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------- Lógica e Aspectos Psicológicos da Decisão Judicial ----

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Lógica e Aspectos
Psicológicos da Decisão
Judicial
------- Lógica e Aspectos Psicológicos da Decisão Judicial ----
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Lógica e Aspectos
Psicológicos da Decisão
Judicial
Tarsis Barreto Oliveira, Enio Walcácer de Oliveira Filho,
Kathia Nemeth Perez
(organizadores)

Prefácio de Jaci Augusta Neves de Souza

Palmas
2016
Título Original em Português: Lógica e Aspectos Psicológicos da
Decisão Judicial.

© 2015 de UFT – Universidade Federal do Tocantins / ESMAT – Escola


Superior da Magistratura Tocantinense

Todos os direitos desta edição reservados.

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL.

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou


mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações, assim como traduzida,
sem a permissão por escrito, permissão por escrito, do autor, ressalvado o uso
em citações acadêmicas.

Organização

Tarsis Barreto Oliveira

Enio Walcácer de Oliveira Filho

Kathia Nemeth Perez


Dados Internacionais de Catalogação da Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lógica e aspectos psicológicos da decisão judicial / Tarsis Barreto


Oliveira, Enio Walcácer de Oliveira Filho, Kathia Nemeth Perez
(organizadores); prefácio de Jaci Augusta Neves de Souza. - - 1.
ed. – São Paulo : PerSe, 2017. – (Coleção prestação jurisdicional
e direitos humanos)

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN: 978-85-646-0513-8

1. Decisão Judicial 2. Direito – Aspectos psicológicos 3. Direito


processual 4. Psicologia forense 5. Soluçao de conflitos 6.
Tomada de decisão I. Oliveira, Tarsis Barreto. II. Oliveira
Filho, Enio Walcácer de. III. Perez, Kathia Nemeth. IV.
Souza, Jaci Augusta Neves de. V. Série.

17-06167 CDU – 34 : 15

Índices para catálogo sistemático:

1. Direito e psicologia 34 : 15
-------- Lógica e Aspectos Psicológicos da Decisão Judicial --
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Os autores

Alex Rabelo

Discente do Programa de Mestrado Profissional e Interdisciplinar em


Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da Universidade Federal do
Tocantins (UFT) em parceria com a Escola Superior da Magistratura
Tocantinense (ESMAT). Especialista em Direito Tributário pela Universidade
Federal de Goiás (UFG). Procurador Federal. E-mail:
rabelo.alex@gmail.com.

Andrea Cardinale Urani Oliveira de Morais

Advogada. Mestranda em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela


Universidade Federal do Tocantins (UFT). Especialista em Ciências Penais.
Especialista em Formação de Professores para o Magistério Superior Jurídico.
Docente no Ensino Superior Jurídico nas cadeiras de Direito Penal, Processo
Penal, Prática de Processo Penal e Direitos Humanos. Membro associada do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM. E-mail:
andreacardinaleurani@gmail.com.

Eliandra Milhomem de Souza

Graduada em Direito pela Universidade Regional de Gurupi, pós-graduada em


Direito Processual- Grandes Transformações pela Universidade do Sul de
Santa Catarina, mestranda no Mestrado Profissional e Interdisciplinar em
Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do
Tocantins e Escola Superior da Magistratura Tocantinense e é servidora do
Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. E-mail: Eliandra@tjto.jus.br

Eurípedes do Carmo Lamounier

Discente do Programa de Mestrado Profissional e Interdisciplinar em


Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos. Juiz de Direito. E-mail:
euripedes@tjto.jus.br
Gisele Pereira de Assunção Veronezi

Discente do Programa de Mestrado Profissional e Interdisciplinar em


Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da Universidade Federal do
Tocantins (UFT) em parceria com a Escola Superior da Magistratura
Tocantinense (ESMAT). Especialista em Direito Penal e Processual Penal
pela Universidade do Norte Paulista (UNORP). Juíza de Direito. E-mail:
giseleveronezi@tjto.jus.br.

