrêsestadosemocionaisespecíficos.Desempenhampapeldeterminante Para Bleger( 1970), a coesãorepousana forçade atração que um grupo exercesobre
na organizaçãode um grupo, na realizaçãode sua tarefa e na satisfaçãodas neces- seus membros para que elespermaneçamjuntos, o grupo se tomando assim um
sidadese dosdesejosde seusmembros. Sãoe permanecem inconscientes,exprimem referentede suas atitudes com baseem seus sentimentos de pertença ao grupo. A
fantasiasinconscientese acham-sesubmetidos ao processoprimário. Sãoutilizados contribuição específicade Blegerconsisteem ter compreendido que a identidade
pelos membros do grupo como técnicasmágicas destinadasa tratar as dificuldades grupal por pertencimento (identidadgrupalpor pertenencia)e a dependência que
que elesencontrame especialmentepara evitara frustraçãoinerenteao aprendizado lhe é associada são constituídas pelo depósito do núcleo aglutinado de seus
pela experiência.Bion evidenciou a semelhança de seus traços com os fenômenos membros na estrutura do grupo.Como conceito de depósitodo núcleo aglutinado,
descritos por M. Kleinem suas teorias sobre os objetosparciais,as angústiaspsicó- Blegeresboça uma abertura para a tomada em consideraçãodo sujeito no grupo.
ticase asdefesasprimárias.Desseponto de vista,os pressupostosbásicosconstituem Em minha própria linguagem,eu diria que o depósito toma isomorfos o sujeito e
reações grupais defensivascontra as angústias psicóticasreativadaspela regressão o grupo: eu compreendo, desse modo, que todo afastamento em relação a esse
imposta ao indivíduo na situação de grupo. depósito nuclear suscitaangústiasde despersonalizaçãoque podemos observarem
todos os grupos, mas que prevalecemem certas organizaçõespsicopatológicas.

J.Blegere o depósito do núcleo aglutinado no grupo


Balanço e desenvolvimentodas primeiras pesquisas psicanalíticas sobre os
Devemosa J.Blegerváriascontribuiçõesimportantes para a teoria psicanalítica grupos
dos grupos,ao lado dos conceitosde enquadre, de núcleo aglutinado e de depósito.
Devemos a ele, para começar, uma distinção fundamental entre duas formas de As primeiras teorias psicanalíticasdo grupo tentaram tornar inteligível a
sociabilidade:a sociabilidadesincréticae a sociabilidadepor interação.Existe"em consistência dos "fenômenos de grupo",fundamentar a hipótese de que o grupo
todo grupo': escreveele,"um tipo de relaçãoque, paradoxalmente,é uma não-rela- é uma entidade relativamente independente dos indivíduos que o constituem,
Um singular plural Como se apresentou a questão do grupo na psicanálise 39
38

deixar claro que ele é uma organização e um lugar de produção de uma realidade aqui-agora-comigo, ambas as dimensões do campo transferencial, horizontal e
psíquica que lhe é própria. Essas descobertas mostraram que estruturas e pro- vertical, levam-no a distinguir uma interpretação em dois tempos e para dois
cessos de diferentes níveis organizam os grupos. Uns são neuróticos, instalam-se destinatários: o grupo e o porta-palavra.
em torno do conflito nuclear edipiano e da ambivalência em face da figura do chefe.
Outros, pré-edipianos e pré-genitais, mobilizam formações narcísicas, borderline
e psicóticas: fantasias arcaicas, identificações primárias, angústias primitivas, me- A CORRENTE FRANCESA DE PESQUISAS PSICANALITICAS SOBRE O GRUPO

canismos de defesa fora· do recalque e relações de objeto parcial, especialmente


aqueles que têm a ver' com a organização oral das pulsões. Julguei dever conceder um lugar particular à corrente francesa de pesquisas
Resta que a concepção do inconsciente envolvida nesses modelos permanece psicanalíticas sobre os grupos, na medida em que meus trabalhos encontraram
ainda fluida,. Como Bion, Foulkes supõe que o inconsciente produz efeitos espe- nela seu enraizamento e certa marca Contudo, existe outro motivo para nos deter-
cíficos no grupo, mas ambos o tratam mais como uma qualidade ligada aos fenô- mos na maneira pela qual se formou, na França, o interesse dos psicanalistas pelo
menos de grupo do que como um sistema constitutivo de formações e processos grupo. Como ocorreu na Argentina e na Inglaterra, a cultura psicanalítica local tem
intersubjetivos. A questão mal é apontada em Pichon-Riviere, mas ela começa a um papel contextual importante. Na França, a questão do grupo se inscreve numa
adquirir uma consistência original com Bleger. dupla tradição cultural, formada pelo iluminismo e pela Revolução. Uma dessas
Nesse primeiro momento epistemológico, é o grupo enquanto entidade espe- tradições, a do in.dividualismo, privilegiou a atenção voltada para o sujeito singular,
cífica que é preciso primeiramente conhecer e constituir como dispositivo tera- a ponto de excluir, a não ser corno pura alienação, toda referência ao grupo em sua
pêutico. Toda a atenção clínica e teórica se volta para os conceitos básicos que formação e sua história. A outra tradição, ancorada na corrente socialista, insistiu
deverão dar conta do conhecimento da "psique de grupo". Nessas condições, a no grupo corno meio da revolução e elemento básico da liberdade de opinião. Essas
questão do sujeito no grupo - a fortiori a do sujeito do grupo - não é levada duas correntes convergemnasideologias que atravessam o movimento psicanalítico
em consideração. No entanto, o individuonão é deixado de lado, mas quando há francês, mais influenciado por Tarde e Le Bon que por Durkheim, e devido a isso
uma preocupação com ele é essencialmente enquanto elemento do conjunto, na mais inclinado a certa desconfiança em face do grupo.
medida em que ele contribui de maneira "anônima" (Bion) para a mentalidade Historicamente,a questão (a querela?) do grupo cristalizou-se nas comoções
do grupo ou como um mecanismo de transmissão no funcionamento do sistema provocadas pelas rupturas que afetaram as instituições psicanalíticas no início
grupo (Foulkes). Pichon-Riviere começa a reintroduzir o sujeito, mas é essencial- dos anos de 1960, e alguns anos depois nas revoluções mentais efetuadas em 1968.
mente de um sujeito psicossocial que se trata. Sob esse aspecto, as primeiras Em grandes linhas, diríamos que o interesse psicanalítico pelo grupo se forma em
teorias do grupo são teorias das quais o sujeito do inconsciente desaparece, e com três etapas que conduzem progressivamente a dedicar atenção cada vez mais in-
ele aquilo que o singulariza: seus desejos, sua história, sua localização na fantasia sistente às articulações entre o sujeito e o grupo.
inconsciente, a idiossincrasia de suas pulsões, de seus afetos e de suas represen-
tações, de seu recalque. Porém, não mais que para o sujeito singular, a atenção
não se volta para a natureza dos vínculos entre os sujeitos reunidos em grupo. O interesse pelo grupo na França do pós-guerra
As consequências metodológicas e clínicas dessas concepções não são negli-
genciáveis. Se as examinamos do ponto de vista da interpretação, por exemplo, A primeira fase tem por contexto a França do pós-guerra. O esforço para re-
parece que só "o grupo" enquanto conjunto é ao mesmo tempo objeto e destina- construir a estrutura econômica e social facilitou o interesse pelo grupo nos meios
tário da interpretação. No entanto, se a interpretação é pensada e se dá em termos d_ospsicólogos e psiquiatras. Ao final da Segunda Guerra Mundial, os psicosso-
de grupo, seus efeitos são antecipados em cada indivíduo, através dos vínculos aólogos franceses descobrem as ideias e métodos de Lewin sobre a dinâmica dos
que o ligam à matriz do grupo, que o situam em seu campo de forças e que o tor- grupos, as de Moreno sobre o psicodrama. O laboratório, o hospital psiquiátrico
nam parte ativa de uma basicassumption.Porém, esse vínculo e o que para cada e_a empresa - e certos estabelecimentos escolares - são os terrenos de sua prá-
um se encontra envolvido não serão interpretados diretamente. Aqui ainda tica e de sua pesquisa. Do lado dos psiquiatras, entre os quais há psicanalistas, al-
Pichon-Riviere inaugura uma posição diferente: com sua noção do trabalho guns deles têm o projeto de renovar a instituição psiquiátrica e a preocupação de
40
Um singular plural 41
Como se apresentou a questão do grupo na psicanâlise

cuidar do maior número de pacientes com o uso de novas técnicas terapêuticas. início dos anos de 1960. Os conflitos e cisões consecutivos às divergências sobre a
Também se interessam pelos trabalhos de Lewin e Moreno e encontram nas formação psicanalítica, sobre a condução da cura e sobre as relações com a In-
"técnicas de grupo" que neles se inspiram duas vantagens notãveis: a possibilidade temational Psychoanalytical Association (IPA) tiveram como consequência a
de tratar um número maior de pacientes por esse meio e, de acordo com as teo- criação de novas instituições: a Escola Freudiana de Paris, em 1963, a Associação
rias então dominantes sobre a função adaptativa do ego, de sustentar processos Psicanalítica da França, em 1964. Essas rupturas e essas criações foram acom-
psíquicos da integração social. Um terceiro tipo de interesse vai se especificar: o panhadas de violentos efeitos de grupo que foram ao mesmo tempo cultivados
grupo é um dos meios·de·base da psicoterapia institucional. e denunciados. Devido ao não reconhecimento de sua consistência traumãtica,
Entre os primeirO'S psicanalistas formam-se duas grandes correntes que uma excitação ora ativista, ora paralisante reforçou o interdito - pelo menos a
subsistem até hoje. A primeira reúne psicanalistas desejosos de aplicar os dados resistência - de pensar o grupo e as instituições com o que a psicanãlise podia
da psicanãlise ao tratamento psicoterapêutico dos indivíduos em situação de nos ensinar. A critica, muitas vezes violenta, aplicava-se a prioria todos os que se
grupo. As té~nic-as que se desenvolvem segundo essa perspectiva utilizam, na envolviam numa prãtica grupal que se declarasse psicanalítica.
maior parte das vezes, o psicodrama psicanalítico dito "individual": uma equipe Convém certamente ir mais longe na anãlise das reticências e resistências
de psicodramatistas trata um paciente por meio do psicodrama. Essa primeira das instituições psicanalíticas em face do grupo. O desconhecimento que se
corrente inspira-se inicialmente em Lebovici, Diaktine, Decobert, Kestemberg, manteve do papel considerãvel do grupo na fundação da psicanãlise, a influência
depois em Lacan, no psicodrama aperfeiçoado por P. e G. Lemoine na década ideológica do grúpo sobre os primeiros psicanalistas, todos esses irnpensados e
seguinte. Se a virtude terapêutica do grupo (ou do "coletivo") é constatada em- silendados sustentaram, amplificando-a, a repetição dos traumatismos originã-
piricamente, a conceptualização dos processos que a sustentam parece ser uma rios. A rejeição do grupo como objeto e como situação antipsicanalítica, impró-
aventura arriscada. Contenta-se em recorrer aos conceitos freudianos clãssicos pria a qualquer elaboração psicanalítica, só podia conservar uma clivagem peri-
para descrever, justificar ou denunciar a capacidade mobilizadora das identifi- gosa no âmbito das instituições psicanalíticas, com um retomo da violência no
cações, os efeitos da ressonância das fantasias e a consolidação dos mecanismos real das instituições 3•
de defesa no contexto grupal. A posição, mais que o pensamento, de J.Lacan exerceu uma influência deci-
Os psicanalistas que formam a segunda corrente tentam observar os pro- siva em toda essa efervescência nos grupos psicanalíticos e a respeito dos grupos.
cessosinconscientesativosno grupo. Eles encontram duas espécies de dificuldades: Posição paradoxal em um homem que ao mesmo tempo instaura o grupo ( o "cartel")
a primeira deve-se à aplicação direta de conceitos psicanalíticos às hipóteses e às como a instância a partir da qual o psicanalista se autoriza ("a si mesmo e a al-
técnicas elaboradas por Lewin, Rogers e Moreno. Essa "bricolagem" testemunha guns outros") e que denuncia os efeitos de grupo como o lugar de alienação no
a preocupação em pôr à prova (e algumas vezes, apenas ilustrar) as proposições imaginãrio do Um: "Pondero o efeito de grupo'; escreve Lacan (1973, p. 31),
especulativas de Freud sobre sua "psicologia social" e sobre a psique de grupo, mas "pelo que ele acrescenta de obscenidade ao efeito imaginãrio do discurso".
ela produz uma espécie de sincretismo epistemológico bastante arriscado. A se- Paradoxalmente, não se trata de conhecer os meandros dos "efeitos de gru-
gunda dificuldade reside no fato de que os conceitos utilizados resultaram da teo- po" pelos meios que nos oferece a psicanãlise, e de se livrar deles pelo trabalho
rização psicanalítica da psique individual. O trabalho de teorização é bastante fraco da anãlise, e especialmente pelo dispositivo de grupo: é preciso denunciã-los e
e, durante esse primeiro período, os trabalhos de Pichon-Riviere, Bion, Foulkes e - todo-poderoso contra a angústia - basta fazê-lo. Uma posição tão absurda
Bleger ainda não são conhecidos pela maior parte dos psicanalistas franceses. quanto categórica não é somente um anátema lançado contra toda pratica psica-
nalítica de grupo, é uma proibição de pensar o que estã em jogo do ponto de vista
do inconsciente e a posição subjetiva dos psicanalistas nos grupos. Sempre con-
Os enunciados fundadores dos anos de 1960 e a primeira ruptura tinua possível manipular os efeitos do inconsciente nos grupos que se cria- até
epistemológica o retorno fatal do manipulador manipulado por seu próprio estratagema.

O desenvolvimento das investigações psicanalíticas sobre o grupo liga-se es- 3. Sobre essasquestões,remeto a dois de meusestudos sobre o grupo dos primeiros psi-
treitamente às vicissitudes que afetaram o movimento psicanalítico francês no canalistas:KAl!s1994b; 2000.
42 Um singularplural Comose apresentoua questãodogrupona psicanálise 43

Em meados dos anos de 1960,alguns psicanalistas franceses outrora ligados Não basta descobrir osprocessosinconscientesque operam no interior de um
a Lacan, entre os quais Anzieu, Bejarano, Pontalis, propõem outra abordagem grupo, qualquer que seja a engenhosidadeque se revele nisso: enquanto se
psicanalítica do grupo. Pontalis e Anzieu criticam a aplicação direta de concei- situar fora do campo da psicanálisea imagemmesmado grupo, com as fantasias
tos psicanalíticos ao grupo: essesconceitos devem ser repensados em relação a seu e os valores que ela traz, eludir-se-á toda questão sobre a função inconsciente
novo objeto. Eles mostram também as contradições e os impasses, para o pensa- do grupo.
mento psicanalítico, da dinâmicade grupos lewiniana e do imaginário moreniano
da cura social pelo psicodrama e pela sociometria. Esse estudo marca um ponto de inflexão na teoria psicanalítica de grupo.
à
Pontalis censura teoria lewiniana sua impregnação ideológica, baseada na
busca da boa comunicação. Anzieu retomará por sua conta essa crítica, para se O grupo,como o sonho,é um meio de realizaçãodos desejosinconscientes
libertar das.técnicas grupais utilizadas na instituição que ele fundou em 19624,
técnicas compóstas, nesse momento, de uma combinação de elementos empres- O grupo não é mais considerado como a forma e a estrutura de um sistema
tados da psicologia social de Lewin e da psicanálise. Anzieu censura à teoria de relações interpessoais, no qual operam forças de equihbrio, representações
lewiniana não levar em conta a significação inconsciente dos movimentos gru- produtoras de normas e de processos de influência, pressões conformistas, redes
pais. Pode-se objetar a essa crítica que este não era o quadro de referência de de comunicação, localizações de estatutos e de papéis.
Lewin, mas antes aquele que nós em parte lhe emprestávamos. E, com efeito, D. Anzieu propõe, em 1966, um modelo de inteligibilidade do grupo como
·consideradas de um ponto de vista psicanalítico, as técnicas lewinianas sustentam entidade no interior da qual operam processos inconsciêntes. Ele se une assim às
uma idealização do condutor grupal e, correlativamente, o surgimento de uma abordagens de Bion e Foulkes, mas por uma via de entrada ao mesmo tempo
ideologia do "bom" grupo. A prioridade concedida ao desempenho na realiza- clássica e original: a partir do modelo do sonho. "O grupo", segundo Anzieu, "é,
ção da tarefa e na eficácia da rede de comunicação conduz a uma manipulação como o sonho, o meio e o lugar de realizaçãoimaginária dos desejos inconscientes
da transferência tendo em vista esses objetivos, e não sua compreensão e sua infantis." Segundo esse modelo, os fenómenos diversos que se apresentam nos
interpretação. A abordagem psicanalítica dos grupos, portanto, deve retornar a grupos aparentam-se a conteúdos manifestos, derivam de um número limitado
hipóteses e objetivos conformes ao objeto da psicanálise5• Quatro principais de conteúdos latentes. A referênciaao modelo do sonho implica que os processos
proposições organizam os trabalhos dos psicanalistas franceses sobre o grupo a que constituem o grupo como objeto de desejo comum de seus membros são os
partir de meados dos anos de 1960; elas só serão desenvolvidas no decorrer das mesmos que os do sonho, e que no grupo são determinantes: deslocamento, con-
décadas seguintes. densação, figuração simbólica e retorno em seu contrário 6• Segundo Anzieu, o
grupo, quer ele cumpra de maneira eficaza tarefa que se atribuiu, quer seja para-
lisado, é um debate com uma fantasia subjacente. É uma cena de projeção dos
O pequeno grupo comoobjeto tópicos internos. Como o sonho, como o sintoma, o grupo é a associação de um
Os trabalhos da escolafrancesa, em primeiro lugar, restituíram ao grupo seu desejo inconsciente que procura seu caminho de realização imaginária e de defe-
valor de objeto psíquico, de investimentos pulsionais e de representações incons- sas contra a angústia que suscitam no ego tais realizações.
cientes para seus sujeitos. J.B. Pontalis escreve em 1963: Se as formações e os processos psíquicos de grupo obedecem a mecanismos
geraise próprios a toda produção do inconsciente, alguns são específicosda situa-
4. O CEFFRAP(Cercled'~tudes Françaisespour la RechercheActiveen Psychologie): ção de grupo: assim é o caso da ilusão grupal que Anzieu descreve em 1971.
dinâmicade grupos e da personalidade).
5. O abandono das técnicaspsicossociaisnão foi imediato;um períodode transiçãofoi
necessáriopara que se produzissemas transformaçõesque resultaramna implementação
de um dispositivode grupo nitidamentepsicanalítico.No entanto,a críticade Pontalis
e deAnzieufuncionoucomoumaespéciede manifestoliminarna ruptura do movimento 6. Acrescenteia essalistadois outrosprocessosimportantesparticularmentesolicitados
psicanalíticogrupal francês,com suas raízeslewinianase morenianas. nos grupos:a difraçãoe a multiplicaçãodo elementoidêntico.
Comose apresentoua questão do grupo na psicanálise 45
44 Um singular plural

Os quatro objetosde transferênciae a escutaanalítica contida, transformada, ligada e gerada por tal aparelho a realidade psíquica pró-
pria ao grupo, realidade que tem por função principal estabelecer as relações de
A. Bejarano publica em 1972 um estudo (redigido em 1966) no qual examina concordância entre as formações intrapsíquicas e as formações intersubjetivas e
as condições de uma escuta psicanalítica aplicada ao contexto grupal. Ele rapi- transubjetivas produzidas pelo grupo. Entre os princípios ativos desse aparelho,
damente passa a interrogar o regime das transferências. Nos grupos, os objetos reconhecia-se um papel organizador aos grupos internos.
e os conteúdos da transferência desenvolvem-se segundo as vicissitudes da situa- O interesse do modelo de aparelho psíquico grupal é que ele serve para com-
ção grupal e pessoal. O qiscurso manifesto de um grupo e sua atividade devem preender os processos de investimento, produção e tratamento da realidade psí-
ser observados psicanpliticamente como ao mesmo tempo ocultando e expri- quica no grupo e entre os sujeitos membros do grupo. Contém conceitos centrados
mindo um discurso latente. nas diversas modalidades de articulação entre o sujeito e o grupo, e especialmente
Trata-se - como na cura - de decifrar esse discurso latente, de restaurar nas ligações entre os efeitos de grupo e os efeitos do inconsciente.
seu sentido.e, s~ possível, de conduzir o grupo à consciência dos processos in-
conscientes que o organizam. Na distância entre esse discurso latente e o discurso
manifesto se exprime a resistência. No contexto grupal, a transferência é múltipla: O desenvolvimento das pesquisas psicanalíticas sobre o grupo do início
ela se volta para o psicanalista (transferência central), para os outros participantes dos anos de 1970 até nossos dias
(transferências laterais), para o grupo como tal (transferência grupal) e para
objetos externos ao grupo {outro grupo, a instituição, a sociedade etc.). As pesquisas psicanalíticas sobre o grupo desenvolveram-se no início dos
anos de 1970 seguindo duas direções principais. A primeira seguiu a investigação
das formações e dos processos dos quais o grupo, enquanto conjunto, é o lugar.
A aparelhagemgrupal daspsiques Eu deveria limitar-me aqui a evocar os principais trabalhos de D. Anzieu (a ilusão
Ao longo da segunda metade dos anos de 1960, colaborei com D. Anzieu grupal, o envoltório grupal), J.C. Rouchy ( os processos arcaicos, a noção de per-
para adequar um dispositivo psicanalítico de grupo às exigências metodológicas tencimento), O. Avron (a noção de interpulsionalidade) e R. Kaes(desenvolvimento
da psicanálise. Minhas primeiras pesquisas acham-se estreitamente associadas às do modelo de aparelho psíquico grupal, as posições ideológica, utópica e mito-
suas. Procurávamos estabelecer as condições metodológicas, clínicas e teóricas a poética, as alianças inconscientes, os espaços oníricos comuns e partilhados, os
partir das quais a hipótese de que o grupo é o lugar de uma realidade psíquica processos associativos e cadeias associativas grupais). A maior parte dessas pes-
própria podia ser sustentada. quisas progressivamente integraram os dados dos trabalhos anglo-saxões, mais
Meus primeiros trabalhos (1965-1968) centraram-se no estudo das repre- particularmente os conceitos e o percurso de Bion: é o caso para as pesquisas de
sentações inconscientes e dos investimentos pulsionais dos quais o grupo é o 0.Avron (1996) e J.C. Rouchy (1998), este último trabalhando também com os
objeto, no sentido que J. B. Pontalís acabava de conferir a essa problemática. conceitos resultantes dos trabalhos de M. Torok e N. Abraham. A essas pesquisas
Salientei inicialmente os núcleos organizadores das representações de grupo e ligam-se trabalhos que se engajam na análise dos processos terapêuticos do gru-
distingui dois tipos: os organizadores fantasmáticos inconscientes e os orga- po, das transferências, das particularidades do trabalho de coanálise ou de cotera-
nizadores socioculturais. Descrevi os organizadores inconscientes como "grupos pia, dos processos associativos. Outros trabalhos dizem respeito à especificidade
de dentro", estruturados segundo leis de composição que obedecem aos processos dos grupos de crianças e adolescentes (Privat, Haag) e ao grupo familiar (Ruffiot,
primários. Mais tarde, chamei-os de grupos internos, fornecendo a esse conceito Caillot, Decherf, Pigott, Eiguer, Granjon).
um sentido bastante diferente daquele que Pichon-Riviere e D. Napolitani lhe A segunda direção de pesquisa é bem menos frequentada: ela se interessa
atribuíram. pela posição do sujeito no grupo e volta-se para o que chamei de funções fóricas,
Depois, comecei a estudar os efeitos da grupalidade psíquica na organização isto é, as localizações e as funções realizadas no grupo por alguns de seus membros
dos processos de grupo e a elaborar um modelo de articulação entre o espaço psí- quando eles são porta-palavras, porta-sintomas, porta-sonhos, porta-ideais, porta-
quico individual e o espaço psíquico próprio ao grupo. A concepção do modelo morte etc. Ela abre também para um conjunto de problemas aos quais dediquei
de aparelho psíquico grupal (1968-1969) ajudou-me a pensar como é produzida, particular atenção, pois concernem no mais alto ponto a todos os psicanalistas.
•• Um singularplural

Trata-se do papel desempenhado pelo grupo na estruturação do psiquismo. Passei


vários anos tentando compreender como os processos de apoio, os mecanismos
constitutivos do inconsciente (recalque, clivagem, denegação), a formação dos sin-
tomas e o retorno do inconsciente não recalcado, as identificações, o regime do
narcisismo, a função de pensamento e de significação, as organizações defensivas,
as formas da subjetivação são trabalhados e construídos na matriz do grupo pri-
mário,nos vínculos interstibjetivos. Trata-se de um canteiro de trabalho fascinante
e sempre aberto. Forml:i o hábito de formular o que está em jogo dizendo que o
sujeito do inconsciente é sujeito do grupo. Não se trata de uma proposição pu-
ramente espe,culativa: está no fundamento da concepção do trabalho psicanalítico
que um sujeito pode efetuar num grupo; é, sobretudo, uma maneira de revisitar
nossa concepção do sujeito e do inconsciente.
Limitei minha abordagem histórica a três principais orientações ativas na
formação do pensamento psicanalítico sobre o grupo e a grupalídade. Meu obje-
tivo era mostrar como se formou esse pensamento, o que ele pensa e em que o 2
pensamento e a prática psicanalíticos dos grupos concernem aos psicanalistas. O problema
Se se tratasse de dar conta de todos os campos da pesquisa psicanalítica centrada
epistemológicodo grupo
no grupo, seria evidentemente injusto nos atermos a essas três sedes. Pesquisas
mais ou menos inspiradas por essas bases, sobretudo por parte das correntes na psicanálise
bionianas e foulkesiana, desenvolveram-se em numerosos países da Europa, nos
Estados Unidos, na América Latina e na Ásia.
Agora chegou o momento de examinar mais precisamente os problemas
epistemológicos, metodológicos e clínicos postos pela extensão do campo dos
objetos e das práticas da psicanálise.
O problemaepistemológicodo grupo na psicanálise 49

seus sujeitos constituintes. Esse dispositivo é capaz de mobilizar um processo de


trabalho psicanalítico para o tratamento de distúrbios psíquicos. Os achados da
clinica são o objeto de um trabalho de teorização que descreve a realidade psí-
quica inconsciente e as modalidades correspondentes da subjetividade que se
desenvolvem no espaço psíquico comum e partilhado do grupo.
Essas três proposições situam a questão do grupo numa perspectiva que não
é mais a da psicanálise aplicada. Elas significam que o modelo do aparelho psíqui-
co resultante da prática da cura dita individual não pode "se aplicar" sem trans-
formação a outra configuração psíquica que não a do sujeito considerado em sua
singularidade. A partir do momento em que um dispositivo metodológico con-
fere a práticas "exteriores à cura" uma pertinência ao objeto da psicanálise, o
debate incide sobre os campos de conhecimento do inconsciente que hoje pode-
Assim como o dispositivo princepsda cura individual, cada um dos dispo- mos reconhecer à psicanálise.
sitivos inspirados pelo método geral da psicanálise baseia-se em princípios e Incluir a realidade psíquica inconsciente própria ao grupo entre os objetos
hipóteses teórico-clínicos. Esses princípios e essas hipóteses permanecem geral- teóricos da psiéanálise obriga a redefinir os enunciado~ constitutivos do radical
mente implícitos, mas quando ocorrem extensões da prática psicanalítica eles psicanalítico tais como se constituíram com base na prática da cura. Precisamos,
emergem, às vezes de maneira intempestiva. Importa, portanto, explicitar tanto então, expor as proposições sobre as quais fundamos nossa concepção do objeto
quanto possível o que funda essas extensões nesses princípios. Para tanto são da psicanálise, de seu método e de sua extensão. Além do postulado sobre os três
necessárias algumas considerações epistemológicas e clínicas sobre o objeto, o pilares do psiquismo - a sexualidade infantil, a fala e o vínculo -, apresento
método e as fronteiras da psicanálise. três proposições principais.

A ESPECIRCIDADEDOOBJETOE DO MÊTODODA PSICANÁLISE.A EXTENSÃODE SEUCAMPO


A realidadepsíquica inconsciente

O inconsciente, ou aquilo que Freud chama, de maneira mais descritiva, "a


A psicanálise constituiu-se construindo progressivamente um campo de realidade psíquica inconsciente", é a hipótese constitutiva da psicanálise. Freud
objetos teóricos e práticos a partir de um dispositivo metodológico bem identi- descreve o inconsciente, de um ponto de vista metapsicológico, como uma estru-
ficado, o da cura individual de adultos neuróticos. Para pensar a consistência psi- tura, uma tópica, uma econôrnica e uma dinâmica da psique. Esse enunciado
canalítica do grupo, não só com os conceitos da psicanálise, mas no campo da fundamental implica o reconhecimento da divisão estrutural da psique como
psicanálise, podemos partir das características que Freud reconhecia na psicanálise efeito do inconsciente, a pulsionalidade e a sexualidade infantil sendo os organi-
quando a definia, em 1923, com base em três dimensões: zadores dessa divisão e da conflitualidade psíquica. O inconsciente deve ser espe-
Psicanálise é o nome: 1) de um procedimento de investigação de processos psí- cificado por suas modalidades constitutivas e seus tópicos específicos: os do in-
quicos que de outro modo são dificilmente acessíveis;2) de um método de trata- consciente originário, do inconsciente recalcado e do inconsciente não recalcado
resultando da clivagem, da denegação e da rejeição. A fantasia, o sintoma e o sonho
mento das perturbações psíquicas baseado nessa investigação; 3) de wna série de
são suas formações acessíveis. O segundo ponto de vista proposto por Freud o
concepções psicológicas adquiridas por esses meios e que se cruzam progressi-
vamente para formar uma nova disciplina científica (G.W. XIII, p. 211). leva a descrever o inconsciente como uma qualidade da matéria psíquica sob
o efeito dos mecanismos que a constituem como tal.
Podemos dizer, do mesmo modo, que no campo da psicanálise assim defi- A hipótese fundadora da psicanálise, a hipótese do inconsciente e da reali-
nida o grupo é um método de investigação e de conhecimento de uma realidade dade psíquica inconsciente, abriu três grandes canteiros de trabalho nas pesquisas
psíquica inconsciente específica, inacessível de outra maneira, irredutível à de sobre o grupo.
50 Um singular plural O problema epistemológico do grupo na psicanálise 51

O grupo enquanto realidadepsíquicaespedfica intersubjetivo. Desse espaço comum emergem sujeitos que realizam para si mes-
mos e para o grupo funções de porta-sintoma, de porta-sonho e de porta-palavra,
O principal problema epistemológico ao qual somos confrontados resume-se
alguns são portadores de ideais e de ilusões, outros portadores de morte': todos
em três conjuntos de questões. O primeiro pergunta se podemos conceber e qua-
são agentes de ligação (go-between). Chamei de fóricas tais funções.
lificar uma realidade psíquica consistente formada pelos efeitos do inconsciente
num espaço comum e partilhado tal como o grupo. Se este for o caso, em que o
conceito de grupo pode ser pensado com a hipótese do inconsciente? E, em corolá- Os efeitosdogrupo sobrea psiquedo sujeito.O sujeitodogrupo
rio, em que o conceito de inconsciente se transforma com a hipótese do grupo?
Esse terceiro campo de pesquisa reteve especialmente minha atenção. Como
Lembrei no decorrer do capítulo anterior como se formou a ideia de que
psicanalista de cura individual e de grupo, importava-me compreender como a
existem "fenômenos de grupo" irredutíveis aos fenômenos individuais dos sujei-
vida psíquica do sujeito se constrói em suas relações com o espaço psíquico comum
tos que os compõem. Freud, antes de Lewin, sustentou essa ideia de modo espe-
e partilhado por vários sujeitos nos vínculos e na matriz do grupo primário.
culativo e, na sequência, os psicanalistas que se interessaram pelo grupo a vali-
Utilizo aqui a noção de sujeito para descrever um modo de existência do
daram: a psique de grupo consiste em formações e processos psíquicos específicos,
indivíduo na medida em que se encontra sob o efeito de uma ordem da realidade
e processos inconscientes operam em seu âmbito. Diversas teorias explicaram
que o governa e o organiza: suas pulsões, suas fantasias, seus desejos e seus con-
essa concepção.
flitos inconsciehtes. O sujeito não é dividido somente a partir de dentro, pelo
Por minha v~ aceitei essa hipótese, especificando-a: se, como penso, o grupo
efeito da Spaltungcriada pelo inconsciente. Divide-se também entre a realização
dispõe de estruturas, organizações e processos psíquicos próprios, criaram-se enti-
de seu próprio fim e o lugar que ele deve assumir nos vínculos que o constituíram.
dades psíquicas que não existiriam sem o agrupamento. Pareceu-me consequente
Essa segunda divisão é, também ela, estrutural e exerce um efeito decisivo sobre
descrever e qualificar a tópica, a dinâmica e a economia que as caracterizam; é o
a formação do sujeito do inconsciente.
que tentei propondo elementos para pensar uma "terceira tópica''. · --
Defendi a proposição segundo a qual o sujeito do inconsciente se constrói
no espaço do grupo originário. Especifiquemos essa hipótese: os mecanismos de
correcalque ou de denegação conjunta, os contratos que fundam o narcisismo
As relaçõesdosujeito no grupo e a posiçãodo sujeitono grupo
do sujeito e o do conjunto, e de maneira mais geral as alianças inconscientes de-
Se admitimos que a realidade psíquica inconsciente se estende além do es- sempenham um papel determinante nas modalidades constitutivas do incons-
paço psíquico individual, um segundo conjunto de questões se impõe a nossa ciente do sujeito, em seus conteúdos, nas condições do retorno do recalcado e da
reflexão. formação de sintomas.
Os modelos centrados unicamente no grupo como entidade (Bion, Foulkes, É nessa medida que sustento que o sujeito do inconsciente é, de maneira in-
Pichon-Riviere, Anzieu) não me satisfazem, não devido à sua inadequação em dissociável, sujeito do grupo e que, de modo correlato, o sujeito do grupo é uma
explicar a realidade psíquica do grupo, mas porque eles não levam em conside- dimensão do sujeito do inconsciente. Ao adotar esse ponto de vista, admito tam-
ração, ou pelo menos não de maneira suficiente, a questão do sujeito no grupo. bém que uma parte do sujeito está "fora do sujeito'; que o sujeito possui vários
Ora, essa articulação é decisiva para explicar a parte que cabe ao sujeito no pro- centros, que algumas de suas formações inconscientes são deslocadas, exportadas
cesso do grupo e, reciprocamente, para definir a parte que cabe na formação do e depostas em lugares psíquicos que o grupo predispõe, e que o sujeito utiliza.
inconsciente do sujeito a seus determinantes intersubjetivos e grupais. Esse duplo O problema epistemológico assume então outra dimensão. Temos de pensar
ponto de vista é indispensável para estabelecer o vínculo com a psicanálise dos nas relações entre a realidade psíquica do grupo (ou de qualquer outra configu-
processos individuais. ração de vínculo), a de cada sujeito considerado em sua singularidade e aquela
O fato de levar em consideração a posição do sujeito no grupo conduziu-me que forma a matéria psíquica dos vínculos entre os sujeitos que o compõem. Es-
a pensar que as identificações comuns, as fantasias e as representações partilhadas, tamos aqui bem próximos da questão que preocupa todos os psicanalistas: que
as formações do ideal, a matriz onírica comum, as alianças inconscientes são os
pontos de passagem e as linhas de ruptura entre o espaço intrapsíquico e o espaço l. Sobre a posição fórica do tanatóforo, cf. DIET 1996.
52 Um singularplural O problemaepistemológicodo grupo na psicanâlise 53

efeitos sobre a formação do sujeito do inconsciente podem ser atribuídos à in- O problema que formulamos não pode evidentemente ser tratado fora de suas
terferência desses espaços? relações com o método e a técnica psicanalíticos em situação de grupo. Temos
Foi para pensar essas relações que propus, no final dos anos de 1960, um então que estabelecer as características de um dispositivo psicanalítico de grupo
modelo que estivesse em medida de dar conta da realidade psíquica própria ao e examinar que transformações conceptuais são necessárias para compreender
grupo, dos vinculos de grupo e do sujeito no grupo. O modelo do aparelho como se operam as transferências e os processos associativos, como são escolhidos
psíquico grupal permitiu-me descrever as relações entre as instâncias estruturais, os objetos e as modalidades de interpretação.
os regimes económicos edinâmicos do aparelho psíquico individual e do aparelho Temos que considerar que o trabalho psicanalítico produzido nos dispositivos
psíquico de grupo 2• Côm esse modelo, o conhecimento psicanalítico pod~ se plurissubjetivos não é idêntico àquele que toma possível o dispositivo da cura. Se
estender à consistência psíquica de cada um desses três espaços e ao dos processos é provável que processos transversais estejam presentes em cada um desses dis-
e formações q,ue os unem e separam. positivos, na cura e "fora da cura", o que nos interessa é compreender como o
trabalho na cura é afetado pelo que nos ensina o trabalho "fora da cura".

Um dispositivo apropriado ao objetivo do trabalho psicanalítico


A extensãocontroladadas práticaspsicanalíticasé um efeito da infinitude
O conhecimento da realidade psíquica inconsciente só é possível através de de nosso conhecimento do inconsciente
um dispositivo apropriado ao duplo objetivo do trabalho psicanalítico: a trans-
formação da realidade psíquica inconsciente e o conhecimento do inconsciente. Esses problemas nos conduzem ao nível mais profundo do debate epistemo-
Sabemos que o campo teórico-clínico da psicanálise constituiu-se, por uma parte lógico: na medida em que não podemos levar em consideração os efeitos de toda
determinante, a partir do método da cura, e que é com base nessa prática que a extensão do campo da prática psicanalítica - o tratamento das crianças, depois
teoria da psicanálise explica os esquemas de construção e do funcionamento do dos psicóticos, aqui a abordagem psicanalítica de grupo - sobre a teoria da
aparelho psíquico em sua lógica interna, do advento do sujeito e do Eu que o psicanálise, devemos pensar em permanência os objetos, os métodos e os limites
assume. Notemos que foi preciso um certo tempo para pensar as correlações entre da psicanálise.
o método, a clínica que ele torna possível e as teorias que ele constrói. Não surpreende, portanto, que essa tensão crítica, que acompanha toda a
Admitamos, porém, que o campo teórico-clínico da psicanálise jamais se história da psicanálise e que a mantém viva, tenha se renovado a partir do mo-
restringiu à prática da cura, como mostram todas as especulações freudianas, que . mento em que práticas psicanalíticas se estenderam ao tratamento das relações
ele não se limita, por direito, a essa prática 3 e que, portanto, a supera regularmente. pais-filhos, das relações de casal e de famílias e das relações de grupo. Essa exten-
De fato, quando a clínica confrontou os psicanalistas com o tratamento de adultos são das práticas da psicanálise, sob a condição de que seja controlada, é um efeito
psicóticos e borderline,crianças e adolescentes sofrendo de perturbações psíqui- da infinitude de nosso conhecimento do inconsciente. O alcance epistemológico
cas graves, foram introduzidas reformulações em nosso conhecimento do incons- dessa proposição é que as condições de conhecimento do inconsciente não se
ciente e nos dispositivos de tratamento desses problemas. Conhecem-se os deba- estabeleceram de uma vez por todas e que o objeto teórico da psicanálise, suas
tes e controvérsias que essas transformações suscitaram. Elas continuaram a pôr modalidades de constituição e suas fronteiras devem ser periodicamente reme-
em xeque a concepção freudiana do inconsciente. tidos para o canteiro do pensamento crítico.
Em outros termos, cada dispositivo do método psicanalítico produz, a partir.
2. Descrevereiadiante (capitulo 6) seus processos,seu funcionamento e suas principais dos dados clínicos que ele gera e com que trabalha, campos específicos de teori-
formações,mas especificodesde já que o aparelho psíquico grupal não se confunde com zação: isto significa que o conhecimento do inconsciente se modifica com as
o aparelho psíquico individual: não é sua extrapolação. mudanças ocorridas na prática da psicanálise. Toda inovação invoca a renovação
3. "A utilizaçãoda análisepara a terapiadas neurosesé apenasurna de suas aplicações:talvez de certas concepções metapsicológicas anteriormente estabelecidas, e cada dispo-
o futuro mostre que não é a mais importante'; escreveFreud em 1926 (G.W. XIY, p. 283) sitivo, por sua vez, baseia-se em hipóteses teórico-clínicas, muitas vezes implícitas
( OCF XVIII, p. 76). quanto a seus princípios, e que convém explicitar.
54
Um singular plural O problemaepistemológico do grupona psicanálise ss

Assinalei que a abordagem psicanalítica do grupo introduziu-me em dois O "comum" é a substância psíquica que une os membros de um vínculo',
outros espaços, o da intersubjetividade e o do sujeito na intersubjetividade. Esse qualquer que seja sua configuração: uma família, um casal ou um grupo. São
espaço se organiza por uma lógica diferente daquela da psique individual, mas comuns ou se tornam tais: uma fantasia, um sonho, um desejo, identificações,
existem entre esta e aquela numerosos pontos de convergência. ideais, significantes, uma ilusão, alianças inconscientes. O contrato narcísico
(CASTORIADIS-AULAGNIER 1975) é a matriz comum da vida psíquica do
infanscom sua mãe nos tempos originários: a mãe inscreve o infans em seu pró-
prio narcisismo, ela o baseia em sua própria psique e no espaço psíquico familiar.
A COMPLEXIDADE DOS NiVEIS LÓGICOS DO PROBLEMA PSICANALfTICO DO GRUPO Não há vínculo sem essa substância psíquica comum aos sujeitos de um vínculo.
O "comum" exige o abandono ou a perda de certos limites individuais dos sujeitos
Distingqi três níveis lógicos no estudo da realidade psiquica do grupo: o no vínculo, uma certa indiferenciação, mas é também a matéria psíquica de base
do grupo, o· dos vínculos entre os sujeitos que o compõem e aquele de cada necessária para que surja o sujeito em sua singularidade. O "comum" conhece
sujeito considerado em sua singularidade. Se, como o concebo, o grupo é um nuances: é igualmente ou desigualmente comum.
espaço psíquico comum e partilhado, é necessário não só relatar o que ca~e à O "partilhado" corresponde à parte que toma cada sujeito ou ao lugar pró-
psique dos sujeitos nas formações originais que compõem o grupo, mas amda prio e complementar que ele ocupa em uma fantasia, uma aliança, um contrato,
especificar o que é singular e privado, o que é comum e partilhado e~ que per- um sistema defensivo comum aos sujeitos de. um vínculo. Uma fantasia cujo
manece diferente. enunciado seria "Um pai ameaça/repara uma criança" é ao mesmo tempo comum
aos membros de um grupo e organiza as relações entre os membros do grupo.
Todos são mobilizados por essafantasia,ecada um por sua vezou simultaneamente
O singular privado, o comum, o partilhado, o diferente é ator passivo ou ativo, ou ainda o observador dessa ação psiquica. Todavia, cada
sujeito pode ocupar um certo lugar, o lugar que lhe é próprio e que o singulariza,
O "singular" corresponde ao espaço psiquico individuado que marca com nessa fantasia. A partilha da fantasia é um sinal de um processo de subjetivação
sua especificidade a estrutura, a história e a subjetividade de um sujeito singu- individualizante no espaço comum e partilhado. Esse regime de partilha assegura
lar: sua organização pulsional, suas fantasias secundárias, seus mecanismos de os termos de uma troca intersubjetiva.
defesa e seus conteúdos recalcados ou clivados, suas identificações, suas relações O "diferente" leva em consideração a distância no vínculo entre os sujeitos,
de objeto, em suma, o que singulariza seu desejo inconsciente. No entanto, uma a ponto de que sua diferença revela o que não pode ser comum nem partilhado
parte do que é "singular" se origina naquilo que o sujeito herdou, no que ~e entre eles. Na diferença emergem a alteridade radical do outro e o indício do que
adquiriu e transformou, ou no que permaneceu para ele sem transformaçao. permanece, nele, singular e privado.
Como indica Freud em sua Introduçãoao narcisismo4, "o individuo leva de fato Dito de outro modo, não existe vínculo sem matéria comum. Um vinculo
uma dupla existência: na medida em que é um fim para si mesmo, e enquanto não pode se basear na exclusividade da diferença. É porque existe o comum e a
elo de uma cadeia à qual está submetido contra sua vontade, ou pelo menos sem diferança(différance,J.Derrida) que posso partilhar (e que sou partilhado).
a intervenção desta".É a tensão entre ser fim para si mesmo e ser elo, beneficiário,
servidor e herdeiro de uma cadeia intersubjetiva e transgeracional que define
o sujeito como sujeito do inconsciente para o que compete à sua posição c~mo Estatuto das formações psíquicas nos três espaços psiquicos
sujeito do grupo. Mas devemos levar além as consequências desse ponto de :vista:
a singularidade do espaço psíquico privado coexiste com as zonas de realidade A experiência do grupo é essencialmente a experiência da reunião, ou da
comuns e partilhadas com outros sujeitos. aparelhagem, entre estes três espaços: o espaço do grupo, o dos vínculos inter-

4. Na Edição Standard Brasileira das Obrascompletasde Freud: Sobre o narcisismo: uma 5. Freud, em Totem e tabu, define a Kinship como "a substância comum que une os
introdução (1914), v. 14. (N. do T.) membros de um clã".
56 O problemaepistemológicodo grupona psicanâlise 57
Um singular plural

subjetivos e o espaço intrapsíquico, e essa aparelhagem concede um lugar variável quatro primeiros concernem à organizaçãodessesespaços psiquicos,possuem um
a cada uma dessas quatro modalidades. Para dar um exemplo, eu diria que a fan- alcance epistemológico e clínico.Distingoo princípio de constância e de transver-
tasia ou o sonho não apresentam as mesmas características no espaço interno, salidade da matéria psíquica, o princípio de complementaridade, o princípio de
singular e privado, no espaço comum e partilhado e no espaço transpsíquico. plurifocalidade e o princípio polifónico. Os três princípios seguintes são aqueles
que organizam o pensamento teórico. Selecionoo princípio de complexidade, o
princípio de incerteza e o princípio de indeterminação multifatorial.
Espaço intrapslquico,
singular, privado •
O princípio de constância e de transversalidade da matéria psíquica

Espaço oníri
Espaço interpslquico s comuns e p
Esseprincípio explicaaconstânciarelativada matéria psíquicanos três espaços
do grupo e do vinculo distributiva da psíquicos,o do grupo comoentidade, o dos vínculosde grupo e o do sujeito singular
no grupo. Essaconstância,contudo,é relativa,pois o sistemaformado por essesdife-
rentes espaçosnão é totalmente fechado.Pode-seretomar aqui o exemploda fantasia
Espaço transpslquico Son~s transgeracionais
e do sonho: sua matéria é constante, atravessamos espaços psíquicos, mas sua
Fantasias originárias organizaçãoe suas modalidadesde funcionamentosão diferentesna psique de grupo
e na psique individual.Outro exemplodessaproposição é que o inconscientese ins-
Figura 2.1. Estatuto das formações psíquicas nos três espaços crevevárias vezesem cada um dessesespaços,segundo formas e efeitosdistintos.
Podemos considerar que a matéria psíquica atravessaessesdiferentes espaços
se transformando e que elase mantém relativamente constante além das formas
A Figura 2.1 exprime a ideia de que os conteúdos e as modalidades de fun- especificas que a realidade psíquica assume em cada um desses espaços.
cionamento da fantasia trabalham de maneira diferente na situação de grupo e na
situação de cura. Na situação de grupo são mobilizadas sobretudo as propriedades
estruturais da fantasia, especialmente as localizaçõesdo sujeito na cena da fantasia O princípio de complementaridade
e as localizaçõesque ele atribui ao outro nessa cena. Outra aplicação dessa propo-
sição,à qual terei a ocasião de retomar, é que os sintomas são produzidos e man- Esse princípio traz uma precisão ao princípio de transversalidade: o grupo
tidos pelos membros do grupo devido à função que eles cumprem na vida psiquica forma uma entidade psicológicae está ele próprio em relação de complementari-
de cada um deles e simultaneamente no processo grupal. dade com outras organizações da vida psíquica. Esseprincípio nos é bastante útil
Por esse motivo, a localização da posição do sujeito em sua história singular na investigação psicanalitica quando se trata de trabalhar para o conhecimento
é menos trabalhada na situação de grupo do que na situação de cura Já a posição do do inconsciente em seus diversosespaços de manifestação6• Uma aplicação desse
sujeito na intersubjetividade, em sua relação com um outro e com um conjunto princípio é que as formações e os processos psíquicos estão dispostos de maneira
de outros, é mais trabalhada no dispositivo de grupo. diferente e realizam funções diferentes quando são mobilizados em cada um
:e
desses espaços. assim que certas propriedades da fantasia são utilizadas no
vínculo com efeitos espedficos, especialmente como organizador deste.
PRINCIPIOS EPISTEMOLôGICOS PARA A ANÁLISE DAS RELAÇÕES ENTRE OS ESPAÇOS
DA REALIDADE PSIOUICA INCLUIDOS NO GRUPO 6. A retomada por G. DEVERl!UX (1972) da noção de complementaridade de N. Bohr se
inscreve no campo do método e da epistemologia: a referência constante de Devereux é
Ao longo de minhas pesquisas fui levado a definir vários princípios de análise que os discursos psicológicos e os discursos sociológicos são mutuamente irredutíveis
para pensar as relaçõesentre os diferentes espaçospsíquicos incluídos no grupo. Os e que existe entre ambos uma relação de complementaridade.
58 Um singular plural O problema epistemológico do grupo na psicanálise 59

O princípio de plurifocalidade Concebe-sefacilmenteque a tríade intra/inter/transpsíquico cria perturba-


ções (desorganizações)em cada um de seus componentes em razão das modali-
A despeitoda representaçãocomum segundoa qualo grupo éum círculoe pos- dadesde ajusteentre essesdiversosregimespsíquicos.Asregulações(organizações)
sui um centro atrator único, devemos admitir que ele possui vários e que uns são e criaçõesoriginais(reorganizações)que se impõemsuscitamcontribuiçõese trans-
ativos,enquanto outros estão em latência. Só a fantasiado Um e do Centro nos faz formam cada um desses regimes.
acreditarnessaconcepçãounifocal.Bion,pelo contrário,trabalhoucom baseno prin- As teorias da complexidadee do caos trouxeram esquemas preciosos para
cípio de plurifocalidade-pa,asustentara ideiade que o espaçopsíquicono grupo pos- pensar a organização,a dispersãoe a recomposiçãoda energia psíquica e das repre-
sui urnapluralidadede sedes(ou de sistemas)organizadoras.Lidamosaqui com uma sentações no grupo. Pensar o grupo como um sistema dinâmico que comporta
mutação que corresponde ao equivalenteda passagemda cosmologiacopernicana processos de organização episódicosmais ou menos estáveis,flutuantes e aleató-
(a Terranão é o centro do mundo, mas o Sol) à cosmologiakepleriana,que admite rios, como propõe a teoria do caos,permite apreciar a complexidade pelo ângulo
diversoscentros organizadoresdo universo.Ela marca o fim do heliocentrismo. processual. Segundo os teóricos da teoria do caos8, tais sistemas possuem duas
característicasfundamentais:a sensibilidadeàs condiçõesiniciais e a existênciade
O princípio polifônico atratores.A primeira significaque pequenas variaçõespodem acarretar compor-
tamentos do sistema que não podem ser previstos(o exemplo clássicoé o do bater
Esseprincípio é uma consequência dos três princípios de constância-trans- das asas da borboleta, que é causa longínqua e não linear de tempestades). Os
versalidade,de complementaridade e de plurifocalidade. Entendo por polifonia, atratoressão organizadorestemporários,repetitivosou não, do sistema:elesatraem
seguindo as teorias de M. Bakhtine, que no espaço psíquico do grupo, como em o sistema para uma dada organização.
qualquer configuraçãode vínculos,fazem-se ouvir diversasvozese diversosenun- Segundo essa perspectiva,a complexidadeé o resultado da degradação (en-
ciados,que se destinam a diversosdestinatários. A noção central é aqui a de resso- tropia) do grupo enquanto sistemainicial,em prol de seus elementos constituintes
nância, independentemente de qualquer busca de uma harmonia ou de uníssono. (os sujeitosmembros), comretomo ao fim para a reorganizaçãomais complexado
Esseprincípio comporta uma hipótese sobre a tópica do inconscientee uma con- próprio grupo. Dito de outro modo, o processode subjetivaçãoa partir do grupo
sequênciaclínicasobre a concepçãopsicanalíticadas transferênciase dos processos encontra sua matéria e sua energiano declínioepisódicoda atração grupal para seus
associativosnos grupos. Ele organiza nossa escuta dos diversoslugares em que se sujeitos;a energiae as representaçõesliberadassãotransformadas em complexidade
enuncia o inconsciente no vínculo7• segundo a fórmula própria a cada sujeito e podem ser reinvestidasno grupo, que
se torna mais complexo em sua organização.
O princípio de complexidade Nessamedida, a complexidadedeve ser entendida como problema posto para
o conhecimento das articulaçõesentre estruturas psíquicas,as de cada sujeito li-
Esseprincípio é útil para pensar osprocessosdeorganizaçãoedereorganização gado a outros sujeitos numa organizaçãodo vínculo e as desse vínculo mesmo. O
dos espaçosda realidade psíquicados sujeitos membros do grupo (ou de qualquer princípio de complexidade se confronta com os processos de redução da com-
outra configuração de vínculos), entre si e no grupo. Lidamos,com o grupo (co- plexidade, tanto no processode conhecimento quanto no processo de regulação
mo com qualquer configuraçãode vínculos), com um objeto complexo,mas que da complexidade.
pode ser concebido como tal a partir das três proposiçõesfundamentais do pensa-
mento complexo:o princípiodialógico,queconsidera uma unidade de n elementos
O princípio de incerteza
opostos e complementares em tensão quase permanente; o feixe recursivo de
retroação dos efeitos sobre as causas;o princípio hologramático tal que cada ele- O princípiode incertei.atal como o utilizoaqui não é inspirado pelo conceitode
mento contém em redução a totalidade do qual é parte. relaçõesde incertezaformuladopor W. Heisenberg,mas pelo sentido que ele adqui-
riu nas teorias probabilistassob o nome de probabilidadesubjetiva, ou seja, uma
7. Especifico: polifonia não significa harmonia, mas combinação de várias vozes de fre-
quências diferentes. Cf. K.üs 2002a. 8. Por exemplo: N1cous, PRIGOGINE 1989; FOGELMAN SouuÉ 1991;MORIN 1990.
60 Um singular plural o problema epistemológico do grupo na psicanálise 61

teoria normativa da probabilidade na qual "o conjunto de juízos efetuados por um Conclusão
indivíduo hipotético decorre necessariamente das suposições às quais ele se entrega
livremente em condições de incerteza''. Na situação que nos concerne, as condições Ao final deste capítulo, pudemos especificar aquilo que está em jogo na ques-
de incerteza devem-se ao fato de que cada sujeito membro do grupo é confrontado tão que queremos estabelecer. A abordagem psicanalítica dos grupos concerne aos
com a complexidade das organizações psíquicas diversas e plurais e com o fato de que psicanalistas na medida em que o conhecimento do inconsciente ao qual a situa-
elas se apresentam de uma maneira não sistematicamente previsível, isto é, de ma- ção psicanalítica de grupo nos faculta o acesso traz uma nova inteligibilidade das
neira parcialmente aleatória. A impossibilidade na qual nos encontramos de prever relações entre vários espaços psíquicos. Trata-se, enfim, de encontrar na psicaná-
com certeza as conduta! do outro - e, afortiori,de mais do que um outro - não lise a matéria e a razão de uma teoria geral que possa fazer sentido para a com-
significa que não podemos compreender sua lógica posteriormente. Na situação preensão tantoda psique individual quantoda psique dasconfigurações de vínculo,
de grupo, as c~ndições de incerteza invocam a utilização de processos redutores da das quais o grupo é uma das figuras paradigmáticas.
incerteza pai-a diminuir a perplexidade (PUGET 2002) a esta associada. Falta agora descrever o dispositivo metodológico por meio do qual se ma-
nifesta a clínica psicanalítica dos grupos. Precisaremos em seguida explicitar como
os dados clínicos nos quais se apoiam nossos desenvolvimentos conceptuais são
O princípio de indeterminação multifatorial por sua vez polarizados por hipóteses e por modelos teóricos que formam o pano
de fundo de nossa escuta igualmente flutuante.
Resulta dos dois princípios precedentes que os processos e as formações que
regem as relações dos sujeitos no grupo (ou em qualquer outra configuração de
vínculo) e o próprio grupo são determinados de maneira interdependente e mul-
tifatorial. O espaço psíquico do sujeito considerado enquanto tal está ele próprio
sob o efeito desse tipo de causalidade.

Particularidades da clínica nas fronteiras dos espaços intrapsíquicos e


interpsíquicos

A diversidade e a heterogeneidade das formas e dos processos psíquicos de-


finem a complexidade da clínica com a qual lidamos nos grupos. Esses espaços são
heterogêneos, sua consistência e sua lógica são distintas, mas eles se comunicam
entre si. Nós o avaliamos quando tentamos compreender como se articulam as
transferências comuns e partilhadas no grupo e as transferências específicas a cada
sujeito. Nossa escuta psicanalítica encontra essa complexidade quando ela se situa
nas fronteiras e nas interferências dos três espaços psíquicos que distingui.
Geralmente reduzimos essa complexidade centrando nossa atenção num só
dos níveis da realidade psíquica envolvida na grupo: seja o do sujeito no grupo,
seja o dos vínculos entre os sujeitos, seja o do grupo enquanto entidade ou como
"totalidade''. Bion, Foulkes e Anzieu centraram sua atenção e sua teorização neste
último nível (historicamente o primeiro). Pichon-Riviere começou a articular dois
termos: o sujeito enquanto "emergente" ou portavoz (porta-palavra) do grupo e
o grupo enquanto conjunto.
3
- O grupo como situação
psicanalítica
O grupo como situação psicanalltica 65

Trêsproposições sobreo método da psicanálise

Apoio-me em três enunciados que, a meu ver, formam a raiz do método


psicanalítico:
1. O objetivoda análise é o tratamento das perturbações psíquicas "de outro
modo inacessíveis". Importa lembrar que esse objetivo é "de tipo tera-
pêutico", mas que ele não se reduz à realização desse objetivo. Esse trata-
mento, com efeito, exige que se desenvolva um processo psicanalítico ao
longo do qual seja possível, na transferência que suscita, acolhe e libera a
situação psicanalítica, uma autêntica experiência do inconsciente. A cura
de adultos neuróticos foi a forma princepsdo tratamento psicanalítico e
constitui o primeiro paradigma do método de acesso ao inconsciente.
Ao longo do capítulo anterior, vimos que a extensão do campo de objetos 2.A psicanálise se produz numa situaçãoprópria para mobilizar, conhecer
teórico-clínicos da psicanálise sempre veio acompanhada de uma crise epistemo- e pôr em ação os processos e formações do inconsciente de um sujeito
lógica: os requisitos fundamentais do método psicanalítico tiveram de se ajustar considerado na singularidade de sua estrutura e de sua história. Essa si-
para tornar acessível o conhecimento de novos. objetos, e esse conhecimento tuação desenvolve-se a partir de um dispositivo, de um enquadre e de um
acarretou uma reformulação da teoria. número limitado de regras estruturantes assumidas como a "regra funda-
O grupo como artefato não escapou a essa regra: a extensão se efetuou a mental''. A aplicação pelo analista, que se torna seu suporte, do dispositivo,
partir dos prinápios metodológicos que estruturaram o modelo inaugural da cura do enquadre e da regra fundamental gera os processos que especificam
individual, mas com as transformações impostas pelas características morfoló- essa situação como psicanalítica.
gicas do grupo: pluralidade dos sujeitos, prevalência do face a face e da interdis- 3. A eficácia do processopsicanalíticodeve-se à enunciação da regra funda-
cursividade. Essas três características morfológicas determinam a especificidade mental, aos movimentos de transferência, à função da interpretação na
da realidade psíquica do grupo e aquela que é mobilizada entre os sujeitos mem- situação psicanalítica. Tudo o que ocorre na situação analítica - os sin-
bros do grupo; elas conferem inflexões particulares às transferências, aos pro- tomas, os sonhos e as associações - refere-se à transferência, a suas mo-
cessos associativos, à escuta e à interpretação; elas influenciam a maneira pela dalidades, a seus objetos e conteúdos, e a suas relações com a resistência
qual são recebidos e como funcionam a regra fundamental e, finalmente, o modo ao processo psicanalítico. O analista exerce a função de interpretação e
de trabalho do psicanalista em situação psicanalítica de grupo. está atento à maneira pela qual a acolhe o analisando. Com efeito, a inter-
Neste capítulo examinaremos com base em que princípios metodológicos pretação se produz no campo trânsfero-contratransferencial; ela retorna
foi construído o dispositivo psicanalítico de grupo. Poderemos assim estabelecer a ele transformando-o.
em que ele se aproxima e se distingue do modelo da cura.

As relações entre método e teorização


O MÊTODO DA PSICANALISE: CONSIDERAÇÕES GERAIS

De maneira geral, o método abre caminho para o conhecimento de uma A psicanálise construiu sua teoria por intermédio desse paradigma e dessa
realidade que de outro modo seria inacessível. Por método psicanalítico enten- situação. Ela elaborou modelos de inteligibilidade que incidem sobre os fenó-
demos um conjunto de procedimentos de conhecimento da realidade psíquica e menos psíquicos que podem ser conhecidos graças às propriedades da situação
de tratamento das perturbações psíquicas. É preciso evitar superestimar o caráter princeps.Esta funcionou como uma situação de referência quando foi necessá-
impessoal do método. Pelo contrário, o método psicanalítico inclui de maneira rio manejar o protocolo básico para tornar possíveis outras formas de trabalho
decisiva aquilo que é próprio à pessoa do analista. psicanalítico.
66 Um singular plural o grupo como s~uação psicanalítica f/7

De maneira geral, dois princípios regem um método: o princípio de possi- que dispõe e o que dispõ~ ~ psicanalista para praticar a psicanálise: o artifíci.9 que_
bilidade e o princípio de limitação. Esses dois princípios definem o campo de seus eieüfilizã
torna manifesta certa ordem da realidade psíquica de outra maneira
objetos teoricamente cognoscíveis. indiscernível, sobre a qual nenhuma operação de transformação seria possível
Segundo o princípio de limitação, o método permite subsistir, além do en- sem esse dispositivo. Para produzir esse efeito, é preciso introduzir uma ruptura
quadramento que ele institui para traçar o caminho para seu objeto, um "resto a no curso das coisas, operar urna redução do que é ou está difuso, neutralizar as
conhecer" e, por definição, do desconhecido. Esse resto a conhecer do inconsciente, ordens da realidade que interferem "naturalmente" na da realidade psíquica,
que pode encontrar um caminho de acesso num manejo metodológico adequado, da qual o dispositivo supostamente favorece a manifestação.
deriva, por hipótese, do campo dos objetos teoricamente cogno~cíveis pela psica- Pela razão fundamental que se deve ao objeto da psicanálise, o dispositivo só
nálise. Foi o que se produziu com a invenção de um método de tratamento psi- produz efeitos de análise ao ser proposto e sustentado pelo psicanalista que, em
canalítico das crianças, dos pacientes psicóticos ou borderline.A mesma questão sua tripla função de objeto de transferência, de garante do dispositivo e de intér-
se põe quando.o tratamento psicanalítico por meio do grupo exige reformulações prete, se encontra ele mesmo submetido a ele. A pertinência do dispositivo se
do método. avalia assim por vários critérios: o do objetivo visado, o do método, o da ética, o
da teoria e da prática da psicanálise. Esta não pode ser dissociada da equação pes-
soal do psicanalista.
Em torno do problemametodológico
A situaçãopsicanalítica desenvolve-se com base num dispositivo ordenado
De fato, quando-a psicanálise se dá um novo objeto - não mais o sujeito sin- às necessidades do método. Ela pode se definir sob dois aspectos: em termos do
gular, mas o grupo e os sujeitos singulares que o compõem -, ela deve, impe- objetivo perseguido, isto é, a experiência e o conhecimento do inconsciente por um
rativamente, construir um dispositivo capaz de responder tanto às características sujeito singular; em termos dos processos psicanalíticos que o dispositivo utili-
desse objeto quanto aos critérios de toda situação psicanalítica. Convém, portan- zou. Esses processos desenvolvem-se a partir do enunciado de um número limi-
to, examinar como as características morfológicas do grupo e a regra fundamental tado de regras estruturantes (assumidas como a "regra fundamental"), das quais
mobilizam certos efeitos do inconsciente e definem o espaço específico da reali- o psicanalista é o garante. Consistem essencialmente no conjunto dos movimentos
dade psíquica. de repetição e de criação que especificam o campo contratrânsfero-transferencial
Assim posto, o problema metodológico com o qual lidamos não é da ordem e num discurso chamado de livre associação. Importa, portanto, que seja estabe-
da psicanálise "aplicadà; nem da urgência de verificar se as especulações freudianas lecida e preservada a capacidade de experimentar, de dizer e de interpretar o que
sobre o grupo e a "psique de grupo" podem ser mantidas. O problema é o da cons- se manifesta na situação psicanalítica. As formações do inconsciente só podem ser
trução de um novo objeto psicanalítico por meio de uma metodologia adequada. conhecidas nessas condições, sem as quais a própria possibilidade de uma prática
Trata-se então de definir essa situação no máximo de sua força heurística. analítica desaparece.
O conceito de enquadre(cadre)não deve ser confundido com as invariantes do
dispositivo de investigação, de tratamento ou de pesquisa. O conceito psicanalítico
Dispositivo, situação e enquadre psicanalíticos de enquadre foi progressivamente construído a partir dos trabalhos de J.Bleger,que
em seu artigo "Psicanálise do enquadre psicanalítico" (1967) propôs a ideia de que
Antes de especificar em que condições o dispositivo de grupo satisfaz às exi- o enquadre recolhe e estabiliza os conteúdos psíquicos que emanam da "parte
gências do método da psicanálise, devemos explicar como utilizamos os conceitos p~icótica da personalidade". Essa parte psicótica é essencialmente um lugar tópico
de dispositivo, situação e enquadre. ~ livado no interior do ego: não tem muito a ver com a psicose clínica, nem com a
r O dispositivoé um aparelho de trabalho construído com um certo objetivo. d~~ do_~gq__esua restituição delirante. O enquadre é ess;ncialmente
Lf, artifício, construção. É o arranjo de elementos espaciote~porais e mate~iais o lugar em que se depositam erepÕÜsãinesses elementos arcaicos. É em primeiro
apropriados a um objetivo de conhecimento e de transformaçao. Por consegwnte, lugar constituído pela psique do psicanalista, e em segundo lugar por uma extensão
não está inscrito no absoluto, mas na apropriação relativa de um objeto ou de um desta no espaço psicanalítico. A função essencial do enquadre é atingir a estabilidade
instrumento a um projeto ou a certo estado de coisas. O dispositivo é aquilo de para que haja processo,movimentação e criatividade. No entanto, nenhum enquadre
68 Um singular plural o grupo como s~uação psicanalltica 69

é perfeitamente estável: devido ao analisando ou ao psicanalista, o enquadre é sub- sustenta, atrapalha ou entrava. Essa noção é bastante útil para compreender as
metido a transformações que revelam sua função e seus conteúdos. Desse modo, relações entre o enquadre psicanalitico da cura, o enquadre psicanalitico da su-
o enquadre se encontra numa relação dialética com o processo. pervisão e o enquadre psicanalitico da instituição psicanalitica'.
O enquadre é o receptáculo não somente do arcaico, mas também do originá-
rio: há lugar para pensar, portanto, a relação do enquadre com a violência origi-
nária que "aí repousa''. Todavia,certos elementos do enquadre são portadores de urna O GRUPO COMO DISPOSITIVO, SITUAÇÃO E ENQUADRE PSICANALITICOS

problemática edipiana, nl! medida em que o enquadre define limites e interditos.


Distingui seis funtões do :!!9Ua~~e. A fim de especificar em que condições o grupo pode constituir um paradigma
- A primeira é a função continente,descrita por Bleger quando diz que o metodológico capaz de tornar manifesta a realidade psíquica dos sujeitos no
enquadre, "receptor da simbiose", contém a "parte psicótica da persona- grupo e a realidade psíquica do grupo, preciso primeiramente descrever as pro-
lidade". ·No interior dessa primeira função podemos distinguir a conti- priedades morfológicas da situação de grupo.
nência como receptáculo ou como coerção, o depósito,seja pura e simples
consignação, seja lugar onde se guardam certos objetos para conservá-los
ou abrigá-los, e a cripta,que recebe o oculto e o arcaico. As características morfológicas das situações de grupo
- A segunda função, de limitação,assegura a distinção entre o "ego" e o
"não-ego''. O enquadre é o garante dos limites do sujeito, de seu espaço Distingo quatro características morfológicas do dispositivo psicanalitico de
corporal e psíquico. grupo: a precessão de um principio desejante e organizador, a pluralidade e a
- A terceira função do enquadre é transicional:fronteira entre o ego e o presença simultânea das pessoas, o face a face, a pluralidade de discursos e a in-
não-ego, o enquadre articula o dentro e o fora, ele participa desse espaço tersubjetividade. Essas características são comuns a todos os dispositivos de grupo,
conceptualizado por Wmnicott em que reinam a paradoxalidade e a inde- quaisquerque sejam seus objetivos e técnicas (grupos terapêuticos, grupos de
cidibilidade. Encontrado-criado, o enquadre não é nem subjetivamente formação, grupos de psicodrama psicanalítico, grupanálise), a duração e o ritmo
concebido, nem objetivamente perdido. Um dos problemas consequentes das sessões, as modalidades de abertura ou de fechamento do grupo (grupo len-
é o da manute~ção da dimensão contratual do enquadre confrontado com tamente aberto ou grupo fechado).
o de sua adequação e de sua administração. Esse problema define em parte
o conteúdo daquilo que chamei de análise transicional (I<AfS 1979).
A precessãode um prinápio desejantee organizador
- O enquadre realiza urna quarta função de assentamento[adossement]e de
escoramento[étayage],com base no modelo do apoio [appui] sobre o ] Partilho com A. Missenard a ideia de que o psicanalista que reúne um grupo
L
objeto de pano de fundo; os trabalhos de J.Grotstein, J.Sandler e G. Haag para um trabalho psicanalitico é posto pelos membros do grupo em posição ima-
evidenciaram o papel desse objeto na formação do sentimento de segu- ginária de fundador do grupo. No entanto, convém lembrar que é o psicanalista
rança e de identidade. que enuncia as regras portadoras do processo de simbolização. Essa precessão
-A quinta função é a do "contedor":corresponde à função de figuração e possui - como veremos - incidências notáveis sobre a questão da origem, do
de transformação das representações de objetos e de afetos em represen- conteúdo e do regime de transferência e contratransferência.
tação de palavras que se tornam possíveis por meio do enquadre.
-Quando essascinco condições são preenchidas, o enquadre pode exercer uma
sexta função, simbolizante,
condição principal da formação do pensamento. 2. Ela é igualmente útil para analisar, numa estrutura psiquiátrica hospitalar, por exem-
Recorri à noção de metaenquadre'ou de enquadre do enquadre para explicar plo, as relações do enquadre terapêutico, individual ou de grupo com o enquadre insti-
o fato de que todo enquadre é enquadrado por um enquadre que o contém, tucional. Em numerosos casos de sofrimento institucional, trata-se de fazer reconhecer
e reinstaurar a reciprocidade dos enquadres, quando suas relações se tornaram antagó-
1. Sobre o conceito de "meta': cf. lntrodução, p. 20. nicas e destrutivas.
70 Um singular plural o grupo como situação psicanalítica 71

A pluralidadee a presençasimultâneade pessoasestranhasumas às outras utilizam mecanismos de defesa conjuntos e comuns por consentimento tácito e
de modo desconhecido de cada um. O recalque, a denegação ou a clivagem das
A pluralidade é wna característica notável da morfologia grupal. Ela gera uma r~esentaçõeu,erigosas e a repressão dos afetos embaraçosos concorrem para a
combinatória relacional cujos efeitos se inscrevem nos objetos das transferências, produção precoce de conteúdos inconscientes ligados à situação grupal. Aí se
nos processos associativos, na diversidade de formas do ~(casais, trios, encontram a origem, o princípio e as funções de aliançasdefensivasinconscientes:
subgrupos) e nos recursos disponíveis para a figuração das cenas psíquicas. pactos denegativos, denegações em comum, rejeições partilhadas.
Nos dispositivos que utilizamos, o grupo reúne vários sujeitos estranhos uns Essas formações possuem grande importância, wna vez que os conteúdos
aos outros. Cada um dos sujeitos que se prepara para se tomar membro do grupo inconscientes dessas alianças defensivas iniciais retornarão no grupo, segundo
encontra-se imediatamente confrontado com um encontro múltiplo e intenso caminhos próprios a cada um, mas também através das modalidades grupais
com vários ~utros: para ele, são outros tantos objetos de investimentos pulsionais, de transferências, de formação de sintomas e do processo associativo. Devemos
de comoções, afetos e representações que entram em complementaridade ou em considerar, portanto, esses mecanismos de defesa como parte constitutiva do
antagonismo, em ressonância ou dissonância uns com os outros. Pode-se supor vínculo de grupo, do vínculo com o grupo, mas também da realidade psíquica
que em tal situação uma excitação importante vá se produzir e, provavelmente, do grupo e dos sujeitos no grupo.
se entreter com a excitação dos outros, num jogo bem complexo de projeções e O resultado desses diferentes tratamentos da pluralidade é a produção de wn
identificações recíprocas. arranjo inconsciente de zonas psíquicas em que o vínculo é possível. Por meio
A pluralidade, désse modo, provoca efeitos de coexcitação interna e de coexci- desses processos, a pluralidade transforma-se em agrupamento, dota-se de um
tação mútua, desenvolve experiências passageiras de transbordamento e de com- objeto unificante e de um espaço comum a partir dos quais se efetuam as pri-
prometimento da capacidade de associar os estímulos excitantes com representações. meiras delimitações do dentro e do fora.
Essas experiências são potencialmente traumáticas quando os dispositivos paraex-
citantes são insuficientes. Se admitirmos que existe uma relação constante entre os O face a face
componentes intrapsfquicos e os componentes intersubjetivos das paraexcitações,
podemos supor que, nos grupos, certas condições que presidem à formação do Essa terceira característica também distingue a situação de grupo da situação
inconsciente originário estão reunidas. A hipótese de Freud segundo a qual o recal- psicanalítica da cura individual clássica. Com a análise de Dora, Freud instaurou
que originário se constitui, provavelmente, por ocasião da ruptura das paraexcita- wn dispositivo espacial tal que o analista se furta ao olhar do analisando. A neces-
ções encontra aqui wn campo de observação interessante. sidade de passar pe~ fala, e ~~_p~ abriu caminho então às
Um dos mecanismos de defesa utilizado pelos membros de um grupo para ~palavras e à cena da fantasia. Nessas condições, objetou-se por
tratar a situação precária de transbordamento e de não-ligação à qual pode se achar vezes que os sujeitos dispostos face a face em situação de grupo são situados num
exposto seu ego é reduzir a situação múltipla a uma situação conhecida ou a uma si- espaço e num tempo pré-psicanalíticos.
tuação regressiva mais restrita que se poderá controlar melhor, por exemplo uma De minha parte, temo que sejam apenas objeções especulativas. A clínica nos
relação dual. Outro mecanismo, observado por A Missenard (l 972), é a identificação mostra constantemente que, se o face a face mobiliza as modalidades de comu-
de urgência,a noção de urgência vindo conotar a situação precária de transborda- nicação não verbal e os investimentos do olhar encontram no espaço do grupo
mento. Os membros do grupo identificam-se com um objeto comum capaz de uma cena privilegiada para os jogos especulares das identificações, a necessidade
sustentar uma ligação intrapsíquica e de acalmar o pânico; eles estabelecem ao de dizer, a respeito do que se passa aqui e agora na cena do grupo, abre caminho
mesmo tempo a capacidade da realidade psíquica momentaneamente decomposta. para as representações de palavras e para a fala proferida e ouvida.
O objeto de identificação de urgência não é qualquer objeto: é um objeto escolhido
por sua função defensiva que poderá mobilizar, em cada um e em todos, diversas A pluralidadedos discursose a interdiscursividade
modalidades identificadoras, adesivas ou projetivas.
Identifiquei um terceiro mecanismo de tratamento da situação inicial peri- Em situação de grupo, os enunciados de fala e os sigrúficantes associados às
gosa. Desde os primeiros momentos do encontro grupal, os membros do grupo mímicas, àsposturas e aos gestosconstituem uma pluralidade de níveis de discurso.
72 Um singular plural O grupo como si1uaçãopsicanalitica 73

Estes se ordenam segundo um duplo eixo sincrónico e diacrónico, individual e associação,abstinência,dispositivoou settingespaciotemporaldas sessões)e sobre
intersubjetivo. Com efeito, quando os membros de um grupo falam, seus enun- o processo psicanalítico.Examinemosalgumas consequênciasda pluralidade.
ciados sempre se situam no ponto de junção de duas cadeias associativas:uma,
própria a cada um, é comandada pelas representações-fim individuais; a outra é
As transferênciasem situaçãodegrupo
formada pelo conjunto de enunciados e é comandada pelas representações
inconscientes organizadoras dos vínculos de grupo. A transferência é o resultado da propriedade da situação e do transferido
Chamo de interdiscursividade o estatuto do discursoque se constrói nessesdois específico que é convocado.Essa proposição, que vale para a cura, é igualmente
níveis intercorrentes: ó discurso de cada sujeito e aquele que forma o conjunto de válida para o grupo. No entanto, na situação grupal, a complexidade dos níveis
seus discursos. As enunciações e os enunciados são determinados segundo esse em que se produzem os processos psíquicos (níveis intra, inter, grupal) torna às
duplo eixo.O discursoassociativono grupo se organizade tal modo que cada sujeito vezesdifícila observaçãoclínicados movimentos de transferência e dos conteúdos
atrela ou d6atrela suas próprias representaçõesdas dos outros'. Resultaum modo transferidos de um nível a outro. Lidamos com uma economia e urna tópica
de funcionamento do processoassociativodiferentee mais complexodo que aquele das transferências bem particulares, que exigem uma leitura precisa da articula-
que funciona na cura individual,ainda que cada urna dessassituaçõespossaservista ção desses diferentes níveis.Um dos pontos de articulação consiste nas funções
como o lugar de processos de copensamento descritos por D. Widlõcher (1986). fóricas, pois elas surgem a partir das transferências.
Descrevi muitas vezes o processo associativo grupal como um dispositivo A primeira consequência da pluralidade é que o grupo é um lugar de surgi-
· de relançamento e de transformação da atividade do pré-consciente dos sujeitos mento de configurações particularesda transferência.O que é transferido não são
membros do grupo. Certas representações inconscientes que, até então, não pu- somente objetos, mas conexõesde objetos com suas relações.O que Freud levan-
deram encontrar as vias de acessoao pré-consciente podem se tornar disponíveis tou na cura a propósito da análise de Dora é pertinente para o grupo. O espaço
e utilizáveis.A análise das funções fóricas (porta-palavra, porta-sintoma e porta- grupal permite uma atualizaçãosincrónica das Schaltstücke,das peçasde conexão
sonho) também abriu novos caminhos para a compreensão da atividade do pré- (FREUD1895b,G.W. I, p. 301)e das relaçõesque o sujeito mantém com seus obje-
consciente e das condições intersubjetivas do pensar. tos inconscientes e entre seus objetos inconscientes. Esse modelo da conexão será
Um aspecto particular dessa propriedade interdiscursivado processoassocia- ulteriormente aplicado aos pensamentos do sonho, aos sintomas e às transferên-
tivo é o de nos informar sobre as condições que facilitama construção ou a recons- cias, e nós o verificamosa respeito do grupo. Para um mesmo sujeito, essas trans-
trução da memória individualem presença do grupo•:acontecimentosque"afetam" ferências se conectam entre si: por exemplo, as "harmónicas" complementares
o grupo acarretam nos membros do grupo o retorno do recalcado e estimulam o do complexo de Édipo e do complexo fraternal. Sua organização dinâmica e sua
trabalho de pensamento, na medida em que as paraexcitações funcionam. Essa economia constituem objeto do trabalho de interpretação.
propriedade pode ser utilizada no trabalho com pacientesque sofrem perturbações Outra característicadatransferência em situação de grupo é que os conteúdos
da memória ou traumatismos psíquicos de diversasorigens. transferidos na sincronia são organizações psíquicas heterogêneas: arcaicas, ori-
ginárias, neuróticas, psicóticas,simbióticas.Eles se desenvolvemaí num modo ao
mesmo tempo sincrónico e diacrónico, ao passo que, salvo exceção,eles se mani-
As regras estruturantes. As transferências e a contratransferência em
festam sucessivamente na cura individual.
situação de grupo A exceçãoque assinaloconduziu-me a ver de outro modo a teoria e a inter-
Essasquatro característicasmorfológicas do dispositivode grupo são interde- pretação das transferênciaslaterais e da clivagem da transferência na cura: são o
pendentes.Apresentamuma incidênciasobre as regrasdo método psicanalítico(livre mais das vezesanalisadas como resistênciasà transferência, ao passo que são, em
alguns casos, resistênciasdetransferência. Poder-se-ia dizer que as transferências
3. Cf.minha obra La paroleet le lien ( 1994), focadanos processosassociativos
individuais laterais são o regime normal das situações de grupo: produzem-se na sincronia,
e grupaisque sedesenvolvemnum dispositivopsicanalíticode grupo. segundo o processo primário que prevalece da difraçãoda transferência. Essas
4. Outra é a questão da memóriacoletivaou grupal:o problemaé compreendero que transferências diacrónicas difratadas, desse modo, fornecem uma figuração das
constituivestígiopara um grupo.Sobreessaquestão,cf. ICA.l!s
1989b. conexõesde objetostransferidos,isto é, do que chamo de grupo interno.
74 Um singularplural o grupo como situação psicanalítica 75

A divisão ou difração das transferências sobre o conjunto dos membros do nas modalidades particulares da transferência e da contratransferência quando
grupo, sobre o grupo e sobre o analista não é, por conseguinte, uma diluição da dois ou mais psicanalistas se escolhem para assumir juntos a função psicanalítica
transferência. Dir-se-á, antes, que no dispositivo de grupo as transferências plurais, num grupo. Nesse caso, os psicanalistas têm que elaborar o que chamei de inter-
multilaterais e conectadas entre si são difratadassobre os objetos predispostos a transferência (~ 1982).
recebê-las na cena sincrônica do grupo.
Essa característica das transferências em situação de grupo qualifica o grupo A intertransferência
como uma situação de ºtrabalho psicanalítico para os sujeitos que não pode-
riam tolerar um objet'o·único de transferência: é o caso dos pacientes psicóticos, - A intertransferência qualifica o estado da realidade psíquica transferida en-
borderlineou antissociais. A difração da transferência é também uma divisão tre os psicanalistas no que ela é induzida pela situação grupal, pelas transferências
econômica µas cargas pulsionais associadas ao objeto da transferência. que eles recebem, por suas próprias disposições contratransferenciais e por sua
Acrescento que o conceito de difração-divisão da transferência é uma das escolha de trabalhar juntos. A intertransferência não pode ser tratada, portanto,
contribuições específicas da abordagem grupal para a compreensão da transmis- de maneira independente da transferência e da contratransferência. É composta
são psíquica entre gerações: podemos observar como se efetua, para um dado pelos mesmos componentes, as mesmas questões em relação ao tornar consciente:
sujeito, o desenvolvimento sincrônico, na transferência, dos objetos transmitidos é ao mesmo tempo repetição e criação, resistência e via de acesso ao conhecimento
e recebidos na história intersubjetiva do sujeito'. O exemplo clínico· exposto ao dos movimentos do desejo inconsciente.
longo do próximo capítulo fornecerá uma ilustração disso. A análiseintertransferencial é a elaboração subordinada à função psicanalítica
Nos ·grupos, assim como na cura, a transferência só pode ser analisada na dos analistas no dispositivo de grupo. Ela concerne às localizações transferenciais
separação entre a posição do analista e a dos outros membros do grupo no campo alocadas por cada psicanalista ao outro psicanalista na situação de grupo, e aos
trânsfero-contratransferencial. O analista assegura sua função analítica quando ele efeitos contratransferenciais de cada um sobre o outro: tal análise, em certos ca-
mantém essa distância para analisar as transferências, ao passo que os participantes sos, é condição necessária para a elaboração da interpretação.
se tratam como outros e se respondem no real às transferências das quais são Ainda que por esse aspecto particular da técnica a conduta psicanalítica de
objeto. A manutenção dessa distância é a condição para reconhecer e analisar as um grupo se distinga daquela da cura individual, a problemática da intertrans-
alianças inconscientes que fumam os sujeitos membros do grupo. ferência pode nos esclarecer sobre certos aspectos das ligações das transferências
O grupo desenvolve ainda outras modalidades de transferência. Os mem- envolvidas na situação e no processo psicanalíticos da cura, e sobre os processos
bros de um grupo encontram-se entre si numa relação transferencial diferente de controle e de supervisão. Todas essas situações põem em jogo conjunções de
daquela que estabeleceria cada um deles com seu analista na situação de cura subjetividade, alianças inconscientes, pactos e contratos que afetam a contratrans-
individual. Por necessidade morfológica de grupo, o psicanalista no grupo é ferência e seu efeito sobre a elaboração das transferências.
objeto de transferências simultâneas ou sucessivas de vários sujeitos e não é o
único objeto da transferência. Além disso, como indiquei, a precessão do psica-
nalista em situação de grupo, e porque se trata de um conjunto reunido pelo Três proposições para concluir
psicanalista, confere a essa precessão, de saída, um valor imaginário de fundação;
ela mobiliza ipsofacto a fantasia da origem e a problemática do originário. Essas O dispositivo psicanalítico de grupo é um método que permite ao sujeito
duas características infletem aspectos particulares da contratransferência do experimentar o efeito produzido por ele e nele no encontro de seu inconsciente
psicanalista em situação de grupo. Em especial, elas têm um papel considerável com o de outro, de mais de um outro numa configuração de vínculo como a do
grupo. Esse dispositivo possibilita o acesso a uma organização da realidade psí-
5. Trabalhosbaseados nesses dispositivosderivados da cura fizeram avançar a pesquisa quica inacessível de outro modo, a do grupo enquanto tal.
sobre os conteúdos e modalidadesda transmissão da vida psiquica entre gerações,o que Para mostrar em que o dispositivo psicanalítico de grupo traçou novos con-
acarreta algumas consequências nas concepções teóricas que a psicanáliseformou da tornos e novos conteúdos na noção de realidade psíquica, foi necessário descre-
estruturação da psique e do sujeitodo inconsciente (KAJ!s,FAIMBERG et ai. 1993). ver os meios utilizados para ter acesso a ela. Caracterizamos, assim, o regime
76 Um singular plural

especifico das transferências e dos processos associativos a partir dos traços da


morfologia grupal.
Por meio destas reflexões sobre o método, especifica-se urna hipótese: no
grupo, assim como em todo vínculo intersubjetivo, o inconsciente se inscreve e
se manifesta diversas vezes, em vários registros e em várias linguagens: nos de
cada sujeito, nos do vínculo intersubjetivo e nos do grupo.

4
Clínicado
trabalhopsíquicoem
situaçãode grupo
Clínica do trabalho psíquico em siruação de grupo 79

a hipótese segundo a qual nos grupos lidamos com três espaços psíquicos, o do
grupo como entidade específica, o dos vínculos entre os membros do grupo e o
do sujeito singular em sua grupalidade intrapsíquica. Penso que esses três espaços
são heterogêneos entre si, que sua consistência e sua lógica são distintas, mas que
eles se comunicam entre si.
O fio condutor de meu relato será, portanto, a articulação entre o processo psí-
quico desse grupo e o de vários participantes. Iniciarei com um relato detalhado das
quatro primeiras sessões,depois resumirei certos momentos significativos dassessões
seguintes. Escolhi proceder dessemodo pois um relato exaustivo seria praticamente
impossível, e se nos arriscássemos a fazê-lo, apesar de tudo, seria fastidioso e logo se
tornaria bem confuso, devido aos níveis de organização complexa da realidade
psíquica. Assim, procederei como A. Kurosawa em seu filme Rashomon,propondo
Um exemplo clínico permitirá compreendermos como se forma a realidade
neste capitulo e ao longo dos capítulos seguintes vários pontos de vista sobre esse
psíquica do grupo, como se efetua a aparelhagem das psiques e que processos estão
grupo: eu o estudarei pelo ângulo da fantasia considerada como organizadora
presentes no trabalho psíquico do sujeito em situação de grupo. Esse exemplo nos
psíquica inconsciente da realidadepsíquica do grupo; em seguida eu o analisarei pelo
fornecerá a matéria sensível dos desenvolvimentos conceituais e teóricos que ex-
ângulo dos processos associativos grupais, da atividade onírica e de seus efeitos
poremos em seguida.
no grupo, dos afetos e transmissões do afeto; por último, examinarei como se instala
Trata-se de um grupo de duração breve, cujo objetivo é tomar possível que os o processo de subjetivação de alguns participantes no trabalho do grupo.
participantes experimentem e estejam em condições de pensar certos efeitos do
inconsciente em si mesmos, entre si e no grupo. Nesse tipo de grupo, os psicana-
listas não têm por intuito transmitir aos participantes uma forma de saber sobre APRESENTAÇÃODO GRUPO
o grupo, nem levá-los à condução do grupo, nem a melhorar suas comunicações,
Num grupo desse tipo, reúnem-se cerca de doze pessoas. Não possuem entre
nem a propor-lhes uma experiência de adaptação do ego às normas do grupo. :Ê si relações familiares, familiais ou hierárquicas; não são selecionadas mediante
claro que tais efeitos de aprendizagem podem se produzir. Esses grupos não são entrevista prévia. As sessões são divididas em três, quatro ou seis dias, à razão de
tampouco propostos como grupos de finalidade terapêutica, mesmo que a de-
quatro sessões de lhlSmin por dia: duas de manhã e duas à tarde_ Uma pausa de
mandados participantes possa se originar num sofrimento psíquico. Observamos,
meia hora separa as duas sessões de cada metade do dia. Os participantes se reú-
todavia, que se produzem efeitos terapêuticos por ocasião dessa experiência. Enfim,
nem na mesma sala, nas horas combinadas de antemão; sentam-se uns diante
tais grupos não são propostos como grupos de psicanálise no sentido da grupa-
dos outros, na maior parte das vezes em círculo, seja porque as cadeiras já estão
nálise foulkesiana, isto é, como cura psicanalítica por meio do grupo. No entanto, arrumadas assim, seja porque eles mesmos as arranjam dessa forma'.
para certos sujeitos, constatamos que um verdadeiro trabalho psicanalítico se
produz nesse tipo de dispositivo e que ele tem sobre sua organização psíquica um
efeito de análise profunda e durável. Eu o constatei seja antes que alguns deles As cinco primeiras sessões
empreendam uma cura individual, seja, e em certas condições, durante sua cura, Dez participantes haviam se inscrito nesse grupo para dezesseis sessões
seja ainda após sua cura.
divididas em quatro dias. Dois psicanalistas as conduzem, Sophie e eu.
Escolhi apresentar a clínica desse tipo de grupo porque ele intensifica os
processos de organização psíquica do grupo e porque ele mobiliza os processos 1. Utilizei outros dispositivos espaciais, nos quais os participantes e o analista se situam
individuais mais sensíveis aos efeitos de grupo. em circulo, mas sem se ver, de costas. Com os apoios visuais provisoriamente suspensos,
Eu o escolhi também por outro motivo. Sua riqueza e sua complexidade me outros processos perceptivossão intensamente mobilizados (audição, olfato,sensibilidade
forneceram ocasião para propor vários níveis de análise, e ele ilustra muito bem térmica ... ). Cf. KAlis 1994a
80 Um singularplural Clínica do trabalho psíquico em situação de grupo 81

Primeirasessão:desprezo,desorientação,perdade referências:
estar"forade si" sentasse como coanalista do grupo. Sylviefala de seu "desprezo": ela se perguntou
quem seria Sophie e hesitou entre duas mulheres, e ao designá-las pediu-lhes que
Quando chegam à primeira sessão, esses dez participantes são dez desco- dissessem seus nomes: Michele o dissede bom grado, Solange com reticência.
nhecidos para nós e para eles mesmos. Alguns deles já estão diante da porta da Aproveitando a ocasião,Jacquessugere que se continue a "rodada de nomes':
sala quando chegamospara abri-la; outros chegarão quando estivermosinstalados mas ele não é seguido.Váriosparticipantes estão mais mobilizados pelo "desprezo"
em nossas cadeiras, silenciosos, aguardando um pouco os retardatários. Nove de Sylvie,eles dizem ter se posto a mesma questão no silêncio do início da sessão.
deles estão presentes quando Sophie e eu começamos a falar: nós os acolhemos, Agora eles sabem e, como Sylvie,ficam tranquilos. Pergunto-me por que a ques-
lembramos-lhes que pêdiram para se inscrever nesse grupo, descrevemos os ele- tão de Sylvieimporta a outros, por que era tão urgente identificar a mulher no
mentos constantes do dispositivo: lugar, horário, duração das sessões. Depois par de analistas e para tranquilizar-se de quê. Suponho que se trata de uma iden-
apresentamqs a elesas regras que organizam nosso trabalho: elessão convidados tificação de urgência, mas contra que perigo, e este é o mesmo para as mulheres
a dizer ali e somente a dizer o que lhes vem ao espírito, como isto se apresenta a e para os homens? Eu me pergunto também o que assinala Sylvie falando de seu
eles,sem crítica nem restrição.Correlativamente, os analistas só manterão com eles desprezo, e que efeito este produz sobre Sophie. É notável que o grupo tenha co-
relações de fala, somente durante as sessões. Esses dois enunciados formulam a meçado com um movimento transferencial ("tomar alguém por outra pessoa")
regra fundamental e a regra de abstinência. São as duas regras indispensáveis. tão forte. Mas, por ora, nada me informa sobre isso, e o silêncio que se instala é
A estas acrescentam-se duas recomendações, urna de discrição,outra de "res- provavelmente todo ocupado pelo recalque desse fugitivo e perigoso reconhe-
tituição": pela primeira, cada um é convidado a permanecer discreto,no exterior . cimento em Sylviede um movimento de transferência sobre Sophie. Compreen-
do grupo, em relação a pessoasencontradas nesse grupo; pela segunda, propõe-se demos mais tarde que desde os primeiros instantes desse grupo os participantes
fazer retomar em sessão aquilo que poderia ser dito fora das sessõesentre os par- foram apanhados numa aliança inconsciente transferencial e de resistência, cujo
ticipantes, durante as pausas. sentido se desenvolverá na sequência.
Um longo silêncio se segue ao enunciado das regras e das recomendações. O silêncio é interrompido por Marc: ele experimenta, segundo diz, um vago
Ele é interrompido por Jacques,que pede que se faça "uma rodada de primeiros mal-estar, não consegue mais pensar, conectar duas ideias, tem a cabeça vazia.
nomes para saber a quem nos dirigimos, quem fala a quem"; ele necessita dessas Boris exprime o mesmo sentimento: não sabe mais muito bem onde está, nem
"referências" para avançar. Marc diz: "Chamam-me de Marc",depois permanece quem é. Ambos estão de acordo sobreuma fórmula de Jacques, retomada e com-
em silêncio até o meio da sessão3 • pletada por Marc: perderam suas "referências': estão "fora de si''. Esse mal-estar
O pedido de Jacquespermanece em suspenso durante certo tempo. Sylviefala é partilhado por Sylvie e Anne-Marie, depois por Solange e Michele. Uma se-
da experiência estranha que ela teve no início da sessão, antes que Sophie se apre- quência associativa bastante longa insistesobre a confusão, a perda de referências,
diversas experiências de desprezo.
2.Talafirmaçãoé frequentedurantea primeirasessão:uma"rodadade mesa"é sugerida,apre- Lembro, sem exprimi-la, a polissemia da expressão estar "fora de si": ela
sentaçõessãosugeridas;é um recursoclássicoparacriar paraexcitações,tranquilizando-se
so- indica uma desorientação do ego, mas exprime também a cólera experimentada
bre o inquietantedo desconhecido. Jacquesutilizauma expressãopoucohabitual,insistindo nessadesorganizaçãocaótica.Essairrupção bastante intempestiva de um mal-estar
sobreos primeirosnomes,minhaatençãosedetémmomentaneamente sobreisso;é mobiliza- perdurará até o final da sessão.A representação que tenho nesse momento é que,
da pelofatode que suaafinnação,"saberquem falaa quem';entraem ressonância associativa efetivamente, os participantes perderam suas "referências identificadoras" e
coma preocupaçãoquemeacompanhanessaépocae queexperimentovindoparaessegrupo: procuram reencontrá-las; estou atento à violência da expressão do mal-estar em
comofuncionao processoassociativo? SurpresopelafórmuladeJacques,admitoquenadasei Marc e Boris, à intensidade da transferência de Sylviesobre Sophie.
de meuinteresseporessaquestão,masnãoexcluoque,quandopronuncieia regrafundamental, Durante a pausa, Sophie também me fala de seu mal-estar diante da angústia
certasentonaçõespossamter deixadotransparecerum sinal quaseirnperceptível, exceto dos participantes e das transferências massivas de que ela é objeto, especialmente
por ele, de meu investimento;se a hipótesefor plausível,subsistea questão:por que ele? por parte das mulheres.Ela me fala de seu temor de não estar "à altura" e conta co-
3. No relatodessegrupo,todosos nomesforam disfarçados,excetoo de Marc,por razões migo para enfrentar a situação. Relatamos para nós mesmos a sessão, esperando
que ficarãobem daras na sequência. encontrar um fio condutor por intermédio dessa atividade narrativa.
82 Um singular plural Clínica do trabalho psíquico em sttuação de grupo 83

Segunda sessão:o duplo e a mobilizaçãode uma fantasia de cena originária gustia, e provavelmente numa partilha com rivais que a privam dele. Evidente-
violenta mente, não transformo esse pensamento numa interpretação: seria apenas uma
interpretação individual que não posso ainda articular com o processo grupal.
Desdeoiníciodasessão,Solangerepeteseunome,"destavezvoluntariamente", Teria por efeito, além disso,interromper o processo em vias de se desenrolar.
especifica,tendo em vista Sylvie.Logo acrescenta que ficou intrigada, embaraçada A maneira pela qual Solange inventa uma questão para sair de sua breve
e até mesmo bastante an~stiada por Sylvieter achado que ela era Sophie. Ela se inflexão depressiva confirma que foi útil aguardar. Numa nova e brusca mudança
perguntou o que pod~ria lhe caber propriamente nesse desprezo. Sylvie lhe de tom e de assunto, Solange se põe a criticar vivamente o que chama de nossa
responde de uma maneira bastante enigmática que talvez haja entre Sophie e "acolhida":ela esperava que fizéssemosas apresentações,e não respondemos nada
Solange outra coisa além da primeira sílaba de seus nomes. ao pedido de Jacques. Ela teria desejado uma verdadeira animação e somos par-
Solange.retoma a ideia de desprezo para falar de sua expectativa diante desse ticularmente passivos. Ela sabe bem que aquilo que ela não obteve lhe permitiu
grupo: ela diz ter se inscrito para aprender a "bem falar", isto é, falar à vontade, descobrir outra coisa, mas continua a esperar "verdadeiros animadores''. Alguns
ela tem necessidade disso para exercer sua profissão.Mas acaba de se dar conta de participantes lhe pedem para especificarsua expectativa,mas ela não pode ( ou não
que talvez não seja para "bem falar" que ela está aqui neste momento. Está para quer) dizer mais nada.
encontrar as palavras que precisa para dizer o que sente, palavras para nomear o A crítica de Solange tem um alcancetanto maior quanto ela enuncia em alta
que a faz sofrer, um "pacote a desfazer'; e do qual ela não pode falar nada, dizer-se voz queixas que-os outros não formulam nesse momento, mas que mais tarde
a si mesma. Essa descoberta lhe veio ao espírito quando Marc disse que estava reconhecerão como suas. Solangee o grupo como·um todo ficam silenciosos,pro-
"fora de si",que ela traduziu então por: ao lado de si como se ele tivesseum duplo. vavelmente sob o efeito da angústia de que a crítica de Solange desencadeie de
E isto a atingiu, retroativamente, por ter sido objeto de desprezo quando Sylvie nossa parte um abandono do grupo. O afeto de cólera e o medo de ser abando-
imaginou que ela podia ser Sophie, de algum modo o seu duplo. Ficou angustiada. nado transformam-se em agressão contra Solange: ela fala demais, invade o gru-
Alguém lhe disse que ela não entendeu o que lhe sugeriu Sylvie a propósito da po, critica tudo ...
inicial comum de seus nomes, mas vários não se lembram mais disso, e o grupo Aponto este deslocamento: Solangeé atacada porque desvenda sentimentos
mergulha de novo na confusão. hostis a nosso respeito. Minha interpretação atinge o alvo:desencadeia novas crí-
Solange diz que esse desprezo a levou a experimentar certa decepção em ticas a nosso respeito: "Vocêsficam em silêncio e desertam do grupo'; fórmula da
relação ao grupo. Sylvieinsinua: "Uma decepção por não ser realmente Sophie?': angústia de abandono. Novas censuras nos são dirigidas, das quais, fato notável,
Solange, com voz fraca e num tom defensivamente desafetado, responde que ela nem Marc, nem Sylvie,nem Solange participam. As críticas dizem respeito à dis-
bem que gostaria de ser Sophie. Rapidamente ela se corrige, com uma voz mais posição da sala (muito comprida!), à cor do carpete (é vermelho, agressivo,sujo!),
tônica, e diz que decidiu permanecer nessegrupo, apesar dessa decepção:está acon- ao empilhamento desordenado das mesas e cadeiras, "que dão ao quarto o ar de
tecendo urna coisa diferente do que esperava e ela se surpreendeu. Ficou bastante um campo de batalha". Michele tem a impressão de que é não só "urna grande
interessada pelo que ocorreu entre Marc e Boris, por sua maneira de responder desordem, mas que ela pulula por todo lado, há muita gente aqui e deveríamos ter
um ao outro e de se dizer mutuamente o que sentiam, que tinham perdido suas restringido o número de participantes''. Sophie enfatiza o poder de vida e morte
referências: como eles, ela também não sabia mais onde estava. que nos é atribuído.
Solange rapidamente identificou, por esse traço comum que ela tem com eles, A representação da sala (suja4 ) como "quarto de batalha" deve ser ligada à
a relação Marc/Boris como uma relação de duplo: ela mesma está numa relação fantasia de que desertamos do grupo: nós o abandonamos para fazer filhos, filhos
desse tipo com Michele e com Sophie. É sem dúvida o que Sylvie quis que ela demais. Não aponto nem interpreto o lapso, pois ao indicá-lo eu me uniria à per-'
entendesse. Solange foi repentinamente posta por Sylviediante de sua identifica- seguição,estimularia provavelmente as defesas contra uma evocação demasiado
ção com Sophie. Suponho que ficouangustiadapor ter sido confrontadadiretamente direta da fantasia subjacente, ainda muito recalcada, e sobrecarregaria o caminho
com o que representa para ela essa relação de duplo: ela foi solicitada ao mesmo interpretativo aberto por Sophie.
tempo em suas identificaçõeshomossexuaiscom o semelhante (a irmã}e com a ima-
go materna de seu desejoedipiano idealizado,"fora de si'; numa distânciaque a an- =
4. Jogo de palavras de sal/e= sala, com sa/e sujo(a). (N. do T.)
84 Um singular plural Clínica do trabalho pslquico em situação de grupo

O trabalho prossegue de maneira bem interessante, pois o deslizede sentido com protagonistas internos e posições subjetivascorrespondentes. No espaço do
da sala para o quarto é apontado pelos próprios participantes. Isso acarretará dois grupo, essa fantasia traz uma representação e um local de origem dos participantes
efeitosopostos: para uns (Marc, Boris,Anne-Marie),o lapso acrescentaàs vivências no grupo: um quarto de batalha, figuração da violência originária fundadora na
de confusão a angústia da violênciae da morte. Para outros, pelo contrário, abre ca- qual "Sophie" e "eu" supostamente os concebemos e no qual eles ainda se sentem
minho para um jogo de palavras,para os investimentos de prazer e de vida. Jacques imersos, desorientados, confusos, tendo perdido seus pontos de referência, side-
(que procura ligar representações e estabelecervínculos com os outros) transforma rados de cólera.
a fórmula da perda de referências em "também perdemos nossos refúgios" 5• Essa
Na pausa, durante a refeição, Sophie e eu falamos pouco do grupo: retorna-
referênciaa um espaço de proteção fazretomar à cadeia associativada representação mos a nossas intervenções, às que esboçamos durante a sessão, sobre os pensa-
de estar "fora de si''. Eu me pergunto se esses afetos de violência, desorientação e mentos que nos ocorreram. Falamos de certos participantes, de Marc ("inscrito
cólera não estavam presentes desde os primeiros momentos do grupo. Meu senti- com base em meu nome, mas perdido entre seus re-pais"), de Sylvie(seu desprezo
mento é qué 'e1escomeçam a se ligar entre si. Parece-me possível,então, observar- e sua influência sobre Solange), de Solange (dividida entre falar de si mesma,
lhes que certas palavrasutilizadasdesde a primeira sessão são agora retomadas com para si mesma, e falar para outros). Falamos também de nossas férias, de acidentes
novas significações: perda de referência e angústia de abandono (refúgio); estar ocorridos a pessoas próximas, da dificuldade de escrevera clínica das curas psica-
"fora de si'; que condensa a confusão e a cólera contra nós, quarto transformado nalíticas, de um filme que planejamos ver nessa mesma noite. Depois da refeição,
em campo de batalha. retiro-me para-tomar notas e entregar-me sozinho às minhas associações.
Minha intervenção foi possível graçasaos efeitos da interpretação de Sophie
sobre o poder de vida e morte que nos foi atribuído. Porém, não chego a ponto de
que sua cóleraé a de criançasexcluídasdo quarto de batalha em que se refugiouo
d.iz.er Terceirasessão:a confissãoenigmáticadeMarc
casal dos "pais': e sua confusão a de serem confrontados com o caos de seu acasala- Desde o início da sessão,Marc declara que ele se sente obrigado a confessar
mento prolífico. Penso que elesainda se encontram no afeto de estarem"fora de si". diante do grupo todo um ªacontecimento que o marcou muito" e do qual ele falou
A interpretação de Sophie e minha intervenção terão outros efeitos:voltando a alguns participantes durante a pausa. Ele obedece assim, especifica, à "regra" de
ao que Solange declarou a respeito de sua expectativa em relação ao grupo, vários restituição que formulei. O acontecimento "marcante" é o choque traumático que
participantes dirão por que eles se inscreveram nesse grupo. Sylviese limitará a ele sofreu num grupo semelhante a este. Evocaentão, de maneira confusa, vaga e
fornecer uma informação: uma de suas amigas formou um grupo com Sophie (daí elíptica uma "interpretação" selvagem que lhe teria sido dada por um psicanalista
sua preocupação urgente de saber quem é Sophie6). Após observar que restam que conduzia esse grupo, quinze minutos antes do final da última sessão. Essa
quinze minutos antes do final da sessão, Marc dirá que ele veio fazer esse grupo interpretação lhe teria sido dada como um golpe na cabeçaque o deixou aturdido
comigo, que se inscreveu"com base no meu nome': o que provoca risos e questões. e desorientado, e do qual tem dificuldade de se recuperar.
A fórmula surpreende, como surpreendeu a apresentação que fez de si mesmo. Essa"confissão"nos surpreende e sidera os participantes; eles querem ( como
Mas Marc não a comenta. nós) saber mais: por que,como, o que foi dito etc. Porém Marc se cala, não res-
O final da sessão será todo ocupado por um jogo sobre o significante refe- ponde a nenhuma das questões que lhe foram formuladas e evidentemente nós
rência,refúgio,re-pai,re-par [repere,repaire,re-pere,re-paire](Sophiee eu?).A sessão não o interrogamos. Ele repetirá sua "confissão'; insistindo sobre "a marca rece-
se detém no momento em que Marc observa que a série de "re" indica uma repe- bida': o acontecimento "marcante" que o "marcou': os "quinze minutos antes do
tição, como no re-pai. Ele se pergunta se o mesmo vale para o meu nome (Re-né). final''. Noto a insistência dos significantes "marca" e "últimos quinze minutos': a
Ao longo dessa sessão,foi mobilizada uma fantasia de cena originária, da qual violência do afeto transmitido por sua voz, a impossibilidade (ou a recusa?) de
notaremos a função de organizadora inconsciente da realidade psíquica e dos comunicar uma ideia ou imagem do conteúdo da interpretação incriminada. O
vínculos de grupo. No espaço intrapsfquico, essa fantasia é a cena de uma ação, termo confissão supõe um sentimento ou um ato por muito tempo retido, sem
dúvida, um sentimento 011 um ato culpado, que se deve manter oculto.
5. Jogo de palavras de repere= referência, baliza, com repaire= abrigo, refúgio. (N. do T.) Marc especifica que ele escolheu os dois psicanalistas deste grupo "porque
6. Isto não esclarece por que essa referência era urgente para outros participantes. espera que, com eles, poderá escapar". Compreendemos todos que sua presença
86 Um singular plural Clínica do trabalho pslquico em situaçãode grupo 87

neste grupo é sustentada por um pedido expressode reparação e que esse pedido rência. Percebo que conto com Sophie para fazer essa interpretação: sinto-me
é mais particularmente dirigido a mim. Recorda-seque no final da sessãoanterior, muito carregado pela transferência de Marc sobre mim. Penso que, nesse mo-
ao observar que faltavam quinze minutos para terminar a sessão, Marc declarou mento, eu temia repetir o "golpena cabeça';a menos que eu tenha evitado atacá-lo
que veio fazer esse grupo "com base em meu nome': sem maior precisão, apesar num movimento contratransferencialde agressividadeem facedele. Mas Sophie
das questões que lhe foram postas nesse momento. Sabemos que, com base em não intervém. Ela não tem urgência; eu a sigo,e fico chateado com ela por me
meu primeiro nome, ele observa uma repetição, a de um renascimento', e, por- deixar me confrontar com isso,sem encontrar o melhor caminho para me livrar.
tanto, de uma rnorte impedida ou negada. Formulo a hipótese de que seu pri- Ao mesmo tempo, não posso deixar sem palavras, sem representação de fala, o
meiro nome, o meu e meu sobrenome são para ele significantes importantes de efeito traumático da confissãoviolenta de Marc.
um drama que ele revive na transferência. Minhas associações me conduzem à Intervenho então para enfatizar que o que se repete agora, depois da con-
fórmula que e\e utilizou quando se apresentou:"Chamam-me de Marc''.Suponho fissãode Marc, é um sentimento já expressode perda de referências.Marc evocou
que uma fantásiainconsciente se congelou nessa cena traumática que se reativou um choque, algo que se passou em outro lugar - num grupo como este -, e
nos últimos quinze minutos dessa última sessão. falou a respeito de maneira forte e alusiva,o que talvezsusciteo temor de que essa
Dessacena, só o afeto violentopermaneceuativo.Seprestamos atençãoao que mesma coisase reproduzaaqui, neste grupo. Cada um reage a essa coisapor emo-
Marcestáem vias não só de dizer,mas defazercom o dizer,compreendemosque ele ções que lhe são próprias e que talvez o ponham em contato com algo que está
procurarfazer sentiraos outros, e particularmente a Sophie e a mim, o que elepró- "fora de si''. Porém, parece-me também que essas emoções, essas angústias e o
prio experimenta ae forma repetitiva.Ele procura transmitir seu afeto suscitando sentimento de perder suas referênciassão comuns e partilhados pelo grupo co-
uma identificação afetiva nos outros. mo um todo. Poder dizer o que são essemal-estare essadesorientaçãoé uma ques-
Ao ouvir Marc no silênciode perplexidade e de sideração que se segue à sua tão para cada um: talvezo temor de receber interpretações"selvagens':como Marc
"confissão': pergunto-me de que ele poderia ser culpado: de sua fantasia de diz ter recebido in extremisseu golpe na cabeça,impede de falar?
violência?Do gozo experimentado ao receber esse acontecimento "marcante"? O efeito imediato de minha intervenção é um silêncio que se estende até o
Devemos esperar a sequência. Por ora, formulo a hipótese de que nem outrora final da sessão,não quinze minutos, mas alguns minutos.
- mas quando? - nem agora Marc teve à sua disposição as representações de Na pausa, Sophie e eufalamos da emoção, na verdade do estupor provocado
palavraque fizeram falta à sua emoção e à simbolizaçãodo que pode ter sido posto em nós pela confissãode Marc.Como se tivéssemosde nos defender contra a ale-
em jogo por ele nesse"acontecimento marcante".Este só assume todo o seu peso gação de realidade que elesugeria, e que nos confronta, cada um em nossa versão,
devido à fantasia que ele atualiza e realiza sem saber, cumprindo "fora de si" seu a nossos movimentos de violênciaem relação aos participantes, à fantasia de que
destino, do qual ele vem aqui, com base em meu nome, renovar os fios.Mas devo podeáamos ser selvagensnessegrupo de selvagens.Falamosde minha expectativa
esperarque o que é transmitido por via do afeto,para ser experimentado,possaabrir da intervençãode Sophie,de seu silênciopreenchidopelo enigma de Marc,da aná-
caminho nas associaçõesdos participantes,antes que Sophieou eu tenhamosqual- liseque fiz de minha contratransferênciae da interpretaçãoque se seguiu,do alívio
quer coisa a dizer para tentar decifrar o enigma, analisando sua transferência. que minha intervenção produziu nela, e talvezno grupo, a despeito do silêncio.
Apóso silêncioque se seguiuà declaraçãode Marc,Boris retoma a palavrapara Continuo a me perguntar sobre o que se repete com insistência e sobre essa
exprimir novamente o mal-estar de estar desorientado, de ter perdido seus pon- influênciaque exerce"a confissão"de Marc sobretodo o grupo e sobre nós. O efeito
tos de referência, de não poder mais pensar.A dificuldade de pensar é sem dúvida dessa confissão,o traço afetivoque ele reavivanos participantes, dá claramente
um dos efeitos inconscientemente buscados por Marc: ele é expresso por Boris, ao relato desse"acontecimento"uma dimensão grupal.
e é experimentado pela maioria dos participantes. O grupo todo está em vias de
se ligar na repetição dos afetos de cólera e na angústia da desorientação.
Quartasessão:So/ange,porta-palavra
Parece-me que seria útil apontar por uma interpretação o vínculo entre essa
dificuldade, a interrupção do processo associativoe sua ancoragem na transfe- A sessão,bem silenciosa,parece-mepesadae caótica.Sinto-me desencorajadoe
não consigoformar associaçõesnem manter urna atenção"igualmente"e suficien-
7. Re-né = nascido de novo; o mesmo que Re-nato. (N. do T.) temente flutuante. Um trabalho de recalque ou de apagamento do que se disse
88 Um singular plural Clínica do trabalho pslquico em sttuação de grupo 89