Jocy Gomes de Almeida

Discente do Programa de Mestrado Profissional e Interdisciplinar em


Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos. E-mail: jocygomes@uol.com.br

Kárita Barros Lustosa

Mestranda - Programa Mestrado Interdisciplinar Prestação Jurisdicional e


Direitos Humanos – UFT. Professora do Centro Universitário Unirg e
Advogada. E-mail: karytabarros@hotmail.com.

Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

Mestranda - Programa Mestrado Interdisciplinar Prestação Jurisdicional e


Direitos Humanos – UFT. Técnica judiciária do Tribunal de Justiça do Estado
do Tocantins. E-mail: lilian.lrcs@gmail.com.

Manuel de Faria Reis Neto

Discente do Programa de Mestrado Profissional e Interdisciplinar em


Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos. E-mail: Manuel@tjto.jus.br

Maria Edna de Jesus Dias

Graduada em Direito pela Universidade Associação Evangélica de Anápolis ,


pós-graduada em Língua Portuguesa pela Faculdade de Ciências e Letras
Plínio Augusto do Amaral - Amparo SP e em Direito Civil e Processo Civil
pela Faculdade Albert Einstein, mestranda no Mestrado Profissional e
Interdisciplinar em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela
Universidade Federal do Tocantins e Escola Superior da Magistratura
Tocantinense e é servidora do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. E-
mail: mednadias@gmail.com
Pedro Nelson de Miranda Coutinho

Mestrando - Programa Mestrado Interdisciplinar Prestação Jurisdicional e


Direitos Humanos – UFT. E-mail: pepo2@uol.com.br

Reynaldo Borges Leal

Mestrando - Programa Mestrado Interdisciplinar Prestação Jurisdicional e


Direitos Humanos – UFT. Pós-Graduado em Direito Constitucional e Direito
Público. Servidor TJTO. E-mail: rbleal6@gmail.com.

Ricardo Gagliardi

Discente do Programa de Mestrado Profissional e Interdisciplinar em


Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos. E-mail: Gagliardi@tjto.jus.br

Rogério Adriano Bandeira de Melo Silva

Discente do Programa de Mestrado Profissional e Interdisciplinar em


Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos. E-mail: rogerioadm@gmail.com

Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

Mestranda em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade


Federal do Tocantins (UFT). Máster em Direitos Sociais pela Universidad de
Castilla-La Mancha (Espanha). Especialista em Direito do Trabalho e Direito
Processual do Trabalho pela Universidade do Tocantins (UNITINS). Juíza do
Trabalho do TRT da 10ª Região (DF/TO). E-mail:
suzidarlyfernandes@uft.edu.br.
SUMÁRIO

Apresentação da obra ............................................................................................ 13


Prefácio à obra........................................................................................................ 17

ACESSO À JUSTIÇA E ATENDIMENTO AO PÚBLICO: REFLEXÕES A


PARTIR DA TEORIA DA AÇÃO COMUNICACIONAL DE HURGEN
HABERMAS
- Kárita Barros Lustosa; Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva ................................ 19

ASPECTOS PSICOLÓGICO-COMPORTAMENTAIS DA RELAÇÃO DE


AUTORIDADE ENTRE O JUIZ E A TESTEMUNHA
- Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi ......................................... 41

FALSAS MEMÓRIAS E DEPOIMENTO DE TESTEMUNHAS:


CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA À PRESTAÇÃO JURISDICIONAL
- Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes ...................... 75

A ESSÊNCIA DO SER HUMANO E OS CONFLITOS SOCIAIS


- Ricardo Gagliardi ................................................................................................. 99

O FENÔMENO PSICOLÓGICO DA FALSA MEMÓRIA E O CRIME DE


FALSO TESTEMUNHO: UMA ANÁLISE NO ÂMBITO DO PROCESSO
PENAL
- Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias ................................ 127

A MEDIAÇAO NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS


- Eurípedes Lamounier & Rogério Adriano de Melo Silva .................................... 161

FATORES PSICOLÓGICOS EXTERNOS


E A TOMADA DE DECISÃO
- Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal ............................ 187

A RAZÃO E A EMOÇÃO NA DECISÃO JUDICIAL


- Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto ..................................... 219

CONSIDERAÇÕES PSICOLÓGICAS SOBRE AS “RAZÕES”


EMOCIONAIS DA DECISÃO JUDICIAL
- Kathia Nemeth Perez ............................................................................................ 249