se efetua à minha revelia, e Sophie constatará que tampouco ela se lembra exa- Quinta sessão:o sonhode Michele
tamente do que se disse ao longo dessa sessão.
Depois, novamente algo se repete: Solange declara, cerca de quinze minutos A sessão do dia seguinte é pontuada pelo relato de um sonho tido por
antes do final da sessão, que ela se sente obrigada a falar agora, que ela não pode Michele nessa noite: "Eu fazia amor num quarto todo desarrumado, com o pai
adiar por mais tempo fazer-se "porta-palavra" do que lhe confiou Anne-Marie de Marc, ou talvez com o meu. Ambos tinham cabelos grisalhos''. Perturbada por
durante a pausa: sua filha está hospitalizada há alguns dias para um exame que seu próprio relato, Michele acrescenta que ela não sabe muito bem o que está
irá confirmar ou descartai um diagnóstico de câncer. Esse acontecimento abalou dizendo (risos, exceto de Marc).
a ambas, mãe e filha, á ponto de a participação de Ana Maria nesse grupo ter Cada elemento do sonho é o ponto de partida de várias séries associativas.
sido posta em questão. Depois de terem conversado com os médicos e se tran- Uma primeira série se organiza a partir da incerteza sobre a identidade do pai (o
quilizado qut: a jovem doente estaria em boas mãos, decidiram de comum acor- de Marcou o de Michele?) e sobre o traço comum entre ambos (os cabelos grisa-
do que Anné-Mãrie viria a este grupo, ela havia se inscrito há muito tempo e lhos). As associaçõesse detêm quando o reconhecimento da questão transferencial
esperava muito dele. sobre mim está iminente (mesmos cabelos grisalhos que os "pais do sonho") e a
O relato que Solange faz paraAnne-Marie não se efetua de maneira linear. figuração do desejo incestuoso em face do pai se torna demasiado embaraçosa É
Solange é invadida por forte emoção: enquanto portava a fala de outra, re- muito cedo ainda para interpretar as resistências. Marc fica silencioso e pouco à
tornou-lhe de repente a lembrança de uma ameaça que sua própria mãe havia vontade quand0 o lugar de seu pai no sonho de Michele é evocado.
proferido a seu respeito: a jovem Solange ficaria com câncer se·continuasse A segunda série associativa tem por ponto de partida "o quarto todo desar-
a fumar de maneira tão imoderada. Solange tinha então aproximadamente a rumado''. Essa cena é a figuração, no sonho de Michele, de um resto diurno: a
mesma idade que a filha de Anne-Marie. Ela havia se esquecido dessa ameaça desordem amorosa evocada na véspera, a proliferação de bebês e a mancha de
até esse dia. sangue alucinada no tapete do quarto de batalha. Marc participa ativamente das
Anne-Marie, muito comovida também, agradece a Solange por ter falado associações, "casando" casais cujas relações ele espia. Ele dota de uma mulher os
por ela, como ela lhe pedira. Anne-Marie e Solange choram, as lágrimas sobem homens para os quais dirige seu conflito defensivo. Ele nos "vê'; Sophie e eu,
aos olhos de Jacques. Solange dirá que pode compreender de que peso Anne- atentos um ao outro, como formando um casal harmonioso. Ele "casa" Sylvie e
Marie tinha de se livrar: ela mesma se sente aliviada. Anne-Marie diz a que ponto Jacques, também eles, a seu ver, perfeitamente complementares. Em Jacques, re-
se sentia culpada por desejar vir aqui, e o quanto sua filha, consentindo em que conhecerá uma espécie de filho, um filho que ele imagina em conflito com um
ela se ausentasse, a desculpou. Contudo, quem acreditaria nessa desculpa? Anne- pai distante, sábio, ameaçador e atraente do qual admira a força e a compreensão
Marie declara que é possível que ela seja obrigada a se ausentar, se o estado de das "coisas da vida".Vários participantes evocam um filme• cujo tema principal
sua filha se agravar. é um acidente de carro e uma amnésia traumática.
Durante essa sequência, Solange e Anne-Marie apegam-se a Sophie pelo A terceira série associativa se inicia a partir da ideia de catástrofe e de aci-
olhar, mas nenhuma das duas lhe fala. As associações que precedem o final da dente. Vários acontecimentos traumáticos são evocados: a morte brutal e precoce
sessão concernem ao peso determinante de certas palavras ditas pelos pais a seus de um pai, o desaparecimento na montanha de um amigo muito querido, a
filhos: são evocados sobretudo os efeitos devastadores, às vezes salvadores, das paralisia de uma mãe após um acidente de carro.
palavras de mães ditas às filhas. Um quarto fio associativo tem origem no reinvestimento libidinal suscitado
O final dessa sessão esclarece retrospectivamente o mal-estar do início da por essa evocação da morte. Liga-se ao motivo central do sonho: "Os participantes.
sessão, e sem dúvida de toda a primeira sessão e talvez também das rupturas podem fazer amor sem transgredir o tabu do incesto, ou a regra de abstinência
frequentes no processo associativo. Teria sido preciso uma nova "confissão" fora se aplica somente às relações entre os psicanalistas e os participantes?".
da sessão e a realização, in extremis,da missão do porta-palavra para que nos O sonho de Michele confrontou Marc com urna cena incestuosa na qual seu
fosse visível o quanto de angústias de morte estão mobilizadas nesse grupo: a pai figura como ator. Nós notamos como ele se defende, "casando" alguns casais.Ao
repetição significativa da confissão dos "últimos quinze minutos" testemunha
isso. Mas não terminamos em relação a esse significante. 8. Les chosesde la vie [As coisasda vida], de C. Sautet.
90 Um singular plural Clínica do trabalho pslquico em situação de grupo 91

fazer de Jacques seu filho ele esclarece a posição que ocupa na fantasia de sedução Algwnas sessões são inauguradas ou concluídas por wn silêncio de quinze mi-
dofilhopelopaieadefesaquemobilizacontraessafantasia.Essaseduçãoameaçadora nutos; uma ausência futura é anunciada quinze minutos antes do final da seção
cobre wna cena de violência que explodirá quando Jacques protestar contra essa da terceira jornada.
filiação imposta. Marc agride Jacques, ameaçando fornecer-lhe uma interpretação Interpreto a associação ausência-silêncio-morte e "últimos quinze minutos"
de suas resistências a ouvir o que ele lhe diz: que ele o ama como a um filho! apontando de novo a repetição e a relação que ela me parece manter com o acon-
Aponto de imediato a repetição da ameaça da interpretação "selvagem" e a tecimento "marcante" de Marc. Minha intervenção relança o processo associativo.
repetição, na transferência, de wna configuração de vínculos pais-filhos na qual Evoca-se o fim do mundo. Boris entrega-se a um complicado cálculo obsessivo
Jacques, Marc, Boris, o "psicanalista selvagem" e eu estamos envolvidos. Especifico sobre os quinze minutos a mais que comporta a duração da seção de grupo em
que essas questões de desejo, sedução e ameaça devem também ser situadas em relação à unidade horária (uma hora, um quarto de hora), e os quinze minutos
relação às re~onâncias incestuosas (filha-pai) trazidas pelo relato do sonho de a menos que correspondem à duração de uma sessão de cura (três quartos de
Michele. Amar um homem corno wn filho é amá-lo corno um pai ama seu filho, hora). Michele retorna a seu sonho para evocar o "bom quarto de hora" do or-
ou um filho seu pai, ou corno um parceiro sexual? gasmo e para perguntar, falsa ingênua, o que são esse a mais e esse a menos, e
Corno compreender que Michele integre Marc em seu sonho, figurando seu quem fazem gozar mais: o homem ou a mulher? Jacques associa com base no
pai corno objeto do deslocamento de seu desejo incestuoso? Michele sonha por si significante últimos quinze minutos e na morte, que introduz tanto a separação
mesma e por uma parte desconhecida de si mesma, ela põe em forma de repre- quanto a confusão.
sentação onírica seu próprio desejo. Seu ·sonho é fabricado com o que ela torna A sequência das sessões centrar-se-á na análise das relações de sexo e de
para si dos conteúdos psíquicos que se formaram na véspera no grupo. O sonho geração tais como se ligaram no grupo por meio das transferências. Marc com-
de Michele é também uma interpretação do que ela percebeu inconscientemente preenderá então o que fora traumático para ele no grupo precedente: confrontado
das fantasias em jogo no "acontecimento" traumático relatado por Marc e dos con- com sua fantasia de sedução pelo pai, ele temera a realização em sua transferência
flitos psicossexuais inconscientes de Marc. Essas fantasias a atingem, pois se trata sobre o analista, e ao mesmo tempo a realizara in extremisacusando-o de uma
de sua fantasia de sedução incestuosa pelo pai. interpretação selvagem.
Terei oportunidade de retornar à análise do sonho de Michele, mas gostaria
de enfatizar desde já que tal sonho se produziu na matriz onírica do grupo e para
um conjunto de destinatários: ele se dirige a Marc pelo que este representa para ela PERSPECTIVAS DE ANÁLISE
e para mim, presente-oculto no sonho. Ele se dirige a mim pelo que represento
para ela e para Marc. Ele se dirige também a Sophie, pelo que ela representa para Como anunciei, prosseguirei na análise desse grupo ao longo dos próximos
ela e para mim. capítulos. Gostaria, no entanto, de abrir algwnas perspectivas sobre minha con-
A partir do sonho de Michele, produz-se uma transformação no núcleo da cepção da realidade psíquica desse grupo.
fantasia organizadora do grupo. À fantasia de represálias contra a interpretação
"selvagem" que Marc teria recebido associam-se fantasias de sedução, de fusti-
gação e de cena originária. Nós nos aproximamos do sentido que o acontecimento A fantasia organizadora psíquica inconsciente do grupo
"marcante" asswniu para Marc, mas esse sentido só pode se desvendar de maneira
progressiva na transferência e no processo associativo do grupo, quando os sin- A realidade psíquica do grupo e o processo grupal organizam-sepor meio de
tomas comuns e partilhados tiverem suficientemente se repetido. um esquemaorganizadorinconsciente(Figura 4.1), cuja fórmula é aqui a fantasia:
"Um pai/mãe ameaça/repara wna criança" 9 • Esse organizador sustenta as iden-
tificações e o vínculo entre todos os sujeitos desse grupo: é a representação atual
O trabalhosobreo significante"últimosquinze minutos"
Ao longo das sessões seguintes, o significante "últimos quinze minutos" se 9. Parent,em francês,diz respeito aos pais. A fim de evitar identificação exclusiva com o
instalará como "sintoma tomado por vários lados': em cada um e no grupo. pai, optei por traduzir por pai/mãe, reservando pai para traduzir pere.(N. do T.)
92 Um singular plural Clínica do trabalho psíquico em situação de grupo 93

de um acontecimento traumático "marcante'; sem dúvida originário, fora do produziram-se identificações pelo afeto, ativando cenários fantasmáticos cujos
tempo, fora do pensamento e fora da fala, inacessível a cada um diretamente. subprodutos se manifestaram nos sintomas partilhados e comuns de "perda de
referências'; de estar "fora de si'; mas a fonte desses afetos permaneceu incons-
ciente. Notei que para Sylvie, assim como para Marc e para Anne-Marie, intro-
duziu-se uma fomentação fantasmática desde antes da primeira sessão, lugares
imaginários foram atribuídos de antemão a vários membros do grupo, especial-
mente aos analistas.
A fórmula que reuniria esses movimentos psíquicos caóticos poderia ser:
"Busca-se uma origem''. Diversasversões declinaram essa fórmula (Quem é Sophie?
Mãe------ reparação ------ filha A quem nos dirigimos neste grupo?), sem que uma fantasia organizadora tenha
se instalado. Lidamos antes com estados afetivos e movimentos identificadores
- - - - - - - - Fantasiade Solange ··············· Fantasiade Marco instáveis. A questão que Sylvie se colocava a respeito de Sophie e a confusão de
pensamento experimentada por Marc, Boris, Sylvie, Solange, Michele e Anne-
Figura 4.1. Estruturagenéricada fantasiaorganizadorado grupo Marie certamente não deixavam de se vincular a esses estados, marcados pela
incerteza e pela-perplexidade. A expressão de cólera (estar "fora de si") se ligava
a essa incerteza, foi ela que provocou o ataque de Solange contra os· analistas e
Esse organizador fantasmático corresponde ao que chamo de grupo interno: contra o enquadre. Solange mesma foi agredida por ter nos agredido.
sua estrutura define posições correlativas, complementares e reversíveis do su- Ao assinalar o deslocamento da transferência, pus à mostra outra fantasia
jeito, do objeto e da ação. Sua fórmula genérica é a de uma frase: Sujeito - Verbo cujo triplo enunciado traduz a cólera por ser excluído do quarto dos pais: "Pais
-Complemento de objeto. O sujeito (pai/mãe) e o complemento (criança) podem fazem amor num quarto de batalha. Eles têm filhos demais". A fantasia de cena
permutar-se e o verbo pode ser ativo ou passivo: ameaçar-ser ameaçado. Esse originária sádica (paranoide-esquizoide) duplicou•se então com uma fantasia de
grupo interno funciona como um esquema organizador da aparelhagem das psi- abandono (depressiva) e de exclusão.
ques no grupo, como uma estrutura de apelo e de posições psíquicas. A fórmula Quando, no início da terceira sessão, ocorre a confissão do acontecimento
do organizador principal desse grupo se desenvolve em vinte enunciados teori- "marcante'; todos os participantes são mobilizados pela questão da origem (a cena
camente possíveis. Certos enunciados não se atualizam no grupo, outros se atua- originária) e da morte (o golpe na cabeça, os últimos quinze minutos). Essa con•
lizam para vários sujeitos ao mesmo tempo ou em tempos diferentes, vários enun- fissão ocorre após o anúncio de Marc de que ele havia se inscrito "com base no
ciados podem se atualizar sucessivamente para um mesmo sujeito. meu nome", depois de sua questão sobre o renascimento e seu pedido de repara•
ção. A injeção de afeto desencadeia a identificação pelo afeto que, por falta de
representação, contribui para a confusão e a ameaça.
A fantasia organizadora atrai cenários fantasmáticos e posições subjetivas Em minha contratransferência e na intertransferência com Sophie, fui irn•
plicado por essa fantasia em vários níveis: pela posição do pai ameaçador e repara•
A fantasia funciona como um esquema organizador da aparelhagem das psi- dor à qual me convoca Marc, por minha expectativa de uma interpretação salutar
ques no grupo. Cada sujeito membro do grupo é parte ativa desse organizador e protetora de Sophie contra minha fantasia de repetir o "golpe na cabeça".
segundo a versão singular de sua fantasia pessoal. A fantasia "Um pai/mãe amea- Consigo, todavia, livrar-me dessa fantasia, por tê-la reconhecido a tempo em sua
ça/repara uma criança" atrai cenários fantasmáticos e posições subjetivas. Seu relação com a de Marc e de alguns outros.
efeito é construir a consistência psíquica do grupo, mas sua formação é precedida A quarta sessão trouxe um indício bastante forte de que uma fantasia co•
por mobilizações fantasmáticas que convergem e se ordenam progressivamente. muro e partilhada se instala: a história de Anne-Marie e o retomo do recalcado
O leitor se lembra de que, durante a primeira sessão, o "desprezo" de Sylvie em Solange quando, fazendo-se porta-palavra, ela se torna coa triz nesse cenário:
suscitou confusão; o afeto associado a essa transferência massiva foi expresso, "Um pai/mãe ameaça uma criança: busca-se um reparador''.
94 Um singular plural Clínica do trabalho pslquico em situação de grupo 95

O relato do sonho incestuoso feito por Michele no dia seguinte se fabrica processo grupal, as variações dessa fantasia produzem uma transformação im-
com base nesse umbigo fantasmático intersubjetivo. Lembro seu enunciado: "Eu portante: a singularização de cada um em sua fantasia secundária. A fantasia deixa
fazia amor num quarto todo desarrumado, com o pai de Marc, ou talvez com o de funcionar de modo impessoal e anónimo e dá lugar a uma versão individual
meu, ambos tinham cabelos grisalhos''. que assinala o advento do processo de subjetivação.
O sonho traz ao mesmo tempo uma resposta imaginária para a reparação: o Essa transformação se efetua em Marc, não sem resistências. Na estrutura
incesto, e especifica a natureza da ameaça: o risco de morte. Com efeito, se o con- genérica da fantasia, ela pôde oscilar entre o lugar da vítima (passividade), o do
teúdo manifesto é explíci1:o:"Uma filha (um filho) faz amor com um pai (um pai/ observador silencioso, o do sedutor e o do perseguidor ativo de seu "filho" Jacques.
mãe?)'; as associações l:razem conotações mais complexas: questões sobre a iden- Em cada um desses cenários, ele confere aos outros postos complementares ao
tidade do pai, medidas de defesa contra a cena incestuosa (Marc forma casais, seu, mas sem poder se reconhecer no desejo inconsciente que o anima. A fórmula
dota-se de u,mfilho, o ameaça), rememoração de acontecimentos traumáticos e da fantasia secundária própria à posição subjetiva de Marc se revelará ao mesmo
da morte dé pai'entes próximos, solicitação de reafirmação sobre o tabu do incesto tempo em que será reconhecida nas vicissitudes das transferências e em sua aná-
( entre irmãos e irmãs). lise: "Meu pai outrora e alhures, mas sempre aqui presente para mim, seduz/
Um segundo esquema organizador se instalou, transformando o primeiro ameaça/repara seu filho, que encontra aí sua 'marca"'.
(Figura 4.2). A sedução aparece em primeiro plano, com seu correlato: a ameaça.

Umpai seduz --------- uma filha Como o processo grupal abre a Marc o acesso a sua história. O trabalho
da intersubjetividade

Detenhamo-nos agora na história de Marc nesse grupo. Propus acima a


noção de trabalho psíquico da intersubjetividade para descrever essa elaboração.
Gostaria de mostrar com base nesse exemplo como essa noção funciona com 0
ameaça um filho modelo de análise que proponho e que se exprime em dois conceitos básicos.

Figura 4.2. A segundafantasiaorganizadora


A aparelhagementre as organizaçõesintrapsíquicas
O grupo é um aparelho de transformação do traumatismo por intermédio
O acesso à fantasia individual e o processo de subjetivação do trabalho de aparelhagem inconsciente das psiques que constrói o espaço psí-
quico do grupo e mobiliza os vínculos entre os membros do grupo. Instalam-se
As sessões que se seguem organizam-se em torno do significante "últimos processos e formações psíquicas originais, e entre estes, desde os primeiros ins-
quinze minutos'; ligado às angústias de morte associadas à fantasia de castração. tantes da vida do grupo, o recalque, a denegação, a rejeição ou a clivagem das
A interpretação que fornecemos suscita pensamentos sobre a diferença entre os representações perigosas. Essesmecanismos de defesa formam a matéria e a razão
sexos, a bissexualidade e a castração simbólica. A partir desse momento, realiza- das alianças inconscientes.
se um trabalho psíquico, o qual dilui o núcleo principal da fantasia organizadora Podemos observar como Marc polariza os movimentos psíquicos incons-
e permite a cada um notar sua fantasia singular.Ainda que se tenha com frequência cientes que organizarão o grupo. Ele se torna, segundo Sophie, um segundo objeto
objetado que o balizamento da posição fantasmática do sujeito em sua história de identificação de urgência, na medida em que ele oferece à situação inicial de
singular é menos trabalhado na situação de grupo do que na cura, o exemplo confusão e caos um conteúdo de figuração traumática. Sua "confissão" abriu ca-
desse grupo, no que concerne a Marc, contradiz em parte essa ideia. A passagem minho para representações de palavras e as ligou a representações anteriores, até
por uma organização da realidade psíquica comum e partilhada, tal como essa então inacessíveis a vários participantes: angústias de perda das referências, afetos
fantasia do grupo, é necessária para que o grupo funcione. Porém, através do de cólera e marasmo, vivências de desprezo e de confusão de identidade, nomi-
96 Um singular plural Clínica do trabalho psíquico em situação de grupo 97

nação sem sujeito. Ao mesmo tempo em que aumenta a carga traumática, Marc intensa de castração lhe foi associada. Que ele trazia em seu primeiro nome o
contribui para a ruptura das paraexcitações e sustenta as identificações por afeto. traço - a marca- da inscrição que tomara pará ele sua posição numa fantasia
O que adquiriu valor de acontecimento impensado para ele se torna uma expe- provavelmente partilhada pelo pai. Que ele repetia esse cenário nos grupos,
riência partilhada por vários membros do grupo e organiza a realidade psíquica tanto para gozar como para exigir reparação.
do grupo através das alianças inconscientes.
Os efeitos desses mecanismos de defesa podem ser observados no conteúdo
e nas modalidades de transferências e do trabalho associativo: os conteúdos in- Observaçõessobre o objetivoe os processos do trabalhopsicanalíticona
conscientes retornam 'pelas vias que são próprias a cada um, mas também através situação psicanalíticade grupo
das produções psíquicas do grupo como um todo.
A cola~em ao objeto traumático tem por correlato a expectativa crente num O caso clínico que apresentei permite caracterizar o objetivodo trabalhopsica-
objeto reparador capaz de acalmar a angústia de transbordamento e de mobilizar nalíticona situação psicanalítica de grupo. O objetivo é tomar possível a experiência
movimentos transferenciais positivos. A exigência de reparação de Marc suscita do inconsciente, nas formas e nos processos que se manifestam no grupo para os
em outros uma exigência que concerne, também ela, a um acontecimento que adqui- sujeitos que o integram. Os movimentos de transferências, a organização e o fun-
riu valor traumático, porque o sentido não pôde se constituir nesse momento. cionamento do processo associativo dão acesso a essa experiência.
O trabalho de análise dizrespeito aos vínculos que se constituíram em suas
relações com os objetos de seu grupo originário e que se repetem, concordam, se
O trabalhodas associaçõese asfunções de porta-palavraabremo caminhodo
reordenam e se transformam no espaço grupal da transferência e da contratrans-
retornodo recalcado
ferência. Porém, a situação psicanalítica grupal comporta outra característica essen-
O trabalho psíquico da intersubjetividade repousa numa segunda ideia: o cial: é um encontro com os desconhecidos, com o desconhecido, o imprevisível. É
processo associativo grupal, os sonhos em grupo e as funções psíquicas são nesse duplo registro da repetição e do encontro aleatório que se põem em ação as
"pontos de amarração" que mantêm juntas as psiques, e são também lugares de relações que o sujeito mantém com seus próprios objetos inconscientes, com os
passagem de uma subjetividade a outra, dos processos de sua transformação. objetos inconscientes dos outros e com os objetos comuns e partilhados.
Solange se constitui e é constituída como porta-palavra, não só de Anne-
Marie, mas de vários membros do grupo, de Marc em particular. A "confissão"
de um segredo através da fala que um porta pelo outro, lembranças de violências
nas relações entre pais e filhos, questões de vida e morte são trazidas pelo processo
associativo grupal. Mais tarde, o relato do sonho de Michele, que põe em cena um
ato incestuoso com o pai de Marc, revelará outros componentes do drama de Marc.
Para especificar a função de porta-palavra e de discurso do grupo, podemos
observar que aquilo de que o grupo é portador é urna fala da qual não dispõem
alguns de seus membros, mas é também de uma fala que importa aos outros, e
cujos termos os porta-palavras desenvolvem sem que eles saibam. Quando o
sentido que falta se torna assunto de vários, a fala que falta pode aparecer na
mobilização intersubjetiva do discurso grupal. Nessas condições, o processo
associativo grupal abre os caminhos do retomo do recalcado.
Marc terá descoberto três coisas por intermédio do trabalho psíquico do
grupo. Que aquilo que ele apresentara como seu traumatismo, seu "acontecimen-
to marcante" era efeito de sua fantasia de sedução pelo pai e da ameaça de fusti-
gação homossexual primária (ser batido e seduzido por ele). Uma angústia
O grupo como formação intrapsiquica 101

Os grupos não são somente entidades específicasrelativamenteindependen-


tes dos sujeitos que os constituem. Os grupos estão dentro de nós mesmos, nós
somos grupo. Chamei de grupos internos formações e processos intrapsíquicos
cujas propriedades são ativastanto no espaço interno quanto no dos grupos.
No divã, os analisandos nos ensinam muitas coisas sobre essesgrupos inter-
nos: observamos seus efeitosna estrutura das fantasias, na rede de identificações,
na organização das relações de objeto, nos complexos edipianos e fraternais, na
imagem do corpo e até na organização dos sonhos.
O trabalho de criação literária, do romance em particular, mas também
outras expressões de criatividade (o desenho da criança, por exemplo) nos ensi-
nam que esses grupos internos cumprem funções importantes na organização
de urna obra. Enfim, o trabalho psicanalítico em dispositivo de grupo me condu-
A análiseclínicaque acaba de ser apresentadailustra como a hipótesefundadora ziu à noção de grupo interno para dar conta de formações psíquicas eletivamente
da psicanálise, a hipótese do inconsciente e da realidade psíquica inconsciente, mobilizadas nos processos de organização dos vínculos de grupo e do espaço
abriu três áreas de pesquisa sobre os grupos. Eu as recordo brevemente. psíquico comum e partilhado.
A primeira se constitui com base na noção de que existe uma psique de Gostaria de reconstituir em grandes traços o caminho que me levou a adotar
grupo, de que o grupo dispõe de estruturas, organizações e processos psíquicos essa linha e expor seus principais resultados.
inconscientes que lhe são próprios e não se produzem sem o agrupamento. A
análise clínica forneceu uma ideia intuitiva da maneira pela qual se constrói a
realidade psíquica do grupo e de como ela se transforma. Os grupos internos
A segunda áreatrabalhaas relaçõesentre o sujeitoe o grupo. Pudemosconfirmar
a hipótese segundo a qual, para seus sujeitos,o grupo é um objeto de investimentos Minhas primeiras pesquisasvoltaram-se para o estudo do objeto-grupo sob
pulsionaise de representaçõesinconscientes,e perceber as funções que elescumprem o aspecto em que ele é objeto de investimentos pulsionais e de representações
junto ao sujeito e no processo grupal. O grupo é a cena sobre a qual se exteriorizam inconscientes. Procurei identificaros esquemas organizadores que ordenam esses
formaçõese processos psíquicos que pertencem aos sujeitos membros dessegrupo. investimentos e essas representações: eu os denominei inicialmente "grupos de
A análise clínica mostrou como se exemplificamas relações entre o espaço interno dentro': depois grupos internos, e descrevi o papel de organizador psíquico in-
de cada sujeito e o espaço comum e partilhado por vários sujeitos no grupo. consciente que desempenham sete grupos internos principais na formação do
O terceiro setor de pesquisa diz respeito aos efeitosdo grupo sobre a psique do objeto-grupo. São eles: a imagem do corpo, as fantasias originárias, os sistemas
sujeito.Ele interroga a maneira pela qual se organizam e se transformam suas for- de relações de objeto, a rede deidentificações, os complexos edipianos e fraternais,
maçõese seus processosinconscientescasose admita que sua psique se estrutura com as imagos, as instâncias do aparelho psíquico, especialmente o ego.
base na matriz e nos vínculos intersubjetivosdo grupo primário. O grupo é também Ao assim identificar essesgrupos internos, e situando-me do ponto de vista
o enquadre ativo, metapsíquico da formação e da transformação do sujeito. do sujeito, adquiri a noção de que o grupo é primeiramente a forma, a função e o
processo que ele ocupa no espaço da realidade psíquica interna. Perguntei-me se
era pertinente falar de grupos internos ou apenas, como propõe Freud a propósito
GRUPOS INTERNOS E GRUPALIDADE PS(QUICA da identificação, de "pluralidade (Mehrheit) das pessoas psíquicas" ("Manuscrito
r::de 2 de maio de 1897).Parecia-meque os grupos internos que eu descrevia não
Com este capítulo começamos a expor mais sistematicamente os principais se reduziam à pluralidade ou à multiplicidade de objetos psíquicosreunidos num
conceitos que compõem nossa concepção psicanalítica do grupo, dos vínculos simples agrupamento. Com efeito, o que confere a um grupo, interno ou inter-
intersubjetivos e do sujeito do inconsciente. subjetivo, sua especificidadee seu caráter próprio é o vínculo entre os elementos
102 Um singular plural O grupo como formação intrapsiquica 103

de que ele se compõe, e sobretudo a unidade estrutural, dinâmica e funcional que Ainda que não tivéssemos conhecimento de nossos respectivos trabalhos, tínha-
esses vínculos estabelecem entre esses elementos e com o conjunto. A primeira mos, os três, formado a ideia de que grupos "internos" são reativados no processo
definição freudiana não descreve um mero agrupamento, mas um grupo interno grupal. ~ interessante conceber essa convergência pelo ângulo da gênese das hi-
formado pela rede de identificações do ego do sujeito. póteses explicativas: cada um de nós procurou articular formações intrapsíquicas
A análise aprofundada de dois grupos conduzidos com D.Anzieu em 1965 e 1966 com a organização psíquica do grupo.
levou-me a pensar que os grupos internos não desempenham somente um papel O tratamento de pacientes psicóticos impôs a Pichon-Riviere (1971) a ideia
organizador nas reprêse11taçõesdo objeto-grupo. Sua organização grupal lhes con- da "existência de objetos internos, de múltiplas 'imagos' que se articulam num
fere um papel decisivo ~nquanto esquemas organizadores inconscientes do processo mundo construído segundo um processo progressivo de interiorização''. A inspi-
grupal, da realidade psíquica inconsciente do grupo e dos vínculos de grupo. ração kleiniana que era a sua, nessa época, levou-o a descrever, assim, "as relações
intrassubjetivas, ou estruturas de vínculos interiorizados e articulados num mun-
A grupalidade psíquíca do interno''. Contudo, o que Pichon-Riviere chama de mundo interno ou grupo
interno é a reconstituição intrassistêmica da trama relacional, pura interiorização
Em 1980, reuni sob o conceito de grupalidade psíquica o conjunto das carac- do sistema de relações intersubjetivas e sociais do qual emerge o sujeito. Para
terísticas específicas dos grupos internos, ampliei sua extensão e especifiquei seu Pichon-Riviere, esse sujeito é tanto social quanto psíquico.
conteúdo. Era preciso discutir a ideia, a meu ver demasiado restritiva, segundo a A concepçã0 de grupo interno em D. Napolitani (1987) é bastante próxima
qual os grupos internos seriam a mera reprodução analógica dos grupos inter- da de E. Pichon-Riviere: o grupo interno é a rede de modalidades relacionais da
subjetivos ou a pura introjeção dos objetos e das relações intersubjetivas consti- qual o indivíduo faz parte, a representação das relações de cada um com o outro
tuídos no grupo familiar. Ao integrar a noção de grupo interno no conceito de e com o ambiente, as significações e os códigos ligados a essas relações. O grupo
grupalidade psíquica, eu propunha um modelo de funcionamento mais preciso. interno se forma pela "internalização, através dos processos identificadores, do
Cheguei à ideia de que a grupalidade psíquica designa formações intrapsíquicas conjunto das relações das quais o indivíduo participou desde seu nascimento,
dotadas de uma estrutura e de funções de ligação entre as pulsões, os objetos, as repre- especialmente pela introjeção de objetos e imagos constituídos no grupo familiar
sentações e as instânciasdo aparelho psíquico, na medida e sob o aspecto em que eles e dos valores que prevalecem no interior da família''.
formam um sistema de relação que liga seus elementos constituintes uns aos outros. A inspiração kleiniana em Pichon-Riviere e Napolitani, a referência freudiana
No entanto, essa definição não dava conta de uma característica que me pa- em mim nos levaram a utilizar urna noção bastante próxima. Temos em comum
recia ainda mais importante. O trabalho que empreendi sobre os processos asso- pensar que os grupos internos são organizações de objetos internos interiorizados
ciativos e sobre o sonho, tanto na cura como nos grupos, levou-me a considerar a que orientam a ação para os outros nas relações intersubjetivas. Mas, além dessa
grupalidade psíquíca uma propriedade geral da matéria psíquica. Essapropriedade semelhança, nossas concepções podem apenas em parte se sobrepor. Nossas fontes
consiste em associar, liberar, aplainar objetos psíquicos, formar conjuntos segundo são diferentes, e o conceito não deu lugar aos mesmos desenvolvimentos em cada
leis de composição e transformação, sob o efeito dos movimentos pulsionais de um de nós. Para Pichon-Riviere e Napolitani, os grupos internos resultam da interio-
vida e morte, sob o efeito do recalque ou de mecanismos de defesa fora o recalque, rização de relações psicossociais,mas eles não levam em conta sua gênese propria-
por clivagem, denegação ou rejeição. Essa extensão do conceito acomodou minha mente endopsíquica e não descrevem nem sua estrutura nem seu funcionamento.
ideia inicial de que a grupalidade psíquica é a forma, a função e o processo que
ocupa o grupo no espaço da realidade psíquica interna.
A organização grupal da matéria psíquica

Debate sobre a concepção de grupos internos Minha concepção de grupos internos difere da deles em dois pontos impor-
tantes. O primeiro é que os grupos internos não são somente reativados no pro-
Quando, em 1966, comecei a trabalhar sobre os "grupos de dentro': não cesso grupal, eles são, mais fundamentalmente, seus princípios organizadores
sabia que minhas pesquisas se encontrariam com aquelas que elaboravam, ero inconscientes. O segundo é que os grupos internos são uma organização da ma-
outros contextos teórico-clínicos, E. Pichon-Riviere e,.mais tarde, D. Napolitani. téria psíquica.
104 Um singular plural O grupo como formação in!rapslquica 105

Atingimos aqui nossa principal diferença: os grupos internos não são exclu- originária dos objetos numa estrutura e em formas que constituem o inconsciente.
sivamente o resultado da internalização de experiências relacionais, de uma inte- O inconsciente, estruturado como grupo, recombina-se sem cessar em suas fi-
riorização de relações de objetos e de uma organização das identificações. Eles guras, em sua energia, em suas formações e em seus efeitos.
derivam de uma organização inerente a essa propriedade da matéria psíquica que
acabo de mencionar: a de se associar e de se organizar em grupo.
Cheguei a essa ideia por três vias. A primeira é anedótica, mas somente em A fantasia como paradigma estrutural do grupo interno originário
parte: no início dos·an·os de 1970, em pleno desenvolvimento das teses de J.
Lacan, propus a fórmula de que "o inconsciente se estrutura como um grupo''. O exemplo clínico do capítulo precedente nos mostrou como a abordagem es-
O que era então uma espécie de piada se transformou por ocasião de uma leitura trutural da fantasia ilustra o conceito de grupo interno originário. Essaabordagem
do Projeto,de psicologiacientifica:as especulações de Freud sobre os grupos evidencia sua principal propriedade, intimamente ligada à sua estrutura distribu-
psíquicos élivados e a organização do inconsciente originário acomodavam tiva, permutativa e dramática: a fantasia é um cenário de realização de desejo in-
minhas hipóteses sobre a grupalidade interna. A terceira via, que já mencionei, consciente. Esse cenário governa as organizações de lugares e de ações psíquicas
foi aberta pela atenção que, simultaneamente, eu começava a dirigir à organização correlativas. Considerada desse ponto de vista, a fantasia manifesta claramente
grupal dos sonhos e dos processos associativos na cura e nos grupos. Essas pes- sua propriedade de pôr em cena diferentes versões da relação do sujeito com seus
quisas transformaram minha proposição "lacaniana" lúdica numa hipótese de objetos, com seu desejo, com um outro e com mais de um outro.
trabalho de alcance mais geral: a matéria psiquica tende a sé organizar estru- A análise estrutural das fantasias do Homem dos ratos (1909) dá conta da
turalmente e dinamicamente segundo um modelo de grupo. autorrepresentação do paciente de Freud em três "personalidades" clivadas e
desagregadas: o Homem dos ratos situa as partes fragmentadas do "capitão cruel"
em outros personagens, também eles fragmentados, ou em seus sonhos, últimos
FORMAS E PROCESSOS DOS GRUPOS INTERNOS receptáculos psíquicos daquilo que seu corpo não pode tolerar.
Essa abordagem estrutural da organização da fantasia nos é familiar desde
O inconsciente como grupo interno originário a análise da fantasia de Schreber. Freud evidenciou sua organização linguística
(1911), desenvolvendo a ideia de uma transformação da "língua fundamental"
Desde o Projetode psicologiacientifica(1895a) e os Estudossobrea histeria de um mesmo enunciado fantasmático em diferentes organizações psicopato-
(1859b), o grupo aparece inicialmente como modelo da organização e do fun- lógicas resultantes da paranoia.
cionamento intra psíquicos: é uma forma e um processo da psique individual. Um A análise da fantasia "Uma criança é surrada" leva Freud, em 1919, a explorar
século antes dos grupos neuronais de Edelman, Freud denomina grupo psíquico as variações da correlação sujeito-ação-objeto segundo um mesmo modelo de
(die psychischeGruppe) um conjunto de elementos (neurónios, representações, transformação. A habitual tradução francesa do enunciado da fantasia por "Bate-
afetos, pulsões ... ) ligados entre si por investimentos mútuos, formando uma se numa criança'; em lugar de "Uma criança é surrada" (EinKindwirdgeschlagen)
certa massa e funcionando como atratores de ligação. O grupo psíquico é dotado explica bem a indeterminação do ator da fustigação na estrutura formal da fan-
de forças e principios de organização específicos, de um sistema de proteção e de tasia. A fantasia é esse scriptno qual o sujeito se figura participando da cena, "sem
representação-delegação de si mesmo por uma parte de si mesmo. O grupo psi- que um lugar lhe possa ser atribuído" (LAPLANCHE, PONTALIS 1967). Mesmo
quico estabelece relações de tensão com elementos isolados ou desligados que, por estando sempre presente na fantasia, o sujeito pode estar sob uma forma des-
esse motivo, são capazes de modificar certos equilíbrios intrapsíquicos. O pri- subjetivada, isto é, na própria sintaxe da sequência fantasmática.
meiro esboço freudiano da representação do inconsciente é o de um grupo psíqui- A estrutura da fantasia é uma estrutura de múltiplas entradas cujo enunciado
co clivado (eine abgespaltenepsychicheGruppe). fundamental é o representante de uma série de enunciados obtidos por derivação,
~ provável que o ser vivo seja grupo: movimento de agrupamento e dispersão, por substituição, por retorno, masoquista ou sádico, de cada unidade sintática. Essa
sob efeito de Narciso, Eros e Tânatos. Para restringir-me ao domínio da vida psi- estrutura é trabalhada por diversos processos primários: condensação, desloca-
quica, retenho a noção de grupo psíquico origináriopara dar conta da ligação mento, permuta, negação, inversão, difração.
106 Um singular plural O grupo como formação intrapslquica 107

Essa concepção estrutural e dinâmica da fantasia está atenta aos principios Recordei com frequência que a primeira formulação de Freud sobre a iden-
que regem essa transformação. Ela traz, além disso, um conteúdo mais preciso tificação a define como "pluralidade de pessoas psíquicas". Esse primeiro esboço de
para as noções de interfantasmatização e ressonância fantasmática. uma concepção de grupo interno formado por internalização se especifica na
Interpretaçãodos sonhos,quando Freud analisa as identificações histéricas pre-
sentes na formação do sonho (no sonho chamado de "sonho do caviar" ou "da
Os grupos internos primários açougueira"). Esse mesmo sonho inspira em Freud a noção de comunidade de
fantasias, enquanto a análise de Dora lhe traz a de identificações pelo sintoma:
Os grupos internbs primários são adquiridos por interiorização, internali- são duas noções decisivas para pensar o conceito de grupalidade psíquica.
zação ou introjeção: são a rede de identificações, o grupo das relações de objeto, No âmbito da segunda tópica, a segunda teoria das identificações é ainda mais
a estrutura grupal do ego, os complexos edipianos e fraternais, a imagem do corpo. referida a um modelo grupal (identificações multifaces, personalidades múltiplas
Sua análiseºpode seguir a abordagem estrutural dinâmica que propus para os ou dissociadas). Ela se articula, mais precisamente, com uma teoria grupal do ego
grupos internos originários. Em todos os grupos internos, o sujeito se representa e do superego (Psicclogia degrupoe análisedo ego,1921; O egoe o id, 1923).
em suas relações com outras partes de si mesmo ou/e com seus objetos internos.
Comento, resumindo-as aqui, três variedades: a rede de identificações, o sistema
O sistemad~ relaçõesde objeto
de relações de objeto e os complexos(~ 1993, p. 26-30).
O sistema dê relações de objeto é uma das formas da grupalidade psíquica.
Ao utilizar o termo sistema, insisto na rede de relações de objeto e em sua in-
A redede identificações
terdependência.
A cura individual nos confronta com as identificações histéricas de alguns Neste capítulo não posso esboçar uma apresentação, por breve que seja, desse
de nossos pacientes. Ao longo da primeira sessão, ocorria de uma de minhas conceito•. O que nos interessa aqui é compreender em que a noção de relação de
pacientes me fazer ouvir sucessivamente várias vozes: uma voz de homem, a de objeto descreve um grupo interno. Na noção de relação de objeto, a palavra "re-
uma garotinha mimada ou queixosa, a de uma apaixonada irritante, ou de uma lação" assume um sentido que inclui não somente a maneira pela qual o sujeito
dama refinada, ou de uma mulher vulgar. Sotaques diversos (parisiense, meri- constitui seus objetos, mas também a maneira pela qual estes modelam sua ativi-
dional) reproduziam vestígios de encontros passados. Em outros momentos, como dade. Essa inter-relação implica a coconstituição do sujeito e do objeto: falar de
na época clássica, seu corpo era a cena de sua possessão por vários personagens. uma relação com o objeto significaria a preexistência de um ou do outro.
Pensando em Bion, eu dizia para mim mesmo que ela era por si só uma mulher- Com base nisso, concebo que o sistema das relações de objeto funciona como
grupo, de que ela me oferecia a representação, assim como nos grupos que ela um grupo interno, na medida em que resulta da introjeção ou da incorporação
frequentava, e da qual ela me fazia o relato prazeroso dos efeitos produzidos sobre dos objetos e das relações entre os objetos: do Outro dessesobjetos (Green) em
os outros por suas atitudes transformistas. Eu pensava também no filme de Woody
Allen Zelig.Esse personagem me ensinava algo de essencial sobre o "seelig"humano: 1. Irei apoiar-me sobre a definiçãosintética que LAPLANCHE e PoNTALIS {1967)propu-
precisamente essa capacidade de ser uma "pluralidade de pessoas psíquicas': seram, concebendo-a como "o modo de relação do sujeito com seu mundo, relação que
pessoas cujas relações permanecem inconscientes para o sujeito, e que podem ser é o resultado complexoe total de certa organizaçãoda personalidade,de urna apreensão
tanto clivadas umas das outras como reunidas no mesmo grupo interno, conflitual mais ou menos fantasmáticados objetos e de tais tipos privilegiadosde defesa''.Essa
ou consensual. Ela me ensinava também que o espaço da cura, assim como o do noção pós-freudiana assumiu importância crescente depois de 1930e se inscreve num
grupo, podia ser a cena em que vários personagens eram convocados para repre- movimento mais amplo de ideias:o organismonão é mais consideradoem estado isolado,
sentar (representificar, na transferência) para ela (e sem dúvida para cada um mas numa interaçãocom o entorno. Notemos que esse ponto de vista fora enunciado por
deles), um drama partilhado, mantido, regrado por suas fantasias bissexuais. Freud desde 1905, nos Trêsensaios,e especificadonas notas acrescentadasem 1915. O
Enquanto analista, eu tinha de acolher e reconhecer esses personagens e seus objeto ébem o que visaa pulsão,masémantido numa relaçãoque chamo de coescoramento
vínculos internos, nomeá-los até em sua fonte, e não me ater a um deles. (co-étayage)com os objetos da mãe.
108 Um singular plural O grupo como fonnação intrapslquica 109

suas relações com o sujeito, outros no objeto (Kaes) sobre o qual se apoiam a ego: eles tomam emprestados traços que pertencem aos grupos da realidade exter-
pulsão, as identificações do ego e seus mecanismos de defesa. na, mas são postos a serviço da figurabilidade (por exemplo, das pulsões: como a
Esse grupo de relações de objeto se dissolve [résorbe)por regressão defensiva horda interna) e realizações inconscientes (do narcisismo: cf. a "gangue narcísica"
fusional no estado simbiótico do vínculo: H. Rosenfeld notou que esse tipo de descrita por Meltzer) ou dos ideais (por exemplo, os grupos heroicos internos).
relação de objeto narcísico onipotente é sempre particularmente mobilizado
nos grupos.
Os processos da grupalidadepsíquica
O complexode Édipo e o complexofraternal
Os grupos internos são regidos pelos mesmos processos gerais que agem no
O corqplexo é um grupo interno. É um conjunto organizado de represen- aparelho psíquico. Podemos notar os processos originários, que funcionam
tações e investimentos inconscientes, constituído a partir das fantasias e relações segundo o modelo do pictograma "união-rejeição" descrito por P. Castoriadis-
intersubjetivas nas quais a pessoa assume seu lugar de sujeito desejante em rela- Aulagnier (1975). Os principais processos primários (a condensação, o desloca-
ção a outros sujeitos desejantes. Assim ocorre com o complexo de Édipo e o mento, a permuta ou a inversão) estão a serviço da colocação em figurabilidade
complexo fraternal. A concepção estrutural do complexo inscreve-se numa orga- dos representantes pulsionais, das representações de objeto e dos representantes do
nização intrapsíquica triangular, na qual cada elemento se define pela relação ego. No entanto, certos processos primários são eletivamente mobilizados nos
privilegiada que mantém com cada um dos outros elementos e pela relação de grupos internos: apontei o papel bastante específico que têm ainàa a difração e
que ele é excluído. Este último ponto sublinha que é necessário levar em consi- a multiplicação do elemento idêntico.
deração o negativo ou a não-relação como uma dimensão do complexo, e a ma-
neira pela qual ela é representada no complexo.
A condensaçãoe ogrupo interno:"Irma"em Freud
Em minhas pesquisas, trabalhei particularmente com o complexo fraternal,
tanto na cura como nos grupos e nas instituições (KAES 1992). O complexo fra- A condensação é um dos principais processos do sonho; é também um dos
ternal designa uma organização fundamental dos desejos amorosos, narcísicos e principais processos dos grupos internos. A análise do sonho da injeção dada em
objetais, do ódio e da agressividade diante desse "outro" de que um sujeito se Irma oferece a Freud a ocasião para descobrir e ilustrar esse processo em certas
reconhece como irmão ou irmã. Essa definição ampla mostra que o complexo figuras condensadas que aparecem no sonho: ele as denomina pessoas reunidas
fraternal não corresponde necessariamente à existência realde vínculos fraternais, e misturadas (die Sammel - und mischpersonen).Podemos compreender que
como mostraram as análises de sujeitos que foram filhos únicos, e especialmente semelhantes figuras formam um dos grupos internos de Freud; graças à conden-
os estudos de Sutherland (1950) e de Bion (1950) sobre o gêmeo imaginário e de sação, a representação de sua paciente Emma Eckstein se vê ao mesmo tempo
Benson e Pryor ( 1973) sobre o companheiro imaginário. Se o complexo se funda, dissimulada na Irma do sonho e conectada a outras figuras femininas (Anna, sua
por um lado, nos vínculos interpessoais e intergeneracionais constituídos na filha, uma outra Anna, sua mulher Martha, uma outra paciente). Todas essas fi-
história infantil, ele não se confunde com esses vinculos. guras do feminino identificam-se entre si, e por esse procedimento Freud pode
ignorar seu próprio desejo na operação desastrosa, cometida com Fliess,dos septos
nasais de sua paciente.
Os grupos internos secundários
A difraçãoe o ''grupo-Dora"
Certos grupos internos apresentam-se no espaço intrapsíquico com todos
os atributos dos grupos externos: nos sonhos, por exemplo, sob a forma de um O processo primário da difração é de certa maneira antagônico ao da con-
grupo heroico, ou de um grupo de amigos, ou de uma equipe esportiva. Outros densação, mas ambas exemplificam de maneira específica a figuração múltipla
possuem uma forma mais fluida, a de uma multidão, de um agregado ou de uma dos aspectos do ego representado por seus personagens e por seus objetos que,
mera reunião. Esses grupos são representações de objetos do sonhador e de seu juntos, formam um grupo interno.
110 Um singular plural O grupo como formação intrapslquica 111

Freud indica de maneira alusiva o processo da difração, em 1901, em A inter- diversidade de lugares psíquicos nos quais se difratam os grupos internos coloca
pretaçãodos sonhos2.Ele escreve: o problema de uma tópica "ectópica''.
A análise dos processos atuantes nos grupos internos nos ensina que, ao lado
A análise nos mostra outra particularidade dessas trocas complicadas entre
da difração e da condensação, a repetição ou a multiplicação do elemento idêntico
conteúdo do sonho e ideia latente. Ao lado desses fios divergentes, que partem
também são processos a serviço da dramatização, da entrada em cena do intrapsí-
de cada um dos detalhes do sonho, existem outros que partem das ideias latentes
quico e das exigências da censura.
e vão divergindo em.direção ao conteúdo do sonho; de maneira que uma só
ideia latente pode s~r representada por vários elementos, e que entre o conteúdo
manifesto do sonho e seu conteúdo latente se forma uma rede complexa de fios Os grupos internos e a transferência

.
entrecruzados (G. W. II-II, p. 666).

A difração do ego do sonhador, de seus objetos e de seus pensamentos pro-


O conceito de grupalidade psíquica nos esclarece sobre certas modalidades da
transferência nos grupos, e especialmente sobre a relação entre a configuração
duz uma figuração grupal "em múltiplos", efeito das identificações múltiplas ou das transferências e as propriedades estruturais do dispositivo de grupo. Nesse
multifaces ( mehrfacheodervielseitigeIdentifizierungen)do ego. sentido, ressaltei que a noção de uma diluição da transferência impediu que se
O processo consiste, portanto, numa descondensação do ego que se representa na compreendesse que no grupo lidamos antes com uma difração das transferências
multiplicidade de suas pulsões, de seus objetos, de suas imagens, do(s) ego(s) par- e com as conexões entre os objetos do desejo inconsciente. Entre os traços que
cial(is), cada elemento representando um aspecto do todo e mantendo com os outros caracterizam o grupo corno lugar de surgimento de configurações particulares
relações de equivalência, de analogia, de oposição ou de complementaridade. da transferência, devemos igualmente estar atentos ao fato de que o psicanalista,
Considerada do ponto de vista da economia interna, a difração é um pro- por necessidade morfológica de grupo, não é o únicoobjeto da transferência.
cesso de distribuição das cargas pulsionais sobre vários objetos. Nessa perspectiva,
deve ser diferenciada de um mecanismo de defesa por fragmentação contra o Conexãoe difraçãodastransferências
caráter perigoso do objeto.
A difração opera no sonho, nas transferências e nos vútculos de grupo.A análise No relato da cura de Dora, Freud aborda a questão da transferência conce-
das transferências de Dora sugere que elas se organizam por difração sobre Freud de bendo-a como a reprodução sucessiva ou simultânea sobre o psicanalista dos objetos
seu grupo interno, composto por seu pai doente, sua mãe contaminada pelo pai, por ou pessoas do desejo infantilinconsciente. No entanto, para o doente não se trata
Madame K., pelo Senhor K, pela prima e pela governanta, todos esses persona- somente de substituir uma pessoa pela do psicanalista: o paciente substitui também
gens internos ligados entre si segundo diversas modalidades, e o todo formando o sucessiva ou simultaneamente a relaçãoentreváriaspessoaspela relação com o mé-
que propus chamar de "grupo-Dora''. É esse grupo que chega ao gabinete de Freud. dico. Freud não pensa a transferência apenas em sua dimensão plural: die Ober-
Os diferentes membros de um grupo podem representar para um sujeito tragungen,as transferências. É razoável pensar que o modelo do grupo também está
dado os diferentes aspectos de seu grupo interno. O grupo é para cada um a cena presente em sua concepção das cone:xiies entre os objetos transferidos.
da figuração de seus grupos internos, cujos elementos se repartem em diversos Essa concepção grupal da transferência na situação da cura define um traço
lugares psíquicos, por razões diversas: de figuração tópica ou dinâmica, mas tam- constante da transferência em situação de grupo: as propriedades morfológicas
bém económica, graças à separação ou à fragmentação das cargas pulsionais3. A desta predispõem à manifestação desse tipo de configuração transferencial, numa
dinâmica que serve aos processos de deslocamento, de condensação e de difração
dos grupos internos.
2.Sea noção é adquirida em 1901,suaanálise é fornecida em váriossonhos deA interpretação
Na situação de grupo, lidamos com um duplo processo de difraçãoe de
dossonhos(1900); por exemplo,no "Sonho do celibatário"(G. W.11-ill,p. 498) e no "Sonho
conexãodas transferências. Enfatizei o primeiro processo. J.-C. Rouchy (1980)
do estabelecimentoortopédico" (ibid., p. 206).
sublinhou a importância do segundo:
3. R SPRINGMAN (1976) descreveuesse mecanismo nos grupos em termos de fragmentação
para evitar o contato com o objeto:fragmentos de objeto e de ego estãoespalhadosno mundo São assim não somente objetos parciais ou personagens, mas os elementos
exterior, sem encontrar necessariamente continente para recebê-los e transformá-los. recompostos das redes de interações familiares que podem ser transferidos no
112 Um singular plural

grupo. Essa substituição pode mesmo dizer respeito principalmente a essas


mesmas relações: são as conexões que são transferidas.

Os objetospsíquicostransferidosna situaçãode grupo


Os conceitos de grupo interno e de grupalidade psíquica abrem caminho
para pensar os objetos-e ~ processos eletivamente transferidos na situação de gru-
l/
po. São mobilizadas nbs grupos as formas arcaicas e edipianas da grupalidade
psíquica, as constelações determinadas dos objetos infantis e dos vínculos entre
esses objetos 1 a repetição das experiências infantis ao longo das quais os objetos e
processos dós grupos internos se constituíram. Os objetos e constelações de objetos
transferidos são também as formas e os processos transindividuais, transgeracio-
nais e transsubjetivos que não pertencem propriamente a cada sujeito em sua
--..,..
·-- -
singularidade, mas a seu pertencimento ao grupo primário e ao conjunto social,
e sobre os quais ele constrói a versão subjetivante de sua história psíquica. :----:- 6
Formas e processos th
. -
-~..,..-
Em conclusão da realidade psíquica ·• ~
'~
--
- ____ .,..,.,e,,~ .- do grupo ~-'
Introduzi o conceito de grupalidade psíquica para descrever formações e ,..,
processos notáveis do inconsciente que chamei de grupos internos. Descrevi O aparelhopsíquicogrupal
-,
·-~
../
deles a estrutura, a dinâmica e a economia no espaço interno, a partir da clínica 1
... ,. ~-1'.,
'-...
da cura. Depois retomei urna intuição de Freud e desenvolvi a ideia de que os ,,, -...
li
grupos internos designam uma propriedade do inconsciente de se formar como
um grupo psíquico clivado, atrator de conteúdos recalcados e não recalcados.
A análise das configurações transferenciais em situação de grupo mostrou
que certos processos primários da grupalidade psíquica (difração, condensação,
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colocação em figurabilidade pela dramatização) são efetivamente solicitados. O
grupo é um dispositivo que permite viver e notar as correlações entre os objetos
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da transferência. Os grupos internos contêm algo do recalcado, do negado e do
rejeitado que se constituiu na matriz grupal e nos vínculos primários do sujeito;
trazem o vestígio de alianças inconscientes.
Espero ter começado a dar consistência ao que foi primeiramente uma fór-
mula intuitiva: que "nós somos grupos" e que, devido a essa grupalidade, nos tor-
namos sujeitos "singulares plurais': que "o inconsciente se estrutura como grupo';
que o sujeito do inconsciente é sujeito do grupo.
Ainda temos que adquirir outras noções. O conceito de grupalidade interna
nos traz um elemento de resposta à questão: como os sujeitos se agrupam? Supu-
semos que os grupos internos funcionam como organizadores psíquicos do grupo.
Precisamos agora mostrar como.
Fonnase processosda realidade psíquicado grupo 11S

Minha pesquisa desenvolveu-se nessas duas direções. Quis elaborar uma


concepção que integrasse essas duas questões e, por conseguinte, tornasse mais
complexa nossa concepção do inconsciente.

O MODELO DO APARELHO PS(QUICOGRUPAL

No final dos anos de 1960elaborei um enquadre conceptual geral para inte-


grar e distinguir numa concepção de conjunto a relação do sujeito com o grupo,
a organização de sua psique nos vínculos de grupo e a consistência da realidade
psíquica de grupo'. O modelo do aparelho psíquico grupal foi construído para
atingir esse objetivo, mas seu fim último era compreender as relações recípro-
A ideia de que existe uma psique de grupo e uma realidade psiquica que lhe cas entre as formações do inconsciente nos grupos e no espaço intrapsíquico.
corresponde pode surpreender os psicanalistas que só conhecem, em geral, a Não mais que o modelo do aparelho psíquico "individual", o modelo do apa-
realidade psíquica individual. Poderá interessar a eles se procurarmos articular relho psíquico "grupal" não corresponde a um observável concreto: foi construido
essas duas organizações da realidade psíquica. para fins heuristicos e de inteligibilidade, é uma "ficção eficaz'7como diz Freud
Dispomos de vários argumentos para fundamentar essa hipótese e para dis- a respeito de sua própria construção metapsicológica•.
cuti-la: podemos retomar, por nossa conta, as proposições com base nas quais, Escolhi a noção freudiana de aparelhopsíquicoporque me parecia a mais apta
depois de Freud, Pichon-Riviere, Bion, Foulkes,Anzieu e alguns outros fundaram para explicar o trabalho psíquico mobilizado pelo grupo. A ideia de que a psique
suas pesquisas sobre o grupo. Eles construíram modelos teóricos pertinentes para pode se pensar como um dispositivo e um processo de ligação e de transformação
dar conta da ideia de que o grupo é uma entidade original na qual se produz uma era central para minha intenção em virtude de suas implicações clínicas.
realidade psíquica própria, dotada de processos e formações específicos: pressu-
postos de base e mentalidade de grupo (Bion), matriz grupal (Foulkes), esquema espaço grupal. Essa"naturalização"transforma consideravelmenteas questões da inte-
contextual, reflexivo e organizacional (Pichon-Riviere), modelo onírico do grupo ligibilidadedos processos interpessoaise do dispositivo metodológico que os torna
(Anzieu), campo grupal (Neri)'. pensáveise tratáveis.Outra inovaçãoé o conceitode commuting, que C. Neri utilizapara
A meu ver, porém, eles deixaram de lado duas questões decisivas.A primeira descrevera passageme as relaçõesentre a dimensãodo indivíduoe a dimensãodo grupo.
diz respeito às formações e aos processos da realidade psíquica do sujeito singular Partilhocom eleesseprojeto deexplicara troca entre os espaçosintrapsíquicose o espaço
no grupo. A segunda concerne às formações e aos processos psíquicos comuns e do grupo. Com os conceitosde campo,commuting, semiosferaentramos nessalógicadas
partilhados que realizam uma função intermediária entre o grupo e cada sujeito implicaçõesreciprocasentre o sujeito e o objeto - "não há um sem o outro" -, uma
no grupo 2• lógicaque renovaa compreensãodo aparelho psíquico.
3. O modelo geral foi publicadoem 1976 em um livro intitulado L'appareilpsyquique
1. Uma visão de conjunto sobre essesmodelos se encontra em KAl!s1999a. groupal.Constructions du groupe. Em seguida, outros pesquisadores estenderam a
2. A obra de C. NERI(1997) constitui exceçãoa essa avaliação:seu livro,com efeito, se competênciadessemodelo para a análiseda realidadepsíquicana família,no casal e nas
organiza em torno de um modelo de inteligibilidadeessencialmentecentrado na "natu- instituições.
ralização"da teoria do campo na compreensãopsicanallticado grupo. Os trabalhosde M. 4. "Compreender o que se passa em tomo de nós consiste na realidade em construir
e W. Barangerhaviamintroduzido a ideia básicade que a fantasiainconscientedo "casai» modelos e em confrontá-loscom nossas observações~escrevemN1coL1se PRIGOGINE
analista-analisandosão uma forma e uma força organizadorasdo processopsicanalltico. (1989, p. 279). Esseenunciado se aplica além da físicaou da química, concerne a todo
Ao estender a noção de campo bipessoalà situação analítica de grupo, C. Neri inscreve trabalho de teorização.A ideia de Charcot é correta,porém mais simples:a clinicapsica-
sua pesquisa na investigaçãobioniana sobre as caracteásticas psíquicas próprias ao nalíticanão é inteligívelsem um modelo teórico de fundo.
116 Um singular plural Formas e processos da realidadepslquica do grupo 117

Os enunciados básicos do modelo do aparelho psíquico grupal dade e da complexidade das formações e dos processos psíquicos que temos de
tratar na clinica dos grupos.
Os enunciados básicos desse modelo são os seguintes: Esse modelo, com efeito, integra a heterogeneidade dos espaços psíquicos,
1. Não há somente reunião de indivíduos, mas grupo, com fenômenos ele a reconhece como a principal fonte de movimentos psíquicos no grupo. En-
especificos quando se operou entre os indivíduos que constituem esse tretanto, ao mesmo tempo admite que certos processos e certas formações psí-
grupo uma construção psíquica comum e partilhada. O aparelho psíquico quicas são comuns e partilhados pelos sujeitos membros de um grupo, enquanto
grupal é o mero dessa construção e é o resultado de certo arranjo combi- outros são próprios a cada um deles. Enfim, afirma que certas formações e certos
natório das psi'ques. processos intra psíquicos só aparecem e se transformam em situação de grupo.
2. O aparelho psíquico grupal realiza um trabalho especifico: liga, reúne, Esse modelo, portanto, traz uma resposta complexa a dados complexos.
põe em acordo entre si e em conflito as partes da psique individual mobi- O conceito de aparelho psíquico, seja ele individual ou grupal, é um conceito
lizad~s para construir o grupo. fecundo da metapsicologia. Porém, tem o inconveniente de deixar de lado a ques-
3. O aparelho psíquico grupal não é a extrapolação do aparelho psíquico indi- tão do inconsciente em sua relação com a subjetividade. Reintroduzi essa questão
vidual, é uma estrutura independente dos psiquismos que ele reúne segundo no final dos anos de 1980, quando comecei a criticar os limites desse primeiro
suas leis próprias, possui sua própria organização e seu próprio funciona- modelo, na medida em que não nos permitia pensar na questão do sujeito do
mento. Os processos que governam a realidade psíquica comum e partilhada inconsciente e da intersubjetividade no grupo.
são tributários de uma lógica diferente daquela que governa o indivíduo.
4. ~ tal aparelhagem que constitui a realidade psíquica de e no grupo. Esta se
organiza segundo modalidades em que o "comum" e o "partilhado" pre- A RELAÇÃO ENTRE SUJEITO E GRUPO SEGUNDO O MODELO DO APARELHO
valecem sobre o "privado" e o "diferente''. PSIOUICO GRUPAL
5. O aparelho psíquico individual se forma, por um lado, nessa aparelha-
gem, procede dela e nela se transforma, dela se diferencia e, em certas O modelo do aparelho psíquico grupal comporta proposições para pensar
condições, adquire autonomia. a relação entre sujeito e grupo. Eu as resumo em cinco enunciados.

O grupo é objeto de investimentos pulsionais e de representações


As determinações da realidade psíquica de grupo
inconscientes

A realidade psíquica própria ao grupo define-se por meio dos espaços psíqui- Retomo aqui a hipótese de J.-B.Pontalis segundo a qual o grupo é objeto de
cos comuns e partilhados que aí se constroem e mediante os processos e formações investimentos pulsionais e de representações inconscientes para seus membros. O
que aí se desenvolvem sob o efeito composto de três ordens de determinação. A grupo é investido por diversas pulsões às quais se associam representações incons-
primeira tem a ver com a própria estrutura do grupo: essa estrutura preexiste aos cientes e afetos ligados ou não a essas representações: as pulsões de ligação( ocnófilas
sujeitos e, ao mesmo tempo, só existe por eles e para eles. A segunda tem sua fonte e filobatas), pulsões orais(o grupo é uma boca, um seio, um seio-toalete), anais
nas contribuições dos sujeitos para o grupo quando se tomam membros do grupo: (é cloaca, ventre),genitais(é pênis, vagina, útero, "matriz"). O grupo é investido por
entre as formações e os processos intrapsíquicos eletivamente mobilizados, a pulsões de autoconservação do ego, pelas pulsões narcísicas (é espelho), é investido
grupalidade psíquica interna tem um papel determinante. A terceira ordem de pelas diversas manifestações da pulsão de morte. Concluo que a natureza e a força
determinação procede dos vínculos entre os membros do grupo. das pulsões mobilizadas pelos membros do grupo determinam a qualidade e a
A realidade psíquica do grupo não pode ser reduzida à de cada sujeito, nem força das ligações e dos desligamentos na reunião de psiques'.
à dos vínculos intersubjetivos contraídos no grupo. Porém, no grupo, a realidade
psíquica de cada um é atravessada pela do grupo. Importa ter sempre presentes 5. O ponto de vista pulsional não é levado em consideração nas outras teorias do grupo;
ao espírito essas distinções, pois elas dão conta da diversidade, da heterogenei- é rejeitado por Pichon-Rivi~e.
118 Um singular plural Formas e processos da realidade psíquica do grupo 119

Em um grupo, esses investimentos pulsionais (e as representações incons- A aparelhagem dessapluralidade é organizada numa cena e numa ação psí-
cientes que lhes correspondem) variam segundo os momentos do processo grupal quicas segundo um cenário cujo paradigma é a fantasia e cuja fórmula é: um (ou
e são diferentes para cada sujeito.A questão é compreender como o funcionamento vários) sujeito(s), um verbo (ativo/passivo), um (ou vários) complemento(s) de
do grupo permite que as pulsões de cada um encontrem seu suporte e seu objeto, objeto. O grupo cuja clínica relatei ilustra essa proposição na fórmula "um pai/
como entram em tensão e em conflito em cada sujeito e com as dos outros, como mãe ameaça/repara uma criança''. Um só ou vários grupos internos podem ser
são domesticadas ou permanecem selvagens.As pulsões não podem divergir de- utilizadosem contribuição como esquemas organizadoresda cena grupal. O grupo
mais ou se dispersar seni alterar a consistência suficiente do espaço psíquico grupal. é a cena de uma ação psíquica cujo cenário exerce uma função de apelo ou de
A questão é então compreender como elas se conciliam e se combinam, e como os atrator para as posições psíquicas dos membros do grupo.
sujeitos aceitam a "renúncia" (der Verzicht:FREUD 1929) à sua realizaçãodireta É com base nessa cena e segundo um atrator predominante que as tópicas
para que oco~a "a comunidade que assegura a cada um a segurança e o amor''. dos sujeitos que compõem o grupo se organizam segundo diversas modalidades
(projeção, depósito, rejeição, exportação). As formações psíquicas dos sujeitos
são postas em figurabilidade num duplo registro externo-interno, e a colocação
Os grupos internos são os organizadores psíquicos inconscientes dos em figurabilidade utiliza demaneira privilegiada os mecanismos da dramatização,
vínculos com o grupo e do aparelho psíquico do grupo da condensação("um representa todos"), do deslocamento de um elemento para
um outro e da difração(um se representa em vários) ou da multiplicaçãodo ele-
Como mencionei acima, ao longo de minhas pesquisas sobre o objeto grupo, mento idêntico.São os mesmos processos primários mobilizados no sonho, nos·
descobri que os investimentospulsionais e as representaçõesinconscientesdo gru- sintomas e nas transferências que são eficazesna cena do grupo. É com base nisso
po são sustentados por organizaçõespsíquicas que apresentam característicasestru- que se pode formular a hipótese de que o grupo é essa outra cena do inconsciente
turais e funcionais que me levaram a descrevê-loscomo grupos internos. Descobri em que o sujeito se representa ou se faz representar.
em seguida que essesmesmos grupos internos funcionam como esquemas organi- Voltamos a encontrar aqui as questões que nos colocamos a respeito do
zadores inconscientes dos vínculos de grupo e do grupo como um conjunto. As investimento pulsional e das representações do grupo. Num grupo, os grupos in-
propriedades cênicas, dramáticas e sintagmáticas dos grupos internos definem ternos e os cenários de apelo são diversos e diferem de um sujeito para o outro.
posiçõespredispostasa ser ocupadas pelos sujeitosde um grupo segundoas questões Nessas condições, importa saber como elas se combinam, se conciliam ou se ex-
em jogo e as necessidades da dinâmica e da economia psíquicas de cada sujeito e cluem. E, caso se combinem, como se organizam as colocaçõesem figurabilidade
daquelas do grupo como conjunto. Em virtude dessas propriedades, os grupos das formações psíquicas singularesem formações psíquicas comuns?Para respon-
internos asseguram a estrutura básica da aparelhagem das psiques no grupo. der a essas questões, devemos formular outra: quais são os objetivos inconscien-
tes dos sujeitos que são atraídos para esses cenários?.

O grupo como cena, cenário, lugar de uma ação psíquica, de uma figuração
dramatizada O grupo é para seus sujeitos um lugar e um meio de realizações psíquicas

Um aspecto importante da relação do sujeito com o grupo reside no fato de Para essa questão, D.Anzieu forneceu a seguinte resposta: o grupo é como
que o grupo é para cada um de seus membros o lugar e a cena de uma externalização um sonho, é um meio de realização alucinatória dos desejos inconscientes de
de certos objetos e de certos processos de seu mundo interno. Anzieu propôs, em seus membros. Por mais forte e pertinente que seja a resposta, ela não esgota a·
1966,a ideia de que o grupo é a "tópica projetada" de seus membros. Essa ideia questão: o grupo é também um lugar e um meio de experiência da dependência,
fecunda, a meu ver, deveria ser especificadae completada. O grupo não é somente da defesacontra os maus objetos,da expectativamessiânica,como Bion propôs com
uma pluralidade de "tópicas projetadas": é o conjunto das tópicas aparelhadas, os suas basicassumptions.O grupo é ainda meio de proteção contra a solidão e o medo
vínculos entre os membros do grupo repousam numa concordância específicade (G. Róheim), objeto das expectativascrentes,da partilha de ideaiscomuns e de ilu-
suas "tópicas", mas também de suas economías e de suas dinâmicas psíquicas. sões, lugar de estruturação das identificações, espaço "em que o Eu pode ocorrer"
Um singular plural Formas e processos da realidade psíquica do grupo 121
120

(P.Castoriadis-Aulagnier ), conteúdo meta psíquico, espaço em que se estabelecem As duas séries de organizadores: psíquicos e socioculturais
as alianças inconscientes estruturantes, defensivas, ofensivas ou alienantes etc.
Voltamos a encontrar a mesma questão: num grupo, lugar e meio de reali- Duas séries de organizadores são mobilizadas no processo de aparelhagem. O
zações psíquicas, como se realizam os investimentos, diversos, comuns e diferen- conceito de organizador psíquico do grupo foi introduzido em minhas pesquisas
tes, de cada sujeito? Como se mantêm suas singularidades, sob que condições e para designar as formações inconscientes relativamente complexas que tornam
a que preço, e como podem se combinar, se organizar e se conciliar, ou entrar em possível, sustentam e organizam o desenvolvimento integrado dos vínculos de
conflito e se revelar incompatíveis? agrupamento: são os principais grupos internos paradigmáticos que identifiquei.
A segunda série é constituída pelos organizadores socioculturais. Trata-se
de esquemas de figurabilidade e de significação construídos socialmente por in-
O sujeito no grupo e o sujeito do grupo termédio do trabalho da cultura e dos quais os mitos são os representantes mais
A relaçlio do sujeito com o grupo deve ser tratada em outro nível, a meu ver completos. Encontramos exemplos emblemáticos no grupo mítico dos Cavaleiros
o mais importante, aquele em que aflora propriamente a questão do sujeito do da Távola Redonda ou dos companheiros de Ulisses. Modelos são os grupos reli-
inconsciente. Consagrarei a essa questão outro capítulo. Ela se põe a partir do mo- giosos (o grupo de doze apóstolos, o grupo de companheiros do Profeta), os grupos
mento em que se levam em consideração os efeitos que as formações e os proces- de discípulos de um mestre ( o grupo dos primeiros psicanalistas), os grupos he-
sos do inconsciente atuantes nos grupos têm sobre o inconsciente dos sujeitos roicos (os revoltados do Bounty,os náufragos da jangada da Medusa6,o grupo da
membros do grupo. A existência de tais efeitos pode ser facilmente demonstrada expedição AcalF, os sobreviventes de um desastre aéreo), os grupos de inovadores
quando se observa o destino do recalque e dos mecanismos arcaicos de defesa que (grupos de pintores, de músicos, o grupo surrealista, certo grupo de matemáticos),
o grupo impõe a seus membros para constituir grupo. Além disso, cada sujeito os grupos esportivos (determinada equipe de futebol ou de rúgbi), os comandos
se impõe a si mesmo tais medidas defensivas por razões internas ligadas a seu militares etc. Esses organizadores socioculturais possuem dupla função: fornecem
pertencimento e a seus laços de grupo e para cumprir realizações inconscientes modelos normativos e secundários para os organizadores psíquicos inconscientes.
inacessíveis de outro modo que não no grupo. Constituem um suporte para a função narrativa e legitimadora que todo grupo
Entre essas formações grupais, as alianças inconscientes ocupam um lugar utiliza para se autorrepresentar, para se autoidentificar, para se construir uma
preponderante. Segundo a análise bifocal que tento introduzir, o grupo é ao mesmo origem e se diferenciar dos demais grupos.
tempo o lugar de formação do sujeito do inconsciente e o lugar que mobiliza, Cada grupo caracteriza-se por um par de organizadores psíquico e socio-
recebe e transforma as formações e os processos inconscientes de cada sujeito. cultural predominante a partir do qual se estabilizam sua identidade e as identi-
ficações de seus membros.

A ORGANIZAÇÃO DAS PSIQUES PELO APARELHO PS(QUICO GRUPAL


O organizadorpsíquicoinconscientedo grupo:observações
clínicas
Recordo brevemente os princípios do modelo: o aparelho psíquico grupal Examinemos agora como esses organizadores funcionaram no grupo com
mobiliza, liga e põe em acordo as formações e os processos da psique de cada mem- Marc.
bro do grupo no trabalho psíquico que se impõe a eles para construir o grupo. O processo do grupo foi governado por um organizador fantasmático
Desse ponto de vista, a formação da realidade psíquica de grupo se apoia na psique inconsciente, cuja fórmula variou em torno do enunciado central: "Um pai/mãe
de seus membros, ela se constrói com sua matéria, com seus organizadores e se-
gundo seus processos. Porém, o grupo os recebe, capta, utiliza, gera e transforma 6. Jangada da Medusa: Referência ao naufrágio da fragata real francesa Medusa, em 2 de
segundo sua lógica e seus processos próprios. Ele funciona como entidade autó- julho de 1816, e aos episódios de canibalismo que se seguiram. (N. do T.)
noma dotada de realidade psíquica específica.A realidade psíquica assim produzida 7. Expedição Acali: referência ao relato de uma jornada de 101 dias de cinco homens e
pode ser comum aos membros do grupo e ao conjunto que eles formam, pode seis mulheres numa jangada. Cf. Santiago Genoves, L'expéditionAcali,Paris, Fayard, 1975.
ser partilhada, clivada ou separada, esmagada ou invadida. (N. do T.)
122 Um singular plural Formas e processos da realidadepsíquica do grupo 123

ameaça/repara uma criança". Estabelecemos que essa fantasia organizadora é e Anne-Marie expressarem pensamentos que lhes ocorreram antes do grupo e
atrativa de cenários fantasmáticos e que seu efeito foi fornecer consistência à daquilo que os motivou a participar.
realidade psíquica comum e partilhada do grupo. Ela sustentou as identificações No entanto, o encontro efetivo com uma pluralidade de outros, estranhos e
de todos os seus sujeitos membros. O vínculo que se estabeleceu entre eles orga- ainda não suficientemente familiares, suscita em cada um turbulências e incer-
nizou-se em torno da representação efetiva de um "acontecimento" traumático tezas que eles terão de reduzir sob efeito de vários fatores.
"marcante", vestígio originário da efração do desejo, fora do tempo, do pensa- A necessidade de se proteger das coexcitações pulsionais construindo pa-
mento e da fala, do quarcada um tem uma versão própria, mas que permanece raexcitações eficazes e moderadas é sempre uma medida prioritária. Com efeito,
inacessível a cada um• diretamente. Esse vestígio encontrou para sua colocação a esse momento inicial de construção do grupo, os dispositivos paraexcitadores
em figurabilidade nesse grupo um lugar, uma cena e a matéria psíquica fornecida internos são insuficientes ou excessivos.Eles o serão, aliás, cada vez que a estrutura
por vários pµticipantes. do grupo se desorganizar para se transformar. Existe uma conjunção constante
Procu;ei mostrar que a estrutura básica desse grupo se transformou e que entre os momentos de desorganização ou de mudança de organizadores-atratores
se introduziram variações na sucessão de organizadores. Essas variações são ne- e as pulverizações ou enrijecimento dos dispositivos paraexcitadores.
cessárias para que se produza um processo importante: a singularização da fan- O enunciado das regras constitutivas do trabalho psicanalítico pelo analista
tasia secundária de cada um dos sujeitos no grupo. Essa mudança indica que o contribui, juntamente com os elementos iniciais da transferência, para estabelecer
sujeito pôde se livrar da fantasia organizadora do grupo e teve acesso à versão uma proteção comum e partilhada. Porém, a experiência mostra que ele não basta
subjetiva de sua própria fantasia. Vimos que esse·processo de subjetivação não se e que outras medidas são necessárias. Entre elas, a identificação de urgência é par-
efetua sem suscitar resistências em Marc e no grupo. Mas ele desembocará na ticularmente ( e transitoriamente) eficaz porque traz a cada um a certeza da pre-
descoberta, por Marc, da fórmula da fantasia que lhe é própria: "Meu pai outrora sença no interior de si e de cada outro de um objeto. Não só um objeto está
e em outro lugar, mas sempre presente para mim, seduz/ameaça/repara seu filho, novamente disponível em cada um, mas sobretudo esse objeto é idêntico, comum
que encontra sua 'marca"'. Marc e os outros devem essa descoberta ao trabalho e pode ser partilhado, e estabelece vínculo entre eles.A identificação de urgência
do processo grupal. não é, portanto, somente uma medida paraexcitadora: ela permite encadear o pro-
Nesse grupo, o organizador sociocultural não se manifestou de maneira tão cesso de aparelhagem de maneira notável: pela primeira vez, o espaço interno e
legível quanto o organizador psíquico inconsciente. Entretanto, ele não estava o espaço do grupo coincidem momentaneamente, e os sujeitos se tornam mem-
ausente: a idealização de que Sophie e eu fomos objeto, correlato das angústias bros do grupo nessa primeira solicitação de seus grupos internos.
persecutórias que eles experimentavam a nosso respeito, suscitou representações Terá sido assim que se passaram as coisas no grupo com Marc? Desde os
de que seu grupo era um grupo heroico, tendo como modelo aquele fundado por primeiros momentos da primeira sessão, Sylvie e vários outros têm urgência de
D. Anzieu e do qual Sophie e eu éramos membros. Todos esses movimentos identificar Sophie, pois procuram identificar nela um objeto tranquilizador. O
foram entendidos e interpretados na transferência. desprezo só reforça a urgência, e a perturbação que ele suscita conduz à proposição
da "rodada dos primeiros nomes" e à apresentação de cada um. Esseprocedimento da
rodada de apresentação é clássico,tem por objetivo manifesto identificar quem fala
O trabalho de aparelhagem na fase inicial do grupo a quem, fornecer pontos de referência, mas seu objetivo profundo é tranquilizar-se
e proteger o ego e o grupo que começa a tomar forma contra a angústia diante do
O trabalho de aparelhagem das psiques não começa no momento em que desconhecido, tanto no exterior como no interior. Porém, nesse grupo essa medida
os sujeitos se encontram pela primeira vez. Antes que se encontrem, os partici- não basta: o transbordamento interno, a experiência de uma despersonalização
pantes de um grupo terapêutico, de um grupo de formação ou de um grupo ana- passageira, de perder seus limites, tornam imperativa a identificação de urgência de
lítico já formaram certas representações e efetuaram certos investimentos no um duplo (Marc-Boris, Sylvie--Solange--Michele).Mas essa nova medida produz
grupo, enquanto objeto que lhes concerne pessoalmente e enquanto objeto que efeitos contrários: de familiaridade tranquilizadora e de estranheza inquietante.
eles terão em comum. Esse trabalho das expectativas é também o da introdução Compreende-se que esse grupo está às voltas com uma grande dificuldade
das pré-transferências. Esse trabalho se manifestará quando Marc, Sylvie,Solange de formar um objeto comum suficientemente tranquilizante. Durante toda a
124 Um singular plural Formas e processos da realidade pslquica do grupo 125

primeira sessão e boa parte da segunda, o que prevaleceu foi o confronto com De modo mais amplo, um certo trabalho psíquico• é exigido pelo encontro
um objeto traumático incontrolável: a cabeça vazia não pode se encher de bons com o outro, para que as psiques ou partes delas se associem e se reúnam, para
objetos e de bons pensamentos. Além disso, a identificação de urgência se faznum que se experimentem reciprocamente em suas diferenças e se ponham em tensão,
modo paradoxal: quanto mais é preciso encontrar o objeto, mais há o risco de para que se regulem.
desprezo do objeto. E se o objeto não pode ser conhecido eles não podem saber Distingo hoje quatro principais exigências de trabalho psíquico impostas
se ele é bom ou mau. A fórmula fornecida por Jacques ao grupo dá sentido a essa pela aparelhagem de grupo:
incerteza e fornece um prúneiro acordo: eles estão "fora de si'; o interior está no - A primeira é a obrigação para o sujeito de investir o grupo com sua libido
exterior; eles estão sem.referência e maltratados. narcísica e objetal a fim de receber deste, em retorno, os investimentos
Outras medidas serão necessárias para que o grupo se forme sobre bases necessários para ser reconhecido pelo conjunto e pelos outros como
viáveis. Uma.delas é notável porque participa da formação da realidade psíquica sujeito membro do grupo. Essaexigência de trabalho se forma com base
inconscienteno grupo, nos vínculos entre os participantes e para os sujeitos mem- no modelo do contrato nardsico descrito por P. Castoriadis-Aulagnier
bros do grupo. Trata-se da aliança inconsciente que se estabelece entre os parti- (1975) 9•
cipantes desse período inicial com base no recalque do movimento de transfe- - A segunda exigência é a colocação em estado de latência, a renúncia ou
rência de Sylvie sobre Sophie. Ela se reforçará quando Marc confirmar o perigo da o abandono de certas formações psíquicas próprias ao sujeito. Freud
ameaça por meio de sua "confissão", cujo objeto permanece enigmático. E para indicara, em 1921,que para se tornar membro de um grupo o ego deve
recalcar a representação perigosa Marc proporá um objeto para conter a ameaça: abandonar uma parte de suas identificações e de seus ideais pessoais
o mesmo que ameaça pode reparar e fornecer "pontos de referência" (reperes). em prol de ideais comuns e em troca de benefícios esperados do grupo
Resumamos o que estabelecemos até agora: o trabalho psíquico de reunião e/ou do chefe. De maneira mais ampla, o grupo impõe exigências de
das psiques dos sujeitos começa bem antes da reunião dos participantes: uma vez crença, de representação, normas perceptivas, adesão aos ideais e aos
reunido o grupo, as primeiras medidas de aparelhagem são aquelas que assegu- sentimentos comuns. A aparelhagem não implica somente que certas
ram uma função paraexcitadora e estabelecem as primeiras alianças inconscientes. funções psíquicas sejam inibidas ou reduzidas e que outras sejam efeti-
Segundo o modelo de aparelho psíquico grupal, o grupo é um atrator de investi- vamente mobilizadas e amplificadas. Ao ampliar o alcance dessa segunda
mentos e de representações, funciona como estrutura de apelo para posições psí- exigência, deve-se admitir que ela é também uma exigência de não-
quicas necessárias a seu funcionamento e a sua manutenção. :Ênessas posições que trabalho psíquico. Ocorre que certos grupos requerem expressamente
se representam os objetos, as imagens, as instâncias e os significantes que os mem- abandonos de pensamento, anulações dos limites do ego ou de uma
bros do grupo trazem para o grupo e que são dai por diante geridos e transfor- parte da realidade psíquica que especifica e diferencia cada sujeito. :Êo
mados pela organização do grupo. O grupo se forma e se constrói, assim, segundo caso dos grupos sectários e dos grupos ideológicos. Porém, devemos
duas dinâmicas principais: uma é a que mobiliza os recursos dos sujeitos que for- admitir que a questão é mais complexa, pois também deve ser consi-
mam o grupo, a outra é a do grupo que se auto-organiza, aproveitando, por meio derada do ponto de vista dos processos de autoalienação postos a serviço
de atração e coerção, os recursos físicos disponíveis entre os participantes. O prin- dessas exigências grupais.
cípio da aparelhagem se baseia na sinergia entre essas dinâmicas.
8.A noção de exigênciade trabalho psíquicoé proposta por Freud nos Trêsensaios( 1905),
depois no texto de 1915 Puls6ese destinodas pulsões.Examinando a questão da pulsão
A formação do aparelho psíquico grupal e as exigências de trabalho
pelo ângulo da vida psíquica,Freud escreve:"'A pulsão' nos aparece como um conceito-
psíquico para que se produza a aparelhagem
limite entre o pslquico e o somático, como um representante psiquico das excitações
Entretanto, só descrevi uma parte do processo: devo completar minha aná- emanadas do interior do corpo e alcançando a alma, como a medida da exigência de
lise pela consideração das exigências de trabalho psíquico para que se produza a trabalho imposto ao psiqu.icoem consequênciade sua correlaçãocom o corporal" (G.-W.
aparelhagem. O grupo impõe a seus sujeitos e estes impõem a si mesmos um X, p. 214).
certo número de coerções psíquicas. 9. Cf. no capitulo 10 a exposiçãodo contrato nardsico.
126 Um singular plural Formase processosda realidadepsíquicado grupo 127

-A terceira exigência tem a ver com a necessidade de pôr em prática opera- Os processosde aparelhagem
ções de recalque, de denegação ou de rejeição para que o conjunto se forme
e os vínculos se mantenham. Essas operações não concernem somente aos Vários processos organizam a aparelhagem das psiques num grupo. Alguns
se especializaram no trabalho de ligação e desligamento, outros em reunião e
apoios metadefensivos que os membros de um grupo podem encontrar
separação, outros na similitude e na diferenciação, outros enfim no acordo ou na
neste, como mostrou E. Jacques (1955). Elas concernem ao grupo ou a
divisão. Todos os processos originários, primários, secundários e terciários são
qualquer outra configuração de vínculos que garanta e mantenha os dis-
mobilizados nessa construção.
positivos metadefensivos necessários à sua autoconservação e à realização
de seus objetivos. Elas são portanto ao mesmo tempo requeridas pelo
Osprocessosoriginários,primários,secundáriose terciários
grupo e pelos interesses pessoais que os sujeitos têm em adotá-las. Tais são
o estatuto e a função das alianças inconscientes defensivas.São os processos Segundo a teorização de P.Aulagnier, o pictograma de união-rejeição caracte-
produtores do inconsciente atual no grupo, formam os nós neuróticos e riza o processo originário; ele é a primeira manifestação da busca de objetos com-
psicóticos do vínculo, e por esse conjunto de razões são os principais lu- plementares e a substância comum que liga mãe e filho num lugar sornatopsíquico
gares de formação da realidade psíquica do grupo. partilhado, o espaço seio-boca. Esse processo está presente em todos os grupos,
- A quarta exigência se articula com os interditos fundamentais em suas em diferentes momentos e não somente na fase inicial. No grupo que apresentei,
relações com o trabalho de civilização (Kulturarbeit) e os processos de podemos observá-lo quando Sylvie busca em Sophie um objeto zona-comple-
simbolização. Freud insistiu (1927, 1929) na necessidade de renúncia mú- mentar: um objéto de união, de suporte e de identifiçação. Se o objeto não está lá
tua à realização direta dos fins pulsionais proibidos para que se estabeleça ou se existe erro a seu respeito (sobre sua capacidade de estar lá), ele é rejeitado.
uma "comunidade de direito" garantidora de vínculos estáveis e confiá- O pictograma é retomado e transformado no processo primário: no grupo,
veis. O resultado dessa exigência são as alianças inconscientes estrutu- a fantasia de ameaça/reparação, depois a fantasia de abandono e de exclusão são
rantes,categoria na qual contamos o contrato narcísico, o pacto entre os seus avatares. O processo primário rege o curso das representações inconscientes,
Irmãos e com o Pai e o contrato de renúncia mútua. O resultado dessa do sonho, da fantasia e do sintoma: ele se declina nas diversas modalidades do
exigência de trabalho é a formação do sentido, a atividade de simbolização deslocamento, da condensação e da difração, da dramatização e da inversão no
e de interpretação, mas também a capacidade de amar, de jogar, de pen- contrário. O processo primário rege a lógica dos grupos internos.
sar e de trabalhar. O processo secundário regula o curso do pensamento lógico discursivo
Se nos situamos do ponto de vista do grupo, essas quatro exigências concor- racional segundo o principio de não-contradição, ele próprio submetido ao prin-
rem para a criação de um espaço psíquico comum e partilhado. Consideradas do cípio de realidade. Implica urna separação de seus objetos em relação àqueles que
ponto de vista do sujeito ao qual são impostas, essas exigências são estruturantes e são regidos pelos processos originários e primários.
conflituais. A conflitualidade central situa-se entre a necessidade de ser o fim para O processo terciário pode ser descrito de duas maneiras: segundo A. Green
si mesmo e a de ser um sujeito no grupo e para o grupo. Ao realizar esse trabalho (1972), ele assegura a ligação entre o primário e o secundário, enquanto para E.
psíquico, os membros de um grupo atribuem-se ou recebem em troca benefícios e Dodds ( 1959) ele descreve como o mito obedece ao mesmo tempo à lógica social
encargos. Estabelece-se um equilfürio econômico, para menos ou para mais, sobre e cultural e à do sonho. Essa concepção é preciosa para compreender a dupla
o que eles ganham e sobre o que eles perdem para satisfazer a essas exigências. consistência psíquica e sociocultural dos organizadores rnitopoéticos.
De certa maneira, não temos a escolha de nos subtrair a essas exigências: Todos esses processos estão presentes no desenvolvimento das cadeias asso-
devemos nos submeter a elas para estabelecer um vínculo e para existir como ciativas, na formação do espaço onírico e da estrutura narrativa, na formação dos
sujeitos. Mas também temos de nos libertar, para nos desligar cada vez que essas sintomas e das funções fóricas.
exigências e as alianças que elas selam servem à nossa autoalienação e à alienação
que impomos aos outros, geralmente sem que saibamos disso. Penso que é nessa Osprocessosde identificação
perspectiva que poderíamos definir o campo prático do trabalho psicanalítico As identificações formam um segundo conjunto de processos. Sabemos,
em situação de grupo. desde Freud, que elas constituem o elo libidinal entre vínculos de grupo e que
128 Um singular plural Formas e processos da realidade pslquicado grupo 129

devem ser distinguidas da incorporação. Já especifiquei as diversas modalidades As funçõesfóricas


identificadoras mobilizadas no trabalho da aparelhagem: identificações adesi-
vas, projetivas ou introjetivas. Esses processos estão na base de fenómenos de Certos membros do grupo realizam funções intermediárias entre o espaço
ressonância fantasmática ou de interfantasmatização. No grupo, o exemplo intrapsíquico, o espaço intersubjetivo e o espaço do grupo, e contribuem também
mais significativo é o da ressonância da fantasia "Ameaça-se/repara-se uma para o processo de aparelhagem. Esses sujeitos encarnam figuras significativas,
criança": as identificações com Marc se especificam em identificações e con- as do ancestral, do rei-criança, da Morte, do Herói, do chefe, do bode expiatório.
traidentificações com. os. protagonistas da fantasia comum e partilhada, isto é, São também pessoas que asseguram as funções de porta-palavra, porta-sintoma,
do grupo interno atrator. porta-sonho nos grupos, são portadoras de ideais e de ilusões, de morte ou de vida.
Eis outro exemplo: numerosas observações mostram que o grupo (quer sua São agentes de ligação. Essasfiguras, essas funções e essas posições, assumidas pelo
finalidade seja terapêutica ou formativa) se aparelha sobre um sujeito considerado conceito de funções fóricas (KABs 1993), devem ser compreendidas simultânea
pelos membros.do grupo doente ou frágil, mas positivamente investido por eles. e correlativamente do ponto de vista da subjetividade dos sujeitos que as encar-
A maioria pode se identificar com essa pessoa. Num grupo de psicodrama, que nam, do ponto de vista dos vínculos intersubjetivos a que eles servem e do ponto
viveu angústias de fragmentação bastante intensas, Laura, que até então foi muito de vista de suas funções na estrutura do grupo.
atenta em relação aos outros, um pouco retraída e às vezes angustiada, anuncia
que não se sente bem no grupo e pensa em deixar de comparecer às sessões. Nin-
guém lhe pergunta o motivo,mas um médie0 que acaba de voltar de um congresso As modalidades de aparelhagem
de etnopsiquiatria fala de uma sessão de terapia tradicional evocada numa
conferência. É proposto um tema de jogo: um xamã tinha de curar uma garotinha, O aparelho psíquico grupal desenvolve-se na tensão entre dois polos prin-
ele reuniria seus pais com ela, mas precisaria de um tradutor, pois não fala sua cipais que estruturam as relações entre cada sujeito e o conjunto. Entre esses dois
língua. Dois participantes se propõem a fazer o papel dos pais e pedem a Laura polos oscila um campo instável, caótico, que corresponde à desorganização pe-
para fazer o papel da garotinha doente. Ela aceita e representa uma menininha riódica dos atratores.
autista, que não fala, inteiramente absorvida por seu balanço e suas ritrnias. Ao
final de certo tempo, toda a família se balança em seu ritmo, e o tradutor "traduz"
O polo isomórfico
em voz alta (interpreta) as palavras incompreensíveis do xamã e dos pais. A emo-
ção é intensa ao se ouvir a garotinha falar de sua solidão. O polo isomórfico corresponde à situação em que o organizador do grupo
Esse psicodrama devolveu ao grupo uma consistência psíquica real, reapa- é idêntico em todos os sujeitos membros do grupo. A correspondência termo a
relhando seus membros com o cuidado de suas partes sofredoras: os participantes termo acarreta a formação de um espaço psíquico comum e indiferenciado, resul-
conseguiram inventar uma situação transferencial rica, colocar os problemas da tado da fusão imaginária dos espaços psíquicos individuais e do espaço psíquico
parte doente de cada um, "curar" Laura e, por meio dela, outros participantes, grupal. Nessa medida, o polo isomórfico qualifica uma experiência de coincidência
encontrar as palavras certas e se livrar do corpo a corpo e dos movimentos completa entre o objeto (o grupo) e sua zona complementar no espaço interno.
regressivos. A formação desse polo supõe a perda dos limites individuais de seus membros.
Só existe para os sujeitos membros do grupo, então, um espaço psíquico homo-
gêneo, e não espaços psíquicos distintos.
Projeção,depósito,exportação,rejeição.As aliançasinconscientes
Esse polo imaginário, narcísico, indiferenciado da aparelhagem funciona
Um terceiro conjunto de processos é constituído pelos mecanismos de pro- desde a fase inicial, mobilizando processos originários de união-rejeição, as iden-
jeção, de depósito, de exportação e de rejeição. Esses mecanismos de defesa indi- tificações em caráter de urgência, a multiplicação do elemento idêntico. Ele rea-
viduais estão ativos nos primeiros momentos do processo de aparelhagem. Fazem parece em outros momentos da vida do grupo, a cada vez que o grupo se vê con-
nascer mecanismos de defesa conjuntos que constituem uma parte das alianças frontado com uma situação de crise ou de grave risco; ele espera então se reapa-
inconscientes metadefensivas e alienantes. relhar ligando seus membros na unidade sem falha de um "espírito de corpo''.
130 Um singular plural
Formas e processos da realidadepsíquicado grupo 131

Funciona no modo da metonímia "um por todos, todos por um''. Ou quando se A integração entre as diferenças é a consequência do acesso ao simbólico e
produz um momento de criação coletiva, uma espécie de dilatação do ego no da prevalência das relações metafóricas de pensamento. Para que esse polo se
grupo e do grupo no ego. O grupo de psicodrama que inventa a sessão de cura constitua, os interditos estruturantes devem ter sido enunciados e integrados, a
com o xamã é uma ilustração disso. relação com a lei de grupo deve ser capaz de suscitar e de conter conilitos, de
Um exemplo típico dessa modalidade de aparelhagem é o que D. Anzieu acolher sentimentos de ambivalência e de tomar possíveis as separações. Urna
descreveu corno ilusão grupal, isto é, a crença partilhada por todos os membros fala individuada pode surgir na medida em que ela é regrada pela referência à lei,
do grupo de que o grupQque eles formam e seu grupo interno idealizado coinci- e não pela onipotência de um ideal cruel e mortífero encarnado por um tirano
dem. A ilusão partilhada é necessária para a formação do grupo. Ela articula dois ou pelo próprio grupo.
processos: a coincidência idealizada é a resposta individual e grupal para a ur-
gência identificadora. Num dispositivo estruturado pelo método psicanalitico, o
grupo é a experiência dessa ilusão transitória e da necessária desilusão. O "turbilhão"e o momentocaótico
O polo isomórfico é periódico, mas pode também ser uma modalidade du- Entre essas duas polaridades principais se interpõe um campo instável que
rável ou permanente da organização do grupo. Quando prevalece esse tipo de oscila entre eles como um turbilhão, resultado da instabilidade caótica da concor-
aparelhagem fixo e congelado, a distância entre o espaço psíquico grupal e o dância das psiques. Esse momento corresponde a urna mudança de atrator ou a
espaço psíquico subjetivo é constante e estruturalmente negada ou abolida: tudo um conilito entre os organizadores.
o que ocorre num espaço é vivido como ocorrendo identicamente no outro: tudo o Introduzi essa modalidade intermediária para dar conta de dificuldades que
que ocorre dentro ocorre também fora e reciprocamente. Se um elemento do grupo eu encontrei na clínica. Por ocasião da fase inicial de um grupo, os participantes
se modifica, essa mudança ameaça cada sujeito e seu vínculo com o conjunto. não conseguiam se aparelhar entre si sobre nenhum organizador nem estabelecer
Essa coincidência obriga cada um a manter o lugar e a função que lhe foram qualquer ligação estável e satisfatória entre seu espaço interno e o do grupo: urna
conferidos no grupo ou aos quais ele se autodesignou motu proprio,mas cada um excitação intensa vinha completar com confusão esse fracasso. Os movimentos
deve também velar para que essa pessoa não mude de lugar ou de função. O caóticos que predominavam nesse momento da vida do grupo eram o resultado
pensamento metonímico predomina: confunde a parte com o todo, faz coincidir do conflito entre as pulsões de autoconservação e as pulsões voltadas para o
pela imaginação todos os espaços, torna-os hornogêneos e indiferenciados. grupo. Em outro grupo, o caos surgiu corno efeito de um tratamento paradoxal
Esse regime de coinerência 'ºentre os grupos internos e o grupo intersubjetivo da aparelhagem: os participantes concordavam no modo de não-acordo, para es-
caracteriza o regime psicótico do vínculo intersubjetivo em todas as outras con- tabelecer um vínculo não-vínculo incessantemente atacado e deslocado, à ma-
figurações de vínculos: na família, no casal e na instituição. neira de um turbilhão.
Eu já fora confrontado com esse momento desorganizador no grupo com
O polo homeomórfico Marc. Durante uma das últimas sessões, os participantes não paravam de trocar
os lugares dispostos na estrutura da fantasia inicial ("um pai/mãe ameaça/repara
O polo homeomórfico caracteriza-se, pelo contrário, pela diferenciação entre uma criança"), repentinamente remobilizada. Eles não se deslocavam para ex-
os espaços individuais e o do grupo, entre o grupo interno e o grupo extem~, ~~ plorar os lugares, o que já fora o caso antes. Clinicamente, esse turbilhão corres-
também entre os próprios sujeitos membros do grupo. No entanto, certa simili- pondia a uma organização maníaca da aparelhagem e implicava um funciona-
tude é necessária para a correspondência mínima. A aparelhagem se estabelece mento correspondente dos grupos internos entre os membros do grupo. Esse
então com base numa relação de tensão entre a similitude e a diferença dos es- momento caótico se instalou quando se exibia no grupo um processo de subje-
paços psíquicos. A distância entre os espaços permite pensar a heterogeneidade tivação caracterizado pelo encontro do sujeito com seu lugar de sujeito na fantasia
e a similitude de seus conteúdos e as lógicas que os governam. que lhe é própria. Nesse encontro apropriativo, que poderíamos descrever, com
Bion, como o momento catastrófico do encontro em O, a fantasia pode se fixar ou
10. Coinerência é o termo utilizado por R. LAING (1969) para descrever a perfeita coinci- entrar em turbilhão. Esse encontro não é uma descoberta imediata, ela não se faz
dência entre a "família" interna e o grupo familiar entre os pacientes psicóticos. de uma vez só. Através da experiência do turbilhão e seu efeito errático, através
132 Um singular plural Formas e processos da realidade psiqux:a do grupo 133

dessa peregrinação, o sujeito descobre que ele não pode ocupar todos os lugares, A posição mitopoética sustenta uma mentalidade baseada na atividade de
sucessiva ou simultaneamente, mas somente o seu. representação da origem e no encontro nessa atividade, com a incerteza que a acom-
Todas essas modalidades de turbilhões e do caos manifestam-se nos mo- panha. É também uma posição cujo advento tem por condição uma crise, uma
mentos de transformação correlativa do espaço psíquico grupal e do espaço in- deterioração ou uma perda de sentido. A posição mitopoética fabrica novo senti-
trapsíquico. O turbilhão pode aparecer quando a aparelhagem não se efetua, seja do, que inclui a representação da catástrofe. É uma espécie de fabricação do sentido
por falta de organizador, seja porque existe muita distância entre o espaço grupal aberta a seus elementos aleatórios, a sua complexidade e a seu próprio processo de
e o espaço interno, seja ainda porque esses espaços estão clivados, ou quando a produção, isto é, a sua genealogia. É devido a isso tolerante a versões do mito.
aparelhagem é demasiado invasiva e é necessário se livrar dela. O turbilhão e o A posição utópica também tem por base uma experiência de crise e uma
caos ocorrem também por ocasião de uma mudança de atrator. Em todo caso, as representação de catástrofe, mas as modalidades de elaboração são diferentes
angústias paranoicas ou depressivas predominam e suscitam mecanismos de daquelas da posição ideológica. Ela oscila entre "jogo e loucura raciocinante"
defesa maníaé~, que se alternam com defesas por meio de apatia. entre o espaço potencial e os desvãos [écrous]da razão delirante. Ela imagina um
Ambos os polos que descrevi encontram-se em relações antagônicas, e a não-lugar da catástrofe, que é ao mesmo tempo o lugar de um possível. Ela pode
tensão que se estabelece entre eles pode ser considerada um bom indício do tra- igualmente se transformar em posição ideológica quando o possível se torna
balho psíquico que se efetuou no grupo. A oscilação entre esses dois polos é neces- imperativo - torna-se então sistemática e procura se encarnar na história-,
sária: o trabalho psíquico de transformação se produz através dos movimentos ou em posição mitopoética, quando mantém um espaço onírico, quando per-
de ligação e de dissociação, de unificação e de conflitualização do aparelho psí- manece pontual e sustenta um projeto futuro; dito de outro modo, quando ela
quico do grupo. reconhece ao pensador um poder de pensamento.
Essas três posições da mentalidade grupal são criações coletivas. Estão no
pano de fundo de nossa vida psíquica, mas também em seu horizonte.
Três posições da mentalidade grupal: posição ideológica, posição
mitopoética e posição utópica
O interesse teórico e clínico do modelo de aparelho psíquico grupal
Os grupos organizam-se com base em três posições mentais principais, que
correspondem a visões do mundo (die Weltanschauungen): a posição ideológica, Chegou o momento de discutir o interesse do modelo de aparelho psíquico
a posição utópica e a posição mitopoética. Essas posições não correspondem a grupal. Esse modelo foi concebido para pensar, com os enunciados da psicanálise,
uma ordem evolutiva, mas se formam e se estabilizam em certos momentos da estruturas, lugares, economias e dinâmicas da psique em conjunção com a reali-
organização mental do grupo. Todas essas posições são portadoras de represen- dade psíquica do sujeito e com a do grupo. Sua função é a de um modelo descri-
tação sobre a causalidade e formam um sistema mais ou menos aberto de expli- tivo, heurístico, eventualmente explicativo. Possui, portanto, certa utilidade na
cação do mundo, da origem, do fim e das finalidades do grupo. teoria da psicanálise quando esta amplia seu campo, e é nisto que pode interessar
A posição ideológica é dominada pelo todo-poderio da Ideia, da supremacia do aos psicanalistas.
ideal e da tirania do ídolo (do fetiche). Portadora de certezas absolutas, é regulada Um primeiro interesse teórico do modelo do aparelho psíquico grupal con-
por um pacto narcísico rigoroso, que não tolera qualquer transformação. É impe- siste em permitir pensar a consistência da realidade psíquica do grupo de outro
rativa, desconfiada, não admite qualquer diferença, qualquer alteridade, e pronun- modo que como pura especulação. Essa realidade é específica: é constituída por
cia proibições de pensamento. Baseia-se no polo isomórfico da aparelhagem. É formações e processos inacessíveis fora do dispositivo de grupo.
subtensionada por angústias de aniquilação iminente e por fantasias grandiosas de Um segundo interesse teórico do modelo é nos tornar inteligível que o apa-
tipo paranoico. É também uma medida defensiva contra os momentos caóticos11• relho psíquico grupal é comum ao sujeito e ao grupo. Esse modelo nos informa
sobre as relações de cossustentação e de estruturação recíproca do aparelho psíqui-
11. A respeito da posição ideológica, remeto o leitor a minhas pesquisas sobre o tema: co individual e do aparelho psíquico grupal. As reuniões, os conflitos e as trans-
KAi!s 1980; 2003b. formações resultantes dessa aparelhagem afetam de maneira correlativa o grupo
134 Um singular plural

e o aparelho psíquico dos membros do grupo. Afetam especialmente - e esse


ponto concerne ao objeto específico da psicanálise - o inconsciente do sujeito
no fato de que ele se vê, desse modo, constituído pelos processos do grupo e pelos
vínculos de grupo.
O interesse clínico do modelo reside na atenção que ele concede aos processos
e às formações psíquicas mobilizados e trabalhados pelo sujeito singular no
grupo, nos vínculos intersubjetivos e no grupo enquanto tal. Ao limitar minhas
observações ao ponto de\ri.sta do sujeito, eu diria que o principal interesse clínico
desse modelo é que ele concebe o grupo como um aparelho de transformação da
realidade psíquica de seus membros. O que se transforma é a configuração par-
ticular dos obj~tos-internos, própria a cada sujeito, que o grupo mobiliza e que se
alia com outros grupos internos. O modelo atrai a atenção do clínico para as re-
lações de cada sujeito com a construção e o funcionamento da realidade psíquica
do grupo. A formação e a função das alianças inconscientes nos informam sobre
a combinação de interesses de cada um e do interesse do grupo. O modelo tam-
bém chama a atenção para a especificidade dos processas associativos que ai se Os processos
desenvolvem. Todos esses processos que dizem respeito ao sujeito devem ser pen-
associativos
sados em termos da dinâmica e da economia das transferências que se desenrolam
no espaço grupal.
nos grupos
Com base nessas considerações, pode-se formular assim o objetivo principal
do trabalho psicanalítico em situação de grupo: tornar possível a experiência do
inconsciente, nas formas e nos processos que se manifestam no grupo para os
sujeitos que são parte constituinte do grupo.
0s~ocessosassocialivosnosgrupos 137

Nossoproblemaé o seguinte:como entender essesdiscursos,seus princípiosor-


ganizadores,seus efeitos,e a que conhecimento do inconscienteeles abrem acesso?

A pluralidadede discursos,a interdiscursividadee os pontos de ligação


dos processos associativos
O discurso associativoem grupo produz duas cadeiasassociativas:a de cada
sujeito no grupo e a do grupo. Cada uma traz consigo os efeitos do inconsciente.