UMA ANÁLISE DOGMÁTICA, JURÍDICA E PSICOLÓGICA DO


PROCEDIMENTO DE RECEBIMENTO DA INICIAL ACUSATÓRIA NO
BRASIL
- Enio Walcácer de O. Filho ................................................................................... 273
APRESENTAÇÃO DA OBRA

A Obra Lógica e Aspectos Psicológicos da Decisão Judicial é


fruto de apurada seleção de artigos oriundos do profícuo Programa de
Mestrado Profissional e Interdisciplinar em Prestação Jurisdicional e
Direitos Humanos, realizado pela Universidade Federal do Tocantins,
em parceria com a Escola Superior da Magistratura Tocantinense.
Compreendendo estudos de Direito e Psicologia, seja da área sócio
jurídica, seja da área clínica, este livro contém diversas reflexões
sobre problemas clássicos do Direito, estudados numa perspectiva
interdisciplinar, característica esta que reflete a base do próprio
mestrado no qual a disciplina é ministrada.
Assim é que Kárita Barros e Lilian Rodrigues nos brindam com
uma reflexão acerca do acesso à justiça, sendo visto sob a ótica da
Teoria da Ação Comunicativa, de Hürgen Habermas, apontando a
comunicação como ferramenta de entendimento entre quem busca a
prestação jurisdicional e quem é acionado nesta busca. Sob o aspecto
psicológico, estuda-se a possibilidade de aperfeiçoamento entre o
jurisdicionado e o Estado, no tocante à facilitação desse acesso.
A relação de autoridade entre o juiz e a testemunha é o objeto de
estudo de Alex Rabelo e Gisele Pereira, que tratam do desconforto da
testemunha face ao juiz e as implicações deste efeito para o desenlace
do processo judicial. O artigo traça um paralelo entre as “relações de
autoridade e o autoritarismo, para se chegar à análise das relações de
autoridade entre o juiz e as testemunhas”, buscando, ao final,
demonstrar a necessidade de um olhar diferenciado do juiz sobre a
sociedade para que a função processual seja aprimorada.
A temática das falsas memórias e a sua influência no processo é o
tema enfrentado por Andrea Cardinale e Suzidarly Ribeiro, com
especial enfoque na questão da guarda, visitação, tutela e interdição,
buscando, sob o aspecto psicológico, determinar instrumentos de
validade e veracidade nos testemunhos, com vistas a uma prestação
jurisdicional mas justa e efetiva. Na mesma temática, contudo sob a
ótica processual penal, Eliandra Milhomem e Maria Edna abordam a
impossibilidade de responsabilização das testemunhas no crime de
falso testemunho.

13
Com escopo mais filosófico, Ricardo Gagliardi traz reflexões sobre
a essência do ser humano, os conflitos de nossa sociedade e as
influências para o comportamento sob a ótica cultural e biológica, no
contraponto existencial entre as necessidades individuais e os direitos,
limitadores do convívio social humano, sendo este caracterizado por
um conflito que deve ser amenizado pelo Direito como instrumento de
concretização do equilíbrio na busca da realização de projetos de vida
em Estados Democráticos.
A decisão judicial, como corolário da prestação jurisdicional, é a
temática do artigo de Pedro Nelson de Miranda e Reynaldo Borges,
que analisam os fatores psicológicos externos que afetam a tomada de
decisão judicial. A formação da convicção na decisão judicial, de
forma ideal, deve ser a mais livre possível de fatores externos, sendo a
Teoria das Decisões um dos principais focos do debate jurisdicional
na contemporaneidade. Neste aspecto, os autores analisam os modos
de tomada de decisão, a lógica envolvida no ato de decidir, tanto
formal quanto jurídica, e a racionalidade que deve estar envolvida na
decisão. Abordam ainda a importância da Moral sobre o Direito, tendo
como base Alexy e Dworkin, analisando ainda os elementos de
valoração presentes na decisão, sem menosprezar as influências que
sofre o magistrado na prolação do ato decisório. Jocy Gomes e
Manuel de Faria analisam a importância dos aspectos emocionais em
contraponto com a razão e a sua influência na decisão judicial.
A mediação de conflitos é abordada por Eurípedes Lamounier e
Rogério Adriano Bandeira, para quem a resolução de conflitos por
intermédio da mediação é um aspecto de relevância na construção de
uma sociedade mais justa e solidária, atuando como forma de
estabelecimento de um diálogo entre os litigantes na solução mais
rápida de conflitos, reduzindo seus custos e inserindo a comunidade
na solução de seus problemas sem a necessidade de congestionamento
do Judiciário.
Ao final nos deparamos com dois artigos que coroam a obra, um
da psicóloga Káthia Nemeth, que aborda as questões psicológicas
envolvidas nas decisões judiciais, consicente e inconscientemente,
bem como o efeito dos fatores externos e internos nas decisões. O
outro artigo do processualista penal Enio Walcácer aborda o
procedimento de recebimento da inicial acusatória e os efeitos da
dissonância cognitiva, sob a ótica de Festinger, na decisão, bem como
a inconstitucionalidade do procedimento à partir da demonstração da