A dupladeterminaçãodoprocessoassociativoe seuspontos de ligação


Quando os membros de um grupo falam, e afortiorisob o efeito da regra de
Para a psicanálise aplicada à cura individual, a associação livre é associai,no
livreassociação,seus enunciadossão sempre "situados"no ponto de ligaçãode uma
sentido de que os efeitos sociais da enunciação e da escuta são suspensos a fim de dupla cadeia associativa.Uma é aquela que se forma a partir da sucessão de enun-
só deixar lugar aos enunciados determinados pelos efeitos do inconsciente. O "a" ciados singulares de cada sujeito,é determinada pelas representações-fim e pelas
de associa! não é privativo, é suspensivo: significa a perspectiva metodológica da vias de ligação que lhe são próprias. Essa cadeia é átravessadapelas associações
regra fundamental, isto é, o conhecimento do inconsciente,na medida em que este que a precedem, mas quando a entendemos em seu desenvolvimento diacrónico
se manifesta através de seus efeitos na repetição, no discurso de livre associação ela constitui um conjunto discursivooriginal que, nessenível,traz a inscrição dos
e na transferência. Se o dispositivo psicanalítico se organiza de tal modo que os efeitos do inconsciente do sujeito.
efeitossociais do discurso são suspensos,suas determinações não são abolidas,elas Os enunciados que se sucedem no grupo, embora emanem de sujeitos dis-
persistem e às vezes insistem de tal maneira que devem ser reconhecidas pelo que tintos, formam uma segunda cadeia associativa, também ela portadora dos efei-
são: distintas das determinações do inconsciente e às vezes influentes sobre estas. tos do inconsciente. É comandada pelos organizadores inconscientes da realidade
Quando enunciamos a regra fundamental em situação de grupo, as condições, psíquica do grupo e interfere com as cadeias associativasde cada sujeito.
os processos e os conteúdos da cadeiaassociativase modificam. No entanto, a pers- Todos os enunciados e todos os significantes estão disponíveis para todos;
pectiva metodológica é sempre a mesma: tomar possível,por meio da regra funda- podem ser utilizáveispor outro sujeito, que encontra então nessas associações a
mental, da análise das transferênciase da interpretação, o conhecimento dos efeitos facilitação (ou a abertura: die Bahnung) da passagem dessas representações in-
do inconsciente. Porém, encontramo-nos em um dispositivo de grupo, não no da conscientes para o pré-consciente. O processo associativo no grupo funciona
cura individual, e devemos esperar algumas especificidadesdo regime associativo. então como um dispositivode transformação e de metabolização que torna pos-
sívelque sejam simbolizadas,graças à atividade do pré-consciente,representações
barradas pelo recalque.
ESPECIFICIDADE DO PROCESSO ASSOCIATIVO NOS CONJUNTOS PLURISSUBJETIVOS
Podemos ilustrar esse processo associativo no grupo com Marc e os outros:
um membro do grupo faz surgir no processo associativo algo que para ele é
Na situação psicanalítica de grupo, lidamos com uma pluralidade de dis- enigmático. Ele se põe em posição de esperar as associaçõesdos outros membros
cursos imbricados uns nos outros, com uma pluralidade de transferências, com do grupo a seu enunciado, e entende na elaboração destes uma via de acesso para
a intricação de espaços psíquicos de estruturas diferentes. Os enunciados de fala seu enigma: suas resistênciassão então reforçadas. Os membros do grupo asso-
coexistemcom significantes corporais: mímicas, posturas, gestos.O processo asso- ciaram desenvolvendo seus próprios enunciados, ao mesmo tempo em que per-
ciativo está sob o efeito de várias ordens de determinantes - intrapsíquicos, in- maneceram em relação com o enigma desse homem. À escuta do que eles dizem,
tersubjetivos e grupais -e forma-se segundo um duplo eixo temporal, sincrónico e quando as resistênciascederam, ele encontra em suas falaso significante que lhe
e diacrónico. Caracteriza-se por sua interdiscursividade. falta. Vê-se nesse exemplo como a interdiscursividade organiza as enunciações e
138 Um singular plural Os processosassociativos
nosgrupos 139

contextualiza os enunciados segundo o duplo eixo. Uma associação só existe me- nas transferências: questão sobre a identidade dos psicanalistas (Sylvie), Marc e a
diante as outras associações, na dupla rede de associações próprias a cada um e interpretação "selvagem';sua expectativa de uma fala reparadora. Solange, na trans-
daquelas que vêm do outro ou de mais que um outro. Deve-se prestar uma atenção ferência, depois que ela foi tomada por Sophie, fala de seu desprezo pelo objetivo
particular aos pontos de ligação produzidos por essa interdiscursividade. Alguns do grupo: aprender a "bem falar" ou ter acesso à "palavra para dizer" o que está em
desses pontos de ligação são os sonhos, os sintomas, as alianças inconscientes. sofrimento. Desde os primeiros momentos do grupo, colocou-se uma tripla ques-
Devemos então estar atentos ao fato de que os processos primários que tão: Quem é o outro? O que significa falar? Que violência contém a interpretação?.
mantêm a associação livre"estão em constante interferência, de tensão ou de con- A confissão por Marc de um acontecimento traumático "marcante" condensa
cordãncia, com os procc!ssos primários que sustentam os vínculos intersubjetivos. essas questões. A causa alegada do trauma é relativa a uma interpretação ( uma fala
Há uma tensão ou uma concordância entre a fala que surge em grupo do incons- selvagem): porém, faltam palavras para a fala "marcante': são transmitidos somente
ciente do suj~ito com seu código pessoal e sua subjetividade, e o endereçamento o afeto e sua violência. A fala permanece desconhecida, enigmática, e por esse mo-
dessa fala a séus destinatários: o destinatário interno ( o outro dentro) e os desti- tivo ameaçadora. No entanto, na ambivalência diante de objetos transferenciais, a
natários externos (o analista e os outros membros do grupo). Há também uma fala dos psicanalistas é dotada do poder de destruir e de reparar.
tensão ou uma concordãncia entre a fala do sujeito e aquelas que a precederam. Essa fala ameaçadora só pode ser uma fala dos últimos quinze minutos: fala
O funcionamento do processo associativo é diferente e mais complexo do decisiva, última, associada à morte. Aqui, o processo associativo não diz respeito
que o que funciona na cura individual. unicamente a conteúdos de fala, ele utiliza também os procedimentos da fala:
antes de ser dita diante·do grupo reunido, e especialmente para aqueles que
detêm o temível poder de destruir e reparar por meio da palavra, a fala deve ser
RETORNO À CLINICA. OS PROCESSOS ASSOCIATIVOS E AS CADEIAS ASSOCIATIVAS dita primeiramente fora da sessão, ensaiada em sua ausência junto a um pequeno
NO GRUPO COM MARC E OS OUTROS grupo de semelhantes. Deve ser exorcizada da ameaça de morte que ela veicula,
depositada num porta-palavra para ser redita, depois, a um destinatário enfim
Análise de três cadeias associativas constituído para ouvir, o grupo formando coro, sendo continente, apoio ou teste-
munha. Importa, nesse momento, que os psicanalistas, destinatários do discurso
A análise da primeira sequência do grupo com Marc e os outros nos levou a de Marc, entendam sua confissão nos movimentos das transferências sobre eles,
distinguir três cadeias associativasproduzidas pelos processos associativos do grupo. sobre o grupo e sobre Marc.
Essastrês cadeias organizaram-se pelas determinações inconscientes e pré-conscien- O caráter elíptico da confissão de Marc terá duplo efeito: inicialmente de
tes da realidade psíquica no grupo e entre os sujeitos membros do grupo. O lugar geo- sideração e de paralisia do pensamento - inclusive entre os psicanalistas -,
métrico dessas três cadeias associativas é formado pelas partes de realidade psíquica depois de colocar em reserva o desenvolvimento das associações. A estrutura da
que se reuniram,ligaram e combinaram entreMarc,Solange eAnne-Maàe, principais fantasia inconsciente que ele mobiliza irá se tomar mais complexa, numa espécie
artífices da realidade psíquica comum e partilhada no grupo nesse momento. Elas de polifonia para a qual contribuirão vários membros do grupo.
são mobilizadas pelos movimentos e objetos de transferência no grupo. Exprimem Com Marc, depois comAnne-Maàe, uma ação pela fala é desencadeada. Iden-
a relação dos membros do grupo com a fala, com o traumático, com a escolha do tificado com o agressor, Marc efetua, pela fala, a transmissão (e a transferência)
nome e têm um ponto comum, a palavra: o que a palavra pode e quer dizer de urna direta do afeto violento sobre o grupo como um todo. Ele age na repetição trau-
experiência traumática, o caráter traumático de certas palavras, a nomeação como mática. Quanto a Anne-Marie, também ela realiza uma ação pela fala, mas com
fala decisiva para a identidade de cada sujeito. Exam.inemo-as uma por uma. um retardo, pedindo a Solange para portar sua fala, transportá-la para ela, em seu
lugar. O efeito dessa fala-ação se manifesta na descoberta que surpreende Solange:
que a fala de um outro que ela leva a outros, essa fala ela mesma a pronuncia,
A primeira cadeiaassociativa:em tomo dafala. O que significafalar
concerne ao que há de mais vivo de sua história.
Essa série é inaugurada pelo pedido de Jacques para a "rodada dos nomes" e Vêsse claramente aqui que a fala dos outros abre para Solange o caminho
por seu desejo de saber "a quem se fala~ Esse pedido e esse desejo estão envolvidos de retorno ao recalcado. O porta-palavra fala no lugar de outro, para um outro,
140 Um singular plural Os processosassociativos
nosgrupos 141

mas fala também para o Outro que está nele: encontra na fala do outro uma se identifica com eles por essetraço que ela tem em comum com eles, a perda de
representação que não lhe estava disponível. referências; mas ela identifica neles outro traço que lhe importa: eles "se falam':
Ao lado dessas representações da fala associada à vida e à morte, outro fio não somente no sentido de que se fala ao outro, mas sobretudo no sentido de que
associativo se desenvolve em contraponto, no prazer do jogo com as palavras e um fala o outro. Um é porta-palavra do outro; cada um encontra no outro a pa-
suas polissemias (reparo, re-pai, re-par, par ... ) 1• lavra que lhe falta no momento em que está sem representação de palavra, entre-
Ao longo dessasprimeiras sessões,a fala teria sido um motivo central do pro- gue à ameaça da coisa e à angústia de ser invadido ou esvaziado por ela.
cessoassociativo. Ela o terá sido para os participantes: falasde outrora, entendidas Sem dúvida, no momento em que Solange se mostra sensível a essa função
e mal entendidas, religadas e emergentes em palavras aqui supostas, entendidas, de porta-palavra, ainda não sabemos nada que nos permita compreender o valor
mal entendidas e não entendidas, apagadas ou recalcadas; palavras de ameaça ou traumático assumido pela ameaça materna 3 em sua fantasia - ela mesma não
de salvação, de expectativas reparadoras ou de temores devastadores. Terá sido o sabe. Mas temos alguns motivos para supor que, desde essemomento, sua iden-
para Sophie ~ para mim em nossas questões recorrentes sobre a oportunidade de tificação com Sylvie e com a relação Marc-Boris, o que ela dá a conhecer deter-
propor ou não propor uma interpretação ou de esperá-la do outro. Terá sido para minará a escolha que Anne-Marie fará de Solange como sua porta-palavra e a
mim, vindo ao grupo com questões sobre o processo associativo nos grupos e disponibilidade desta a se deixar escolher como tal. Vê-se aqui como funciona o
encontrando certa ressonância dessas questões com aquelas que se põem Jacques, aparelho de interpretar-significar (der Apparat zu deuten:FREUD 1913): o que
Marc e Solange. Solange significa, Anne-Marie interpreta, confiando-lhe essa função que serve a
· seus interesses conjuntos.
A segunda cadeiaassociativa:sobreo acontecimentotraumático Recorde-se que esses movimentos de identificação de Solange acarretam
nela uma passagem depressiva imediatamente seguida da crítica que ela dirige
Essasérie também começacom o pedido de Jaquespara "a rodada dos nomes''. aos "animadores': à sua acolhida defeituosa, fria e decepcionante. É como se o
Ela inaugura uma questão recorrente sobre a incerteza quanto ao sujeito da fala, desarranjo provocado pelo"desprezo" inicial, pelo despertar de sua ambivalência
a seu destinatário e à identidade de cada um. Marc, Jacques e Boris desenvolvem freudiana, por sua decepção diante de nossa acolhida invocasse a representação
e amplificam essa questão, exprimindo sua desorientação, sua perda de referên- de urna causa e a designaçãode culpados. Essacrítica deve ser entendida também
cias, sua sensação de terem a cabeça vazia, de estarem "fora de si": eles se acham como um apelo de ajuda direcionado a "verdadeiros animadores".Porém, Solange
na estranheza e na cólera. se detém nesse movimento, e é ela que, tendo se tornado momentaneamente
Esses temas cruzarão as associações de Solange quando ela descobrir que a porta-palavra de vários membros do grupo, se impede de avançar nesse caminho
fala que ela queria dominar no "bem falar" é uma fala que pode servir para ex- demasiado perigoso para ela, devido à intensidade de suas transferências e à
pressar um "pacote de palavras" em sofrimento 2, "males" ainda inomináveis que angústia de que suas críticas acarretem uma retaliação de nossa parte, abando-
permanecem "ao lado de si''.Ela saberá mais tarde que palavras lhe faltavam. nando-a. É notável que são os membros do grupo aparentemente menos envol-
É provável que o "desprezo"de que Solange foi objeto logo no início da pri- vidos na transferência que nesse momento assumem a crítica. Por sua vez, eles
meira sessão a tenha feito entrar em contato com seu desejo e seu conflito incons- se tornam porta-palavras de Solange, de Sylviee de Marc, que observam silen-
cientes, que ele tenha atingido e despertado nela uma zona de sofrimento que ela ciosamente o que se passa.
ignora, mas da qual ela tem que se proteger. Podemos ouvir assim o tom "desa- Chegamos aqui a um momento típico do funcionamento associativo grupal;
fetado" que ela adota, e que mal oculta um movimento depressivo,quando ela diz eu o descrevi como o momento do caos. O curso dos acontecimentos associativos
que gostaria de ser Sophie. Porém, sua voz logo se torna mais viva quando ela ainda não encontrou um organizador suficientementeestruturado. Desenvolve-se
exprime seu interesse pelos intercâmbios entre Marc e Boris. Com certeza Solange numa série de variações em torno de vários núcleos inconscientes constituídos de
afetos, de angústias e de representações instáveis:o encontro com o desconhecido
1. Em francês, repere,re-pere,repaire,paire.... (N. do T.)
2. En souffrancesignifica também "à espera'; como alguémque está na expectativa de receber 3. Trata-se da ameaça do câncer, sanção brandida pela mãe contra sua filha adolescente,
wna carta ou uma notícia; agradeço a observação ao autor e ao revisor. (N. do T.) para impedi-la de fumar.
142 Um singular plural Os processosassociativos
nosgrupos 143

não identificável, a perda do limite, a cólera, a decepção. Movimentos transferen- pela confissão de Marc deve sua força organizadora do grupo ao fato de que ela
ciais fortes mobilizam esses núcleos inconscientes e identificações se instalam. polariza todas as associações, todas as transferências, todas as identificações e
Quando uma via associativa estabelece uma conexão mais precisa entre os angústias ocorridas antesdessa confissão.
núcleos inconscientes e a transferência sobre os analistas, e aqui a transferência O modelo da confissão inicialmente feita antes da sessão, durante a pausa,
negativa, o retorno do recalcado que se mostra exige outras medidas defensivas será ulteriormente utilizado, assim como a referência repetida aos últimos quinze
contra a emergência dos conteúdos inconscientes. Na transferência, os analistas minutos antes do final. Como se fosse preciso significar por meio desse momento
são os que causam o mal-estar do grupo. A transferência é resistente ao conhe- fora da sessão o tempo prévio à realização traumática. Ou ainda como se fosse
cimento das questões inconscientes do mal-estar, da angústia, da dificuldade de preciso um primeiro espaço para dizer, um espaço que representaria a tópica do
pensar, para cada um e para o grupo. Porém, quanto mais se desenvolve a trans- pré-consciente, lugar e funções prévios à assunção de sua história pelo Eu. Ou
ferência, mais ela se aproxima dos núcleos inconscientes cujo acesso ela guarda, ainda como se fosse preciso metabolizar na instância irmãos e irmãs, e confortado
e quanto mais ela revela seus componentes, mais os organiza. por ela, o que não se pode dizer diretamente diante dos pais, e que lhes concerne.
Podemos verificá-lo nesta sequência: a crítica à acolhida se transforma re- Mas de que se trata senão de urna falta? O que atesta a denominação confissão:
pentinamente numa nova representação, mais precisa, organizada numa cena que no que ocorreu, o sujeito é parte ativa, e o que ocorreu realiza em demasiaseu
é ao mesmo tempo a representação de uma causa, de uma origem e de uma loca- desejo de que isto seja assim; aí está o impacto traumático, no excesso.
lização subjetivas, correlativas: os psicanalistas imporiam aos participantes estar O cenário utilizado por Marc para transmitir a carga traumática desorganiza
presentes no quarto prolífico e caótico no qual as crianças pululam, num caos de de início a relativa continuidade do processo associativo. Mas na verdade orga-
campo de batalha. O caráter repentino e rápido dos enunciados associativos é niza-a de maneira durável. Serve de modelo a Anne-Marie para introduzir na
um bom indício do surgimento de representações até então inconscientes. cadeia associativa e na rede transferencial seu próprio acontecimento traumático
Essa representação transferencial do desejo dos pais, de suas relações se- efetivo: este é duplamente afastado, por sua revelação fora da sessão junto a
xuais ininterruptas, da origem das crianças, da razão de ser dos irmãos e irmãs Solange e pela eleição de uma porta-palavra encarregada de falar por ela, em seu
leva necessariamente a reativar a violência do encontro originário com o objeto nome, ao grupo e aos analistas. Anne-Marie permite ao mesmo tempo que
sexual, a mobilizar uma fantasia que possa representá-lo até na causa de sua Solange represente Sophie.
presença no grupo. Assinalei que o lapso sala/sujo/quarto/campo de batalha•. Ainda aqui urna carga de culpa acompanha a evocação do acontecimento
condensa de maneira notável, como num sintoma, os diferentes componentes doloroso. Notemos, no entanto, que Anne-Marie não se livra de uma "confissão':
dos conteúdos recalcados que retornam. Quanto mais eles se aproximam do pré- mas de um "segredo": essa mãe que abandona sua filha - mesmo que com sua
consciente, mais perturbam os espíritos quando se trata de saber sob o efeito de concordância - só pode expressar sua "falta" depositando-a de início sobre
que desejos, e de que sujeitos desejantes, eles estão aqui reunidos. Um primeiro outra pessoa. Essa outra é escolhida devido a certa semelhança que tem com ela
organizador grupal do curso das associações aparece assim de modo mais ma- nesse caso, a ponto de que a delegada da mãe se descobre e se reconhece na filha
nifesto, e ele esclarece retroativamente as associações anteriores que convergem ameaçada por câncer pela mãe cuja história ela relata. A fala que ela transporta
para ele. fala de um acontecimento traumático atual (para outra, aqui) que lhe ocorreu
No início da terceira sessão, a "confissão" de Marc vem se inscrever nessas em outro lugar, outrora. Assim se estabelece entre o depositante e a depositária
séries associativas e fornecer uma nova dimensão para a fantasia da cena originária esse vínculo de identificação analisado por J.Bleger( 1967) e que, segundo minhas
que acaba de se instalar como organizadora das associações, das transferências e próprias perspectivas, é uma base das alianças inconscientes.
das posições subjetivas no grupo. Marc enfatiza com insistência que esse aconte- A série sobre o acontecimento traumático ramifica-se em outras séries adja-
cimento enigmático "marcante" é seu próprio nome, que ele é sua questão; essa centes; uma série sobre a culpa e a reparação, uma série sobre os tempos (agora,
marca o representa para o grupo e, como o indicará a sequência, para seu re-pai outrora, a repetição, os últimos quinze minutos) e sobre os lugares (aqui, alhures,
(re-pere]na transferência, isto é, para mim. Mas a fantasia inconsciente induzida em um mesmo/outro grupo; desorientação, fora de si, quarto, campo de batalha,
hospital ... ). Minha intervenção do final da terceira sessão pontua essa série e a
4. Em francês, sale/sallelchambre/champ de bataille. (N. do T.) articula com a do traumatismo.
144 Um singular plural Os processosassociativosnos grupos 145

Terceirasérie associativa:sobreo (primeiro) nome ligações entre as representações. Tentaremos compreender como essas diferentes
Essa terceira série origina-se mais urna vez no pedido de Jacques ("urna séries são organizadas por uma ou por várias representações-fim inconscientes,
rodada de nomes"). Jacques é o primeiro a falar depois de Sophie e eu, é o primei- quais são suas manifestações, sua coerência e seus efeitos.
ro a expressar sua necessidade de pontos de referência. Depois de um momento Suponho que um organizador prevalecente define as posições correlativas a
de suspense, a série é retomada indiretamente por Sylvie, que, questionando sua partir das quais se ordenam a fala de cada um e o processo associativo do nível do
hesitação sobre a identidade da psicanalista, pede a Solange e a Michele para grupo. Solange, Marc, Sylviee Jacques se mantêm em posições decisivas e realizam
dizerem seu primeiro nome, o que elas fazem em seguida. funções particulares nesse processo: eles mesmos se situaram e foram situados
No entanto, no início da segunda sessão, Solange sentirá a necessidade de pelos outros no ponto de ligação dos processos individuais, intersubjetivos e
dizer espontaneamente seu primeiro nome, como que para enfatizar o golpe de grupais. Esses sujeitos portadores de funções fóricas5 e os organizadores psíquicos
Sylvie, mas ela .rlãoçonseguirá arrastar os outros; a "rodada dos primeiros nomes" inconscientes do grupo agem como operadores do processo associativo grupal.
será completada no dia seguinte. Sylvie,decididamente atenta aos primeiros nomes, Se examinamos como se organiza o processo associativo ao longo dessa se-
observará a Solange que a sílaba inicial de seu primeiro nome é comum com a quência, podemos discernir uma genealogia de três organizadores fantasmáticos
de Sophie. Por meio desse traço, Solange pode representa Sophie, ser como ela; originários cujas questões específicas ainda estão enfurnadas no inconsciente dos
mas Sylvie, ela mesma preocupada pela letra inicial de seu próprio nome, não se sujeitos. O primeiro é a fantasia da cena originária; o segundo, a fantasia de uma
incluirá nesse jogo de identificações; mais tarde, dirá que sua mãe desejara em cena traumática; ó terceiro, a fantasia de sedução.
seu lugar um garoto e que seu primeiro nome (aqui modificado) é a feminização Antes que apareçam essesorganizadores, uma fase bastante caótica traz elemen-
daquele que era destinado ao filho esperado. tos precursores do organizador principal: são sensações,emoções, afetos, expressões
Quando chegar o momento de dizer o que levou cada um a esse grupo, Marc de angústia bastante diversos,mas cujos traços comuns são denotados pelo encontro
dirá que ele está "inscrito em meu nome"; ainda aqui devemos formular urna com o desconhecido, pela perda de limites e de pontos de referência identificadores.
dupla hipótese:
- Marc assume a "inscrição" de seu nome sobre o meu; é provável que a O "quartode batalha"prolíficoe a emergênciada fantasia da cena originária
observação de Sylvie,encontrando, por razões que lhe são próprias, o pri-
Desde a segunda sessão, o processo associativo organiza-se com base numa
meiro nome de Solange no de Sophie, tenha aberto caminho para essa for-
fantasia de cena primitiva, cuja fórmula - "Pais, num quarto de batalha, fazem
mulação, cuja representação inconsciente já estava presente no momento
amor/guerra. Eles fazem filhos demais" - comporta dois polos pulsionais com-
em que ele se inscreveu nesse grupo. Nesse momento, na transferência e
plementares e antagônicos: amor/guerra. Sobre essa fantasia articulam-se as
no contexto das associações, a formulação de Marc significa, no mais pró-
representações da violência e dos afetos a ela associados durante toda a fase pre-
ximo de sua representação inconsciente, sua relação com seu re-pai iden-
liminar: violência da fundação do grupo no caos, cólera da perda de limites, vio-
tificador (cf. sua observação sobre o meu primeiro nome);
lência do excesso procriativo (depois da violência da ausência), violência do todo-
- A insistência de Marc em representar a si mesmo no acontecimento mar-
poderio de vida e morte dos pais sobre as crianças, violência da inveja em relação
cante assinala provavelmente a insistência de seu primeiro nome como
aos outros membros do grupo.
significante de sua inscrição como sujeito, significante do qual podemos
pensar que se passa numa cena que concerne à sua origem e à sua filiação:
sua transferência (inscrever-se sobre meu nome, sua interrogação sobre A fantasia de abandono/exclusão
meu primeiro nome) é urna atualização dessa cena. A primeira versão da fantasia de cena primitiva organiza-se sobre as angústias
e representações de urna cena sádica, na qual predomina a violência persecutória.
Genealogia e estruturação dos organizadores do processo associativo
Essas três séries associativas são o resultado do trabalho associativo dos mem- 5. O próximo capítulo centra-se nas funções intermediárias e funções fóricas de porta-
bros do grupo. Esse trabalho se apoia sobre os vínculos intersubjetivos e sobre as palavra, porta-sintoma e porta-sonho.
146 Um singular plural Os processosassociativosnosgrupos 147

Uma segunda versão dessa cena deixa aparecer a violência da rejeição e do aban- de ligaçãodas três cadeiasassociativas,sobre a palavra,o trauma e o nome. O relato
dono. Ela se enuncia assim: "Pais/mães abandonam/excluem crianças''. de Marc diz que uma palavrao feriu, da qual seu nome é a inscrição.
Versões dessa cena fantasmática de múltiplas entradas, com variações per-
mutativas,serão declinadasna sequência das associações.Arelaçãopai-filho anun-
A fantasia de uma cena traumática ciada por Jacques e por Marc, à qual se prende Boris, é relançada por Solange a
respeito da perda de "re-pais':mas é declinadanuma relaçãohomóloga (mãe-filha),
É ainda pela violência que a fantasia de ameaça/reparação se insere na fan- depois invertida (filha-mãe).
tasia da cena originária. E(a se introduz a partir da "confissão" de Marc e do im- Um traço comum a Marc e Solangefoi inconscientemente identificado por
pacto de seu relato sobre o grupo. Uma primeira formulação dessa fantasia,a mais Anne-Marie, por meio de identificação projetiva. Ela também tem em comum
próxima do en~nciado de Marc, poderia ser: "Um pai/mãe ameaça/repara uma com eles ter perdido seus pontos de referência, ter sido ameaçada/ameaçadora e
criança, que enconfra aí sua marca". se tranquilizar sobre sua capacidade de ser uma mãe reparadora: em Solange/
Essa fantasia inconsciente reorganiza o processo associativo,os movimentos Sophie, é a essa mãe dupla que apela Anne-Marie, que se sente culpada por não
de transferência, as posições subjetivase intersubjetivas.Ao diluir a singularidade ter sabido proteger sua filha contra o mal, esse"golpe do destino'; como dirá mais
da cena do acontecimento que ele toma por real, Marc suscita a construção da cena tarde. A descoberta, por Solange,de que ela mesma é portadora de uma fala ma-
inconsciente dessa cena. Ao privilegiar em seu relato a ação e a carga pulsional terna ameaçadora para a filhaque ela foi confirma de algum modo a intuição de
de violência, ele as inscreve nas fantasias precedentes, que facilitaram seu relato. Anne-Marie. A emoção que atinge a ambas após essa confissão e essa descoberta
Ao golpe recebido em outro lugar,passivamente, in extremis,de um analistaselva- sela sua identificação na fantasia cujo enunciado se transformará assim: "Um
gem, faz eco o golpe desferido nos "animadores'; que não se ocupam suficien- pai/mãe ameaça/repara um filho/uma filha''.
temente de seus filhos, pois estão ocupados em outro lugar, no "quarto de bata- A consolidação da fantasia é doravante assegurada, sua estrutura de grupo
lha'; para fazer outros filhos. Um local da cena originária foi encontrado, e no interno sustentará outras dimensões da aparelhagem psíquica dos membros do
entreabrir do lapso um recalcadomantido em estado de recalque por e para vários grupo e aumentará a coerência de sua realidade psíquica: por exemplo, as identi-
membros do grupo retorna, na mesma sideração desorganizadora provocadapelo ficaçõespelo sintoma serão reforçadas.
relato de Marc. Essa cena de proliferação caótica, na qual rondam a violência e a Ao final das quatro primeiras sessões,todas as configuraçõesdessa estrutura
morte, restabelece a confusão dos primeiros instantes de vida do grupo: ainda terãosido atualizadasnas sériesassociativase nas transferências.O sonho de Michele
aqui o relato de Marc, pelo primado que ele concede à carga afetiva do trauma constituirá um pivô na genealogiados organizadoresdo processo associativo.
evocado, indica uma causa e repete o trauma das origens: o da confusão.
O efeito desse relato será fornecer uma consistência mais forte à fantasia que
organiza o grupo. Essaviolência agindo sobre o grupo e sobre mim (é seu objetivo Os processos associativos após o sonho de Michele
inconsciente), Marc assinala também que esse pai ameaçador, outrora e alhures,
está sempre aqui presente, ainda que possa também ser um pai reparador do dano Recorde-seque a primeira sessãodo segundo dia se iniciou pelo relato de um
causado ao filho. Essafantasia, portanto, traz consigo uma grande carga de an- sonho que Michele teve à noite: "Tive um sonho surpreendente, sonhei que fazia
gústia, devido ao ódio que a percorre, ódio que a exigência defensiva de reparação amor num quarto todo desarrumado, com o pai de Marc, ou talvez com O meu.
mascara e acentua ao mesmo tempo. Ambos tinham cabelos grisalhos''.
É essa fantasia que será doravante o motor das transferências positivase ne- Várias séries associativasforam desencadeadaspela fantasia incestuosa suben-
gativas e o organizador dos processos associativos;será o liame afetivodas identi- tendida pelo sonho. A primeira série ordena-se em torno da incerteza sobre a
ficações entre os participantes. Assinalamos que ela reorganiza as representações identidade do pai, sobre o traço comum (cabelos grisalhos) entre ambos, sobre
anteriores: será, sobretudo, o atrator de novas representações, de novas fantasias, o re~onhecimento do desejo incestuoso. A segunda retoma o fio da primeira, a
de lembranças, de novos afetos e novas posições subjetivas no grupo. Essa força partir de um elemento evocado na véspera: "o quarto em desordem". Trata-se da
organizadora da fantasia deve-seainda a outra característica: ela se situa no ponto desordem amorosa e do incesto.A terceira série organiza-seem torno da evocação
148 Um singular plural Os processosassociativos
nosgrupos 149

de catástrofes e acidentes: a morte brutal e precoce de um pai, urna mãe enlutada e comuns a todo o grupo. Não podemos decidir se os organizadores in-
e urna depressão na adolescência, o desaparecimento na montanha de um amigo, dividuais determinam os organizadores grupais ou se é o contrário. Marc,
um irmão mais velho morto ainda pequeno, a paralisia de uma mãe, um acidente como os outros, chega ao grupo com sua fantasia. Ela adquire urna força
de carro. A quarta série baseia-se no reinvestimento libidinal consecutivo à evo- organizadora porque suas questões inconscientes podem ser partilhadas
cação desses acontecimentos traumáticos e da morte; ela é conectada com o mo- por outros membros do grupo: éoque explora a fase inicial, turbilhonante.
tivo central do sonho pela fantasia de transgredir o tabu do incesto fraternal. Tornada grupal, própria a aparelhar as psiques, a fantasia organizadora se
O sonho retorna os pi:incipais elementos das associações da véspera, a sonha- torna um atratorde fantasias que fazem variar a cena, as versões e as po-
dora os trabalha em seu próprio sonho. Ela sonha para si mesma e para o grupo. sições dos sujeitos.
O sonho retrabalha o organizador fantasmático do trauma, sempre presente e - A segunda hipótese concerne ao fato de que o processo associativo oscila
ativo, e as associí!ções que ele desencadeia fazem supor que ele volta ao primeiro entre as diferentesversõesde uma fantasia. Retenho duas características
plano quando ;e pérfilam as consequências perigosas da transgressão: acidente, delas: as diferenças entre as versões de uma mesma fantasia revelam a força
catástrofe, morte brutal, desaparecimento. A transferência sobre os analistas efe- organizadora da fantasia básica e a riqueza de suas dimensões, assim co-
tua-se pela conjunção dessas duas fantasias: é-lhes pedido para tranquilizar os mo as diversas versões de um mito revelam seu sentido profundo, como
participantes sobre os limites da barreira do incesto. mostrou C. Léví-Strauss. Ao mesmo tempo, essas versões podem ser utili-
Por todos esses caminhos, nós nos aproximamos do núcleo inconsciente, zadas também como formações defensivas contra a emergência da posi-
sexual, violento, traumático da fantasia principal que organiza a realidadé psíquica ção do sujeito em sua própria fantasia secundária.
desse grupo. Não é de surpreender, portanto, que as associações que se desen- - A terceira hipótese diz respeito à sucessãodefantasiasorganizadoras.Uma
volvem na sequência do relato do sonho encontrem um movimento defensivo fantasia prevalente ( e suas versões) organiza a sequência associativa, deter-
contra a fantasia de sedução sexual do filho pelo pai. Porém, ao mesmo tempo mina seus conteúdos e processos. Porém, a sequência associativa faz emer-
se obtém que, a partir do sonho de Michele, se produziu uma transformação na gir conteúdos afetivos e novas representações que atraem, por contigui-
fantasia organizadora do grupo: a fantasia do trauma e da ameaça associa-se dade, contraste ou continuidade, outro organizador fantasmático. Somos
doravante à fantasia de sedução e de incesto. advertidos disso pelas transformações que se produzem ao longo das
As transformações que afetaram o conteúdo das associações correlacionam- associações. É somente nos tomando atentos ao processo associativo e
se com o desencadear de certas transferências e o início da apropriação por cada aos movimentos das transferências que podemos ter acesso aos organi-
um de sua fantasia singular. É o caso para Marc. O relato do sonho, o trabalho zadores inconscientes. A violência, o desprezo, a decepção, a questão da
associativo e a análise das transferências lhe abriram acesso à atribuição de sentido nomeação sem significados, ressignificados e reinterpretados através dos
a seu sintoma e a um processo de transformação de sua representação, confusa e avatares da cena da fantasia que emerge na confissão de Marc.
levando à confusão, do trauma. É também o caso para outros participantes. - Uma quarta hipótese sustenta que cada grupo deve as características es-
pecíficas de sua realidade psíquica a uma fantasia organizadora que lhe
é própria e que suporta ampla variação de sua estrutura. A genealogia
INTERDISCURSIVIDADE E POLIFONIA NO PROCESSO ASSOCIATIVO GRUPAL.
dos organizadores sucessivos dá acesso à estrutura inconsciente do grupo
O TRABALHO DO PRÉ-CONSCIENTE
e, por intermédio de suas variações, a sua história e a sua pré-história.
A genealogia dos organizadores do processo associativo como indicador
da interdiscursivídade
Interdiscursividade e polifonia
A análise da genealogia das fantasias nos conduziu a formular diversas hipó-
teses sobre os organizadores do processo associativo no grupo: Recordei no inicio deste capítulo que a pluralidade de discursos e a inter-
- A prirneiia é que o processo associativo se constrói sobre uma duplasérie discursividade dos processos associativos são uma característica decisiva do dispo-
de organizadores:uns são próprios a cada sujeito, outros são partilhados sitivo de grupo. A análise clínica das cadeias associativas acaba de nos mostrar
Um singular plural Os processos associativos nos grupos 151
150

como se organiza, se aparelha e se transforma o curso das associaçõessob o efeito O conceito de dialogicidade designa o fato de que cada enunciado apresenta
de seu triplo niveldeorganização, individual, intersubjetivo e grupal. Os discursos relações com outros enunciados sobre o mesmo objeto, bem além do fato de que
interagem, se ligam, se separam e se diferenciam. O que se diz entre os sujeitos ele pode ser uma resposta de um locutor ao enunciado de seu interlocutor. Assim,
diz também alguma coisa de cada um deles e a cada um deles.A análise da genea- mesmo o enunciado monológico possui uma dimensão dialógica. Bakhtin deno-
logia dos organizadores das associações mostrou como a interdiscursividade mina pluridiscursividade a força dialógica da linguagem. Ela está em luta contra
funciona na diacronia. a reificação monológica do discurso. Foi nesse contexto que utilizei o conceito
A polifonia da cadeia·associativa grupal é um efeito da interdiscursividade. de polifonia na análise do processo associativo,a fim de acentuar as ressonâncias
Tomo emprestada a noção' de polifonia dos trabalhos de Bakhtine e Vorochilov e a transformação dos enunciados associativospor meio de sua reunião.
sobre a estrutura da obra literária•. Bakhtine sustenta a ideia de que o romance
polifónico se elal;>orano cruzamento de várias estruturas, assim como a palavra
é uma polifoniade vlíriasescritas: a do escritor, a de seus personagens, a do desti- Perspectivas sobre o processo associativo e o trabalho do pré-consciente
natário, a dos contextos histórico, ético e cultural. Essa organização polifónica
caracteriza a esfera mesma da linguagem, e Bakhtine estende esse principio a toda A análise dos processos associativos forneceu a ocasião para pôr à prova o
produção semiótica: a lógica que a organiza não é a da determinação linear e da modelo de aparelho psiquico grupal e as hipóteses que ele contém. A questão
identidade, mas aquela, transgressiva,do sonho ou da revolução: outra lei opera aí. principal consistia'.em ter acesso,por meio do aparelho da linguagem, a algumas
Bakhtine não limita sua análise ao estatuto da linguagem poética no romance articulações entre as formações, os processos e as tópicas do inconsciente no es-
polifônico. Ele defende a ideia de um auditório social interno próprio a cada in- paço intrapsíquico, no espaço intersubjetivo e no espaço grupal.
divíduo, na "atmosfera a partir da qual se constroem suas deduções, motivações, A análise nos ensinou que os processos associativosorganizam-se nos gru-
apreciações ( ... ]".Aanálisedos romances de Dostoievski mostra como funcionam pos, a partir de uma tripla fonte dos conteúdos inconscientes resultantes do recal-
polifonia e dialogismo interno: por exemplo, em O adolescente,Bakhtine distingue que, da denegação ou da rejeição. Uma de suas fontes é própria a cada sujeito
a voz própria do herói, a de seu interlocutor interno e a voz narradora de um considerado na singularidade de sua estrutura e de sua história; a outra nasce das
terceiro, depois ele nota o fundo comum de palavras que atravessa e une essa es- relações entre os membros do grupo para construir os vínculos de grupo. A
trutura a três vozes, produto dos efeitos de concordância e discordância. Constan- terceira é importante e não devemos negligenciá-la:é produzida pelos analistas
temente surge a questão: quem fala,pensa, experimenta, sonha? E essesmomentos em situação de grupo, em suasrelaçõescom o grupo. Cada um dessesconteúdos do
de incerteza se resolvem pela emergência de um Eu que, enquanto herói, assume inconsciente liga-sede maneira original e retorna nas manifestações do processo
a polifonia e a supera. associativo.Essaanálise nos permitiu conhecer os efeitosdo recalque (ou da dene-
Dois conceitos percorrem toda a obra de Bakhtine: o de alteridade e o de gação} e as modalidades do retorno do recalcado no grupo e entre os membros
dialogicidade. Podemos nos aproveitar disso efetuando as transformações neces- do grupo. Ela nos trouxe preciosas informações sobre o modo de formação do
sárias. O primeiro afirma que não somos mónadas psiquicas, mas sujeitos cujos sujeito do inconsciente, do sujeito da fala e do sujeito do grupo.
desejos e crenças estão em relação com os outros sujeitos, inscritos numa socie- Eu gostaria de abrir uma perspectiva que poderá interessar ao conjunto dos
dade: "Eu se oculta no Outro e nos Outros", escreve ele. A linguagem, mais rigo- psicanalistas. Trata-se daquilo que nos ensina a análise do processo associativo
rosamente o discurso é o campo desse encontro: "O discurso encontra o discurso grupal sobre a formação e o trabalho do pré-consciente.
de outro em todos os caminhos que conduzem a seu objeto,e ele não pode deixarde Enfatizei que na fase inicial de um grupo, mas também em outros momentos
estabelecer interação viva e intensa com ele" (1934-1935; ed. fr. 1978, p. 92). Ou do processo grupal, a intensidade e as modalidades do encontro pulsional com o
ainda: "O locutor procura orientar seu discurso, e até o horizonte que o determina, outro, com mais-de-um-outro põem em risco provisório a atividade do pré-cons-
em relação ao horizonte de outro" (1978, p. 95-96). ciente, devido à multiplicidade de solicitaçõesàs quais o ego dos membros de um
grupo deve fazer frente. A capacidade do ego de ligar representações e afetos, de
6. Recorrià noção de polifoniaem meustrabalhossobre o processoassociativo(1994) e fantasiar e de pensar é posta à prova, na medida em que os paraexcitantes internos
mais recentementea propósitodo sonho (2002a,2002b); cf. capítulo9 destaobra. e externos falham. Ora, a função paraexcitante é uma função principal do pré-
152 Um singular plural

consciente: ele a realiza utilizando as predisposições significantes e as represen-


tações de palavras que lhe estão disponíveis. O estudo do processo associativo,es-
pecialmente o de suas modalidades grupais, levou-me a conceder um lugar prin-
cipal à atividade do pré-consciente e a definir sua formação e seu funcionamento
a partir do contato da atividade psiquica pré-consciente do outro.
Essesestudos são preciosos,pois a clínica, incluindo a da cura individual, nos
mostra regularmente que num certo número de patologias e de sofrimentos psí-
quicos a atividade do pré:consciente do sujeito é falha ou não pôde se constituir. É
o caso para o que chamamos, de maneira global, de patologias dos estados-limite.
Se relacio!iamos esses impedimentos do trabalho do pré-consciente à ativi-
dade do pré-conséiente do outro ou de um conjunto de outros, podemos com-
preender melhor essaspatologias e melhor tratar seus sujeitos. Devemosnos lem-
brar de que as primeiras representações de palavra nos são inicialmente trazidas
pela fala da mãe no grupo primário, por um(a) outro(a), por mais de um outro. 8
P~a cada um de nós, essa fala, seu estilo, sua entonação, seus efeitos ligam-se a
essas experiências primeiras que nos serviram para nomear as coisas de nossás As funções fóricas
percepções. Para que a palavra seja dita e entendida, uma sintaxe e urna semântica Porta-palavra,
suficientemente comuns são necessárias,um dispositivo interpretativo partilhado porta-sintoma,
deve funcionar.Freud (1913)chamou de aparelho de significar-interpretar(Apparat porta-sonho
zu deuten) o dispositivo que nos permite atribuir sentido às palavrase às intenções
de outrem.
O trabalho do pré-consciente que um sujeito é capaz de efetuar baseia-se
inicialmente na atividade psiquica da mãe, ela mesma apoiada em seu ambiente,
quando ela realiza a função alfa (W. R. Bion), quando ela sonha a criança (D. W.
Winnicott) e quando ela se constitui como porta-palavra da criança em face de
estimulações internas e externas às quais esta é confrontada (P. Castoriadis-
Aulagnier). Em condições ulteriores,na cura ou numa situação de grupo, esse tra-
balho do pré-consciente assegura as condições de um relançamento da atividade
de simbolização entre os sujeitos que não tiveram acesso a ela.
É dessa maneira e com base nesse modelo que articulo a formação do pré-
consciente à intersubjetividade, mais especialmente à função da fala. A análise do
grupo com Marce os outros nos esclareceusobre esse ponto, mostrando-nos como
o grupo funciona como um aparelho de transformação da experiênciatraumática.
Podemos observar a maneira pela qual o pré-consciente dos participantes fun-
cionou, como o processo associativo grupal o sustentou e como reformulações
posteriores atestaram esse trabalho, um trabalho que, por essesmotivos, podemos
chamar de trabalhoda intersubjetividade.
As funções!óticas 155

A CATEGORIA DO INTERMEDIÁRIO NO PENSAMENTO DE FREUD

A categoria do intermediário atravessa toda a obra de Freud. Ela se forma


desde 1895 e se mantém até 1939. Ainda que Freud jamais a tenha constituído
como conceito específico, essa categoria é uma constante de seu pensamento, e
os grandes momentos de remanejamento de sua teoria são também épocas de
sua retomada.

Intermediário e descontinuidade intrapsíquica

Freud recorre à noção de formação intermediária quando ele se vê forçado


O modelo de aparelho psíquico grupal e a clínica sobre a qual ele se baseia a pensar o vinculo entre duas ordens descontinuas da realidade: entre o dentro
deveriam levar-me a dedicar uma atenção particular às formações e aos proces- e o fora, entre o consciente e o inconsciente, entre os pensamentos latentes do
sos psíquicos que realizam uma função de articulação entre o grupo e o sujeito sonho e os pensamentos do sonho manifesto, entre as exigências do ego, do supe-
singular. rego e do id, entre estas e a realidade externa, entre indivíduo e grupo. Em todos
A análise dos processos associativos nos mostrou a existência de pontos de os casos de figura, as formações e os processos intermediários realizam funções
ligação e de formações intermediárias entre as cadeias associativas individuais e específicas de ligação, de mediação e de transformação.
a cadeia associativa que se forma no grupo. Ela revelou as funções que realizam O aparelho psíquico dispõe assim, em sua organização interna, de instâncias
certas pessoas que, no grupo, encarnam e representam esses pontos de ligação: ou sistemas especialmente afeitos ao trabalho dos processos intermediários: o
são os porta-palavras, porta-sintomas, porta-sonhos, mas também outros sujeitos sistema pré-consciente, a instância do ego, que Freud descreve como um ser-fron-
portadores de ideais, figuras de morte ou de salvação etc. teira (ein Grenzwesen).A pulsão e a fantasia, que Freud descreve como seres
Lidamos com essas pessoas quando elas vêm em cura individual e analisamos mistos, sangues misturados ou mestiços, são dessa categoria; do mesmo modo, as
as dimensões que se relacionam com os conflitos intrapsíquicos que essas funções formações de compromisso, o sintoma, o sonho. O sonho é ao mesmo tempo um
engendram e das quais elas participam. Freud nos forneceu um exemplo disso com intermediário entre dois estados do ego, o ego desperto e o ego onírico; ele se
a análise da cura de Dora. A situação psicanalítica de grupo nos ensina que as forma através dos pensamentos intermediários, que fornecem acesso à sua aná-
funções fóricas que essas pessoas assumem são simultânea e correlativamente lise. Quando esboça sua "psicologia social", Freud atribui ao líder, assim como ao
subjetivas, intersubjetivas e grupais. Podemos analisá-las, portanto, nessas três poeta e ao historiador (der Dichter),funções que também derivam da categoria
funções e em suas relações. do intermediário. Temos aqui um exemplo da superposição de formações inter-
Para pensar essas funções, recorri primeiramente à categoria do intermediá- mediárias, se considerarmos o ego do líder.
rio: trata-se de uma categoria cujas premissas podemos encontrar em Freud, Por meio desses exemplos, parece que Freud deu a essa categoria um valor
Róheirn e Winnicott. Essa categoria, cuja extensão e cujos sentidos variam em central, ao mesmo tempo em que lhe reservou um uso relativamente limitado a
cada um desses autores, serve-lhes para pensar formações intrapsíquicas e inter- certas formações, a certos processos, a certas funções. Um valor central, se consi-
subjetivas: o objeto e o espaço transicionais são seu protótipo. Limitarei minha deramos que Freud descreve seja formações fronteiriças no interior do espaço in-
exposição a descrever brevemente essa categoria no pensamento de Freud 1• trapsíquico, seja formações que marcam um limite entre a realidade psíquica e a
realidade biológica (como a pulsão) ou a realidade social (como o líder). Um uso
preciso e limitado, se admitimos que se aplica a formações psíquicas originais des-
1. Sobre o desenvolvimento dessa categoria no pensamento de Freud, Róheim e Winnicott, tinadas a superar os termos de uma separação, de uma efração, de uma ruptura ou
permito-me remeter a KAJls 1985a, retomado em 1994a. de um conflito, ou a assumir urna ligação entre elementos heterogêneos.
156 Um singular plural As funções fóricas 157

Intermediário e mediação em Psicologia das massase em Toteme tabu que reúne os dois fragmentos separados de um conjunto unido por uma aliança.
Sua posição de terceiro deve também ser levada em consideração pelo ângulo do
Quanto mais o pensamento de Freud sobre o intermediário no aparelho estabelecimento de um processo de simbolização. A pessoa de Moisés simboliza
psíquico individual se apoia na clínica da cura psicanalítica, mais suas visões sobre parcialmente Deus e parcialmente seu povo: é irredutível a cada um deles, é um
essa categoria nos grupos (e na cultura) provêm da especulação: embora não traço de união entre ambos.
tenham podido ser testadas em dispositivos metodológicos apropriados, ainda Freud retoma e desenvolve nesse texto vários elementos de uma análise
assim possuem grande valor heurístico. esboçada sete anos antes em Toteme tabu.Trata-se do tabu e da ambivalência dos
Começarei pelo texto de'l 921, mais explícito sobre essa questão que o de 1913. sentimentos:
Em Psicologiadas massas e análisedo ego,a noção de intermediário é evocada a
propósito da força,rnisteriosa do hipnotizador e de seu olhar. Freud nota a relação O tabu de um rei é demasiado forte para seu súdito, pois a diferença social que
entre essa força e·o aspecto perigoso e insuportável do olhar desde que o chefe os separa é demasiado grande. Porém, um ministro pode assumir, entre eles, o
ou a divindade são vistos ou podem ver seus sujeitos. Freud dá como exemplo papel de um intermediário inofensivo. Traduzido da linguagem do tabu para a
desse caráter perigoso o fato de que Moisés será chamado como intermediário da psicologia normal, isto significa:o sujeito que teme a tentação que pode repre-
entre Javé e seu povo: sentar para ele o cantata com o rei pode suportar a relação com o funcionário,
que lhe causa m,enos invejae que ele acredita talvezpoder igualar um dia. Quanto
Moisés é obrigado a servir àe intermediário' entre seu povo e Javé,dado que seu ao ministro, a inveja que ele pode alimentar a respeito do rei é contrabalançada
povo não poderia suportar a visão de Deus, e quando ele retorna após ter estado pela consciência do poder do qual ele próprio é investido (G.W. IX, p. 43-44).
em presença de Deus seu rosto brilha, uma parte do Mana se transferiu sobre
ele, como no mediador (Mittler)dos primitivos (G.W. XIII, p. 140). Algumas linhas adiante, Freud observa que a transgressão das proibições tabus
representa um perigo social desastroso para a própria sociedade: nesse contexto,
Freud utiliza essas duas palavras (derMittelsman, der Mittler)numa frase de o intermediário realiza uma função social de ligação e compromisso. Eis o exemplo
cinco linhas a fim de caracterizar essa função primeira do mediador, a de enfrentar de uma função intermediária que pode se compreender do ponto de vista dos
o insuportável e o perigo. O mediador funciona como uma espécie de tela fil- processos intrapsiquicos e do ponto de vista dos processos grupais intersubjetivos.
trante, como um paraexcitações entre a fonte divina do Todo-poderio e aqueles O mediador (der Vermittler)se situa entre o ego dos sujeitos e o que é, para a figura
que estão expostos a esse poder. divina ou real, despertado neles da "herança arcaica" ( do superego arcaico), da
Outro traço especifico do intermediário é mencionado por Freud: Moisés relação com o pai originário. O mediador rompe o vínculo hipnótico, introduzindo
participa das características dos dois conjuntos dos quais ele é o Mitte/sman:não o vínculo social na "massa de dois" (G. W. XIII, p. 142). Ele reduz a distância entre
só ele está próximo do povo e viu Javé como é delegado pelo povo e recebe de o ego e os ideais do ego. Quer se trate de Moisés ou do ministro, a relação principal
Yahweh uma parte de seu poder. Está, portanto, duplamente instalado nesse que liga essas figuras ao povo ou aos súditos é o caráter ambivalente de sua relação
lugar de intermediário, tanto por delegação como por investimento. Os raios que com uma instância religiosa ou política, suporte do ideal, garante metafísico, me-
emanam do rosto de Moisés podem constituir uma figuração metafórica do tassocial e metapsíquico. O processo psíquico central é a identificação com pessoas
caráter ambíguo desse vínculo entre o povo e Yahweh, ambíguo pois esse vínculo intermediárias: elas podem partilhar um traço comum com o objeto sem destruí-lo
é uma força salvadora ou/ e destruidora. O perigo resulta do caráter insuportável e sem ser destruídas por ele.
de dois elementos que não podem ser diretamente postos um diante do outro; é
o perigo que situa Moisés numa posição de terceiro nessa relação. Moisés é aquele
AS FUNÇÕES FÓRICAS

2. A palavra alemã (der Mittelsman) designa tanto um "homem do meio" quanto um


homem "meio" no sentido em que nos servimos de um meio para fazer algo,um homem Esses primeiros esboços forneceram-me indicações preciosas sobre funções
instrumento de algum modo. intermediárias que realizam certos sujeitos nas passagens entre os espaços psí-
158 Um singular plural As funções fõricas 159

quicos de cada sujeito e os espaços psíquicos comuns e partilhados: num casal, trocada, em suma, em todos os momentos que são momentos de prazer e des-
num grupo, numa família, numa instituição. Chamei de fóricas tais funções, pois prazer para o infans.t mediante esse tipo de experiência que a mãe leva ao infans
elas incluem e superam a ligação entre duas margens separadas, a fronteira entre a fala, que ela o sustenta na fala e que o constitui pela fala, que ela lhe abre a porta.
dois espaços descontínuos. As pessoas que as encarnam estão também encarre- Porém, parece-me justo notar que também a criança sustenta a mãe na fala que
gadas dessas funções, elasasportam assim como são carregadas por elas, carregam ela lhe leva, ela é um atrator da fala.
vestígio daquilo que as criou e daquilo sobre o qual estão fundadas. Nessa função de porta-palavra, a presença e a atividade falante da mãe for-
O conceito de funções fóricas, desse modo, adquire uma dimensão mais mam um porta-palavra externo, elas modelam a organização libidinal e narcísica
precisa e mais complexa, na,medida em que possui uma consistência específica do corpo do bebê, e de maneira mais geral participam na estruturação do apare-
simultaneamente nos campos intrapsíquico e intersubjetivo. Testemos essas pro- lho psíquico do bebê, e portanto de seus sistemas inconsciente e pré-consciente.
posições na análise de três funções fóricas: as de porta-palavra, porta-sintoma e Um vínculo deve ser feito aqui entre a função de porta-palavra e a função-alfa
porta-sonho. ' definida por Bion: a atividade falante da mãe funciona como indutora de pré-
concepções que poderão ser utilizadas ulteriormente pela criança.
A segunda função de porta-palavra exercida pela mãe, ou por quem ocupa
As funções do porta-palavra seu lugar e sua função junto ao infans,consiste no fato de que ela lhe leva a fala
de outro: uma fala c~ja delegação a mãe recebeu de outro, geralmente o pai, que
O-conceito de porta-palavra é destinado a tratar a questão da fala nos con- em nossas sociedades encarna a função paternal, e que ela representa junto a
juntos intersubjetivos. A análise do processo associativo deixou-me atento à ma- outro, o infans. Se a mãe que realiza essa segunda função de porta-palavra não
neira pela qual a fala é trazida ao sujeito, à maneira pela qual ele é apanhado por fala em seu nome, se não é ela nem sua causa nem sua origem, ela fala em nome
ela, pela qual ele se apodera dela e carrega nela seus próprios desejos e interditos, de outro, todavia é ela que fala e que interpreta essa fala. A mãe realiza essa função
pela qual ele a delega ou se livra dela. quando enuncia as regras, as leis, os interditos e as representações que lhe corres-
Nos grupos lidamos com duas funções principais de porta-palavra, que P. pondem. Ao mesmo tempo em que as palavras de interdito instauram na criança
Castoriadis-Aulagnier (1975) reconhece à mãe na estruturação da psique do a referência à lei, elas lhe fornecem representações. Esses enunciados organizam
infans. Recordo-as brevemente. as relações da criança com o corpo da mãe, com o mundo, com as diferenças
fundamentais: animado-inanimado; morto-vivo; animal-humano; homem-
mulher; pais-filhos. Aquilo de que a mãe é porta-palavra é uma ordem inter-
As principaisfunções doporta-palavrasegundoP. Castoriadis-Aulagnier subjetiva à qual ela mesma está submetida e que organiza sua própria subjetividade
em sua relação com a de seu infans.
A primeira acentua a voz materna, em suas dimensões físicas, vibratórias, Essas duas dimensões da função materna de porta-palavra são distintas e
sonoras e musicais, mas também nas palavras que chegam através dessa voz. Essa articuladas. Qualificam a função de "prótese" realizada para o infans pela psique
fala aparece na mãe bem antes do nascimento do bebê, mas sobretudo no mo- materna. A mãe fala à criança e para a criança: ela acompanha com palavras sua
mento de sua chegada ao mundo. São palavras que acompanham, comentam, experiência e torna possível à criança o acesso à sua fala.
predizem os supostos pensamentos e atividades do infans.A primeira função do Por minha vez, enfatizarei várias coisas. A primeira é que o feto, depois o
porta-palavra está costurada nas atividades mímicas, olhares e sorrisos, gritos e infans também ouvem a voz do pai e logo a distinguem daquela da mãe. Pelo
choros, odores, o conjunto de cantatas, suportes e sustentações da mãe e do bebê. menos duas vozes se fazem ouvir. A segunda coisa é que a mãe e o pai não se
Ela se instaura no momento do banho das crianças, no momento do aleitamento limitam a pôr a palavra a serviço do infans:eles satisfazem também a exigência
e na hora de dormir, no momento em que a criança chora, quando precisa ser deste de encontrar predisposições significativas. Por meio de sua atividade de
sujeito porta-palavra, a mãe-mas também o pai- responde a essa necessidade
3. O conceito de funções fóricas é formado a partir do verbo grego phorein (portar), cuja fundamental da psique humana: pôr àdisposição do infansosmeios de representar
raiz se encontra em "metáfora" (metaphorein: transportar, deslocar). para si sua própria existência, de introduzi-lo à capacidade de pensar e de se
160 Um singularplural
As funções fóricas 161

pensar". A mãe - ela mesma sustentada pela função paterna - sustenta essa
As funções do porta-palavra nos grupos: estudos clínicos
capacidade quando o infans precisa enfrentar a experiência da separação e "en-
contrar-criar" significantes transicionais, como testemunha o jogo do carretel. Ela
A primeira função descrita por P. Aulagnier pode ser facilmente observada
não o desilude sobre o fato de que as palavras que ele utiliza são palavras que ele
nos grupos; uma voz e um discurso de acompanhamento, de comentário, de
pensa ter inventado, criando-as. A criança poderá então engendrar significações
embalamento e de atribuição de sentido realizam essa função, não para infans,
que lhe são próprias e confrontá-las com as significações comuns, na medida
mas para sujeitos falantes aos quais, nesse momento, falta a palavra. De maneira
em que a mãe tiver deixado se desenvolver nela o que chamarei de ilusãopoética,
geral, essa função estabelece ligações entre a experiência e sua designação, uma
assim como o poeta tem a iJusão de recriar o mundo a partir de palavras que não associação entre as palavras, uma transformação da experiência e do uso da
são efetivamente suas, que ele encontra e que ele recria. Ela a faz poeta e recitante.
palavra. A formação do aparelho para pensar os pensamentos descrito por Bion
A capacidade as_sociativado infans, seu estilo associativo serão ulteriormente
se efetua nos grupos através dessa função do porta-palavra e corresponde ao que
marcados por ess'a n:ianeira pela qual o jogo com as palavras tiver sido sustentado
F.Corrao ( 1981) chamou, por analogia, de função-gama.
e tolerado pela mãe, conjuntamente com os efeitos próprios de seu recalque.
A segunda função, metafórica,descreve uma instância de delegação e de
Acrescentarei ainda que a mãe se fala através de sua função de porta-palavra,
representação de uma ordem exterior ao grupo, e cujo discurso no grupo enuncia
fala para si mesma, tanto em sua primeira como em sua segunda função, quan-
as leis, os princípios e os interditos. Essa função metafórica introduz a referência
do fala na relação de investimento e de delegação que ela recebeu do conjunto, e
a uma ordem terceira na unidade dual que tende a se formar ou a se reformar
especialmente do pai. A mãe é portadora de uma fala .à qual ela adere. Se não
incessantemente entre o grupo e seus membros.
adere, produz-se uma cisão catastrófica naquilo que a criança ouve, entre o que
Gostaria de observar que na situação psicanalítica, seja ela individual ou de
a mãe lhe diz e o que representa para a mãe o que ela diz para a criança. Através
grupo, essa função é em primeiro lugar e especificamente aquela que o psicanalísta
de sua função de porta-palavra, a mãe traz seu próprio investimento pulsional à
realiza quando enuncia a regra fundamental. Dessa regra, ele não é o senhor, ele
psique do infans,e ela recebe também investimento da parte deste.
mesmo está submetido a ela, é seu porta-palavra. É portador de uma fala que ele
A necessidade da presença de um Outro não pode se reduzir às funções vitais
recebeu, que o constitui em sua função de analista e que o inscreve numa ordem
que ele deve assegurar junto ao infans em suplemento à pré-maturação própria
simbólica. Aquilo de que o psicanalista é portador é de uma fala própria a tornar
à espécie; exige-se a mesmo título uma resposta às "necessidades" da psique. Uma
possível o levantamento do recalque, mas sob a condição de manter um interdito
condição principal é requerida: os objetos de experiência e de encontro que a mãe
sobre a realização direta dos desejos arcaicos e edipianos. É nesse registro que a
propõe à criança e que ela associa a palavras só podem exercer seu poder de re-
interpretação é uma fala subordinada ao princípio de realidade, não ao princípio de
presentabilidade e figurabilidade junto ao infans se são marcados pela atividade
prazer. Nessas condições, a enunciação da regra fundamental toma possível a inter-
da psique materna, que os dota de um índice libidinal e, por essa via, de um esta-
pretação e, por conseguinte, a constituição de um "espaço no qual o Eu pode advir"
tuto de objeto psíquico conforme às "necessidades" da psique. A representabili-
como subjetividade separada, distinta, portadora de suas próprias palavras.
dade e a figurabilidade têm como materiais e como condição objetos moldados Sugiro levar em consideração uma terceira função, representativa,do porta-
pelo trabalho da psique materna. A impressão que a mãe deixa sobre o objeto é
palavra. O porta-palavra porta a fala dos outros e os representa junto aos outros.
uma condição prévia necessária para essas duas metabolizações. P. Aulagnier
Por seu intermédio se ligam as posições subjetivas de vários membros do grupo.
menciona sua dívida com a teoria de J.Lacan: o objeto só pode ser metabolizado
Recordemo-nos da função de porta-palavra que recebe e realiza Solange no gru-
pela atividade psíquica do infans se e na medida em que o discurso da mãe o
po: ela a constitui como porta-palavra manifesta e explícita de Anne-Marie, mas
dotou de um sentido testemunhado por sua denominação. O sentido é engolido
também de Marc e de vários outros. Ela os representa. Essa função representativa
junto com o objeto: por essa fórmula Lacan designava a introjeção originária do
se liga ao lugar ocupado pelo porta-palavra: na trama do grupo, o porta-palavra
significante e a inscrição do traço unário entre a mãe e a criança.
situa-se nos pontos de ligação de três espaços: da fantasia, do discurso associativo
e da estrutura intersubjetiva dos vínculos de grupo.
4. Sua função fórica é então aquela que poderíamos chamar, inspirando-nos em Bion, de
Notemos que nos grupos o porta-palavra, se falapor um mandatário e para um
porta-pensamento. destinatário, não é por isso sempre ouvido por eles, assim como o porta-sintoma
162 Um singularplural As funções 16ricas 163

não é espontaneamente reconhecido como tal. O porta-palavra fala também do Solange, com efeito, situa-se no ponto de báscula e de condensação da organi-
que é deixado de lado, e importa então que ele tenha pelo menos um ouvinte; é zação fantasrnática do grupo. Ela mesma se representa numa localização inversa à
a função do psicanalista emprestar seu ouvido. deAnne-Marie (mãe ameaçadora) e homóloga à de Marc (filho ameaçado). Está no
pivô das ações passivas e ativas, no ponto de colagem da fantasia de ameaça e da
A relaçãodo porta-palavracom afala: a escolhade Solange fantasia de reparação. Ela se situa, e é situada, com seu assentimento e sem que o saiba,
no lugar mesmo de seu conflito (ameaçar/reparar), de suas identificações ambiva-
A escolha de Solangecomo porta-palavra de Anne-Marie, de Marc e de alguns lentes em face da imago materna. Seu lugar na fantasia está no lugar mesmo de seu
outros personagens no gropo é resultado de várias séries de determinação. Urnas sintoma e é por meio de traços comuns a vários que irão se efetuar as identificações
são próprias a Solange, à estrutura e à história de sua psique, são intrapsíquicas. com Solange. Temos aqui um exemplo notável de identificação pelo sintoma.
Entre aquelas ql}e são mobilizadas e que se atualizam no grupo algumas são per- Verificamos aqui que o porta-palavra realiza sua função fórica pelo movi-
cebidas e investídas-por Anne-Marie: são determinações intersubjetivas. Outras são mento de seu próprio desejo, e que ele é chamado a isso por outros que, juntos, o
definidas pela organização das fantasias, da transferência e do processo associativo levam a manter essa localização e essa função. Ele fala no lugar de outro, para um
no grupo: são determinações grupais. Exarninemo-las em suas relações. outro, mas fala também para o outro que está nele: encontra assim nas palavras
Minha hipótese é que Solange predispõeos sinais que sustentarão a escolha do outro urna representação que até então não lhe estava disponível.
que se fará dela como porta-palavra. Ela se acha disposta a representar para outro,
e para mais de um outro, unia imago reparadora, em lugar de Sophie, imago para
ela muito perigosa, rival, da ordem do superego: ela o sabe com um saber pré-cons- A função fórica do porta-sonho
ciente quando se pergunta se ela não teria alguma responsabilidade no fato de ter
sido tomada por Sophie. Solange se diz portadora de uma questão sobre a fala: ela A figura do porta-sonho nos instruí tanto sobre a função do porta-sonho
descobre que o "bem falar" que ela gostaria de adquirir mascara outra expectativa, comosobreafunçãodosonhonosgrupos(eemtodasasformaçõesintersubjetivas:
bem mais grave e importante: falar do que justamente não está disponível à sua fala casais, famílias e instituições). Essa figura apareceu em nosso grupo com o sonho
para dizer"seus pacotes" em sofrimento. Ela está atenta aos intercâmbios entre Marc de Michele e a função que desempenhou no grupo, sonhando e relatando seu
e Boris, "que se falam" numa fala complementar e comum. Solange se identifica sonho. Já o analisei longamente e retornarei a ele ainda no decorrer do próximo
com um desses lugares nessa relação intersubjetiva na qual outros lugares corre- capítulo.
lativos estão disponíveis e podem ser ocupados: é precisamente um desses lugares Limitar-me-ei a enfatizar que os porta-sonhos sonham por sua própria conta,
que irá ocupar Solange quando Anne-Marie lhe pedir para falá-la. e que alguns acontecimentos da véspera, as identificações e transferências que os
Vê-se aqui que Solange foi escolhida. A escolha de Solange corno porta-pa- mobilizam, determinam o conteúdo de seus sonhos. No entanto, os porta-sonhos,
lavra é sobredeterrninada por razões que se devem a sua história, a suas identi- assim como os pacientes na cura, sonham para alguém na transferência. Não é
ficações, a seu conflito inconsciente, a sua fantasia. Esses traços são percebidos e surpreendente, portanto, que a destinação (ou os destinatários) do sonho in-
interpretados pelos outros em função de seu próprio "aparelho de interpretar''. fluencie o conteúdo e, ulteriormante, o relato do sonho, e seus efeitos o inscrevem
Eles constituem, portanto, pistas para as identificações e para os movimentos de na intersubjetividade, tanto a montante como a jusante.
transferência de Sylvie e de Anne-Marie sobre Solange. Esses "sonhadores" do grupo também sonham no lugarde alguém,por iden-
Porém, deve-se levar em consideração também que a escolha de Solange tificação projetiva ou introjetiva. Essa função pode evidentemente se codificar
como porta-palavra é sobredeterminada pela organização da rede associativa nos grupos, famílias e instituições, e mobilizar, ao lado dos processos primários
formada pelas três séries principais sobre a fala, o acontecimentotraumáticoe o e secundários, processos terciários que obedecem à lógica social e cultural e arti-
(primeiro) nome. Essas séries se entrecruzam e se desenvolvem, são sustentadas culam o sonho com o mito (DODDS 1959; ~S 2004). Esses sonhadores tor-
por alguns sujeitos, nos quais se ligam vários fios da associação, elas se orientam nam-se porta-sonhos sob o efeito da necessidade interna de estabelecer por meio
pelos movimentos de transferências, especialmente pelas transferências sobre os do sonho um espaço psíquico mais vasto que o seu, cujos limites se estendem aos do
psicanalistas, e pelas fantasias que as organizam. outro, de mais de um outro, a todo um grupo.
164 Um singular plural As funções fóricas 165

O porta-sintoma Abraham e M. Torok ( 1978), a do porta-mal,cujas figuras prevalecentes são as do


bode expiatório e do possuído, ou ainda a do porta-memória(historiador, poeta)
A análise de Dora evidenciou, desde o início da psicanálise, a figura do porta- ou a do porta-criança.Sob esse aspecto, seria interessante examinar a figura do
sintoma.A leitura que propus sustenta que todos os protagonistas do grupo em Mensageiro,do qual o filme de J.Losey mostrou bem o lugar na cena primitiva,
torno de Dora contribuem para manter o sintoma por meio das identificações enquanto as mitologias atestam sua função vital na representação do vínculo
numa aliança inconsciente, da qual cada um se beneficia. Freud participa disso entre a divindade e os homens.
quando ele ignora que o amar de Dora por sua mãe forma o nó dos sintomas de
Dora e de seus próprios sintomas 5•
A análise do grupo também despertou a função de porta-sintoma realizada A DUPLA DETERMINAÇÃODAS FUNÇÕESFÓRICAS
por Marc por conta de outros sujeitos membros do grupo, mas também por sua
própria conta, Ó acesso àquele bloqueando o acesso a este. Do mesmo modo, e Uma das questões postas pelas funções fóricas é distinguir a parte que cabe
com os mesmo efeitos, Solange representa para Anne-Marie, mas também para propriamente ao sujeito na função que ele realiza da que lhe é conferida nessa
outros, um ponto de ligação dos sintomas. O porta-sintoma realiza uma função função pelo processo grupal 6• O sujeito que realiza uma função fórica se acha
fórica e uma função intermediária. É também, por todos esses motivos, um lugar sob o efeito de várias espécies de determinações. Ele é chamado a essa função por
de retorno do recalcado no espaço psíquico do grupo e nos espaços internos de outros sujeitos aos-quais está ligado e que possuem, juntos, um interesse comum
cada um. Quando o sintoma deixa aparecer seus fundamentos, ou ele se resolve,· em fazer existir esse posto e essa função. Porém, ele também se encontra nesse
ou se desloca, ou ainda se transforma, como a análise do grupo mostrou em mui- posto devido ao movimento de seu próprio desejo. Podemos formular a hipótese
tos exemplos. Mas é raro que ele desapareça, pois o que subsiste de todas essas de que os posicionamentos fóricos determinados pelos vínculos intersubjetivos
maneiras é também o que organiza a realidade psíquica do grupo e sua perma- ou pela organização do grupo trazem uma poderosa confirmação às determi-
nência. Cabe perguntar, por conseguinte, se todo grupo não produz de modo nações internas que conduzem os sujeitos a essas funções. Isto vale para todas
permanente pelo menos um porta-sintoma. as funções fóricas.

O porta-ideal e outras funções fóricas As posições impostas pela organização do grupo e as determinações
intersubjetivas das funções fóricas
Podemos chamar de porta-ideal o sujeito que Freud descreveu como aquele
que representa e porta ou encarna os sonhos de desejos não realizados dos outros. Os sujeitos que realizam essasfunções ocupam certo lugar no conjunto, mui-
Herdeiro ou fonte de seu narcisismo, é tanto Sua Majestadeo Bebê quanto o tas vezes sem que o saibam, sob o efeito de uma determinação própria ao todo do
Ancestral.O porta-ideal se encarna também na figura do líder, que recebe e repre- qual são parte ativa e constituinte. Essas posições e essas funções são requeridas
senta a parte abandonada das formações do ideal de cada um. Esse abandono na organização de qualquer vínculo, são necessárias ao processo psíquico inter-
necessário para que se estabeleça a identificação com um objeto comum, pode- subjetivo, mas notaremos que os sujeitos que as preenchem desfrutam certos be-
roso e unificador está na base da comunidade de ideais. O porta-ideal represen- nefícios e sofrem alguns inconvenientes.
ta, encarna a alma do corpo imaginário grupal, assegura a permanência do vínculo
e a existência de cada um. 6. Essa posição permite especificar a diferença entre o conceito de função fórica e aquele
A lista de funções fóricas e de figuras que elas assumem é certamente extensa proposto pela teoria sistêmica a respeito do paciente designado ou do portador do sinto-
e urna série de estudos deveria ser empreendida para descrever cada uma delas. ma familiar. O conceito de função fórica não considera o sujeito como um elemento de um
Devemos mencionar a função do porta-cripta (ou criptóforo) proposta por N. sistema, mas como um sujeito do inconsciente. A parte que cabe propriamente ao sujeito
na função fórica que ele realiza é reconhecida e se conjuga com a maneira pela qual o grupo
5. KAJ;s 1985b; ver também aqui, no capítulo 5: A difração e o grupo-Dora (p. 109). o utiliza para seu próprio processo e leva o sujeito a esse posto.
166 Um singular plural As funções fóricas 167

O pertencimento ao grupo (a um casal, a uma família, a uma instituição) Todas as funções fóricas têm sua tendência psicopatológica, sua versão
requer certa divisão do trabalho psíquico: uma repartição de encargos psíquicos neurótica, perversa ou psicótica. Uma versão psicótica é a identificação do porta-
é necessária para a manutenção e a continuidade do todo. O sujeito que desem- palavra com o que ele diz, como o mensageiro com o que ele anunciaª. Uma
penha uma função fórica participa dessa divisão e dessa repartição: assim, o versão perversa da utilização do mensageiro é a satisfação obtida em lhe fazer
porta-palavra assume ou recebe o encargo de falar em nome de vários, no lugar dizer e repetir, eventualmente sob coerção, aquilo que a própria pessoa rejeita.
de Outro ou de um conjunto de outros . .Êseu delegado e os representa. Contudo,
ele só deve sua função ao conjunto.
A posição fórica, a •escolha do portador, a função ou as funções que ele As determinações intrapsíquicas da função fórica do portador
realiza são determinadas por necessidades estruturais da vida em grupo. Os orga-
nizadores psíquicos inconscientes que presidem à formação do aparelho psíquico Essa leitura grupal e intersubjetiva da função fórica não é suficiente. Não
do grupo deté~minam a distribuição dos lugares e postos. Nesse sentido, não é basta dizer que o que leva determinado sujeito a realizar uma função fórica e a
somente o sujeito portador que realiza uma função fórica: cada um toma lugar em assumir o lugar correspondente num grupo é determinado e predisposto pela
predisposições de posições comandadas pelas redes identificadoras, pelos ce- organização do conjunto. Essa função e esse lugar devem ser examinados por
nários fantasmáticos, pelos sistemas de relação de objeto, pelos sistemas de defesa outro ângulo: o porta-palavra, o porta-sonho ou o porta-sintoma são conduzidos
ou pelos enunciados fundamentais do grupo. Cada um toma lugar no conjunto pelo movimento de seu próprio desejo inconsciente a ocupar essas funções e essas
e se vê designado pelo grupo a certo lugar. Nessa petspectiva, o líder realiza sua posições. Eles certamente portam a palavra, as fantasias, os conflitos e os sintomas
função por necessidade da estrutura. de outros, mas eles os portam ao mesmo tempo que os seus, sem que o saibam.
Esse ponto de vista centrado no grupo deve ser confrontado com outro Ao realizar suas funções de portadores e delegados, realizam seu próprio fim e se
ponto de vista que considera o papel das funções fóricas na formação e nos pro-
cessos da intersubjetividade. Um sujeito porta e transporta - sem que o saiba momento, permaneceu latente ou implícito,como que escondido no interior da totalidade
- para outro ou para um conjunto de outros - sem que o saibam - signos, do grupo. Como signo, o que reveleo porta-palavradeve ser decodificado,isto é, é preciso
afetos, objetos (bons ou maus), cenas inconscientes, ideias e ideais. O que é assim retirar-lhe seu aspecto implícito. Dessa maneira, ele é decodificado pelo grupo - parti-
transportado estabelece com o portador vínculos inconscientes fundados em cularmente pelo coordenador- que indica a significaçãodesse aspecto [implícito]. O
seu interesse comum nesses transportes de matéria inconsciente. porta-voz não tem consciênciade enunciar algumacoisa da significaçãogrupal que ocorre
Que as determinações sejam grupais ou intersubjetivas, em todos os casos nesse momento, mas antes enuncia ou fazalgo que ele vivecomo lhe sendo próprio" (1970,
o que é portado e transportado é matéria psíquica submetida a efeitos do incons- p. l !). Existemalgumas diferençasnotáveisentre o pensamento de Pichon-Rivieresobre o
ciente que só podem ser observados em situação de grupo. Todas as funções fó- portavoze minha concepção de porta-palavra.Nossaspesquisasse inscrevem em contextos
ricas situam-se nos pontos de ligação da fantasia inconsciente comum e parti- históricos diferentes e nos referimos a organizaçõesconceptuais diferentes. Trabalhando
lhada, dos discursos associativos e das transferências. Todas formam e informam para evidenciar os fenómenos de grupo, a orientação do pensamento de Pichon-Riviereé
a matéria das alianças inconscientes, dos contratos narcísicos, dos pactos dene- marcada pelasprimeiras pesquisasde psicologiasocial,num momento em que o grupo era
gativos, da comunidade de denegação: os sujeitos "fóricos" ocupam seu lugar e essencialmenteconcebido, através dos trabalhos de Kurt Lewin,como uma totalidade di-
suas funções numa aliança inconsciente com aqueles que os encarregam disso. nâmica na qual cada um dos elementosdo conjunto é solidário deste, e alguns dentre ele
Os sujeitos portadores são então, para quem os escuta no processo grupal e in- são "emergentes"ou "reveladores"da estrutura. Pichon-Rivieredeixou no plano de fundo
tersubjetivo, excelentes indicadores ou reveladores' da tópica, da economia, da a questão do sujeito no grupo. Meu trabalho foi de pensar a articulação entre o sujeito no
dinâmica e da semiótica desses processos. grupo, o grupo e o sujeito do grupo com as categoriasda psicanálise.Sobre a concepçãode
Pichon-Rivieree a análise que fiz, o leitor pode se reportar a KAEs1993; 1994a.
7. Associo-meaqui, masnuma problemáticainteiramente diferente,à concepçãode P1cHON- 8. Essemecanismo de defesa foidescrito por Lévy-Bruhle sua análise não vale unicamente
Riv1EREsobre o porta-voz (e/ portavoz): "O porta-voz é aquele que, no grupo, em certo para as chamadas sociedades primitivas:"O método universalmente empregado para se
momento, diz alguma coisa, e essa coisa é o signo de um processo grupal que, até esse proteger da infelicidade anunciada é suprimir o próprio objeto anunciador''.
168 Um singular plural As funções lôricas 169

constituem como elos, servidores e beneficiários do conjunto ao qual estão desse modo, poderia descrever aquela que está presente nos médiuns nos cultos
sujeitos. A ideia de um mandato do grupo ou de uma parte do grupo não poderia de possessão mágica.
definir inteiramente as funções que eles exercem. O sujeito realiza as funções
fóricas no grupo devido a interesses singulares determinados por sua história e
sua estrutura. A problemática na qual se inscreve a necessidade interna da função Algumas características comuns a todas as funções fóricas
fórica é a do sujeito do inconsciente enquanto sujeito do grupo. É também a da
pessoa, no sentido de persona~a máscara através da qual se fala. Algumas características gerais das funções fóricas podem ser observadas na
Se retomarmos o exemplo do líder, veremos que, nessa medida, ele não existe cura no sujeito vocacionado a se tornar porta-palavra, porta-sonho ou porta-sin-
exclusivamente a partir da determinação intrapsíquica que o leva a essa posição. toma. No entanto, elas só se manifestam na complexidade de suas determinações
O líder só pode cumprir sua função de porta-ideal para os membros do grupo em situação de grupo, pois este os convoca e ordena segundo as exigências de sua
se ele mesmo está el\volvido no mais vivo de si mesmo pela função que lhe é lógica e de seus interesses próprios. No trabalho psicanalítico em situação de
requerida e para a qual ele se autoprescreve. Essa função e esse lugar, ele não os grupo, não é possível tratar de maneira independente os diferentes níveis de sua
conhece de antemão,só os conhece na situação em que será testada sua capacidade organização. Pelo contrário, assim como para as cadeias associativas, temos de
de portar o ideal e de funcionar nessa posição intermediária. Eis por que propus trabalhar sobre seus pontos de ligação e separar o que cabe à estrutura e à história
esta formulação: o sujeito que realiza uma função fórica escolhe ser escolhido. daqueles que se tornam chefes ou auxiliares, heróis ou bodes expiatórios, porta-
Assim ocorre com todas as funções fóricas. palavras, porta-sintomas ou porta-sonhos e o que cabe à estrutura do grupo e às
Uma análise diferencial poderia evidenciar as necessidades psíquicas in- exigências de seu funcionamento. A principal tarefa da psicanálise em situação de
ternas que levam determinado sujeito a realizar uma função fórica mais do que grupo é precisamente operar essa separação entre o ego e a Massenpsychologie.
outra, mas é possível esboçar uma problemática transversal, mostrando que vá- A determinação plurifatorial é uma característica comum a todas as funções
rias espécies de determinações estão presentes nessa escolha. Os movimentos fóricas. Elas se situam nas fronteiras entre os sujeitos, entre eles e o conjunto, com
psíquicos que orientam o sujeito portador para sua posição fórica e para as fun- a articulação da tópica, da economia e da dinâmica intrapsíquicas com a meta-
ções que a ela estão ligadas são suscitados pelas particularidades da organização e psicologia grupal, sobre os limites e nos pontos de passagem entre inconsciente
do funcionamento de suas fantasias, de suas relações de objetos, de seus conflitos, e pré-consciente, pulsão e fantasia, afeto e representação. As funções fóricas são
de suas identificações, de sua posição pulsional passiva/ativa. O sujeito portador funções intermediárias e as figuras que as encarnam são as de "passantes". Várias
encontra aí a ocasião (eufórica) de satisfazer desejos inconscientes de mobilizar características lhes são comuns.
mecanismos de defesa correlativos. Certos desejos narcísicos são sustentados
pelas identificações heroicas (por exemplo, o si grandioso de certos "arrimos de
A delegação,a representaçãoe a transmissão
família"), ou pelos componentes masoquistas da pulsão de dominação, em defesa
contra as realizações dos ideais. Outras determinações são orquestradas pelas As funções fóricas assumem funções de delegação, representação e trans-
questões do conflito edipiano ou do complexo fraternal: a rivalidade com o líder missão. O porta-palavra fala em nome de outro, no lugar de outro: é seu delegado,
leva determinado porta-palavra a se precipitar para a posição do segundo em representante, depositário e elo de transmissão. O processo de delegação é um
comando (do lugar-tenente) ou do duplo, sombra do pai, da mãe ou de um ir- processo complexo no qual se conjugam projeção, identificação projetiva ou de-
mão mais velho. Outras determinações fantasmáticas e identificações corres- pósito num aparelho psíquico externo, predisposto a receber partes da psique
pondentes estão presentes na formação do mensageiro (go-between)a partir de (afetos, emoções, cargas pulsionais e representações) que um outro (ou mais de
sua posição subjetiva "entre-ambos" na fantasia da cena primitiva. A função do um outro) não pode ou não quer reter em si, que ele evacua ou que ele situa em
porta-sonho pode ser compreendida à luz de sua necessidade interna de incluir salvaguarda nesse outro a fim de subtraí-lo ao destino que seria o seu se ele os
em seu espaço onírico, por meio das identificações projetivas, um espaço psíquico conservasse em seu próprio espaço psíquico. Essa delegação é com efeito uma
mais vasto que o seu próprio, ou de estender esse espaço às dimensões de todo extensão extratópica do espaço do sujeito. Os exemplos de tais processos podem
um grupo, para dele fazer um continente onírico mais eficaz. Essadeterminação, ser observados na função do duplo numa fratria ou num casal, na introdução na
170 Um singular plural As funções fóricas 171

criança de uma parte inaceitável ou irrealizável da psique de um pai ou dos pais. Observaçãosobrea inversãodafunçãofórica
~ bastante frequente que a influência do conjunto se exerça sobre esses sujeitos
Eu gostaria de enfatizar um traço notável que concerne somente a certas
portadores para mantê-los em seus lugares e funções.
funções fóricas: elas podem se transformar em seu contrário, por motivos intrapsí-
quicos e intersubjetivos. Isto aparece claramente a respeito do porta-palavra, que
A continência pode se transformar em afasta-palavra, em retoma-palavra, em portador de uma
O sujeito portador rtão· tem por função unicamente portar e transportar, fala persecutória. A influência que pode exercer o sujeito portador sobre a fala
transmitir e transferir a palavra, o ideal, o sonho ou o sintoma. Sua função é tam- que ele porta se articula com a fantasia grandiosa de falar pelo outro a ponto de
bém conter essas formações quando elas não podem ser contidas no espaço privá-lo de sua fala. O porta-palavra, se é uma condição do pensamento, inverte-
subjetivo ou no ,espaço do grupo. O porta-palavra abriga, contém, torna dizível se também na posição de bloqueador do pensamento. Essa reviravolta pode ser
e audível a fala de um outro, assim como o porta-sintoma é também o continente observada no porta-ideal, que pode se inverter em portador de perseguição.
dos conflitos que não podem ser simbolizados de outra maneira. Uma questão adjacente merece atenção: ela concerne à consistência psíquica,
tanto para os sujeitos como para o grupo, ou para qualquer outra configuração
de vínculos, do que não é portado, transportado, deslocado, transmitido, trans-
A semiotizaçãoe a simbolização
ferido, contido, se_miotizado.Ela interroga sobre o destino desses vestígios que
O sujeito que assume uma função fórica é portador de sinais: um semáfoi:o. não são levados ao sentido e que permanecem fora da simbolização.
O porta-palavra realiza a semiotização da fala não advinda ou impedida; o porta-
sintoma dá consistência e visibilidade aos conflitos intrapsíquicos latentes ou
recalcados. Ambos participam, assim, do processo de simbolização que pode se
apoiar sobre esses sinais, mas que só pode se desenvolver se o vínculo entre esses
sinais e o que eles significam ou representam é estabelecido. Cabe à função de
interpretação criar esse vínculo.

Outrascaracterísticascomunsou parcialmentecomuns
Outras características são comuns ou parcialmente comuns às funções fóricas,
por exemplo o holding,o handling,o apoio, o suporte. Uma análise diferencial das
funções fóricas mostraria que algumas delas caracterizam-se por ser portadas em
direção ao exterior, apoiadas em um ponto, enquanto outras são portadas em dire-
ção ao interior, em contração ventral. Certas funções são estritamente estáticas (o
mesmo sujeito porta sempre as mesmas coisas, sem transformação), enquanto ou-
tras são dinâmicas: elas se deslocam e se transformam, desenhando um caminho,
um percurso. Algumas são transitórias, outras permanentes. Algumas são unidi-
recionais e irreversíveis, outras bi ou pluridirecionais e reversíveis e recíprocas.
Umas se organizam em abismo•: A porta B, que porta C, que porta X e/ou Y etc.,
enquanto outras são encaixadas como bonecas russas.

9. Na França, chamamos "efeito Ripolin" ou efeito "vaca que ri" a essa organização em
forma de abismo de uma imagem que traz sua própria reprodução, de maneira idêntica,
numa série infinita.
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O espaço onírico
comum e partilhado
A polifonia do sonho

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O espaço onírico comum e partilhado 175

Com Freud, mas já ao longo de todo o século XIX, com os trabalhos de


Hervey Saint-Denis e de Maury, produziu-se uma revolução que restituiu ao so-
nho seu espaço íntimo, estabeleceu seu sentido e sua função no espaço psíquico
e se dotou dos meios de conhecer os processos que o produzem. Essas descober-
tas só foram possíveis sob um certo número de condições, algumas das quais se
devem à hipótese do inconsciente e à definição de seu objeto, outras ao método
da psicanálise, tal como o emprega o dispositivo de cura.

O encerramento epistemológico do espaço psíquico do sonho

A concepção de um espaço onírico partilhado e comum a vários sonhadores


pode parecer a prioriem contradição com o procedimento de Freud, quando ele
ALGUMAS RAZÕES PARA REVISITAR A TEORIA DO SONHO afirma invariavelmente que a condição de possibilidade da experiência do sonho
é a retração do investimento do mundo exterior. Freud concebe o espaço onírico
Se o sonho é uma experiência eminentemente pessoal, essa experiência é como fechado [clôturé]por vários motivos.
partilhável, conjunta e comum com a de outros sujeitos? Sustentar essa questão · Por necessidade psíquica: a suspensão momentânea das conexões com o ·
no campo da psicanálise leva a conceber sobre novas bases a noção de um espaço mundo exterior e o investimento do espaço interno por inibição da motricidade
onírico, as condições de formação do sonho, o próprio sonho, o alvo do sonho e são as condições necessárias (mas insuficientes) para que o sonho ocorra, e com
os efeitos do relato do sonho, a natureza do vínculo entre os sujeitos que partilham ele a satisfação do narcisismo do sonho (do sonhador como herói do sonho) e do
tal espaço. narcisismo do sono (o ideal de inércia).
Na época pré-freudiana, mas ainda hoje para a maioria da humanidade, o O espaço psíquico é fechado por um segundo motivo, por necessidade epis-
sonho é um assunto de grupo, mais precisamente de comunidade. Ele possui um temológica, para "cercar apenas o inconsciente" e para ter acesso à sua lógica
valor eminente para o sonhador em sua relação com o grupo, para o grupo e para interna. Desde que o sistema percepção-consciência é posto entre parênteses e a
as relações com os grandes princípios organizadores do mundo 1• ação inibida, o sonho se abre para o mundo interior e a investigação do incons-
ciente se torna possível. Recolhido e interpretado como uma via "real" de acesso
1. Entreos hebreus,egípciose latinos,os sonhossão sonhadospor um porta-sonhos,são ao inconsciente, o sonho assumirá o estatuto de um modelo de inteligibilidade
interpretados,como E. Dooos (1959)mostrounos gregosda épocaclássica,segundoum paradigmático cujo valor consiste em definir a consistência da realidade psíquica
sistemade interpretaçãoregidopor um códigocomume partilhado.Bhojeo caso,ainda,entre tal como ela se manifesta no espaço interno de um sujeito dividido pelos efeitos
os índiospuma dosAndesperuanos,na cultura candombléda Bahia,ou na Córsega,com o do inconsciente. Essemodelo permitirá também qualificar os processos primários
mazzerismoe a funçãoque cabea certasmulheresde sonharos que morrerãona aldeia. que regem essa realidade.
Nestecapírulo,deixeide lado outras determinaçõese outras abordagensdo sonho. Será sobre esse modelo que repousará o método da cura, e é por isso que o
Entreestas,é grandenossadívidaem relaçãoaos fundadoresda antropologiapsicanalltica espaço é fechado por uma terceira razão, devida ao dispositivo metodológico que
do sonho (G.Rohéim,G. Devereux).Emboraseu objetosejadiferentedo nosso,devemos a psicanálise empregou e ao modo de acesso ao sonho que esse dispositivo auto-
muito também aos trabalhosdos sociólogose etnólogosdo sonho. Pensoespecialmente riza. Desde os primeiros tempos da descoberta freudiana, o modelo epistemoló-
nos estudos sociológicosde R. Bastide,J.Duvignaude Ch. Beradt,nas pesquisasetnoló- gico do sonho foi não somente o modelo do aparelho psíquico, mas também o
gicasde R. Caillois,de M. Perrin,B.Tedlocke G. Orobitg-Canal.Não foipassiveidar conta modelo do dispositivo metodológico da cura.
dos trabalhosde G.-W.LAWRENCE {1998),que descobriuuma técnica de trabalho de
grupo, o SocialDreaming. Segundoessedispositivo,a significaçãode um sonho para o concentrano contextosocialno qual surgemos sonhos e em sua significaçãosocial.Ver
"mundo interior" do sonhador permaneceem segundo plano, enquanto a atenção se o desenvolvimentodessaspesquisasem NERI 2001; 2004.
Um singular plural O espaço onirico comum e partilhado 177
176

A congruência epistemológica entre o objeto da psicanálise, a teoria do sonho Nossa questão inicial - "Como pensar a experiência onírica quando a
e o método produzirá uma descoberta, pela colocação em suspensão das variáveis relação dos sonhadores com seus sonhos é atravessada pelos sonhos de outros
que obscureciam seu acesso: a realidade psíquica inconsciente, suas formações e sonhadores?" - pode ser submetida hoje à investigação psicanalítica sobre uma
seus processos. O conhecimento do espaço psíquico do sonho e a descoberta do base clínica suficientemente assegurada. De minha parte, trabalhei com base
trabalho de sua fabricação, de sua lógica interna e de seus conteúdos inconscientes numa dupla abordagem do sonho. Foram os sonhos produzidos em grupo, cujo
foram então possíveis. relato é feito no grupo, que primeiramente retiveram minha atenção. Extraí
A construção freudiana de um espaço psíquico cerrado por esses três motivos dessa abordagem algumas proposições úteis para revisitar o espaço onírico da
não significa que esse espa~o seja pensado como fechado. Porém, há lugar para cura e para interrogar o chamado sonho "individual" tal corno nos é relatado na cura.
pensar que o enquadre fecundo operado por Freud define ao mesmo tempo os Essa abordagem mantém a concepção do sonho como formação intrapsíquica
limites de sua investigação e produz, negativamente, de certa maneira, restos a necessariamente produzida por um sonhador singular, como criação individual
conhecer. Pode~os-supor que aquilo que Freud pensou do sonho não descreve "egoísta" (Freud), mas admite que o sonho está profundamente arraigado na
todas as experiências oníricas de que pode dar conta a psicanálise quando ela se intersubjetividade. Ela explora suas condições, seus processos, seus conteúdos,
apoia apenas no dispositivo princepse paradigmático da cura. São esses limites e seus sentidos e seus efeitos.
restos que tornam necessário revisitar mais uma vez nossa concepção do sonho.

Três proposições sobre o sonho


Revisões da teoria do sonho
Admitimos comumente hoje que o sonho não é mais visto unicamente sob Três proposições principais organizaram minhas pesquisas sobre o sonho'.
o aspecto em que Freud o descobriu: como realização alucinatória do desejo in- - A primeira é a de um espaçoonírico comum e partilhado. Não é inútil
consciente. Se continuamos a compreender o sonho no interior do espaço da rea- lembrar que esse espaço é originalmente estruturado pela capacidade
lidade intrapsíquica em que ele é necessariamente produzido por um sonhador onírica de um outro - a mãe - e de mais de um outro - o grupo
singular, o estudo de suas condições internas, de seus processos, de seus conteúdos e familiar ou a comunidade -, e que essa capacidade é um fator essencial
de seu sentido mostra que o sonho é também uma experiência criadora (MELTZER na fabricação do sonho e no desenvolvimento de suas funções no bebê.
1993), reparadora (KLEIN 1930; 1933), transformadora (ANZIEU 1985). É tam- O grupo familiar é o primeiro berço onírico do recém-nascido. O próprio
bém uma experiência que começa antes do sonho e prossegue depois dele. grupo é "como um sonho" (ANZIEU 1966), é o continente da capacidade
Outra razão para revisitar a teoria do sonho deve-se ao deslocamento, no de devaneio 3 (~ 1976); a família funciona com base nesse fundo ori-
interior do campo da cura psicanalítica, do interesse pelo espaço intrapsíquico do ginário (RUFFIOT 1981).
sonho para seu surgimento e sua função no espaço trânsfero-contratransferencial. - A segunda proposição sustenta a ideia de que, ao lado do umbigo do sonho,
Vários psicanalistas deram atenção à formação, à consistência e ao destino dos que mergulha no micélio corporal, é útil admitir um segundoumbigoda
sonhos cruzados do analista e do analisando, às interferências entre seus sonhos atividadeonírica,que mergulha no micélio intersubjetivo. Retomando a
de sessões e ao estatuto dos sonhos contratransferenciais do analista. metáfora freudiana, admitimos que esses dois umbigos repousam sobre "o
Uma terceira razão para retomar nosso trabalho sobre o sonho reside no desconhecido" de onde surgem os sonhos. Nessa perspectiva, o sonho en-
fato agora estabelecido de que outros dispositivos de trabalho psicanalítico deri- contraria sua substância energética no umbigo corporal e sua substância
vados do da cura foram construídos para responder a outras modalidades de in- relacional e narrativa no umbigo intersubjetivo.
vestigação e tratamento dos efeitos do inconsciente na psique. Seguiram-se no- -A terceira proposição introduz o conceito de polifoniado sonho.Esse con-
vas visões sobre os limites do espaço intrapsíquico, mais aberto em suas fronteiras ceito descreve como o sonho é trabalhado por uma e numa multiplicidade
e interferências com os espaços psíquicos de outros sujeitos. Essa orientação in-
troduziu o sonho num outro espaço, no qual ele encontra outra fonte de fomen- 2. Elas foram expostas em minha obra La polyphonie du réve (2002a).
tação e desenvolve seus efeitos específicos. 3. Cf. a capacidade de devaneio [réverie] descrita por Bion.
178 Um singular plural O espaço onírico comum e partilhado 179

de espaços e tempos, imagens e vozes. Ele integra a ideia de um espaço é a associação de desejos inconscientes que buscam sua via de realização ima-
onírico plural, comum e partilhado, e de dois umbigos do sonho. Obser- ginária e de defesas contra a angústia que suscitam no ego dos participantes tais
vamos que, em cada sonho, restos diurnos e noturnos de seus próprios realizações. 3) Os fenómenos que se produzem nos grupos são análogos aos do
sonhos e daqueles de alguns outros se formam uns em relação aos outros sonho. Eles se assemelham a conteúdos manifestos e derivam de um número
e se interpretam em suas relações de justaposição recíproca. A hipótese da limitado de conteúdos latentes; os processos primários, velados por uma fachada
polifonia do sonho nos conduz a uma "fábrica de sonhos" na qual vários de processos secundários, são determinantes. O grupo, quer ele cumpra de ma-
espaços oníricos 6e interpenetram, em que vários sonhadores acenam neira eficaz a tarefa que se propôs, quer seja paralisado, é um debate com uma
uns para os outros e se fazem ouvir por vários sonhadores, vários ouvin- fantasia subjacente.
tes, internos e externos. Anzieu extrai dessas proposições a ideia de que o sonho é o princípio de
inteligibilidade dos fenómenos psíquicos inconscientes que se manifestam nos
grupos. O grupo é então, como o sonho, a via real de acesso ao inconsciente.
A POLIFONIA DO SONHO NO GRUPO Vários pontos da tese de Anzieu retiveram minha atenção. Para que o grupo
seja esse analogondo sonho, uma retração do investimento corporal por parte da
Nos grupos constituídos como artefatos metodológicos para o trabalho psi- consciência deve se realizar nos sujeitos membros do grupo; uma regressão tó-
canalítico, o sonho se manifesta com outras características que não aquelas que pica e formal, uma atenuação e uma dilatação dos limites do ego, na fronteira entre
prevalecem na cura. Alguém sonha no grupo, faz um-relato que endereça a outros, a sobreposição dos envoltórios individuais e grupais, são indispensáveis. Esse
e o relato desse sonho suscita movimentos psíquicos diversos entre os membros abandono momentâneo dos limites internos em prol do espaço do grupo tem por
do grupo: fala-se a respeito, rejeita-se, faz-se silêncio sobre ele. Na maior parte das contravalor que o espaço do grupo se torna, em parte ou no todo, coextensível
vezes um processo associativo põe-se em ação, um processo interdiscursivo, po- ao espaço interno de cada membro do grupo. O grupo funciona então segundo
lifónico, entranhado nas modalidades e nos conteúdos das transferências, nas o modo que descrevi como isomórfico. Anzieu nos convida a pensar que o grupo
resistências e nos recalques, mas também nas representações até então inacessíveis e o sonho são, sob diferentes formas, espaços do imaginário onírico, lugares de
às quais o trabalho das associações abriu caminho até o pré-consciente. devaneio e de fantasias, mas também de ilusão e do ilusório.
O essencial da proposta deAnzieu era mostrar que o grupo é um dos lugares
da realização onírica de desejos inconscientes recalcados na infância ou na vés-
O estofo onírico do grupo pera. Sua intenção não era restituir ao sonhador sua subjetividade no grupo. Ora,
temos que levar em consideração que essa realização e essa manifestação se pro-
Antes de explorar com dois exemplos as manifestações clínicas do sonho, o duzem em dois espaços psíquicos articulados entre si: o do sujeito singular e o
estatuto do sonhador e o destino do sonho na situação psicanalítica de grupo, do grupo considerado como espaço de uma realidade psíquica irredutível à de seus
proponho voltar à ideia de que o espaço psíquico dos grupos já é ele próprio um sujeitos considerados isoladamente. Mais precisa ainda é a ideia de que os mem-
espaço onírico. O ponto de partida dessa proposição foi um estudo de D. Anzieu bros de um grupo se comunicam por meio de seu ego onírico, e é dessa maneira
(1966) sobre a analogia entre o grupo e o sonho. que se constitui a matéria psíquica do grupo.
Enfim, e ampliando ainda mais o campo, podemos considerar que esse estofo
onírico do grupo é apenas uma versão do fundamento onírico do vínculo inter-
O grupo é "como"um sonho (ANZIEU 1966)
subjetivo. A partir daí, a analogia do grupo e do sonho implica processos psíqui-
A tese comporta três enunciados principais: l) O grupo é "como um cos comuns, que têm a ver com o processo primário: condensação, deslocamento,
sonho": "os sujeitos humanos vão a grupos da mesma maneira que, no sono, multiplicação, difração, figuração, representação e dramatização. Todos esses pro-
entram no sonho". 2) O grupo é o meio e o lugar da realização imaginária dos cessos apresentam-se segundo um princípio organizador dos pensamentos do
desejos inconscientes de seus membros. São seus desejos infantis e seus desejos sonho (a representação-fim): são os mesmos princípios organizadores dos vínculos
da véspera que se realizam nos grupos. Como o sonho, como o sintoma, o grupo de grupo (os organizadores inconscientes, especialmente os grupos internos).
180 Um singular plural O espaçoonlrico comum e partilhado 181

O sonho no estofo onírico do grupo: exemplos clínicos de discordância. Tanto o conteúdo do sonho quanto seu relato, quando o con-
teúdo grupal ainda não estava constituído, fizeram emergir uma das angústias
Um sonhono períodoinicialde um grupo específicas que acompanham a fase inicial da experiência psíquica nos grupos:
a concordância, ou a aparelhagem das psiques através de um organizador sufi-
Durante as noites que precedem o início de um grupo, os sonhos dos par- cientemente comum, partilhado pelos membros do grupo. É por isso que os
ticipantes e dos analistas muitas vezes têm por tema a representação da relação sonhos traumáticos são numerosos no início do grupo, mas nem todos são
confusa dos limites entre o dentro e o fora, a formação incerta do envoltório contados logo na primeira sessão.
grupal ameaçado ou a angt1stia de não estar contido no grupo. Os conteúdos Se nos interrogarmos não mais sobre o. conteúdo do sonho, mas sobre o
transferenciais desses sonhos são geralmente muito intensos, como neste sonho efeito do relato do sonho, parece que o sonhador inicialmente "atuou" urna ten-
tido na véspera do início de um grupo por Robert e relatado por ele logo na pri- são vivida como paradoxal na fase inicial da experiência grupal: o paradoxo
meira sessão: "Eü° chegava para o ensaio de urna pequena orquestra; segurava consiste em ser e não ser do grupo. Trata-se ao mesmo tempo, para o ego dos
meu violino pela mão e estava bastante inquieto para saber se eu conseguiria participantes, de se afirmar inteiro e singular, contra a regressão para o parcial e
afinar meu instrumento com os dos outros músicos da orquestra, havia muitas o impessoal, e de se constituir como elemento perfeitamente ajustado de uma
dissonâncias, e de repente meu arco não tinha mais cordas. O maestro me olhava unidade maior, como membro do "corpo grupal" unificado. A exigência de ser
fixamente e eu só podia abaixar meus olhos''. ao mesmo tempo indiviso e membro de um grupo mobiliza angústias de cassa-
Seu relato não susciton qualquer associação, pelo menos nas palavras pro- ção e de dissonância interna (ou mesmo de clivagem), resultado do conflito que
nunciadas, somente alguns risos (a propósito do pequeno violino seguro pela divide o ego entre sua autoconservação e as partes que ele próprio terá de
mão). Vários participantes dirão ter ficado paralisados pela ameaça de que esse abandonar (e que ele vive como castração), a fim de realizar seu desejo de ser 1.
sonho seja premonitório de um fracassodo grupo,e o sonhador será agredido como integrado a um grupo unido. Essa exigência se resolve de modo geral (e provi-
se ele houvesse atacado as condições para que se crie a ilusão grupal necessária soriamente) na ilusão grupal. É esse conflito que organiza o sonho de Robert,
para a formação do grupo. A elaboração do sonho só poderá ser empreendida mas seu relato é recebido num campo que não permite transformar em ilusão
depois que os participantes tiverem compreendido que o sonho tivera para eles esse momento paradoxal.
essa repercussão e que ele atualizara seus mecanismos de defesa contra a ameaça O exemplo do sonho de Robert mostra bem que o sonho não podia ser trans-
de não se afinar, precisamente no momento em que todos seus investimentos formado enquanto a função continente do grupo não estivesse constituída, mas
estavam voltados para esse projeto. O sonhador, por seu lado, reconheceu que, mostra também que esse sonho pode ser elaborado, na sequência, no processo
por meio desse relato, ele carregara o grupo com sua angústia de não fazer parte grupal, e ser interpretado no movimento das transferências.
do grupo, o que seu sonho figurava como sua angústia de ser castrado de seu Constituir grupo e estar em grupo suscita uma tensão fundamental entre as
instrumento e sua vergonha diante dos outros, angústia facilmente observada exigências de contribuir para a unidade do grupo e para a manutenção do nar-
pelo próprio sonhador e pelos membros do grupo. O sonho adquire sentido e cisismo grupal e aquelas do sujeito singular em seu desejo de ser para ele seu
valor em sua transferência preliminar para o psicanalista e para o grupo, ambos próprio fim e se diferenciar dos outros. A atividade onírica inscreve-se nessa
destinatários do sonho: ele esperava ser tranquilizado pelo maestro sobre sua tensão em equilíbrio instável. O sonho e o relato do sonho, produção pessoal,
potência e contra os olhares reprovadores da orquestra. mas desde então partilhável, seguem essa oscilação e mobilizam essa tensão entre
O sonho de Robert é um sonho de grupo\ ele mobiliza a grupalidade in- o narcisismo do sonhador e o narcisismo do grupo. Vimos com esse exemplo que
terna do sonhador e de todos os participantes. É um grupo interno ameaçado essas exigências narcísicas não se comunicam entre si: é o que ameaça o grupo e
cada participante nessa fase inicial.
4. Certossonhos,que nos são relatadosdurante urna cura psicanalíticaindividualou urna
sessão de grupo, põem em cena vários personagensem relaçãoreciproca, seu conjunto
formando um pequeno grupo, uma assembleiamais ampla ou uma multidão. Chamei sonhador, são a cena de seus personagense de seus objetos internos. Fiz um estudo
esses sonhos de "sonhos de grupo". Elessão uma forma de figuraçãodo ego onirico do aprofundado dessessonhos em Lapolyphonie du rêve.
182 Um singular plural O espaço onlrico comum e partilhado 183

A articulaçãoentreo espaçooníricodo sonhadore o dogrupo:o sonhodeMichele recorrer à função continente do grupo, o sonhador faz outra tentativa para
encontrar um continente, ele produz um acting (Pontalis e Khan), ele
O sonho de Michele, já longamente analisado, permite retomarmos à arti- "sonha fora" (Racamier) ou traz um objeto externo real (Friedman).
culação entre o espaço onírico do sonhador e o do grupo. Mostramos que seu - Uma função de representação cenarizadae dramáticado aparelho psíquico
sonho se formou a partir dos restos diurnos que circularam na véspera sem poder grupal e das localizações subjetivas de cada um nesse espaço. A localização
simbolizar-se para o grupo. Michele sonha para si mesma, mas sonha também privilegiada do sonhador na tópica, na dinàmica e na economia grupais
no espaço onírico do grupo. O relato de seu sonho suscitou um movimento de- e, portanto, nas dimensões das transferências é a do porta-sonhos.Tentei
fensivo contra a fantasia de sedução sexual do filho pelo pai, mas forneceu a cada apontar que necessidades internas levam determinado sujeito mais do
um dos membros do grupo e para o grupo como um todo modelos de figuração que outro, pelo movimento de seu próprio desejo, a realizar uma função
dos conflitos inconscientes que os atravessam e localizações nas cenas fantas- fórica de porta-sonhos. Pode-se também questionar a codificação do
máticas que os ôrganizam. porta-sonhos nos grupos, famílias e instituições, e tentar compreender
Notemos aqui uma particularidade do relato do sonho nos grupos: o sonho como são mobilizados, ao lado dos processos primários e secundários,
é utilizado por outros ( alguns outros) que não o sonhador: é posto à sua disposição, processos que obedecem à lógica social e cultural, especificamente mito-
faz sentido para os outros e, no campo grupal, é provável que o que faz sentido poética, e fazem do relato do sonho em grupo um instrumento terapêutico
para uns não faça para outros. A estrutura polifónica e interdiscursiva do sonho maior, conhecido desde a Antiguidade.
·supera o sentido que é próprio do sonho para o sonhador, e é no processo asso- - Uma função evacuativado sonho (Bion, Bérnard, Gaburri, Friedman),
ciativo que surgem as associações que permitiriam encontrar o sentido do sonho que consiste em se livrar do desejo pelo sonho, mais do que em elaborar
para o sonhador: no que chamo de trabalho da intersubjetividade. os desejos que se quer realizar. O que Meltzer teorizou na cura como o
seio-toalete se aplica também ao grupo, que é investido e utilizado como
um seio-toalete. Podemos incluir nessa categoria os sonhos profusos ou em
As funções do sonho nos grupos avalanche. Eles podem ou não favorecer a elaboração psíquica no grupo,
o fator decisivo sendo sua utilização nas transferências.
Com base nas análises que efetuei, proponho uma visão de conjunto sobre Podemos verificar que essas cinco funções são aquelas que o relato do sonho
as principais funções do sonho nos grupos: de Michele cumpre no grupo: antes de seu sonho, o sintoma de Marc se apoia na
- Uma função de retornodo recalcadonuma figuração aceitável pelo pré- alegação da realidade do acontecimento que "o marca•: do qual ele recebeu "a
consciente do sonhador. Essa figuração é proposta ao grupo no relato do marca". O relato do sonho, o trabalho associativo e a análise das transferências
sonho. Ela também tem, portanto, uma função no grupo. O relato do facultam acesso à atribuição de sentido de seu sintoma: o acesso à fantasia e ao
sonho e as associações dos membros do grupo fazem emergir significantes pensamento de sua relação incestuosa com seu pai mobilizará um processo de
até então indisponíveis para outros membros do grupo e que se tomam transformação de sua representação, confusa e levando à confusão, do trauma.
utilizáveis por eles. Mas também tal ou qual participante terá acesso à sua fantasia incestuosa em
- Uma função continente,que consiste no tratamento intersubjetivo dos pen- seguida ao relato do sonho e às associações dos membros do grupo.
samentos e afetos inconscientes, dos restos diurnos portadores de signifi-
cações que permaneceram inconscientes e carregadas de investimentos
pulsionais reprimidos na véspera. O sonho, como o grupo, é um espaço Sobre o que incide o trabalho de análise do sonho em grupo?
psíquico partilhado no qual se produzem efeitos de contenção e de trans-
formação, tanto para o sonhador quanto para o grupo. No grupo, a função Sobre essa base, podemos especificar sobre o que incide o trabalho de análise
gama (Corrao) é uma criação dos membros do grupo, ela sustenta a fun- do sonho em grupo. De meu ponto de vista, consiste essencialmente em expor o
ção continente. Ela se manifesta pela busca e pela realização da função alfa espaço onírico comum e partilhado no qual se representam as formações do in-
de um outro, de mais de um outro, do próprio grupo. Quando é impossível consciente dos sujeitos em seu encontro com o outro (mais de um outro). Nem
184 Um singular plural O espaço onírico comum e partilhado 185

sempre é útil trabalhar sobre o conteúdo do sonho, mas, em todos os casos, certos sonhos se formam no cruzamento de vários espaços oníricos comuns,
parece-me necessário trabalhar com base no fato de que um relato foi efetuado. conjuntos e partilhados. Vamos a alguns exemplos.
O destinatário do sonho se constitui antes do sonho, é parte integrante da
fabricação do sonho e do relato do sonho, e desse modo o sonho inclui o outro Os dois irmãos e a matriz materna de seus sonhos
em seu conteúdo latente. Precisamos, por isso, estar atentos a várias coisas: à
maneira pela qual o sonho é recebido, se ele é rejeitado ou ignorado, ou se ele Quando eram pequenos, meu paciente e seu irmão caçula partilhavam o
suscita associações. Esse é' umindicador muito bom do processo grupal, da mesmo leito. Brigavam bastante, algumas vezes de maneira violenta; ficavam
situação das transferências.'É útil observar como o relato do sonho é utilizado muito tristes e desejosos de sereconciliar. Quando evoca essa época, meu paciente
pelo sonhador nas transferências sobre os terapeutas, sobre os membros do encontra esta lembrança: certas noites, antes de dormir, os dois irmãos contavam
grupo e sobre o p.róprio grupo. Para não perder seu sonho, o sonhador precisa um para o outro os sonhos que tinham tido na noite anterior, com a ideia de
encontrar um ou"vinfe,após tê-lo inventado em seu sonho. Não penso que seja sonhar os mesmos sonhos na noite seguinte. A partir dos restos noturnos de seus
necessário requerer ao sonhador suas próprias associações, porque isto seria uma sonhos, eles fabricavam restos diurnos comuns. Determinada palavra, certa emo-
transgressão da situação psicanalítica de grupo, fazendo-a desviar para uma si- ção, uma dada imagem tinham essa função de pôr em funcionamento sonhos
tuação de pseudocura individual em grupo. em que eles reencontravam os mesmos personagens, os mesmos animais que
Convém conceder uma atenção particular à localização tópica e à função haviam sido evocados antes de dormir. Eles conseguiam com frequência realizar
econômica do porta-sonhos no grupo. Os sonhos dos porta-sonhos são atraves- seus sonhos, ou talvez, ao contá-los um para o outro, fizessem um relato que os
sados pela polifonia do espaço onírico. Nas situações psicanalíticas que analisei, levava a pensar que tinham conseguido realizá-los. Se o sonho conseguira uni-los,
os porta-sonhos sonham na transferência, para alguém ou para alguns; eles eles não brigavam mais o dia inteiro, como se tivesse cada um a guarda desse
sonham também "no lugar" de alguém ou de alguns. Esse sonhadores se tomam sonho e dos objetos que eles haviam posto em comum.
porta-sonhos sob o efeito da necessidade interna de estabelecer por meio de Certa noite, antes de dormir, eles evocaram um romance de aventura, O es-
identificações adesivas e projetivas normais um espaço psíquico mais amplo que quadrãobranco,que os apaixonava, e eles prometeram ir um dia juntos ao deserto,
o seu, de depositá-lo num continente extratópico, o de um outro, de mais de um perseguir gazelas, como os animais que eles viam às vezes nas florestas. Na noite
outro, de todo um grupo. seguinte, ambos sonharam "quase o mesmo" sonho, o qual eles relataram ao acor-
Tanto nos grupos como na cura, precisamos conservar em mente o que dar: um pelotão de meharistas5se perde no deserto e, para sobreviver, persegue
Freud dizia a respeito da interpretação: ela é infinita, uma vez que, em última um grupo de gazelas. "Em meu sonho, desejo que os meharistascapturem uma,
análise, o centro irredutível do sonho permanece na sombra e põe em xeque uma eles têm fuzis muito potentes, mas que eles não a matem. Meu sonho termina no
interpretação exaustiva do sonho. Supusemos duas e isto deve nos tomar ainda momento em que eles se aproximam da gazela. No sonho de meu irmão, os meha-
mais prudentes, pois sabemos agora que o verdadeiro sonhador do sonho per- rístassão socorridos por urna patrulha que partiu em sua busca."
manece uma questão em aberto. A especificidade do sonho de meu paciente deve-se ao fato do que ainda não
foi simbolizado do vínculo com seu irmão. O que permanece obscuro quanto a
esse vínculo, e que se insere tanto nas relações precoces do bebê e sua mãe quanto
O ESPAÇO ONiRICO COMUM E PARTILHADO NA SITUAÇÃO DA CURA PSICANALiTICA. nas raízes do complexo fraternal, é conduzido sobre a mesma cena onírica pelo
ESTUDOS CLiNICOS segundo ponto umbilical do sonho. É desse ponto umbilical interpsíquico, que
forma a matriz materna de seus sonhos, que surgem os materiais do sonho. O
Tentei estabelecer que o conceito de um espaço onírico partilhado e comum que o sonho de meu paciente realiza é primeiramente o desejo de sonhar os
a vários sonhadores dá conta da ancoragem do sonho numa matriz intersubjetiva. mesmos sonhos num espaço onírico comum e partilhado com seu irmão.
Esse conceito significa que cada sonhador sonha no espaço de uma pluralidade
de sonhadores, cujos sonhos atravessam os sonhos de cada um. A situação da 5. Méharistes:tropa montada que utilizava camelos como montaria e patrulhava o Saara.
cura individual nos traz elementos importantes para acomodar a ideia de que (N.doT.)
Um singular plural O espaço onírico comum e partilhado 187
186

o desejode se encontrar no mesmo esp~ço onírico bus~ sua vi~ de re~ção sobrevêm ao analista, a ajuda preciosa que ela obteve ao sonhar sobre seus pa-
nos objetos oníricos comuns.O espaço onírico comum duplica~ leito partilha~o, cientes desarmônicos "nos momentos em que eles [a) confrontavam pondo [-a) à
evidencia as questões incestuosasdo vínculo que une meu paciente com seu ~- prova no limite do suportável" (1984, p. 244). Os sonhos de sessões que ela tinha
mão: sua estratégia mobilizaas induções no trabalho da véspera para fazer surgir, apresentavam as características descritas por M. Neyraut entre os analisandos
em cada um de seus própriossonhos, o desejo de um de se encontrar com o outro. que têm esse tipo de sonho: assim como no analisando, a proibição de contato não
As associações do sonhador o conduzem para o que o sonho comum pre- é mais respeitada, o espaço íntimo é penetrado. Os sonhos das sessões remetem
serva: 0 vínculo de amor nàrcísicohomossexual que assegura sua defesa conjunta o analista a um estatuto de paciente e lhe dão a medida desses conflitos psíquicos
contra os sentimentos hostisque eles experimentam um em relação ao outro, con- despertados ou redespertados pela situação analitica e implicados em seu com-
tra a rivalidade fraternal,contra os pensamentos de assassinato do outro: eles são prometimento com a psicanálise. Eleso preservam também, observa M. Enriquez,
deslocados sobre ,as gazelas,que não são mortas. No capítulo 4 de Totem e tabu, "dos riscos do agir e do desinvestimento tão tentadores nas curas difíceis, e teste-
Freud refere-se a~ estudo de W. Robertson Smith para descrever o que constitui munham um esforço e um desejo de reuriir, ligar o processo e a situação, em
a substância comum que une os membros de um clã: a Kinship6 é continuamente suma, de reequilibrar a cura" (1984, p. 244-245).
retomada pela refeição em comum, que assegura que são feitos da mesma subs- A análise de um sonho de sessão do analista nos traz elementos suplementares
tância. Penso que O sonho comum e partilhado é uma expressão da Kinship.Assim para explorar o espaço onírico partilhado na cura. Trata-se de um sonho relatado
como na refeiçãoem comum que cimenta a Kinship,a realização noturna da fan- a meu colega A. Missenard (1987) por uma analista, Jennie, que ele recebe em
tasia de sonho comum os protege da hostilidade durante o dia todo. supervisão a propósito da cura de um de seus pacientes. Num período em que
Nessa medida, cada um dos sonhadores está em contato com "o lugar onde ela sente estar seu analisando aborrecido durante as sessões, Jennie relata que,
esse ponto umbilical repousa sobre o desconhecido", com essa outra parte do durante uma sessão, ela cochilou um instante e teve o seguinte sonho: "Gérard
inconsciente articulada na experiência corporal. Seus sonhos não são idênticos, apoiava sua cabeça em meu colo''. Esse sonho lhe parece edipiano e a remete à
eles possuem traços comuns e partilhados, mas cada um sonha o seu sonho sus- história do paciente. Circunstâncias sociais afastaram o pai de Gérard durante
tentado pelo mesmo desejo: unir-se ao irmão no espaço onírico imaginário co- vários anos de sua infância, ele então ficou só com sua mãe; seu pai voltou depois,
mum. É nisto que seu sonho é "quase o mesmo sonho" que o de seu irmão. mas morreu rapidamente. O material dominante durante esse período da cura é
ilustrado por sonhos de mar revoltoso com ondas aterradoras, no qual ele se en-
contra numa trilha montanhosa, em situação de perigo. É necessário um resgate.
Sonhos do analista, sonhos do analisando A transferência é positiva, é bastante forte, mas contida. Disto procede, sem dú-
vida, sua incapacidade de sonhar outras fantasias além dessas representações ater-
Todos os analistas já sonharam com seus pacientes, mas raros foram atentos radoras de mar.
aos efeitos de seus sonhos sobre os sonhos de seus pacientes, e reciprocamente. Missenard formulou a hipótese de que o sonho da analista responde à in-
1
Raros também foram os que concederam atenção a seus "sonhos de sessão" • M. sistência de imagos maternais ameaçadoras, pré-genitais, numa manifestação
Enriquez observou o que se produz na contratransferência quando tais sonhos edipiana. "Ao paciente caberia a expressão da resistência e à analista a figuração
da transferência em seu sonho."Esse sonho consiste, na psique do analista, "numa
6. Kinship:parentesco. Em inglês no original. (N. do T.) elaboração da problemática do caso de maneira quase análoga, em seus efeitos,
7. M. N EYRAUT descreveu entre os analisandos esse tipo de sonho, cuja particularidade é ao que teria sido o mesmo sonho se o paciente o tivesse tido (e ousado exprimir)';
referir-se à situação psicanalítica. Devido à sua complexidade e à sua organização, esses o que confirma a tese de M. Enriquez. Nessa perspectiva, a analista funciona
sonhos constituem bons indicadores da integração do processo analítico e da evolução como uma parte da psique do paciente, como numa relação de trocas transicio-
da neurose de transferência. Eles testemunham uma "dramatização da neurose em tomo da nais entre uma mãe e seu bebê. Produzem-se em seguida transformações na vida
· - ps,cana
s1tuaçao · uu· ca ", uma transgressão imaginária das regras desta, sua especificidade
. social, profissional e amorosa do paciente. É sem dúvida interessante notar que
consistindo em traduzir que uma "ponte simbólica se estabeleceu entre as condições da o analisando sonha na sequência que ele é recebido por sua analista por ocasião
análise e um~ relação infantil determinada" ( 1974, P· 245). de uma recepção: aqui aparece um sonho de sessão que é um sonho de grupo.
188 Um singular plural O espaço onírico comum e partilhado
189

Podeáamos nos perguntar se, para que o sonho da analista tenha tido efeitos Freud foi o primeiro a nos falar desse espaço onírico pré-natal quando es-
clínicos e dinâmicos sobre a evolução do paciente, bastou que seu desejo incons- creveu (1914) que "Sua Majestadeo Bebê" foi sonhado pela mãe quando estava
ciente tenha se tornado representável no pensamento da analista. Eu acompanho em seu útero, e antes que elese fixelá, pela mãe, pelo pai e pelo conjunto do grupo
sem problemas o comentário de Missenard quando ele escreve que "o sonho familiar.A criança é a portadora e a esperança de realizaçãodos "sonhos de desejo
traduz o desejo inconsciente do paciente que se incrusta na psique da sonhadora, irrealizados" daqueles que o precederam e engendraram. É sobre esses"sonhos de
que, literalmente, tem par~ e\e o sonho que ele não pode ter por si mesmo"; mas desejo irrealizados"que a criança,como escreveFreud, apoia seu narcisismo. Pode-
ele acrescenta que "o so~o da analista, no caso, exprime o desejo edipiano do se imaginar que o que Bion chamará mais tarde de função maternal do sonhar se
paciente, mas também a contratransferência da analista''. estabelece desde esse espaço onírico pré-natal. A mãe e o conjunto familiar so-
Esse ponto é capital: nesse exemploª, podemos considerar que a analista nham o bebê imaginário,eleso incluemem seu sonho, lhe concedemum lugar.Nesse
sonha com seu paciente, sem dúvida por ele, em seu lugar. Mas é não menos certo momento, sua psique não é separadadaquelas dos que formam seu berço psíquico.
que a psicanalista s~nha por si mesma. Penso que é sobretudo porque a analista Assim, a espera de uma criança a inscreve na organização psíquica incons-
sonha para si mesma que o sonho adquire, no campo trânsfero-contratransfe- ciente do casal parental e da família. É nessa organização que seu próprio desen-
rencial, seu valor de representação figurativa para seu paciente. Se tal é a con- volvimento afetivo, mental e relacional poderá se desemolar, segundo linhas de
sistência do espaço onírico comum, o trabalho da analista incide sobre a psique for~a e ~stru~ras em parte preestabelecidas por seus sonhos comuns. Suas pri-
comum que se desenvolveu entre eles, o que Missenard justamente especifica, me1ras identificações, seus primeiros vínculos, seus ideais, seus mecanismos de
propondo que "o sonho da psicanalista concerne à organização psíquica incons- defesa, seu pensamento se apoiarão nesse berço psíquico.
ciente que se desenvolveu entre os dois parceiros do par psicanalisando-psica- Numerosas proposições falam em favor da hipótese de uma abertura da
nalista: o sonho é sua simbolização''. psi~ue para a psique dos outros mais próximos, ou sua inclusão na de lugares psí-
Num espaço onírico comum, o sonho é a cocriação de vários sonhadores. qmcos comuns e partilhados. As pesquisas de D. Meltzer o levaram a supor um
Esse espaço não diz respeito somente ao sono e ao sonho, mas também à véspera, estado primitivo da psique cujos contornos fluidos e fronteiras mal definidas
ao relato dos sonhos e a seu compartilhar, à capacidade de jogar com os sonhos, criam zonas indistintas. Tampoucofaltam referências em M. Mahler. Por sua vez,
às fantasias e aos pensamentos. O espaço onírico participa do tom transicional, H. Searles supôs em todo indivíduo uma tendência a estabelecer"relações sirn-
da ilusão fundadora de uma continuidade entre a realidade psíquica e a realidade bióticas"que testemunham a sobrevivência,em cada um, de um estado original de
externa, o que torna possível explorar sem conflito suas flutuações e seus limites. não-divisão e de indistinção entre si e os outros. É uma ideia análoga que propõe
J.Bleger com o conceito de vínculo sincrético. As pesquisas desses psicanalistas
permitem qualificar seja espaços psíquicos comuns a vários sujeitos, seja partes
O espaço onírico originário: o berço psíquico do recém-nascido comuns à psique dos sujeitos de um conjunto.

O feto sonha no útero materno, os registros de sua atividade cerebral permi-


O efeitodo sonho maternosobreseu bebê
tem pensar isso e especificam que ele sonha ao mesmo tempo que sua mãe. Esses
dados nos são preciosos, mas não sabemos nada sobre seus sonhos, pois ele não De meu conhecimento, existem ainda poucas pesquisas psicanalíticas sobre
os relata. Supor reminiscências relança a questão dos traços precocíssimos e de a existência e os efeitos dessesespaços oníricos comuns pré-natais e pós-natais.
sua transformação. Em todo caso, podemos imaginar que esse cossonhar forma As consultas mãe-filho abrem acesso a isso, pois é com frequência após uma per-
um espaço psíquico comum. turbação nesse espaço que os pais (a mãe, na maioria dos casos) vêm se consultar.
Sabemos que a mãe, o pai e o ambiente familiar sonham a criança. Eles so- Muitas vezes trata-se de problemas na capacidade de sonhar.
nham "uma criança" imaginária, narcísica, edipiana, eles sonham monstros ou L. Kreisler (1984) relata o caso de um bebê de 4 meses acompanhado em
crianças mortas, sonham uma criança divina ou heroica. consul_tapor ele devido a gravesperturbações do sono, seguidas de agitação, gri-
tos e dificuldades alimentares.Nascido em estado de morte aparente, o bebê fora
8. Como em vários outros sonhos que descrevi em La polyphoniedu rêve. reanimado. Sua mãe, durante a anestesia,tivera um choque forte e quase morrera.
190 Um singular plural O espaço onlrico comum e partilhado 191

A história que precede o nascimento da criança é excepcionalmente marcada sivos que põem cada um em contato com as partes infantis de sua própria his-
pela morte e pela doença na fratria da mãe: ela mesma tivera um aborto invo- tória, e especialmente com os mitos familiares nos quais são representadas as
luntário um ano antes, enquanto sua irmã mais velha perdia um bebê in utero. figuras ancestrais e o destino das crianças. Suponho que o sonho se liga a essa
Durante sua gravidez, perdera outra irmã por morte violenta, e no mês seguinte organização psíquica inconsciente partilhada, e que as inscrições que deixam
um irmão tivera uma doença repentina e grave. Para prevenir um parto prematuro, vestígio na psique da criança reaparecem nos sonhos de seus familiares e, ulte-
ela ficou deitada nos últimos meses de sua gravidez. A mãe não sonha mais. riormente, nos dela.
Ao longo da consulta, L. Kreisler questionou a tese sustentada pela pediatra O que enfatizo aqui é que o sonho aparece como o lugar da comunicação
e pela própria mãe sobre o taráter orgânico das perturbações de seu bebê. Abriu primordial inconsciente tanto no espaço intrapsíquico da mãe quanto no espaço
caminho, assim, para uma exploração da doença atual em suas relações com os comum e partilhado que a liga a seu bebê. Essaobservação confirma uma das
acontecimentos advindos durante e antes da gravidez. Na consulta seguinte, da funções importantes da psique materna: assegurar a proteção contra as excita-
qual particip~ o pai e a mãe, as perturbações do bebê haviam desaparecido. A ções do bebê e constituir para ele, graças à função alfa, os elementos de um
mãe relata que, com a morte de sua irmã, temera ter um aborto e havia se esfor- aparelho para pensar os pensamentos (Bion). Acrescentarei que a atividade de
çado para trancar sua tristeza a sete chaves. Depois, contou espontaneamente o porta-palavra desempenhada pela mãe e a função do pré-consciente parental
seguinte sonho: "Uma refeição, a grande mesa da famllia na qual não falta nin- têm um papel decisivo na estruturação da vida fantasmática do bebê, na insta-
guém. Jeanne [a irmã morta) encara e ri; ninguém se espanta; porém, todos sabem lação do dispositivo paraexcitador e na construção do aparelho de linguagem.
que ela está realmente morta~ Todas essas funções contribuem para definir a consistência do espaço psiquico
Em um comentário a essa consulta, A. Missenard ( 1985) enfatizou como o comum e partilhado.
restabelecimento da capacidade de sonhar da mãe está diretamente ligado ao
destrancamento do ferrolho repressivo de sua tristeza por ocasião da morte de sua
irmã, e que é a consequência do questionamento, por Kreisler, do diagnóstico or- OS CONCEITOS DE ESPAÇO ONIRICO COMUM E PARTILHADO,
ganicista sobre a doença do bebê. Ao propor à mãe que havia algo por trás da DE UMBIGO INTERSUBJETIVO DO SONHO E DE POLIFONIA DO SONHO

fechadura, Kreisler se pôs como a parte dela mesma que estava reprimida e que PODEM NOS ESCLARECER SOBRE OS PROCESSOS GERAIS DO SONHO?
podia voltar a ficar acessivel. O sonho restabeleceu a comunicação com a figura
da criança morta. A mãe literalmente reanimousua criança e ela própria por meio Ao final deste capítulo, adquirimos o seguinte: no dispositivo da cura, assim
de sua atividade onirica. como no do grupo, o espaço onírico de cada sujeito é atravessado pelos sonhos
Isto posto, subsiste uma segunda questão: quais são os mecanismos e moda- cruzados do outro, de mais de um outro. A formação do sonho, bem aquém de
lidades da ação do sonho materno sobre a evolução da criança? f preciso lembrar seu destinatário, traz a marca do encontro com o outro, o outro do objeto e o
aqui que a psique do bebê ainda não possui limites próprios, que seu funciona- outro no objeto, pois ele se produz num espaço onírico comum, um espaço po-
mento, essencialmente psicossomático, liga-se ao lugar que ele ocupa na psique roso, estranho e, às vezes, inquietante. Além do desejo dos sujeitos que desejam
materna. Além disso, o caráter "direto, imediato e mais precoce que toda relação sonhar juntos, questionei o trabalho realizado pelo sonhador no espaço onírico
de objeto" (FREUD 1923b) que qualifica os vincules primários entre a mãe e a comum e as funções realizadas pelo sujeito porta-sonhos de outros sujeitos.
criança deve-se essencialmente ao papel desempenhado pelas identificações Mostrei como se efetua a reapropriação do espaço "egoísta" do sonho por meio
projetivas empáticas, nas quais os vincules se formam a partir da projeção de si do processo associativo.
no objeto e da identificação de partes do objeto a partes de si. Enfim, o narcisismo Os resultados que obtivemos podem nos esclarecer sobre os processos gerais
primário na unidade dual mãe-filho desempenha um papel determinante no do sonho? Em que eles modificam nossa escuta da experiência onírica? E como
espaço onírico comum e partilhado. essa escuta nos leva a pensar de outro modo os limites do espaço psíquico? Indi-
As hipóteses apresentadas para dar conta desse efeito do sonho materno sobre quei brevemente, no início do capitulo, as três principais hipóteses com base nas
a psique da criança possuem caráter mais geral. Para cada um dos membros do quais se organizaram minhas pesquisas sobre o sonho: elas foram postas à prova
casal e da família, a vinda de um recém-nascido é ocasião de movimentos regres- na clinica da cura e nos grupos. Examinemos o que ocorreu com elas.
192 Um singular plural O espaço onlrico comum e partilhado
113

Um espaço onírico comum e partilhado entre vários sonhadores Os pensamentos do sonho aos quais se tem acesso por meio da interpretação
devem permanecer, de maneira geral, sem fechamento [clôture], e partir de
Supus inicialmente que o sonho é elaborado por um ou vários sonhadores todos os lados na rede embrulhada do mundo de nossos pensamentos. De um
no cruzamento de sua aparelhagem intersubjetiva e de sua ressonância identi- lugar mais denso dessa rede, o desejo do sonho surge como o cogumelo de seu
ficatória e fantasmática com os sonhos de outros sonhadores. Esses sonhos li- micélio(G. W.ll-III, p. 530).
gam-se uns aos outros nci estofo onírico de que o grupo, a família e o casal são
feitos. É o caso também qÚando, na cura, os sonhos se cruzam e se.respondem. O que, no desejo do sonho, surge do mais profundo do inconsciente está
Ao acentuar o espaço onírico partilhado e comum a vários sonhadores, não ancorado na experiência corporal e transita através do umbigo do sonho: é nesse
perco de vista gue o sonho é a criação de um sonhador, que ele é "egoísta''. A conduto, nesse lugar de passagem e de transformação que se forma o tecido em
capacidade de sonfiar, o desejo do sonho, o trabalho do sonho, as funções e o que se mesclam interior e exterior, a apropriação e a sujeição, o ativo e o passivo.
sentido do sonho na experiência onírica são determinados, segundo proporções Penso que o primeiro umbigo se comunica com o segundo umbigo do sonho.
variáveis, em cada um desses espaços. Com çerteza, elementos figurativos pessoais Certos elementos do sonho referem-se, de maneira predominante, à estrutura
entram na fabricação do sonho quando ele se produz num grupo: o fato de que profunda do mundo interno do sonhador e a esquemas de figuração que são os
o sonhador sonhe por outro, com outro, num outro não diminui o fato de que é o grupos internos. Porém, o inconsciente do sonhador escolhe elementos de figu-
sonhador que fabrica séu sonho. Quando certos elementos do sonho são code- r~ção e de encenáção que são determinados por sua situação no vínculo. É nesse
terrninados pelo espaço onírico comum e partilhado, por efeito da situação inter- micélio onírico intersubjetivo que se alimentam os sonhos. Trata-se de outro
subjetiva, o inconsciente do sonhador escolhe determinada cena, e não outra, e espaço germinativo no qual o sonho "repousa sobre o desconhecido''.
essa "escolha" depende de sua própria história e da presença do outro nela, como Nos grupos, o sonhador fabrica seu sonho com os materiais diretamente
objeto interno. Não perco de vista, tampouco, que o desejo de sonhar no espaço em~restados ao grupo, ele sonha o impensado do grupo ou de um participante
onírico comum é uma realização do mais antigo desejo do ser humano. (Michele para Marc). Essa proposição estende-se a outras figuras do vínculo,
Outros sonhos organizam-se de maneira predominante com os materiais corno no exemplo que mostramos do par mãe-filho, no sonho dos dois irmãos
(cenas, afetos, fantasias) mobilizados nos vínculos intersubjetivos, porque existe e no sonho da analista. O que é notável é que um mesmo elemento serve para
enigma a figurar, trauma a reparar, angústias a transformar, desejo de reencontrar figurar o mundo interno e pensamentos ainda não figurados no grupo.
aquém ou além da separação, uma matriz onírica comum. Eis por que digo que
cada sonhador sonha na encruzilhada de várias fábricas de sonhos, no espaço
A polifonia do sonho
que liga uma pluralidade de sonhadores cujos sonhos atravessam os sonhos de
cada um. Há lugar de falar, portanto, de uma politopiado sonho. A terceira hipótese permitiu-me descrever como, a partir das conexões entre
os dois umbigos do sonho e da for~ação de um espaço onírico plural, comum e
partilhado, o sonho se organiza como uma combinação de várias vozes ou de
Os dois umbigos do sonho
várias partes de voz, de várias imagens, de vários quadros que formam um todo'.
Formulei uma segunda hipótese: o sonho teria dois berços, dois pontos um- O sonho é uma polifonia de várias "escritas" do sonho, ele tem sua fonte numa
bilicais. Para especificar essa hipótese, apoiei-me na metáfora freudiana do série de enunciados e enunciações constituídos na infância, na véspera ou em
umbigo do sonho.
9. A referência à noção de polifoniana teoria musical nos indica uma organizaçãode
Nos sonhos mais bem interpretados [escreve Freud], deve-se muitas vezes váriasvozesou vários sons. Porém,no contextoem que utilizamosa noção de polifonia,
deixar um lugar na sombra porque se observa, com a interpretação, que há aí um esta devecompreender também a matéria icónicae as formasvisuaisdo sonho. :Êpreciso
encavalarnento (ein Knauel) de pensamentos do sonho que não poderia ser falar então de poli-iconia do sonho, ou ainda de políptico, caso se deseje dar conta de
desfeito, mas que não traz qualquer contribuição suplementar ao conteúdo do numerosasdobras do sonho nos quadros_que se ligamentre si. Por convenção,admitimos
'----- -- ""'" ,.J,.rPnousa sobre o desconhecido. que o termo polifonia, mais eufônico,assume todas essasdimensões.
194 Um singular plural O espaço onlrico comum e partilhado
195

outros sonhos, em cenas reais e fantasmáticas que encontram um espaço de fi- Para continuar
guração no sonho, deformadas pelo trabalho do sonho. As interferências entre a
diversidade de fontes, materiais e funções criam a polifonia do sonho. Se o sonho se forma nas condições que supus, e se a experiência onírica é
Tratei da polifonia do sonho num duplo nível: um desses níveis é o de sua qualificável pelas três dimensões que descrevi, o sonho é essa via "real" de
organização polifônica interna. Só podemos ter acesso à organização polifônica acesso ao inconsciente, e a perspectiva que proponho deverá sustentar ainda
do sonho inferindo-o a parti}"do relato do sonho, das associações que ele suscita mais essa ideia.
e da interdiscursividade p{ópria à cadeia associativa. Esse relato se efetua através Todas essas análises, com efeito, esboçam um espaço onírico relativamente
de palavras, uma linguagem, uma fala dirigida a um outro, ou a mais de um poroso, colado a três outros espaços: o espaço físico e corporal, o espaço intra-
outro. Um sonho, depois outro, sonhado por outro sonhador, abre caminho para psíquico e o espaço intersubjetivo. O inconsciente se inscreve em todos esses
a polifonia do espa_çoonírico'º· espaços do sonho desde o início da vida psíquica.
O sonho é fabricado a partir das produções e dos processos internos do so- O espaço psíquico e o espaço onírico estão abertos desde o início sobre o
nhador, através das características desses personagens internos, do destinatário ou outro, sobre mais que um outro. li no interior dessa corrente de pensamento que
dos destinatários internos, dos resíduos diurnos e dos traços ou impressões de concebemos a hipótese segundo a qual o espaço do sonho é um espaço pessoal,
outrem inscritas nas identificações do sonhador. Os determinantes intrapsíqui- mas que é atravessado e sem dúvida organizado em parte pela existência de um
.cos responsáveis pelo caráter polifônico do sonho, em essência, devem ser rela- espaço onírico partilhado e comum. A concepção de um espaço psíquico comum
cionados à grupalidade interna e aos processos primários que os regem: con- e partilhado entre vários sujeitos e de um espaço onírico parcialmente aberto à
densação, deslocamento, difração, multiplicação de um elemento similar. São presença do outro na psique do sonhador deve ser tensionado, e não posto em
esses mesmos processos que regem o sonho. Dito de outro modo, o sonho é oposição, com as proposições que nos vêm da abordagem clássica do sonho no
atravessado de um lado a outro, bem antes de se produzir e depois de ter sido âmbito da cura. Entre estas, a descoberta de que o sonho é a realização alucina-
sonhado, por discursos heterogêneos que formam a própria matéria do sonho. tória de um desejo inconsciente recalcado e o necessário fechamento do espaço
O outro nível é o de sua produção polifônica. A hipótese da polifonia do psíquico para que o sonho se forme são aquisições básicas.
sonho nos conduz a uma "fábrica de sonhos" na qual os sonhos de vários sonha-
dores são atravessados pelos enunciados ou pelas percepções dos outros, se cor-
respondem e se interpenetram, na qual vários sonhadores se acenam e se fazem
ouvir por vários sonhadores, vários ouvintes, internos e externos, o que aumenta
tanto mais a polissemia e a riqueza da experiência onírica.
Os exemplos clínicos nos mostraram que, em cada sonho, várias vozes estão
presentes, restos diurnos e noturnos de seus próprios sonhos e dos sonhos de
alguns outros. A matéria-prima do sonho está nessa matéria polifônica. O traba-
lho do sonho os transforma, metade apagados e metade legíveis, como num
palimpsesto, amalgamados num texto que só se torna decifrável se dispomos de
uma hipótese suficientemente precisa para decodificá-los e para restituir a
experiência onírica em seus procedimentos de criação poética".

10. f:.também o que se depreende das pesquisas de E. GABURRI (2003), quando ele mostra
que a constelação onírica é produzida pelo sonho re-sonhado pelo grupo.
11. É interessante levar em consideração o conceito de polifonia de outro ponto de vista:
em literatura, ele põe em questão a crença na unicidade do autor; na análise do sonho, outros, são atravessados pelos sonhos de desejo de um outro, então quem sonha no
ele questiona a singularidade do sonhador. Com efeito, se os sonhos, alguns mais do que sonhador? De que vozes se faz ele portador? Qual é o sujeito do sonho?
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10
As alianças
inconscientes
As alianças Inconscientes 199

necessidade, os processos, as funções e as estruturas psiquicas que lhes são neces-


sárioseque resultaram do recalqueoudadenegação,darejeição e da desautorização.
A aliança se forma de tal modo que o vinculo assume para cada um desses sujeitos
um valor psíquico decisivo. O conjunto assim ligado (o grupo, a família, o casal)
deriva sua realidade psíquica das alianças, dos contratos e pactos que esses sujeitos
estabelecem e que seu lugar no conjunto os obriga a manter.

AS ALIANÇAS INCONSCIENTES ORGANIZAM O VINCULO INTERSUBJETIVO E O


INCONSCIENTE DE SEUS SUJEITOS

Asalianças inconscientes inscrevem-se de maneira fundamental na formação


Para formar laços, desde a origem da vida psíquica, e ulteriormente para psíquica do vínculo intersubjetivo: o conceito de intersubjetividade pode encon-
formar um casal, viver em família, associar-se em grupo, para viver em comu- trar ai sua matéria, e a realidade psíquica do vínculo sua consistência. As alianças
nidade com outros humanos, somos investidos e nos investimos de maneira inconscientes produzem seus efeitos além dos sujeitos, das circunstâncias e do
eletiva uns aos outros, nós· nos identificamos inconscientemente entre nós e, a momento que as tomaram necessárias e as moldaram: elas constituem o agente
partir daí, com um objeto e um traço comuns. Nossas identificações desenvol- e a matéria de transmissão da vida psíquica entre gerações e entre contemporâ-
vem-se segundo diversas modalidades - especulares, narcísicas, adesivas, pro- neos. O conceito de aliança inconsciente fornece um conteúdo preciso a essa
jetivas e introjetivas; elas se apoiarão sobre acordos prévios, sobre as ecopraxias, fórmula que utilizei para qualificar a lógica do vínculo: "não há um sem o outro,
as ecolalias e os ecornimetismos que acompanham nossas primeiras experiências e sem o vínculo que os une e contém".
intersubjetivas, aquém ou à margem da fala; elas terão suscitado e encontrado As alianças inconscientes possuem outra dimensão, que concerne a cada su-
ressonâncias fantasmáticas, realizações de desejos e de frustrações. Para estabe- jeito envolvido nelas. Elas requerem deles obrigações e sujeições, distribuem bene-
lecer vínculo, essas experiências e esses processos são necessários, assim como fícios entre eles e lhes prometem satisfações: os benefícios trazidos pelas alianças
alguns outros. Porém, eles não bastam: devemos ainda atar e selar entre nós devem ser medidos com base nos custos psíquicos que elas exigem de seus sujeitos.
alianças, algumas conscientes, outras inconscientes, cuja função principal é man- Porém, nossa atenção deve se voltar para um ponto ainda mais importante: cada
ter e fortalecer (contrair) nossos vínculos, fixar suas questões e seus termos e um de nós é sujeito do inconsciente sob o efeito das alianças inconscientes. Elas fa-
instalá-los na duração. Cada um de nós, a menos que seja autista, precisa do bricam urna parte do inconsciente e da realidade psíquica de cada sujeito.
outro para realizar aqueles de seus desejos inconscientes que são irrealizáveis sem Distingui três grandes categorias de alianças. As primeiras contribuem para a
o outro, e reciprocamente, e o acordo que resulta permanece na maior parte das estruturação da psique: o pacto edipiano concluído com o Pai e entre os Irmãos, o
vezes inconsciente, por razões que teremos de explicitar. contrato de renúncia mútua à realizaçãodireta dos fins pulsionaisdestrutivos (FREUD
Contrair urna aliança é o ato por meio do qual duas ou mais pessoas ligam-se 1913; 1927; 1929), o contratonarcísico (CASTORIADIS-AULAGNIER 1975) fa-
entre si para realizar um objetivo específico, o que implica de sua parte um inte- zem parte delas. Pertencem à segunda categoria as alianças defensivas, especial-
resse comum e um compromisso mútuo. Do ponto de vista da psicanálise, esse mente o pacto denegativo (~ 1989a), e suas derivações alienantes e patológicas,
estabelecimento de urna aliança entre os homens se baseia em processos e ques- entre as quais a comunidade de denegação e o contrato perverso. Uma terceira ca-
tões específicos, diferentes dos que organizam as alianças pelas quais se interessam tegoria de alianças é formada pelas alianças ofensivas, que selam o acordo de um
a antropologia social, a religião, a filosofia política ou o direito. grupo para conduzir um ataque, urna exploração ou exercer uma supremacia.
Chamei de aliança inconsciente urna formação psíquica intersubjetiva cons- Sejam elas estruturantes, ofensivas ou defensivas, ou derivem de entraves
tnúda pelos sujeitos de um vinculo para reforçar em cada um deles e estabelecer, alienantes e psicopatológicos, as alianças inconscientes são o cimento da matéria
na base de seus vínculos, os investimentos nardsicos e objetais de que eles têm psíquica que nos liga uns aos outros num casal, numa família, num grupo ou num
200 Um singular plural As aliançasinconscientes 201

conjunto institucional. As alianças inconscientes são organizações metapsíquicas: que se seguiu para se apoderar das mulheres, a figura do Pai arcaico ressurgiu
elas contribuem para a estruturação da psique em sua organização narcísicae obje- naquele irmão que o substituíra e que, nessas condições, era preciso suprimir.
tal, em suas modalidades de realizaçãode desejo, em suas formações defensivasou Para viver juntos e sair da repetição, os irmãos tiveram de inventar a passagem de
alienantes. Estas são as proposições que gostaria de desenvolver neste capítulo'. uma relação de poder para urna relação de autoridade.
Essa passagem efetuou-se sob o efeito de três interditos organizadores: os
irmãos tiveram que instituir a proibição do incesto,"pela qual eles renunciavam a
AS ALIANÇAS INCONSCIENTES ESTRUTURANTES
toda possessão das mulheres cobiçadas, quando fora principalmente para asse-
gurar sua posse que eles haviam matado o pai''. Este foi o primeiro interdito da
O pacto fraterno e o contrato com o Pai humanidade. O segundo interdito foi sustentado pela instituição do tabu, que vi-
sava a proteger a vida do animal totêmico, substituto do pai morto e ocasião de
Em Toteme ·iabwFreud descreveu duas formas de uma aliança presentes na- urna reconciliação com ele:"O sistema totêmico era um contrato concluído com
quilo que ele denomina mito científico da horda primitiva: a primeira é o pacto o pai [... ]~ escreveFreud, um sistema que compromete a não renovar sobre ele o
que liga os irmãos no assassinatorepetitivo do Pai arcaico da horda; a segunda é o ato assassino, em troca de sua proteção e de seus favores. O contrato totêmico,
contrato totêmico que os associaao Paisimbolizado e, a partir daí, entre si mesmos. portanto, também protege a fratria:
Por conter a garantia simbólica da aliança dos irmãos com o pai, esse contrato par-
ticipa da função estruturante das alianças inconscientes. O ato de revolta se trans- Ao garantir-sereciprocamentea vida,os irmãos comprometem-sea jamais tratar
forma em ato fundador de urna aliança, simultaneamente momento do sentido e os outros como elestrataram o pai.À proibiçãode matar o totem, que é de natu-
superação do complexo de Édipo. O contrato de renúncia à realização direta dos reza religiosa,acrescenta-seagora a proibição,de caráter social,do fratricida.
fins pulsionais destrutivas, cujo princípio e cujos efeitos Freud expõe em Ofuturo
de uma ilusãoe em O mal-estarna civilização,perseguirá o mesmo objetivo e asse- A proibição do incesto,a interdição de matar o animal totêmico e a proibição
gurará a transmissibilidade dos interditos e dos ideais comuns. do fratricídio são os três interditos prescritos no contrato totêmico que concluiu o
O pacto dos irmãos repousa sobre uma coalizão ou sobre urna liga; sua crime cometido em comum, sobre o qual se fundou a sociedade.O contrato totê-
aliança é ofensiva:seu objetivo consiste em suprimir o Pai todo-poderoso, autori- mico dos irmãos asseguradoravante a organizaçãodo grupo estruturado por meio
tário, que se contrapõe com força ( miichtig)à necessidade de poder (Machtbedür- dos interditos fundamentais e pela ordem simbólica que instaura os processos de
fnis) dos filhos. Possuidor de todas as fêmeas, o Pai ciumento opõe-se à satisfação civilização.De ofensiva e destruidora, sua aliança tornou-se estruturante.
das tendências sexuais diretas de seus filhos, impondo-lhes a abstinência. Em Psi- O modelo proposto por Freud em Toteme tabu é o de urna mudança na or-
cologiade massase análisedo ego,Freud nota que a consequência dessa imposição dem do agrupamento: consiste no deslocamento dos investimentos megaloma-
de poder desmedido foi que "os irmãos se ligaram ao Pai e uns aos outros por níacos e das identificações com o todo-poderio atribuído ao Pai para os investi-
meio de vincules que podiam nascer das tendências sexuais inibidas: ele os for- mentos na figura do Pai simbólico e simbolizador e sobre os valores da cultura.
çava, por assim dizer, a retornar à psicologia das massas" ( G.W. XIII, p. 139; ed. Esse deslocamento é consequência de urna crise, de urna ruptura e de uma supe-
fr., p. 63). Expulsos e separados do Pai, supõe Freud, os filhos puderam então "dar ração que assinalam a passagem do vinculo anistórico da horda para o vínculo
o passo que vai da identificação mútua ao amor objetal homossexual, e adquirir intersubjetivo, histórico e simbólico do grupo totêmico patriarcal.
a liberdade de matar o Pai" (ibid.).
Para matar o Pai tirânico e perseguidor, os irmãos tiveram de se aliar e se
ligar entre si, nenhum deles podendo cometer sozinho o assassinato. Sem dúvida, O contrato de renúncia à realização direta dos fins pulsionais destrutivas
várias tentativas fracassaram. Depois de sua primeira associação e da rivalidade
Assim como o pacto fraterno e o contrato simbólico com o Pai, o contrato
1. Retomo em substância, sem entrar aqui no detalhe de sua descrição, várias análises das de renúncia à realizaçãodireta dos fins pulsionais realiza urna função estruturante
alianças inconscientes (KAEs 1989a; 1993; 2009). na formação da psique.
202 Um singular plural A!; alianças Inconscientes 203

Em O mal-estar na civilização,Freud interroga-se sobre as fontes do sofri- Os contratos e pactos narcisicos


mento humano, e especialmente sobre aquela que se deve à incapacidade dos
homens de regrar as relações entre eles no seio da família, do Estado e da socie- P. Castoriadis-Aulagnier introduziu a noção de contrato narcísico para sus-
dade. Freud pergunta-se por que as instituições de que somos os autores não nos tentar que cada sujeito chega simultaneamente ao mundo da vida psíquica, da
forneceriam apenas poder e benefícios. Ele propõe a seguinte explicação: o ele- sociedade e da sucessão das gerações sendo portador de uma missão: assegurar a
mento cultural sobre o qual repousam as instituições é fornecido pela primeira continuidade do conjunto ao qual ele pertence. Em troca, o conjunto deve investir
tentativa de regulamentação das relações sociais. É pela renúncia à satisfação di- narcisicamente o novo indivíduo. Esse contrato atribui um lugar determinado no
reta das pulsões destrutivas,( canibalismo, morte do semelhante, incesto) que apa- grupo a cada um, lugar que lhe é indicado pelo conjunto das vozes que, antes de
rece a possibilidade de estabelecer um contrato do qual se beneficiam os membros cada sujeito, sustentou certo discurso conforme ao mito fundador do grupo. Esse
de uma comunidade que, enquanto tal, é uma comunidade de direito, "nos pro- discurso inclui os ideais e os valores; ele transmite a cultura e as palavras de certeza
tege contra a viólên,;:ia, impõe a necessidade e torna possível o amor': do conjunto social. Cada sujeito, de certa maneira, deve retomar esse discurso por
Essa passagem do direito do mais forte ao direito da comunidade tem por sua própria conta. É por meio dele que ele se liga ao ancestral fundador.
consequência que "ninguém, desde então, poderá ser submetido ao arbítrio de Nessas condições, o conceito de contrato narcísico dá conta do fato de que
qualquer um que faça parte da comunidade". O direito que funda a comunidade o investimento narcísico que, em cada indivíduo, torna possível a realização de
exige que, para nos beneficiarmos das proteções da comunidade, devemos em seu próprio fim só pode ser verdadeiramente sustentado na medida em que a
troca renunciar a certas satisfações. As realizações da cultura são possíveis sob cadeia, da qual o sujeito é parte integrante, investe narcisicamente esse sujeito
essa condição. como portador de uma continuidade do todo. É assim que os pais fazem da
Renúncia pulsional e advento da comunidade de direito possuem uma fun- criança, de início, a portadora de seus "sonhos de desejos não realizados" (FREUD ·
ção e urna significação tanto no espaço psíquico singular quanto no espaço psí- 1914) e asseguram por aí mesmo sua base nardsica, assim como é através deles
quico dos agrupamentos sociais e institucionais. Freud descreve ao mesmo tempo que o desejo das gerações precedentes sustentou, positiva ou negativamente, sua
a base psíquica da fundação jurídica da instituição, as condições de afiliação le- vinda ao mundo e seu próprio enraizamgito narcísico.
gítima de seus sujeitos a um todo social e as exigências de trabalho psíquico Forneci alguns complementos para o conceito de contrato narcísico. Distingui
impostas pela cultura à economia, à dinâmica e à tópica pulsional. O que o pacto várias modalidades. O contratonarcfsicooriginário,baseado em investimentos de
de renúncia mútua à realização direta dos fins pulsionais instaura é a não-ime- autoconservação, define um contrato de filiação transgeracional: está a serviço do
diatidade: o desvio imposto é obra da autoridade, e a obra da autoridade consiste conjunto e do sujeito desse conjunto, do qual é elo, servidor, beneficiário e herdeiro.
em fazer surgir o pensamento e o vínculo em vez do corpo a corpo. O trabalho O contratonarcísico secundário,baseado no narcisismo secundário, é um con-
de cultura e suas aquisições são urna conquista sobre as pulsões assassinas e sobre trato de afiliação que redistnbui os investimentos do contrato narcísico originário
o narcisismo. A cada vez que o narcisismo está gravemente ameaçado, essas con- e que entra em conflito com ele (especialmente quando o sujeito estabelece os vín-
quistas ficam em risco 2 • culos extrafarniliares). Essas duas espécies de contratos estão a serviço da vida.
O contrato de renúncia implica diretamente os componentes individuais e O pacto nardsico é resultado de uma atribuição imutável de um local de
coletivos do processo de sublimação. Freud reafirma aqui a similitude entre o perfeita coincidência narcísica. É patogênico e, em certos casos, mortífero. Per-
processo cultural e o desenvolvimento libidinal do indivíduo. A sublimação dos tence à categoria das alianças alienantes.
fins pulsionais, "traço saliente do desenvolvimento libidinal do indivíduo': é Evidenciou-se para mim que tanto no espaço intrapsiquico do sujeito quanto
também o resultado do trabalho de formação da civilização: ambos são obtidos no espaço do vinculo o equihbrio económico entre o narcisismo e a tendência ori-
por coerção e renúncia ( G.W XIV, p. 457). ginal a se desprender de sua própria substância e a ceder uma parte de sua libido
em prol do que está fora' é uma dimensão central do contrato narcísico.

3. Essa tendência foi objeto de teorização por F. PASCHE (1964), com o conceito de anti-
2. Essas noções são adquiridas por Freud desde 1912-1914. narcisismo.
204 Um singular plural As aliançasinconscientes 205

As alianças estruturantes são complementares, solidárias e sinérgicas. O con- vida dos grupos. O pacto denegativo é ao mesmo tempo resultado das operações
trato de renúncia só pode ser mantido se o contrato narcísico assume suas fun- de recalque ou de negação mutuamente impostas e um dos processos da apare-
ções principais, e reciprocamente. lhagem. De maneira geral, as primeiras medidas de aparelhagem estabelecem as
primeiras alianças inconscientes, e a ligação de seus conteúdos inconscientes for-
ma a matéria da realidade psíquica inconsciente no grupo.
AS ALIANÇAS INCONSCIENTE& OFENSIVAS, DEFENSIVAS E ALIENANTES Observamos esse triplo advento da aliança, da aparelhagem e da realidade
psíquica no grupo com Marc: a questão posta por Sylvie sobre a identidade da
As alianças ofensivas psicanalista importa a outros, mas o silêncio que se segue à sua questão é intei-
ramente ocupado pelo recalque desse fugitivo e perigoso movimento de transfe-
As alianças ofensivas estabelecem-se com base numa coalizão organizada rência sobre Sophie. Esse primeiro esboço de um pacto denegativo se reforça
que tem por intuito um ataque contra um outro ou mais que um outro, a fim de quando Marc evoca, por meio de sua "confissão", o perigo em que incorrem os
exercer influência sobre ele, dominá-lo ou destruí-lo: uma equipe de futebol, um participantes, sem que seja admitida e pensada uma representação daquilo que
comando, uma equipe de trabalho, uma gangue organizam-se com base em tais constitui a ameaça. O inaceitável é recalcado por todos e depositado no grupo.
alianças. J.-P. Pinel propôs (2006) a noção de aliança psicopática para dar conta Para finalizar a instalação do pacto, Marc indica um objeto capaz de conter a
de uma modalidade geral.do agir violento, com intenção destrutiva em relação ameaça: aquele mesmo que ameaça pode (e deve) reparar os danos causados pelo
ao outro "por meio de uma coalizão mais ou menos aberta e consciente entre um tra~atismo. Essa exigência de reparação vem no lugar do pensamento da mu-·
(dos) agente(s) e um (dos) cúmplice(s) mudo(s) contra uma vítima que sofre o dança catastrófica que seria o retorno do recalcado.
agir violento''. A aliança psicopática é uma aliança alienante ofensiva.
Pactodenegativoe mudançacatastrófica.O grupo dos "analistasespetados"
O pacto denegativo
Outra situação clínica ilustra a relação constante entre a aliança defensiva e
O pacto denegativo (KAES 1989a) qualifica um acordo inconsciente sobre o a mudança catastrófica. Ela data dos anos em que começávamos, com um pe-
inconsciente, imposto ou concluído mutuamente para que o vínculo se organize queno grupo de psicanalistas reunidos por D. Anzieu, a trabalhar segundo um
e se mantenha na complementaridade dos interesses de cada sujeito e de seu dispositivo que comportava uma alternância de sessões em pequenos grupos
vínculo. O preço do vínculo é precisamente algo que seja inconcebível àqueles conduzidos por um par de psicanalistas, e de sessões em grupo amplo reunindo
que ele liga, devido à dupla economia cruzada que rege as relações entre os su- o total dos participantes e psicanalistas. Esse dispositivo, chamado de "seminário';
jeitos singulares e a cadeia da qual são membros. funcionava durante uma semana, num ritmo de quatro sessões por dia. A cada
O pacto denegativo é uma metadefesa baseada em diversas operações defen- noite os psicanalistas realizavam uma sessão entre eles para tentar compreender
sivas: de recalque e denegação, mas também de negação, de desautorização, de a dinâmica inconsciente dos grupos, do seminário como um todo, incluindo a
rejeição ou enquistamento. Ao mesmo tempo que é necessário à formação do de seu próprio grupo.
vínculo, ele cria neste o não significável, o não transformável, zonas de silêncio, Na noite que precede o início do seminário, D. Anzieu nos anuncia que ele
bolsas de intoxicação que mantêm os sujeitos de um vínculo estranhos a sua pró- renuncia à condução das sessões em grupo amplo e que deseja que dois colegas
pria história e à história dos outros. Colocaremos essas proposições à prova na assumam essa função em seu lugar. Estabelece-se uma discussão bem viva em
clínica de grupos e na da cura. nossa equipe a respeito dessa decisão tardia, surpreendente e embaraçosa: contra-
riamente a nossos hábitos de trabalho, é-nos imposto mudar um dispositivo sem
tê-lo meditado juntos. Mas não dizemos nada daquilo que suscita nossa angústia
O pacto denegativo nos grupos: exemplos clínicos
diante dessa decisão: tomar o lugar do fundador ou recusar sua proposta, formar
Como nos mostrou a clínica, o recalque, a negação, a rejeição ou a clivagem "casal" no grupo, tantas questões violentas às quais precisávamos, em caráter de
das representações perigosas são mobilizados logo nos primeiros instantes de urgência, fornecer uma resposta. Os conflitos que nos dividem são esquivados
206 Um singular plural As aliançasinconscientes 21)7

diante do temor de uma implosão da equipe. Pelo contrário, conclui-se um acordo rança narcísica que havíamos contraído com ele desde a fundação de nosso grupo.
tácito para manter sua unidade nesse início de seminário, e dois de nós, um O pacto visava a renovar o ideal de um grupo unido em relação e contra tudo.
colega e eu, encarregamo-nos da condução dos grupos amplos. Por meu lado, extraí dessa experiência diversas hipóteses de trabalho sobre a
As tensões que atravessam nosso grupo são tais que, sob diversos pretextos, formação do pacto denegativo concluído entre nós e sobre seus efeitos no pro-
as reuniões ao longo das quais analisamos as modalidades de nosso funciona- cesso analítico.
mento de equipe são suspens!15durante as duas noites seguintes. O pacto denega- A análise ensinou-me que aquilo que cada um de nós recalcou ou negou
tivo que se instalou nos levqu a abandonar uma parte de nossa função analítica. Em constituiu objeto de uma aliança inconsciente para que cada um ficasse assegurado
vez de trabalhar sobre o que nos divide, passámos sob silêncio nossos desacordos, e que todos se assegurassem mutuamente nada saber sobre seus próprios desejos,
recalcamos os conteúdos inconscientes que nos angustiava, deixamos de lado a seus próprios afetos (cólera, abandono, ódio) nem das representações insusten-
análise do funcionamento de nosso próprio grupo, de nossas intertransferên- táveis (formar casal diante do "pai': ser atores e espectadores de uma cena originá-
cias e dos efeitos transferenciais que se seguiam entre os participantes. A suspensão ria) às quais estávamos confrontados. Nada quisemos saber ou experimentar a
de nossas reuniões era um actingque tornava impossível toda libertação. respeito, tanto como sujeitos singulares quanto para salvaguardar nossos vínculos
Ao longo da última sessão do seminário, os participantes vieram se sentar com os outros e o vínculo com Anzieu. Nosso pacto realizava o objetivo incons-
diante de nós, em linha e de maneira especular diante de nosso grupo: nós havía- ciente buscado por nós: formar um grupo soldado, espetado pelo falo paterno ar-
mos nos colocado em linha, apertados uns contra os outros, e estávamos emba- caico. O pacto denegativo era uma saída para nossas angústias suscitadas por essa
raçados por termos nos situado dessa maneira especular e rígida. Instalou-se uin mudança catastrófica, ele substituía nossa incapacidade ou nossa recusa de pen-
longo silêncio, até o momento em que um participante dirigiu-se aos outros: sar o que estava em causa nessa mudança. Provinha também de uma aliança estru-
"Muito bem, eis uma equipe de psicanalistas espetados!". Essa figuração da solda turante entre irmãos para assumir o lugar do Pai.Mas era também o efeito da posição
defensiva que selara nossa aliança descongelou nossa capacidade de pensar e a adotada por Anzieu nesse conflito. Não podíamos nem atacá-lo nem fugir.
dos participantes e pudemos trabalhar com eles na análise de outras alianças Aprendi também que o que foi recalcado e/ou denegado entre os psicanalistas
concluídas nos grupos e no seminário. foi representado no grupo dos participantes e o organizou como um duplo de
nosso próprio espaço psíquico. O pacto se encarnou na disposição espacial de nos-
so grupo em face do dos participantes, no espelho que nos fixou numa inquietan-
Algumashipótesessobreas aliançasinconscientesnosgrupos
te simetria, numa repetição bloqueada no espaço. Foram os participantes que
Depois do seminário, elaboramos em nosso grupo esse momento crítico4. A recobraram a fala, inventando a metáfora para passar de um significante formal
análise revelou certos conflitos inconscientes que nos mantinham no pacto dene- (isso se aglutina) a uma fantasia (uma coleção de objetos parciais ou de pedaços
gativo encarregado de recalcá-los ou negá-los. O desejo consciente de Anzieu era de objetos atravessados pelo espeto, no ponto para serem comidos) e a urna fala
se livrar das transferências idealizantes e persecutórias que lhe valiam sua posição interpretativa.
de fundador de nossa equipe e de analista heroico do grupo amplo, capaz de en- O pacto formado nessas condições se associou ao trauma inaugural que foi a
frentar as angústias mais arcaicas, de contê-las e reduzi-las. Porém, seu desejo mudança catastrófica do dispositivo; fez voar pelos ares os dispositivos de para-
inconsciente era ser substituído por um casal para servir-lhe de equivalência ao excitações e a aparelhagem grupal que habitualmente utilizamos. Nessas condi-
risco de vê-lo fracassar em sua missão impossível. A maioria de nós, homens e mu- ções, tive algumas razões para supor que o que fora denegado ou recalcado pelos
lheres, formávamos um só com ele, e nada queríamos saber de nossa ambivalência analistas, aqui em posição imaginária de fundadores do seminário para os parti-
diante do lugar repentinamente deixado vago de maneira ambígua por ele, nem da cipantes, adquirira para estes últimos as características dos conteúdos e das qua-
rivalidade fraterna que sua demissão suscitava entre nós. Nosso pacto denegativo lidades do recalcado originário. Se minha hipótese está correta, a aliança incons-
baseava-se em nosso temor de perder um objeto de amor, um protetor e a segu- ciente defensiva se torna então para todos um atrator poderoso do recalque ori-
ginário. Se este é o caso, perspectivas interessantes se abrem sobre a formação e
4. Anzieu, Missenard, Bejarano e eu mesmo propusemos e publicamos análises diferentes a transmissão do originário e dos significantes enigmáticos (ou arcaicos) pelas
e complementares a esse respeito. alianças inconscientes nos grupos e em todas as configurações de vínculos.
208 Um singular plural As aliançasinconscientes

Com base nisso e integrando a contribuição de outras análises clínicas, chego mesmo tempo em que sustentam a formação e os processos dos vínculos inter-
a um conjunto de hipóteses de caráter mais geral Tentei estabelecer um ponto de subjetivos, que, por sua vez, acomodam formações e processos intrapsíquicos.
vista que mostre que a situação psicanalítica de grupo fornece acesso ao conhe- Cada vez que uma aliança inconsciente defensiva pode ser desatada, ela é
cimento das estruturas individuais das formações do inconsciente em suas arti- fonte de uma descoberta importante para os sujeitos que se viram ligados a ela.
culações com as estruturas intersubjetivas inconscientes de um conjunto. As alianças Desse ponto de vista, é bastante notável que a própria psicanálise tenha podido
inconsáentes situam-se nos pontos de ligação dessas estruturas. Consideradas do efetuar várias de suas descobertas fundadoras no desatamento de semelhantes
ponto de vista da tópica, da dinâmica e da economia psíquica no grupo, elas se alianças defensivas.
concluem para que os vínculos e o grupo se formem e perdurem, qualquer que seja
sua finalidade ou sua qualidade: estruturante, defensiva, patogênica ou alienante.
A clínica no~ ensina que as alianças inconscientes defensivas se estabelecem O pacto denegativo e as aliançasinconscientes na curaindividual.
desde o período inicialdo agrupamento. Para se assoáar, os membros de um grupo A propósito de duas curasinauguraisda psicanálise
(ou de qualquer outra configuração de vínculo) devem concluir sem que saibam
um acordo inconsáente segundo o qual deverão recalcar, denegar, rejeitar ou apagar Freud viu-se ele mesmo preso a uma aliança inconsciente defensiva com
certas representações. As alianças inconscientes não se constituem somente para Fliess a respeito da operação dos septos nasais de Emma &kstein, como esteve
manter inconsáentes representações segundo o interesse conjunto e mutuamente também com Dora e com os homens de Dora na cura dela. Para avaliar as ques-
garantido de vários sujeitos, selando desse modo seu vínculo; as próprias alianças tões inconscientes dessas aliànças, detenhamo-nos sobre esses dois momentos
permanecem inconsáentes, tanto quanto os vínculos que se fundam aí. decisivos na invenção da psicanálise 6•
As alianças inconscientes encontram sua matéria, sua energia e seus con-
teúdos nessas representações correcalcadas, codenegadas ou correjeitadas. As
A aliançasangrentade Freude Fliessna curade Emma Eckstein
alianças atuais associam-se a formações e a processos inconscientes, já estabele-
cidos em cada um dos sujeitos. O retorno dos conteúdos inconscientes, quando O primeiro é o pacto denegativo concluído entre dois homens, Freud e Fliess,
se trata de conteúdo recalcados, se efetua através de seus efeitos na cadeia asso- para operar, penetrar e finalmente ferir o corpo de uma mulher em análise com
ciativa grupal, nas transferências, nos sintomas partilhados, nos sonhos, nas fun- Freud, um corpo feminino que eles partilham em seu vínculo de amor. Esse
ções fóricas. Quando se trata de conteúdos arcaicos não recalcados (denegados pacto é não somente uma resistência maciça contra a aliança estruturante da
ou forcluídos ), o retorno dos conteúdos inconscientes se efetua através dos actings, situação analítica; ele a ataca e a destrói. Mostra o poder do desconhecimento
das clivagens, dos delírios coletivos, dos objetos brutos, bizarros ou dos signi- que esse pacto comporta para preservar as questões inconscientes do vínculo
ficantes enigmáticos. entre esses dois homens e entre eles e a mulher. Mas esse episódio indica também
A análise das alianças inconsáentes nos esclarece sobre a arqueologia do grupo que caminhos de libertação foram escolhidos por cada um deles.
e sobre a arqueologia do sujeito 5• Elas asseguram funções específicas na formação Recordemos os fatos': ao longo de seus debates (seus "congressos") sobre a
do espaço intrapsíquico, e especialmente em suas dimensões inconscientes, ao bissexualidade, impõe-se a Freud e a Fliessque Emma deve ser operada por Fliess dos
septos nasais, que seriam, segundo ele, a sede orgânica de sua neurose histérica.
5. Ela nos esclarecetambém sobre outras modalidades do pacto denegativo, mais radicais
e observáveisem qualquer grupo, mas especialmentenos grupos de forte deriva alienante, 6. Desenvolviessa análise em Legroupeet lesujet du groupe(p. 264-271). [Cf. O grupoe o
como os grupos sectários. Desenvolvendoo conceito de pacto denegativo no campo social, sujeito do grupo.Elementos para uma teoria psicanalítica do grupo. São Paulo, Casa do
S. AMATI SAs(2005) descreveu uma aliança defensiva mais automática, talvez assubjetal, Psicólogo, 1997, p. 255-271. (N. do T.)]
que afetaria os sujeitos confrontados a certas situações de violência traumática coletiva 7. Os documentos de referência são principalmente as cartas de Freud a Fliess de 4 de
insustentáveis para a realidade ps(quica, mas que se tomam banais, ou aceitáveis,em março de 1895, 8 de março de 1895, 28 de março de 1895, 11 de abril de 1895, 20 de abril
virtude dessa aliança defensiva".Ela chama de "adaptação a qualquer coisa" essa aliança de 1895, 15 de maio de 1895 (edição alemã, 1986), e o estudo de M. ScHuR (1966) sobre
invislvelde familiaridade com circunstâncias catastróficas,"como se" nada acontecesse. "os restos diurnos do sonho da injeção cm Irma''.
210 Um singular plural As aliançasinconscientes 211

A operação ocorreu, em presença de Freud. Durante a operação, Fliess"esqueceu" daquiloque elesqueremjustamentemanter não representado:o buraco do feminino,
algumas dezenas de centímentros de gaze iodoformada nos septos nasais de sua sua fantasia comum de explorá-lo,agredi-lo e tampá-lo, a questão homossexual de
paciente. Quando Freud mais tarde lhe escrever a respeito dos males de que sofre seu vínculomútuo. O não representadodo pacto deveser inteiramente condensado
Emma na sequência da operação, negará estar lhe fazendo qualquer censura e representadono corpo de Emrna,verdadeiro traçode união entre Freud e Fliess.É
sobre a condução da operação (Carta de 8 de março de 1895), tanto que, com essecorpo infectado que apareceno sonho de Freud (o chamado sonho da injeção
esseapoio, Fliessrecusa-se a reconhecer seu erro cirúrgico. Sua própria denegação em lrma), e que Freud reconhecerána análise de seu sonho. O retomo da parte re-
e o eco que encontra em Fliess vão colocar Freud na situação de dever avalizar calcada no pacto se efetua, para ele, pela via do sonho princepsque inaugura A
essa vontade de desconheciinento, se quiser conservar sua amizade. · interpretação dossonhose a teoria do acessoao inconscientepela via real do sonho.
Mas isto não basta. Para conservar essevínculo, Freud está em vias de sacri- Porém,essecorpo também estápresente nas formas da denegaçãoque organiza
ficar o que just~ente ele acabou de conseguir ligarpelo pensamento: a articulação as acusaçõesmútuas de roubo de ideiasque se fazem Fliesse Freud Essasacusações
entre o traumatismo· e a fantasia, e ele acaba de escrevê-loa Fliess.Para desculpar aparecem, desse ponto de vista, como um deslocamentodaquilo que foi para eles
Fliess ("Não quis te censurar o que quer que seja",Carta de 20 de abril del895), insustentávelno furto do corpo de Emma. Levarãoà ruptura entre ambos.
Freud chega a ponto de evocar, de maneira ambígua, que, "naturalmente, ela co- O pacto, por conseguinte, não se constrói somente pelo recalque neurótico.
meça a manifestar novas formas de histeria, a partir dos acontecimentos desses Os mecanismos do pacto denegativo, baseados na denegação,na rejeição, na de-
últimos tempos" (Carta de 28 de março de 1895). sautorização e Ha projeção, não serão inteiramente liberados, eles produzirão
Para esses dois homens, para esse "sexo forte" do qual Emma zomba quando efeitos análogos em outras circunstâncias. Reconhece-se a fórmula genérica rio
vê Freud quase desmaiar à visão de seu sangue, Emma é a figura do buraco que que Freud dirá tanto a propósito da relação entre Jung e S. Spielrein quanto a
eles querem ao mesmo tempo explorar e tampar, dando-lhe um conteúdo de gaze respeito de Ferenczi e GizellaPaios:"Não sois vós ou eu que somos responsáveis
e de sangue. Seu pacto se funda sobre a denegação de seus desejos e de seu vínculo ou estamos em questão, é o outro, é ela''.A fórmula é eficazpara servir de auto-
homossexual; é também para Freud a recusa de admitir sua própria descoberta da desculpa e de projeção de traição sobre o outro. O recurso da identificação a
fantasia de sedução. Esse pacto permite conhecer aquilo contra o que ele protege Fliess, a Jung e a Ferenczi, sustentada pelo amor homossexual e recalcada na
e do qual ele preserva. A manutenção de seu vínculo exigedeles o recalque e/ou a rivalidade fraterna, é também o de todas as projeções paranoicas das quais Freud,
denegação conjuntos daquilo que poderia ameaçá-los em cada um. para tentar se libertar, elaborará a teoria.
O pacto mobiliza vários mecanismos de defesa:o recalque conjunto do vín- Fundar a psicanálise será situar no centro de seu debate o prótonpseudose a
culo homossexual entre Freud e Fliess,a denegação em comum do erro cirúrgico questão do sujeito em sua relaçãocom o que o representa:para Freud, trata-se tanto
de Fliess,a recusa da renúncia à realização direta dos fins pulsionais destrutivos de Fliessquanto de Emma. Fundar a psicanálise será também, para Freud, retirar-
(aqui, a satisfação selvagem da pulsão epistemofílica sobre o corpo de Emma) e se do pacto denegativo alienante e patogênico concluído com Fliess.Essaprimeira
enfim a desautorização do saber adquirido por Freud sobre a sedução. Essadesau- libertação do que mais tarde ele chamará de psique de massa exigeque ele saia da
torização, que encontra na teoria de Fliess uma caução, é uma verdadeira auto- indiferenciação dos espaços comuns entre ele e Fliess e que encarnam o corpo e
mutilação de pensamento, um sacrifício forçado para manter o vínculo com Fliess o sangue de Emma. Essa libertação,da qual o sonho será o motor, será necessária
e liberar a passagem ao ato sobre o corpo de Emma, lugar da representação in- para ter acesso à subjetivação criadora tanto de sua história como de sua obraª.
sustentável.A consequência disso é a projeção sobre Emma da falta conjuntamente
denegada e da culpa de ter realizado um desejo proibido. Mais profundamente,
porém, se Freud atribui a causa das perturbações pós-cirúrgicas à histeria de As aliançasinconscientesna análisede Dora
Emma, é menos para impor-lhe a responsabilidade do que para manter o que A cura de Dora foi outro momento decisivoda invençãoda psicanálise. Tam-
deve ser recalcado de seu vínculo com Fliesse de seu próprio pensamento. bém ela sob o efeito de urna aliança inconsciente cujo desenlace abriu caminho
A análisedo grupo de psicanalistasespetadosmostrou-nos que o que estavaem
questãoem seu pacto se representavana denegaçãode sua divisão.Sobreesseepisódio 8. O vínculoentre Freud e Fliess é uma figura da transferência passional que atravessará
do pacto entre Freud e Fliess,verificamosque sua aliança contém a representação a autoanálise de Freud. Sobre esse ponto, cf. D. ANzrEu 1959.
212 Um singular plural As alianças Inconscientes 213

para a invenção do espaço analítico. O relato que Freud nos deixou da análise de o Senhor K., do qual ele se apresenta inconscientemente como o substituto. De
Dora logo após a interrupção da cura (1899), as notas que ele acrescentou em modo que, e por outros motivos ainda, ele se arranjou para não reconhecer nem
1923 após o prosseguimento da análise com R Mack Brunswick nos mostram o desejo "ginecofllico"de Dora, nem sua própria defesa contra esse desejo, isto é,
como a contratransferência de Freud estabeleceualiança com a resistência de sua a transferência homossexual de Dora sobre sua própria parte feminina. Nesse
jovem paciente e com as defesas que desencadeiam, contra o processo de análise, ponto cego da contratransferência de Freud, a transferência de Dora em Freud
os parentes dela. Mostram-nos também como Freud, libertando-se dessa aliança mobilizou no mais alto ponto a resistência deste último.
defensiva, buscou a descoberta·da transferência e da contratransferência. "Ateoria do ~dipo clássicaprotegia Freud~ nota H. Stroeken. Nota-se como,
Não desenvolverei aqul a análise que efetuei do que está em questão nessa ainda aqui, a relação de Freud com sua própria teoria é posta a serviço do desco-
aliança. Enfatizarei que ela se instalou desde o pedido que o pai de Dora dirige a nhecimento nas alianças inconscientes que ele concluiu com Fliess,com Dora e
Freud para fazer S}lª filha recuperar a postura dócil. Freud concede a Dora uma com os homens de Dora.
escuta sutil quando ela lhe diz que seu pai possuía uma ligação com Madame K.
e que o Senhor K. fez avanços em sua direção. Freud dá crédito a Dora quando ela
As aliançasinconscientes,a contratransferênciae a ligaçãomútua ao sintoma
fala desse arranjo tácito entre seu pai e o Senhor K. e percebe claramente como na curapsicanalítica
ambos os homens concluíram o pacto que lhes permite se aproveitar de Dora
para satisfazer seus próprios desejos amorosos. Nessesdois exemplos,lidamoscom uma aliançaconcluídapara a realizaçãode
Porérri,mesmo reconhecendoa existênciadessaaliançae o que estáem jogo nela, desejos que não poderiam ser satisfeitossem a ajuda do outro e sem o interesse que
Freud se desvia em sua explicação.Segundo Freud, Dora só queria forçar seu pai a este tem em contrair tal aliança com outro para realizar seus próprios desejos.
renunciar a Madame K. porque ela estava apaixonada não por Madame K. - aí Em ambos os casos, trata-se também de uma aliança defensiva:o pacto de-
está a cegueira-, mas por seu pai. Freud se persuadiu de que seu amor por ele era negativo é a medida da exigência de trabalho psíquico, aqui o recalque e a dene-
utilizado como defesa contra seu efetivosentimento amoroso pelo Senhor K. gação,requerido de Freud para que ele não tenha que reconhecer nem o recalque
Poderíamos dizer de Freud o que ele diz a respeito de Dora: perspicácia nu- nem a denegação que lhe são próprios e que estão em ressonância com os de
ma direção, a do pacto da qual ela é objeto, desvio na outra, a da aliança incons- Fliesse Dora. De modo correlato,o recalque e a denegaçãopróprios a Fliess e Dora
ciente que ele conclui com ela. Ele se perde inicialmente na explicaçãoque fornece não podem ser reconhecidos como tais por Freud, na medida em que servem a
da conduta de Dora: apaixonada pelo Senhor K., ela aceitou durante certo tempo seus próprios interesses de desconhecimento. Da mesma maneira, Fliess, Dora e
a troca e as relações entre os adultos. os homens de Dora são preservados desse conhecimento na medida em que os
Freud só poderá reconhecer a posteriori,em sua nota de 1923,o fracasso da interesses de Freud servem a seus próprios interesses de desconhecimento: cada
curtíssima psicanálise de Dora.~ nessa data que ele atribui esse fracasso à ligação um reforça e serve aos interesses do outro, servindo aos seus próprios.
homossexual entre Dora e Madame K.:"Omiti-me de adivinhar a tempo e de co- O debate que especificaessas alianças defensivas - o pacto denegativo -
municar à paciente que seu amor homossexual (ginecófilo) por Madame K. era na cura centra-se na contratransferência. Esse debate não tem a ver somente com
sua tendência psíquica inconsciente mais forte" ( G.W.V,p. 284; ed. fr.,p. 90). O que a teoria e a prática. A questão da contratransferência envolveum problema epis-
organizou a relação de objeto de Dora, o desejo homossexual por sua mãe, à qual temológico de fundo, como evidenciou fortemente J.Guillaumin (1994). O dis-
ela se identifica secretamente 9, é também o que organizou sua transferência sobre positivo no qual evoluem o analista e o analisando está sempre potencialmente
Freud. Na contratransferência, Freud situou-se sucessivamente ou simultanea- submetido a efeitos de transbordamento devido às questões intersubjetivas nas
mente ali onde ele desejava que Dora o esperasse: ele fuma intensamente, como quais ambos, sem que o saibam, estão profundamente engajados10• A aliança

9. H. STROEKEN
(1985) notavelmentepercebeuo que estavaem jogo nesseamor de Dora 10.A transferênciae a contratransferência
não consistemsomenteem termosde operação
por sua mãe: "Sua mãe fonte de seu desejo,de sua decepçãoe de sua angústiade ser de descargaou de cargados investimentos na psiquede outro,deuma extensãotópicaque,
abandonadapor ela''.~ evidentementesua mãe que ela busca até em sua identificação fora,seriao receptáculodo irrepresentáveldentro,ou a delegaçãoa outro do tratamento
hostil com o pai (STROEICEN
1987, p. 89). das representaçõesnão recalcadas.Essa p<!rspectiva
implicaa noçãode que os espaçosse
214 Um singular plural As alianças inconscientes
215

estruturante estabelecida com base na regra fundamental e no enquadre psicana- O que estáem jogo nas aliançasinconscientesna cura
lítico tem precisamente essa função de constituir um limite, uma contenção e uma
figuração aptos à simbolização dos efeitos perturbadores dessas correlações de Esses dois exemplos esclarecem um tipo tenaz de resistência que contrapõe
subjetividade. No entanto, o enquadre só pode tratar uma dificuldade se as con- aos esforços da análise as alianças inconscientes narcísicas, perversas ou dene-
dições que a produzem podem ser reconhecidas e elaboradas. gativas nas quais podem se envolver os psicanalistas e seus pacientes. Certas curas
são bruscamente interrompidas para salvar a permanência de um ou (e) do outro
A aliançae a comunida?ede identificações
pelossintomaspartilhados na aliança que os mantém submetidos um ao outro, porque a análise e a dissolução
das alianças são para eles mais perigosas que a alienação cujo preço eles pagam.
Tanto na aliança com Fliess quanto na que se estabelece com Dora, produz-se O que os pacientes (ou os analistas) mantêm fora da análise não é somente o
uma comunidade de identificações pelo sintoma. A produção de sintomas comuns
0
lugar que eles mesmos ocupam na aliança, é também o do outro. Lidamos com
e partilhados subó rdina-se a essa necessidade do vínculo: submeter cada sujeito a uma tópica, uma economia e uma dinâmica intersubjetivas, que concernem a
seu sintoma em relação com a função que ele realiza para si mesmo e para outro, dois, três ou vários sujeitos, e nas quais os efeitos de conjunto se reforçam de
no vínculo e pelo vínculo. O sintoma é por isso muitas vezes reforçado. maneira solidária, pois são gerados conjuntamente e no mesmo sentido por
Se só levamos em consideração a função económica e dinâmica que o sin- todos os aliados.
toma tem para o sujeito que o produz, inscrevendo-o em sua história singular e Os efeitos dessa aliança manifestam-se geralmente num ato autodestrutivo,
em sua estrutura própria, passamos ao largo de seu valor na economia dos num delírio, numa severa inibição de-pensar ou numa conduta perversa. Quando
vínculos intersubjetivos. Passamos ao largo do investimento que ele recebe da o paciente rompe a análise, tenta com frequência preservar o analista dos efeitos
parte de um outro, ou de mais de um outro, para manter o vínculo, mas a um que tal aliança poderia acarretar se ela se reproduzisse efetivamente com ele. Mas
preço que remunera a parte de recalque que cabe a cada um na aliança. essa resistência da transferência protege a própria aliança, e o analista pode man-
A análise deve se voltar, então, para o nó intersubjetivo em que o sintoma tê-la por razões que lhe dizem respeito.
assumiu para o sujeito que se faz seu portador uma parte inestimável de seu valor. Então é preciso pensar, diante do impasse, que a análise não é de ajuda
Em semelhantes configurações, o sintoma não tem somente necessidade de uma alguma para tais sujeitos e que eles são refratários à análise? Diante dessas difi-
contribuição dos dois lados, como Freud bem notou na análise de Dora (G. W.V, culdades, nossas interrogações se voltam naturalmente para aquilo que, no ana-
p. 200): do lado da complacência somática e do lado psíquico (dos pensamentos lista, se mostrou inadequado a receber a transferência dessas conexões de vínculos
inconscientes). O relato que faz Freud da análise de Dora mostra que uma con- e de investimentos soldados numa aliança que se tornou inconsciente. É possível
tribuição suplementar mantém o sintoma e que ela vem de um terceiro lado: do então interpretar ou reconstruir o que está em jogo para o analista e para o sujeito
lado do vínculo intersubjetivo 11• Essa contribuição suplementar deve ser buscada analisando. Porém, existem também casos em que uma alternativa à situação
do lado das alianças, dos contratos e dos pactos que mantêm unidos os sujeitos de psicanalítica clássica (terapia conjunta de um pai e seu filho, psicoterapia psica-
um vínculo, através do sintoma e do sofrimento daquele que, em seu lugar, se faz nalítica da família por meio do grupo, psicanálise em situação de grupo, grupo
o porta-corpo e o porta-sintoma, para ele mesmo e para os outros. É sua função de psicoterapia psicanalítica) permite que o sujeito possa experimentar, com um
fórica: o sujeito se constitui, assim, para servir tanto a seu próprio interesse como psicanalista, aquilo que o liga ao outro e ao conjunto dos outros. Outro acesso à
ao daqueles aos quais ele se liga por meio de aliança de desejo e aliança defensiva. análise das questões individuais e intersubjetivas da aliança pode se abrir, num
espaço trânsfero-contratransferencial mais apto a receber os dados.
tomaram comuns e que arranjos intersubjetivosforam estabelecidospara a gestão das
interferênciasdas tópicas, economiase dinâmicas psíquicas.
11. Adiante no mesmo texto, Freud insiste no fato de que "não é necessárioque as diversas A comunidade de denegação e a aliança denegadora
significaçõesde um sintoma concordem entre si'; acontece regularmente que um único
sintoma corresponde simultaneamente a várias significaçõese assume sucessivamente Em sua função defensiva, o pacto denegativo deve ser comparado com duas
diversas significações(ibid., p. 213). outras formações: a comunidade de denegação, brevemente evocada por M. Fain
216
Um singular plural As aliançasinconscientes 217

(1981), e a aliança denegadora, introduzida por M.-T. Couchoud (1986). Trata- os dois parceiros do casal perverso . .Ê a denúncia do segredo, a informação a
se de duas alianças alienantes. terceiros, o escândalo que constitui a ruptura:
M. Fain propôs a noção de comunidadede denegaçãopara dar conta de uma
modalidade de identificação da criança com sua mãe quando esta, não conse- A ruptura eventual de ta:iscontratos possui um sentido e um alcance inteiramente
guindo se separar dela para designar outro objeto de desejo no lugar da criança diferentes do fracasso do amor entre sujeitos normais ou neuróticos. O fato de
( o pai), a denegação da existência do desejo pelo pai envolve ao mesmo tempo a que sejam secretos, de que seus termos, assim como suas práticas só sejam conhe-
criança e a mãe. Nesse casei,a ~omunidade de denegação incide sobre a realidade cidos pelos interessados não significade modo algum que o terceiro esteja ausente.
do objeto do desejo do outro e sustenta, devido a isso, uma identificação projetiva Pelo contrário: é essa ausência mesma do terceiro, é seu afastamento que cons-
cruzada: ela mantém, assim, a não-separação entre a mãe e a criança. A noção tituem a peça principal desse estranho contrato. Esse terceiro que está necessa-
introduzida por_,Fain nesse contexto possui uma extensão maior e se aplica a riamente presente para assinar, ou antes, para endossar a autenticidade de uma
todas as modalidadés e a todas as determinações da denegação em comum. ligação amorosa normal, deverá aqui ser excluído, mais exatamente presente,
O modelo da aliançadenegadoraderiva de outra problemática. Um exemplo mas numa posição tal que seja necessariamente cego, cúmplice ou impotente.
permitirá compreender como as duas modalidades do recalque e da denegação
são utilizadas para estabelecer esse tipo de aliança. A partir da psicoterapia con- Por seu lado, P. Castoriadis-Aulagnier (1967) evidenciou as exigências e a
junta de uma mãe e sua filha, M.-T. Couchoud mostrou que sua aliança se mani- encenação perversa da qual o acaso será banido, de tal modo que se opera a estrita
festa no superinvestimento alucinatório por parte da filha das representações coincidência entre um fragmento do real e a cena em que se desenrolará a fantasia
não recalcadas e conjuntamente negadas pela psique materna. Ambas mantêm na do perverso. A lei que rege o contrato e garante a coincidência é a lei do gozo:
vida cotidiana a permanência do que, na mãe, não pôde ser elaborado ou recal-
cado, de tal modo que tudo o que surge seja tão desprovido de sentido que só O que é exigido e o que deve ser aceito pelo parceiro remete não à mediação do
possa ser atribuído pela mãe à loucura de sua filha. A mãe, que não pôde recalcar amor ou à alegação amorosa, mas ao prazer tomado como objeto. O prazer é a
o conteúdo de seus próprios traumatismos, é preservada do desejo graças ao fato única garantia da existência do objeto do desejo (a falta é negada), da anulação
de que ela induz em sua filha o que teria sido seu próprio delírio. De maneira da distância entre o objeto da demanda (o objeto mediador) e o objeto do desejo
correlata, a filha delira para que a mãe continue a esquecer o que para ela não (o objeto metafórico e perdido) (1967, p. 122).
pode ser recalcado.
Tal aliança caracteriza uma situação em que o vínculo é utilizado para man- O "segredo" diante de terceiros, a cena da coincidência entre o fragmento do
ter fora do recalque secundário representações rejeitadas por meio da denegação. real e a fantasia constituem o fundamento do contrato. O gow é a lei que o rege.
A noção central é a de um fracasso em recalcar. Esse fracasso é o móbil dos meios
utilizados para tomar impossível a revelação dos conteúdos não recalcados e
assegurar o ocultamento do que deve ser denegado. Alcance metapsicológico e interesse clínico da noção de alianças inconscientes

A principal característica das alianças pelas quais nos interessamos é seu


O contrato perverso caráter inconsciente: isto significa que essas alianças estabelecem-se de tal ma-
neira que certos conteúdos e certos objetos, certos fins e certas questões de seus
Os psicanalistas estiveram atentos desde cedo à influência que o perverso vínculos são inconscientes aos sujeitos desses vínculos. Entre essas alianças, al-
exerce sobre seus parceiros: a relação do fetichista com seu fetiche só assume seu gumas são estruturantes, outras possuem uma funcionalidade essencialmente
valor devido ao poder que tem o fetiche de fascinar o outro e suscitar sua com- defensiva, patogênica ou alienante. Resta agora avaliar o alcance metapsicológico
placência a sofrer a perversão. Alguns foram mais sensíveis à aliança alienante das alianças inconscientes e esboçar o lugar que elas poderiam ocupar numa
que os liga reciprocamente (M. Khan, J. Puget e I. Berenstein, A. Eiguer). Entre teoria psicanalítica do vínculo e do sujeito do vínculo. Será um dos objetos do
estes, J.Clavreul ( 1967) enfatizou a importância do segredo no contrato que liga próximo capítulo.
218 Um singular plural

Do ponto de vista clínico, a análise das alianças inconscientes destacou o


interesse do dispositivo psicanalítico de grupo: o sujeito é submetido à prova das
alianças inconscientes de que ele foi parte integrante e das quais ele tem que se
libertar para alçar à consciência de que essas alianças foram, por um lado, cons-
titutivas de sua subjetividade.

11
O sujeitodo
inconsciente,
sujeitodo vínculo
O sujeito do inconsciente, sujeito do vinculo 221

soltar, sem todavia se libertar radicalmente 1• Toda a questão consiste em com-


preender como esses dois processos articulam-se reciprocamente e como a subje-
tivação mobiliza as noções de sujeito, sujeição e intersubjetividade.

O conceito de sujeito

O conceito de sujeito é pós-freudiano, mas suas premissas são fornecidas por


Freud (em 1915, em Pulsõese destinosdaspulsões)quando ele qualifica o sujeito
(derSubjekt)pelo duplo movimento que o constitui: pela inversão das polarida-
des pulsionais ativas/passivas e pelo retomo das posições correlativas do objeto
e do sujeito, do ego e do outro. De objeto passivo das pulsões do outro, o sujeito se
Ao final deste livro, gostaria de recordar duas questões que o organizaram: torna tal impondo a seu próprio ego uma passividade que o transforma em obje-
a abordagem psicanalítica dos grupos concerne aos psicanalistas? Em que pode to de suas próprias pulsões. Note-se que nesse texto Freud sugere uma articulação
ela contribuir para a teoria e a prática da psicanálise? entre o conceito.de sujeito, o pulsional e o vínculo com o outro.
Se estabeleci de maneira suficiente que o grupo é o lugar de uma experiência A crítica de Lacan à confusão entre o ego e o sujeito introduz outra pers-
original do inconsciente e de certas formas de subjetividade, gostaria de tentar pectiva: o sujeito é fundamentalmente um sujeito estruturalmente dividido sob
responder a essas duas questões formulando-as de outra maneira. A primeira o efeito das formações e dos processos do inconsciente. No modelo lacaniano, o
seria esta: o sujeito pelo qual a psicanálise se interessa, o sujeito do inconsciente, sujeito está sob o efeito da (sujeito à) Spaltungoriginária constitutiva da psique,
pode ser compreendido a partir unicamente de suas determinações intrapsíqui- o que Freud já havia apontado em 1895.Não se encontra em Lacan o conceito de
cas ou é preciso admitir que ele se forme conjuntamente na intersubjetividade? subjetivação. Na medida em que a subjetivação implica um processo de trans-
A segunda se coloca a partir do momento em que se admite que a intersubje- formação e de historicização, esse conceito não encontra lugar no estruturalismo
tividade descreve uma realidade psíquica específica: como pensar a organização radical de Lacan.
desse espaço psíquico comum e partilhado? Penso que essas duas concepções são preciosas, mas insuficientes: o sujeito
não é somente o efeito da inversão das polaridades passivas/ativas da pulsão e do
retomo das posições ego-outrem. Não é apenas dividido a partir do interior, ele
A MATRIZ INTERSUBJETIVA DA SUBJETIVAÇÃO o é também em seus vínculos com o outro, e com mais de um outro.
Se voltarmos rapidamente à clínica de grupo, centrando-nos em Marc, no-
Uma das questões que interessam hoje aos psicanalistas é a da subjetivação. taremos que sua confissão enigmática assinala bastante precisamente sua posição
Por esse termo podemos entender não somente o processo de formação do su- de sujeito, no sentido que Freud conferiu a essa noção. Marc apresenta-se como
jeito, mas mais precisamente sua transformação em um Eu capaz de pensar seu objeto passivo das pulsões sádicas que ele atribui ao analista do grupo precedente,
lugar e sua condição de sujeito do inconsciente. Minhas pesquisas sobre as alian- depois ele se apropria da posição de sujeito, invertendo as polaridades dessas
ças inconscientes, sobre as funções fóricas e sobre o espaço onírico comum e par- pulsões sobre ele, mas também dirigindo-as a outros (Jacques, por exemplo). Os
tilhado levaram-me a pensar que a subjetivação se produz segundo um duplo movimentos de transferência retornam às posições correlativas do objeto e do
processo psíquico: um trabalha em cada sujeito segundo seus determinantes in- sujeito, do ego e do outro.
ternos, o outro desenvolve-se a partir do espaço psíquico intersubjetivo. A ideia
que proponho é que o Eu, termo do processo de subjetivação, só pode advir em sua 1. Reconheço aqui núnha divida em relação a uma das principais contribuições de P.
organização reflexiva e na apropriação de sua própria subjetividade num con- CAsTORIADIS-AULAGNIER ( 1984): introduzimos a noção de que o sujeito é um sujeito em
junto intersubjetivo do qual ele é inicialmente tributário e do qual terá de se devir, transformado pelo processo de historicização, através do qual ele advém como Eu.
222 Um singular plural O sujeito do inconsciente,sujeitodo vinculo 223

A sujeição O acesso à fantasia secundáriae o processo de subjetivação.Libertação


do "Nós"e do "Um~e acesso ao Eu
O conceito de sujeito não estaria suficientemente construído se não intro-
duzíssemos outra noção, a de sujeição. O sujeito freudiano que procede das in- O processo intersubjetivo e o trabalho interno do sujeito abrem caminho para
versões pulsionais e dos retornos de posição, ou o sujeito lacaniano que se constitui o processo de subjetivação. Eles o sustentam em sua libertação das identificações
sob o efeito da clivagem (dieSpaltung)estrutural da psique, é um sujeito submetido. alienantes e das alianças inconscientes que o mantêm na sujeição. A clinica nos
O sujeito do inconsciente é uln sujeito submetido às formações e aos processos do ensina com insistência que a dessujeição passa por movimentos complexos e
inconsciente, está sob o eféito de uma ordem, de uma instância, de uma lei que o correlativos de des-atribuição nas localizações intrapsíquicas e intersubjetivas,
constitui em sujeito. À sujeição liga-se a noção de uma atribuição correlativa do que esses movimentos encontram necessariamente a experiência da separação,
sujeito e do obje~o a localizações comandadas pela exigência de trabalho da pulsão, da desilusão ( da queda narcísica), da libertação da autoalienação nas alianças
pelos cenários ra.ntasmáticos e pelos abandonos das identificações do ego para inconscientes alienantes.
adotar novas a serviço do Ideal. Enfatizo o paradoxo do sujeito: ele se encontra No grupo, a transformação singulariza-se a partir do momento em que a
submetido e estruturado nessa sujeição. É por ter sido submetido que o processo fantasia organizadora é integrada pelos sujeitos como parte constituinte de sua
de subjetivação é possível, a menos que a sujeição tenha se fixado em alienação 2• subjetividade, isto é, quando a fantasia deixa de funcionar apenas no modo im-
A sujeição não é só um processo interno, mas inscreve-se também nas rela- pessoal e anônirno que é o do inconsciente originário.
ções mútuas entre o sujeito e o outro. Recorde-se éomo a aparelhagem psíquica Para encontrar seu caminho para a subjetivação, Marc terá que se libertar
dos membros do grupo se efetuou com base num organizador inconsciente co 0 da posição que ele ocupa na fantasia: o conjunto do grupo o havia retido, com seu
mum e partilhado: "Ameaça-se/repara-se uma criança''. Essa fantasia é atratora consentimento inconsciente e com a sustentação do pacto denegativo que os
de cenários fantasmáticos. Seu efeito é duplo: construir a consistência psíquica do havia ligado. Marc fora o portador de um sintoma partilhado, mantido de vários
grupo e impedir de singularizar as versões subjetivantes de cada um em sua fan- lados, em sua economia própria e na do grupo. Ele também fora o portador da
tasia secundária. resistência ao trabalho de análise. Teria sido necessário que ele se libertasse da
Marc está submetido não somente a suas pulsões e a sua fantasia incons- transferência que ele estabelecera sobre mim, sobre minha colega, sobre um
ciente, mas também às relações que ele estabelece com o inconsciente dos outros particular e sobre o grupo. Sua transferência sobre Jacques abrirá caminho para
sujeitos membros do grupo. A realidade psíquica do grupo que se organiza em isso: em espelho, ele se atribui o próprio papel de filho. Ele o seduz, ameaça.
torno da confissão de Marc submete cada um às alianças inconscientes que Corno em sua fantasia secundária, um duplo retomo se produziu: um retorno
mantêm o recalque e a denegação. Essa sujeição no pacto denegativo poupa do desejo de sedução em ameaça do pai ao filho; um retorno da ameaça sofrida
Marc - mas também outros - de ter de reconhecer sua fantasia inconsciente em ameaça atuada na transferência sobre um filho que o representa em seu
e sua posição de sujeito. Submetido a sua fantasia inconsciente, Marc se atribuiu vínculo com seu pai.
o lugar de vítima (passividade sofrida), depois, por meio de uma inversão de po- Notamos que essa sacudidela subjetivante na relação com a fantasia acarreta
laridades pulsionais e de localizações na fantasia, o de carrasco (ativo). Nessa uma vacilação do ego em suas identificações: angústias de abandono do ego por
conjuntura de autoalienação, ele permanece clivado pela questão inconsciente seus objetos de identificações aparecem, ligadas à mudança correlativa do ego e
de sua fantasia, ele se mantém alienado no desejo do outro, o que eu represento de seus vínculos com seus objetos.
para ele na transferência. Ao longo das últimas sessões, alguém lembra a Marc a apresentação que ele
fizera de si mesmo no início do grupo: "Chamam-me [on) de Marc': ele dissera'.
2. Um vínculo forte associa sujeição e alienação. A sujeição não tem por correlato a aliena- Marc se identificara então com "a marca" de sua sujeição a outro até então ino-
ção, mas esta é um dos destinos das sujeição. A alienação é o abandono ou sacrifício de
uma parte de si em prol do poder de um outro interno ou externo (instância, pessoa, 3. No original, On m'apelle Marc. A partícula on indica impessoalidade. Segundo o
ideia ... ). Um exemplo de autoalienação é o abandono das identificações do ego em prol dicionário Le nouveau Petit Robert (2007), trata-se de "pronome pessoal indefinido da
das exigências do Ideal. 3• pessoa, invariável, sempre fazendo função de sujeito". (N. do T.)
224 Um singular plural O sujertodo inconsciente,sujeitodo vínculo 22S

minável para ele. Ao término do trabalho psicanalítico com o grupo, Marc pôde à psique uma exigência de trabalho psíquico, em função da necessária situação
reconhecer em seu próprio nome o que, para ele, indica a violência traumática de intersubjetiva do sujeito. Essa exigência de trabalho duplica aquela que impõe à
sua fantasia de sedução homossexual por seu pai: ''Alhures, outrora, um acon- psique sua necessária ligação com o corporal. Podemos descrevê-la a partir dos
tecimento marcante me impedira de me pensar como o filho desse pai". Ele pode interditos principais e das obrigações que impõe o grupo a seus sujeitos para
doravante assumir o "Eu" que leva seu nome e nomear o pai do qual ele recebeu estabelecer e manter sua ordem própria. Seguem-se algumas reformulações sobre
esse nome. Ele não se inscreve mais sobreo meu nome, mas sobre o de seu pai. a teoria do suporte (étayage)e sobre a articulação entre pulsão e intersubjetivi-
Essa transformação realiza ó processo de identificações subjetivantes de Marc dade, sobre o espaço onírico comum e partilhado e os umbigos do sonho. Ela
através de seu trabalho nesse grupo. imprime à formação, aos sistemas, instâncias e processos do aparelho psíquico e,
Poderíamos dizer, então, com apoio na palavra de Freud', que ali onde se por conseguinte, ao inconsciente conteúdos e modos de funcionamento especí-
localizavam as alianças inconscientes e onde elas continuam o Eu pode advir, na ficos. Essas obrigações e essas exigências têm por correlato que o sujeito as subs-
medida em qu~ se1iberta do sujeito alienado nas identificações e nas alianças creva e em certos casos as exija para estabelecer sua própria existência.
inconscientes que o mantêm em sujeição. Seria ilusório pensar, portanto, que a O conceito de trabalho da intersubjetividade comporta a ideia de que cada
subjetivação se faz de uma vez por todas, que a superação não deixe vestígio sujeito é representado e procura se fazer representar nas relações de objeto, nas
algum. A vida psíquica oscila entre movimentos contrários no processo do tor- imagos, identificações e fantasias inconscientes de um outro e de um conjunto de
nar-se Eu. O sujeito em devir no Eu recompõe sua história sem cessar, à medida outros. Do mesmo modo, cada sujeito se liga em formações psíquicas desse tipo
que ele se subjetiviza. É nisto que o trabalho de historização é um trabalho que com os representantes de outros sujeitos, com os objetos de objetos que ele abriga
se efetua na sequência dos a posteriori(apres-coups). em si. Ele os liga entre si.
Se chamo de trabalho da intersubjetividade o trabalho psíquico do incons-
ciente do outro ou de mais-de-um-outro na psique do sujeito do inconsciente,
Subjetivaçãoe intersubjetividade seguem-se algumas consequências sobre nossa concepção do inconsciente e do
sujeito do inconsciente. É o que gostaria de examinar agora.
A subjetivação é um processo de transformação do sujeito assumido pelo
Eu, e esse processo está sob o efeito da intersubjetividade, isto é, da situação dos
sujeitos do inconsciente no vínculo. Poderíamos dizer também que a condição A POSIÇÃO DO SUJEITO DO INCONSCIENTE NA INTERSUBJETIVIDADE
do processo de subjetivação é a intersubjetividade.
Chamei de intersubjetividade a estrutura dinâmica do espaço psíquico entre O sujeito do inconscienteé sujeito do vinculo
dois ou mais sujeitos. Esse espaço comum, conjunto, partilhado e diferenciado
compreende processos, formações e uma experiência específicos, por meio dos Entre os conceitos que foram construídos para dar conta da realidade psí-
quais cada sujeito se constitui, por um lado que concerne a seu próprio incons- quica no grupo (o aparelho psíquico grupal, as funções fóricas, o trabalho da
ciente. Nesse espaço, sob certas condições, especialmente da libertação das intersubjetividade, o espaço onírico comum e partilhado), o de alianças in-
alianças que o mantêm submetido aos efeitos do inconsciente, mas também conscientes nos abriu um caminho eficaz para a análise do processo da formação
que o estruturam, um processo de subjetivação torna possível tomar-se Eu pen- do sujeito do inconsciente na intersubjetividade. Devido a sua estrutura, a seus
sando seu lugar de sujeito no interior de um Nós. conteúdos e a suas funções, as alianças inconscientes são a base e o cimento da
Podemos completar o conceito de intersubjetividade pelo de trabalho da in- realidade psíquica que nos liga uns aos outros, formam a matéria da realidade
tersubjetividade. Eu o utilizei em várias ocasiões neste livro para indicar que a psíquica própria a um vínculo intersubjetivo: um casal, uma família, um grupo,
intersubjetividade deve ser concebida de um ponto de vista dinâmico: ela impõe um conjunto institucional. As alianças inconscientes são eficazes em outro nível:
são um dos modos de produção do inconsciente recalcado e do inconsciente não
4. Wo Es war, sol Ich werden. Em alemão Ich significa Eu [Je] ou ego [moi]. Opto pela recalcado exigido para fazer parte do vínculo. Elas fabricam urna parte do in-
tradução que enfatiza um "torna-se Eu': pois o Eu é diferente do sujeito e do ego. consciente de cada sujeito: cada um de nós está sujeito a tais alianças. Elas são
Um singular plural O sujeitodo inconsciente,
sujertodovinculo

constitutivas da realidade psíquica do sujeito singular, na medida em que ele é submetido a um conjunto intersubjetivo de sujeitos do inconsciente. Esse duplo
sujeito do vínculo'. estatuto do sujeito, as exigências psíquicas de trabalho que se encontram contra-
As alianças inconscientes estão implicadas nos processos de formação do ditoriamente associadas devido a essa ligação com os conjuntos intersubjetivos
inconsciente devido, em parte, ao inconsciente do outro (ou de mais de um o dividem por dentro e compõem com a divisão constitutiva do inconsciente.
outro) que retoma na formação do inconsciente do sujeito. Nessa medida, pode- Uma consequência dessas proposições é que existe para uma parte de cada
mos falar de correcalque, de codesautorização, de codenegação. O campo da sujeito do inconsciente um lugar ectópico ou extratópico, um toposinacessível
psicanálise se abre então pará todas as configurações de relações entre a dene- pelos meios de seu método princeps- a prática da cura individual - e portanto
gação de um e a alucinaçãó de outro, entre a rejeição de um e determinado sin- impensável com as categorias da metapsicologia daí resultantes.
toma no outro. Formações do inconsciente são expulsas, projetadas, exportadas
por um sujeito qu por um conjunto de sujeitos para outro lugar psíquico: na
psique de um oÚtr<! ou de vários sujeitos, estejam eles efetivamente reunidos ALGUMAS REFORMULAÇÕESMETAPSICOLÓGICASCONCERNENTES
ou estejam ligados numa relação intergeracional. À TEORIA DO INCONSCIENTE
Nos conjuntos intersubjetivos primários (díade mãe-filho, casal parental,
família) e secundários (grupos, instituições) formações do inconsciente se trans- O conhecimento do inconsciente não está concluído pela experiência torna-
mitem através da cadeia de gerações e dos contemporâneos, segundo as moda- da possível pela cura psicanalítica. É necessário que a metapsicologia construída
lidades fixadas pelas alianças, pelos pactos e pelos contratos inconscientes. A. seja revisada quando a prática da psicanálise se vê modificada e nosso conheci-
formação do superego e das fun"çõesdo ideal segue igualmente essa determinação mento do aparelho psíquico se transforma.
intersubjetiva. A hipótese de uma psique partilhada na intersubjetividade nos leva a cons-
Entre as alianças, algumas nos precedem. As alianças inconscientes estão truir modelos de inteligibilidade dessa realidade, de sua consistência, de suas
presentes nos processos de formação do inconsciente e da subjetividade dos su- estruturas e de suas leis de transformação.
jeitos que se aliaram entre si desde a origem, isto é, antes da vinda ao mundo do Convém, portanto, pensar numa terceira tópica 7 ou numa terceira meta-
sujeito. Cada um de nós vem ao mundo da vida psíquica na trama das alianças psicologia capaz de dar conta do inconsciente na intersubjetividade. Os conceitos
que foram estabelecidas antes de nós e na qual nosso lugar está marcado de ante- de alianças inconscientes, funções fóricas, espaço onírico polifônico possuem
mão. Esse lugar que o constitui em sua subjetividade só poderá ser mantido na dupla valência, subjetiva e intersubjetiva; estão em condições de proporcionar
medida em que ele subscrever os termos da aliança prescrita para ele, mas tam- alguns elementos de resposta à segunda questão: como pensar a organização de
bém para o conjunto. A história de sua formação como Eu é ao mesmo tempo a um espaço psíquico comum e partilhado?
de sua sujeição a esse lugar, e a das distâncias que o sujeito terá de experimentar
e sustentar em relação a esse lugar prescrito•.
Propus considerar que o sujeito dessas alianças é sujeito do inconsciente e A duplapertença metapsicológica dos conceitos propostos
que, correlativamente, sua aliança com o inconsciente do outro, ou de mais de
um outro, o qualifica como sujeito do inconsciente. O sujeito do inconsciente se Todos os conceitos que acabo de nomear possuem uma dupla pertença me-
forma na divisão entre a realização de seu próprio fim e sua inscrição nos vínculos tapsicológica. Trata-se de configurações psíquicas bifrontes, duplamente orga-
intersubjetivos. O sujeito do inconsciente é um "intersujeito" inelutavelmente nizadas. Não pertencem propriamente nem ao sujeito singular, ainda que ele seja
parte ativa e constituinte do conjunto, nem ao conjunto, que não existiria sem
5. Desenvolvimais amplamente essasproposições em La parole et /e lien-(1993).
6. Recordo que a perspectiva aberta por P. Castoriadis-Aulagniersobre o contrato 7. A necessidadede construír uma terceíra tópica me surgiu desde 1976, com o modelo
narcísicoe as funções do porta-voz inscrevea formação do aparelho psíquico nos confins de aparelho psiquico grupal. Especifiqueisuas perspectivase modalidadesem diversos
da realidadeintrapsíqu.ica,da linguageme da intersubjetividade,ela os recobre e articula. textos (1993, 1999 e, mais recentemente,por ocasião da Lição ao Congresso da IPA,
Cf. acima os capítulos 8 e 1O. março de 2004).
228 Um singular plural O sujeitodo inconsciente,sujeitodo vinculo

seus sujeitos. Podemos descrevê-las do ponto de vista em que elas produzem e existe um conflito inconsciente entre o sujeito e a parte de sua psique detida por
ligam a matéria inconsciente dos vínculos intersubjetivos, e podemos compreen- outro (ou por mais de um outro) ou depositada nele (neles). Freud indicou uma
dê-las segundo os termos de uma tópica, de uma economia e de uma dinâmica das questões que está em jogo aí em Para introduzir o narcisismo:o sujeito en-
intersubjetivas.Podemos descrevê-las também do ponto de vista da organização contra-se dividido entre as exigências que lhe impõem a necessidade de ser seu
intrapsíquicade cada sujeito singular: as alianças inconscientes são contraídas e fim para si mesmo e aquelas que derivam de seu estatuto e de sua função de
mantidas inconscientes para a realização de desejos inconscientes de cada sujeito: membro de uma cadeia intersubjetiva, da qual ele é conjuntamente servidor, elo
constituem um dos modos àe produção do inconsciente recalcado e do incons- de transmissão, herdeiro e ator.
ciente não recalcado exigidos de cada um deles para participar do vinculo. Desse ponto de vista, a análise das alianças inconscientes nos-ensinou que
Esses dois pontos estão em relações dialógicas: a clínica nos mostra que toda elas são metadefesas a serviço da função de recalque ou denegadora, e que nesse
modificação nas, alianças, nos contratos ou nos pactos que fundam a realidade sentido são medidas de duplicação do recalque ou da denegação, mas sobre a
psíquica comum e·partilhada do vinculo põe em causa a estrutura psíquica própria aliança: esta permanece inconsciente quanto ao inconsciente que ela
inconsciente de cada sujeito. Reciprocamente, toda modificação da estrutura, da produz e que ela mantém.
economia ou da dinâmica do sujeito (por ocasião de uma cura, por exemplo, ou Descrevi como atuam as grandes operações de defesa constitutivas do in-
da adolescência, ou de um divórcio) se choca com as forças que sustentam as consciente nas alianças defensivas: as defesas por recalque ou denegação, rejeição,
alianças concluídas no vínculo do qual o sujeito é parte ativa. exportação, desautorização, depósito ou apagamento. Ou as mesmas operações
são efetuadas por todos os sujeitos de um vínculo, ou uns recalcam enquanto os
outros denegam. Clinicamente, a configuração heterogênea é mais eficaz para a
Tópicas do inconsciente
libertação das alianças: quando o retorno do recalcado se efetua em certos sujei-
Posso apenas esboçar essa metapsicologia. Deve ser construída uma terceira tos, ele transforma o equilíbrio da aliança, revelando seus núcleos não recalcados-
tópica para levar em consideração o caráter ao mesmo tempo heterogêneo, ectó- denegados. Esse movimento é uma das alavancas para sair do contrato perverso
pico e heterotópico do inconsciente. Outros lugares psíquicos são seus deposi- ou da aliança mista do tipo da aliança denegadora.
tários e agentes de produção e transformação. Os espaços psíquicos do vínculo As alianças inconscientes são o resultado de compromissos concluídos e
são esses outros lugares do inconsciente dos quais começamos a conhecer os pro- mantidos entre vários sujeitos. Subordinam-se à produção e à manutenção dos
cessos e as formações, a economia e a dinâmica. sintomas, sob o efeito dos interesses de cada um: a aliança está a seu serviço. As
As alianças inconscientes, as funções fóricas, os sonhos comuns e partilhados alianças inconscientes não fazemmais do que sustentar a função de desconhecimento
possuem uma dupla tópica: as alianças situam-se nos pontos de ligação das relações que se liga ao sintoma, a produção de sintomas partilhados realiza além disso essa
recalcadas que mantêm os sujeitos singulares e os conjuntos, nessa conjunção que finalidade de submeter cada sujeito a seu sintoma em relação com a função que ele
não é a do coletivo, mas a da intersubjetividade. Essa tópica plural nos incita a pen- realiza para outro, ou para mais de um outro, no vínculo e pelo vinculo. O sintoma
sar que o inconsciente não está inteiramente contido nos limites do espaço psíquico recebe assim um reforço dividido, o que aumenta a dificuldades de desatá-las.
individual. Não pode ser inteiramente localizado na primeira nem na segunda
tópica da metapsicologia freudiana. O espaço psíquico do vínculo e o dos conjuntos
Elementos de uma economia cruzada
são outros lugares do inconsciente. Os conceitos de ectopismo e de politopismo
poderiam dar conta dessa metapsicologia dos lugares da psique. Uma nova economia deve ser elaborada. O ponto de vista econômico assume
sua pertinência na noção de trabalho psíquico. A análise da aparelhagem das
psiques nos ensinou como o vínculo mobiliza a energia pulsional em cada um
Dinâmica composta de conflitos psíquicos
dos membros e se organiza tendo em vista o domínio e a transformação das exci-
Uma nova dinâmica do inconsciente deve ser construída. O trabalho psica- tações cujo acúmulo corre o risco de ser patogênico. O aparelho do vínculo é uma
nalítico em situação de grupo modifica nossa concepção do conflito psíquico organização metapsíquica de gestão e de transformação das psiques individuais,
inconsciente. Ao lado do conflito intrapsíquico de origem psicossexual infantil mas é também uma estrutura que as forma e informa.
230 Um singularplural

Um aspecto importante da economia psíquica é a transferência da economia


individualpara a economia do vúiculo,e reciprocamente.Deslocamentosde energia
se produzem de um polo do aparelho grupal a outro polo, mas também a divisão
das cargasde investimento se efetua sobre vários objetos do grupo, mais ou menos
correlatos entre si. As pesquisas sobre o processo de difração evidenciaram como
se efetuam a transferência e a transmissão (die übertragung)das cargasenergéticas
sobre o conjunto de compónehtes do vínculo. Essa noção nos é útil para com-
preender a clínica das transferências e das contratransferências laterais nos pro- Conclusãogeral
cessosda chamada cura individual: a organização económica das transferênciasna
cura de Dora - c9mo na de Emma - poderia ilustrar essa afirmação.

O debate epistemológico que empreendemos no início deste livro situou o


trabalho além da "psicanáliseaplicada''.
Com o grupo, mudamos de vértice: passamos do "um por um" da cura ao
"vários juntos" e ao "um entre outros" do grupo. Essa mudança nos obrigou a
pensar a organização da realidade psíquica e das formas de subjetividade que se
desenvolverãonas fronteiras do espaço intrapsíquico e do espaço intersubjetivo.
Nesse percurso, os obstáculos que encontramos foram de diferentes ordens.
Novos dispositivosmetodológicospermitiram tratar em um modo diferente
daquele da especulaçãoa experiênciapsíquica do inconsciente,à qual eles abriam
acesso. Mas era preciso constituir, sobre bases metodológicas suficientemente
seguras, um campo de prática e de pesquisa que conservassesuas propriedades
psicanalíticas, evoluindo a partir das característicasda cura individual.
Essa dificuldade metodológica aumentou em virtude de um problema epis-
temológico temível: poderiam os conceitos construídos a partir do dispositivo
da cura ser "aplicados" sem distorção ao que se revelavaser uma realidade psí-
quica bastante diferente e em todo caso específica nesses novos dispositivos
psicanalíticos? Questão perturbadora, que punha em causa certas asserções da
teoria, ainda que se admitisse que os dados resultantes da prática psicanalítica
em situação de grupo faziam surgir novas configuraçõesdos processos e forma-
ções do inconsciente.
Somente a clínica e a clínica comparada das diversaspráticas psicanalíticas
centradas sobre configuraçõesde vínculo nos permitiram qualificara consistência
da realidade psíquica dos vúiculos intersubjetivos nos grupos, nas famílias, nos
casais e nas instituições. Essarealidade, seus processose suas formações só são
acessíveispor meio de tais dispositivos.Ainda é precisoespecificara que experiências
do inconsciente os diversosdispositivos da psicanálisefornecem acesso, e de que
maneira e com que conceitose que modelos podemos pensá-los.
232 Um singular plural

Esse trabalho encetado, outras questões se puseram: essas experiências e


esses conceitos possuem incidência sobre nossa representação da vida psíquica,
do inconsciente e do sujeito, e com ele o campo dos objetos teóricos e práticos da
psicanálise se vê modificado?
Foi-nos necessário, por conseguinte, retomar sobre outras bases esse velho
problema epistemológico, que continua presente: se introduzimos outro para-
digma metodológico que não o da cura individual no campo da prática psica-
nalítica, ao mesmo tempo que conservamos seu postulado fundamental, somos Bibliografia
levados a remanejar a metapsicologia do aparelho psíquico e a reformular a ques-
tão do sujeito do.inconsciente? Se construímos um novo paradigma epistemo-
lógico, não deveinos em consequência nos perguntar mais uma vez do que dá
conta e do que não dá conta a psicanálise?
Ao longo destas pesquisas, tive de assumir o fato de que trabalhar nas fron- ABRAHAM, N., TOROK, M. (1978). L 'écorce et /e noyau. Paris, Aubier-Flammarion.
teiras entre o espaço subjetivo e o espaço intersubjetivo nos confronta com formas __ . (2005). La transsubjectivité entre cadre et ambigüité. Inédito.
mestiças da realidade, com formações mistas, com "sangues misturados", como ANZIEU, D. ~1966). Études psychanalytique des groupes réels. Les Temps
foram para Freud a pulsão e a fantasia, nas fronteiras entre o corporal e o psíquico. modemes, 242, 56-73.
Com a mestiçagem, instala-se a dúvida sobre a estabilidade dos territórios do __ . (1971 ). L' illusion groupale. Nouvel/e Revue de Psychana/yse, 4, 73-93.
pensamento e dos enquadres da prática. Essas dúvidas podem acarretar momentos __ . (1985). Le moi-peau. Paris,Dunod.
de solidão, de desânimo e de desencorajamento. Mas elas são fecundas - a his- AULAGNIER-SPAIRANI P., CLAVREUIL, J. et ai. (1967). Le désir et la perver-
tória da psicanálise testemunha e nós temos uma razão para ter esperança em sion, Paris, Seuil.
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Ao assumir essa posição, quis inscrever o processo dessa pesquisa e seus Saint-Agne, Éres.
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Índice de palavras-chave

aliança 55, 81, 124,157,164,166, 198- coexcitação 70


201, 204-216, 226,229 complexo fraternal 14,73, 108, 168, 185
alienante 204, 216, 217 comunidade
denegadora 215,216,229
de denegação 215
estruturante 207,209,213
de identificações pelos sintomas
inconsciente 81, 124, 164, 166, 198,
partilhados 214
199,207,209,211,212
condensação 109
inconsciente defensiva 207, 209
conexões de objetos transferidos 73,112
inconsciente na cura individual 209
contrato
inconsciente nos grupos 41, 115
com o Pai 200
inconsciente transferencial 81, 124
ofensiva 200, 204 de renúncia à realização direta dos fins
analogia do grupo e do sonho 179 pulsionais destrutivos 200, 201
aparelhagem das psiques 78, 92, 118,122, narcísico 21, 23, 55, 125, 126, 199,
127,181,229 203,204,226
aparelho psíquico grupal 12,28, 44, 45, contratransferência 72, 74, 75,87, 93, 97,
52,113, 115-117, 120,124,129,133, 186,188,212,213
151,154,183,225,227
associação livre 136, 138 depósito 36,37, 68,119,128, 169,229
atrator 58,112,119,124,128,131,132, determinação do processo associativo 137
146, 149,159,207 diferente, diferença 22, 23, 38, 44, 54-57,
autoalienação 23, 125, 127,222,223 72,74,82,94, 104,116,130,132,138,
157,165,166,174,224,231
berço onírico 14, 177 difração 43, 73, 74, 105, 109-112, 119,
127,164,179,194,230
características morfológicas das situações dinâmica
de grupo 12, 64, 66, 69, 72 do inconsciente 228
CEFFRAP 42 grupal 24, 39, 41, 106, 208
clínica do grupo 28, 78, 117,204, 221 intersubjetiva 215
Um singular plural Indica de palavras-chave
242 243

dispositivo psicanalítico 136 originária 37,93,101, 142,145,146 método da psicanálise 48, 64, 65, 66, 175 posição
de grupo 12,44,53,64,69, 72, 75,218 secundária 95, 122,149,223 modelo do aparelho psíquico grupal 52, ~o sujeito no grupo 4 5 , 50
fragmentação 110,128,242 115-117, 133 1deológica 132, 133
economia função momento caótico 13 J mitopoética 132, 133
cruzada 204,229 alfa 152, 158, 182, 190 movimento psicanalítico francês 39 , 40 utópica 132, 133
interna 110 continente 68, 181-183 mudança catastrófica 205,207 precessão do psicanalista 7 4
fórica 160, 163-168, 170,171,183,214 pré-consciente 20,21, 72, 137, 142, 143
intersubjetiva 215
economia psíquica 208,230' narcisismo originário 203 148, 151, 152, 155, 159, 162, 169:
grupalidade psíquica 11, 44, 100, 102, núcleo aglutinado 36, 37 178,182,191
efeito
107,109,111,112,116 pressupostos básicos 36
da interdiscurs.~vidade 150
das alianças inconscientes 199 grupo oposição entre indivíduo e grupo 24 , 26 pressupostos de base 114
como cena, cenário 118 organização grupal da matéria psíquica princípio
de grupo 41
como entidade específica 34, 79 103 de complementaridade 57
do grupo sobre a psique do sujeito
como meio de realizações psíquicas organizador de constância 57
51,100
119,120 do processo associativo 149 de incerteza 59
do inconsciente 49
como objetos de investimentos de indeterminação multifatorial 60
função maternal do sÕnhar 189, 190 psíquico inconsciente 79, 118, 121
pulsionais 117 de limitação 66
enquadre psicanalítico 27, 67, 69,214 sociocultural 44, 121, 122
como realidade psíquica específica 50 de plurifocalidade 58
espaço
interno 44, 121 de possibilidade 66
onírico comum 192 pacto denegativo 199,204-209, 21 I, 213 ,
interno originário 104, 105 de transversalidade 57
originário 188 215,222,223
interno primário 106 polifônico 58
psíquicocomurnepartilhado 175,178 pacto dos irmãos 200
interno secundário 108 processo
psíquico singular 175, 178 pacto narcísico 132,203
operativo 32-34 associativo grupal 72
especificidade paraexcitações 20, 70, 72, 80, 96, 123,
156,207 originário 127
da realidade psíquica do grupo 64
homossexual, homossexuais 82, 96, 186, primário 127, 179
do objeto e do método da psicanálise particularidades da clínica 60
200,210-213,224 secundário 127
48 pictograma 109, 127
terciário 127
Eu 19,21-24,28,52, 119,143,150,151, pluralidade de discursos 69,136, 137, 149
mecanismos de defesa 13, 38, 40, 54, 70, propriedades morfológicas da situação
161,225 polifonia
71, 95, 96, 102, 108, 128, 132, 168, de grupo 69
excitação 41, 70,131,242 da cadeia associativa grupal 150
180,189,210 psique de grupo 12,25, 26, 38, 40, 50, 57,
exigência de trabalho psíquico 125, 213, memória individual em presença do do sonho 178
66,100,114
225 polo
grupo 72 pulsão 107,108,117,125,155,1 68 , 169,
extensão da psicanálise 28, 48, 64 mentalidade grupal 132, 133 homeomórfico 130
210, 221, 222, 225, 232
meta 20,68 isomórfico da aparelhagem 132
face a face 12, 64, 69, 71 porta-ideal 28,164,168,171,2 43
metadefesa 204 realidade psíquica 18, 28, 100, 102, 115,
fantasia porta-sintoma 28, 51, 72,129, 145, 153,
metaenquadre 68 116, 120, 124, 126, 133, 134, 137,
atrativa 94, 122
metapsicologia 12,20,32, 117,169,227, 158,161,164,167,169,170,214 138,148,164,205,222,225
de sedução 90, 91, 94
228,232 porta-sonho 28, 51, 72, 129, 145, 153, do grupo 116
individual 94
metapsíquico 100,120,157 158,163, 167-169 regra fundamental 12, 64-67, 80, 136 ,
organizadora psíquica inconsciente
do grupo 78, 91 metassocial 157 porta-voz 166,167,226 161,214
244 Um singular plural

relações de objeto 38,54, 101, 106-108, sujeito


225 do grupo 12, 32, 38, 46, 51, 54, 112,
resistências das instituições 120,151,167,168,209,236
psicanalíticas em face do grupo 41 do inconsciente 222, 225-227
retomo do recalcado 51, 72, 93, 96, 142, no grupo 50, 51
151,164,182,205,229
revisão da teoria do sonho 17,4, 176 teoria do campo 114, 244
terceira tópica 50,227,228,244 Índice onomástico
tópicas do inconsciente 151, 228, 244
sistema das relações de objeto 107
trabalho
situação psicanalítica _12,61, 63-67, 71,
da intersubjetividade 95, 96,152, 182,
97,136,154,161,178,184,186,208,
224,225
215 Abraham, N. 45, 165
de aparelhagem 95 Bohr,N. 57
sociabilidade por interação 36, 37 Allen, W. 106
de cultura 202 Buber, M. 22
sonho do sonho 14,192,194 Amati Sas, S. 208 Burrow, T. 25
de Michêle 182 do sonho em grupo 183 Anzie, D. 176,177
de Robert 180, 181 psíquico 96, 229 Anzieu, C. 11 Caillois, R. 174
de sessão 186, 187 psíquico do grupo 78, 116, 126 Anzieu,D. 12, 15, 18,41-45,50,60, 102, Caillot, J.-P. 45
do analista 186, 187 transferência 33, 35, 42-44, 65, 67, 69, 114, 118, 119, 122, 130, 178, 179, Canetti, E. 25
no estofo onírico do grupo 180, 191 73-75,81,86,87,90-93,97, 106, Ili, 205-207, 211 Castoriadis-Aulagnier, P. 21, 23, 55,
nos grupos 89, 90, 94, 129, 163, 112, 122-124, 136,138,139,141,142, Aristóteles 20 109, 120, 125, 152, 158, 199, 203,
182, 193 144,146,148,162,163,180,184,186, Atwood, G. 22 217,221,226
subjetivação 15, 22, 46, 55, 59, 79, 94, 187,205, 211-213, 215, 221-223, 230 Aulagnier, P. 127,160, 161 Clavreul, J. 216
95, 122,131,211,220-224 Avron, O. 45 Corrao, F. 161, 182
umbigo do sonho 14, 177, 192, 193 Couchoud, M.-T. 216
sujeição 193, 221-224, 226
Bakhtin, M. 151
Decherf, G. 45
Bakhtine, M. 58, 150
Derrida, J. 55
Balint, M. 30
Devereux, G. 21, 57,174
Baranger, M. 114
Dodds, E. 127, 163, 174
Baranger, W. 114
Dostoievski, F. 150
Bastide, R. 174
Durkheim, E. 25, 39
Bejarano, A. 41, 43,206
Benson, R. 108
Edelman, G. 104
Berenstein, I. 216 Eiguer,A. 45,216
Bernard, M. 33, 183 Enriquez, M. 186, 187
Bion, W. R 18,25, 30-32, 35, 36, 38, 40, Ezriel, H. 34
43,45,50,58,60, 106,108,114,119,131,
152, 159-161,177,183,189,191 Faimberg, H. 74
Bleger, J. 36-38, 40, 67, 68, 143, 189 Fain, M. 215,216
246 Um singular plural lndice onomãstico
247

Ferenczi, S. 211 Lacan, J. 23,25,30,40,41, 104,160,221 Pryor, D. 108 Schur, M. 209


Fliess, W. 109,209-211,213,214 Laing, R. 130 Puget,J. 33,60,216 Searles, H. 189
Fogelman Soulié, F. 59 Laplanche, J. 105,107 Springman, R. 110
Foulkes, S.-H. 18, 31-36, 38, 40, 43, 50, Lawrence, G.-W. 174 Racamier, P.-C. 183 Stolorow, R.-D. 22
60, 114 Le Bon, G. 25, 39 Rickman, J. 34 Stroeken, H. 212,213
Freud, S. 13, 17, 19,21,25-27,40,48-50, Lebovici, S. 40 Rimbaud, A. 22 Sutherland, J. 108
52, 54, 55, 70, 71, 73, 10-1, 104, 105, Lemoine, G. 40 Robertson Smith, W. 186
107, 109-112; 114,115, 11'8,125-127, Lemoine, P. 40 Rogers, C. 40 Tarde, G. 25, 39
141,152, 154-157, 164, 175-177, 184, Lévinas, E. 22 Róheim, G. 119, 154 Tedlock, B. 174
186,189,190,192,199-203,209-214, Lévi-Strauss, C. 149 Rouchy, J. e. 45, 111 Torok, M. 45, 165
221,224, 229,232- Lévy-Bruhl, L. 167 Ruffiot, A. 45, 177
Friedman, R. 183 Lewin, K. 25, 39, 40, 42, 50, 167 Ruitenbeek, H.-M. 25 Wallon, H. 37
Weber,M. 25
Gaburri, E. 183, 194 Mack Brunswick, R. 212 Sacerdoti, C. 11 Widlõcher, D. 72
Goldstein, K. 34 Mahler, M. 189 Sandler, J. 68 . Winnicott, D. W. 23, 68, 152, 154
Granjon, E. 45 Mead, G. H. 21
Green,A. 107,127 Meltzer, D. 109, 176, 183, 189
Grotstein, J. 68 Missenard,A. 11,69,70, 187,188,190,206
Guillaumin, J. 213
Montaigne, M. de 22
Moreno, J.-L. 25, 39, 40
Haag, G. 45,68
Morin, E. 59
Hegel, F. 22
Heisenberg, W. 59
Napolitani, D. 44,102,103
Husserl, E. 22
Neri, C. 114,115,175
Neyraut, M. 186, 187
Isaac, S. 34
Nicolis, G. 59, 115
Jacques, E. 80, 81, 83, 84, 88-91, 95,
Orobitg-Canal, G. 174
124, 126, 138, 140, 144, 145, 147,
221,223
Jung, e. 211 Pasche, F. 203
Perrin, M. 174
Kaes, R. 22,23,41,45,58,68, 72, 74, 75, Piccioli, E. 11
79,106,108,114,129,132,154,163, Pichon-Riviere, E. 18, 31-34, 38, 40, 44,
164,167,177,199,200,204 60,102,103,114,117,166,167
Kestemberg, E. 40 Pigott, C. 45
Khan,M. 183,216 Pinel, J.-P. 204
Klein, M. 25, 34, 36, 176 Pontalis, J.-B. 41,42,44, 105,107,117,183
Kreisler, L. 189, 190 Prigogine 59, 115
Kurosawa, A. 79 Privat, P. 45
Este livro foi composto nas famílias tipográficas
Helvetica e Minion
e impresso em papel Offset 75g/m'

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na 1822 n• 341
04216-{XX)sio p,aulo sp
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