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mácula da imparcialidade do juiz no sistema adotado atualmente no
Código de Processo Penal brasileiro.
A presente obra compõe a coleção Prestação Jurisdicional &
Direitos Humanos, iniciada com as obras Sistema Penal e Direitos
Humanos e Efetividade da Tutela Jurisdicional e Técnicas
Processuais, encerrando o primeiro ciclo de sua trilogia, brindando o
leitor tocantinense e brasileiro com um vasto conjunto teórico que
busca o aprimoramento da função jurisdicional e a consolidação dos
direitos humanos, vistos numa perspectiva humanística e
interdisciplinar.

Dos organizadores

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PREFÁCIO À OBRA
Por Jaci Augusta Neves de Souza1

Quando os indivíduos se organizaram em grupos para se proteger


de seus predadores naturais, instituíram-se as normas de conduta. Esse
acontecimento provocou um salto qualitativo no desenvolvimento de
tais indivíduos, que mais tarde viria a se caracterizar como psiquismo
humano. Séculos de evolução na conduta humana, agora sob a tutela
de uma codificação, conduziram ao que se convencionou delinear
como ciência jurídica.
Qual seria, então, a proposa para os problemas de disciplina ou
descumprimento de tais normas? A punição foi o caminho para que
indivíduos agissem de acordo com o que se propõe, enquanto
sociedade organizada. No entanto, os fatores que governam a conduta
humana são complexos, mutáveis e nem sempre passíveis de análise.
A análise da conduta humana distinguiu-se, mais uma vez, como
um ramo de outra ciência emergente muitos séculos após, a
Psicologia. Psicologia e Direito tratam da conduta humana, ou seja, os
saberes são, obrigatoriamente, convergentes para o que chamamos de
humano.
Mas, em se tratando de objeto de estudo, Psicologia e Análise do
Comportamento são ciências em processo de fratura: Psicologia
enquanto ciência da mente e Análise do Comportamento, ramo
emergente voltado especificamente para o estudo do comportamento,
factível, observável, descritível, em resposta à interação do indivíduo
com o seu meio. Muito do conhecimento que as ciências humanas

1
Graduada em Psicologia pela Universidade de Brasília (1992). Especialista
em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia (2002). Mestrado
em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela Universidade Federal do Pará
(2005). Doutorado em Teoria e Pesquisa do Comportamento na Universidade
Federal do Pará (2013). Atualmente seu interesse está voltado para o estudo
do potencial de adaptação social de pessoas em conflito com a lei. Trata-se de
estudos ancorados no pressuposto de que se as relações sociais e jurídicas
são estabelecidas pelo homem, seus princípios devem ser buscados no próprio
homem, no seu pensamento, na sua vontade, nos seus sentimentos, cuja
capacidade passa da vontade particular para a coletiva, pré-requisito da vida
normativa.

17
utilizam sobre controle de comportamento veio das ciências
experimentais e aplicadas delineadas pela Análise do Comportamento.
Nesse sentido a Psicologia limita-se a uma condição de disciplina
auxiliar do Direito porque é o estudo do comportamento das pessoas
ou grupos, em relação à necessidade de desenvolver-se dentro de
ambientes regulados juridicamente. Na especificidade da área jurídica,
a Psicologia ocupa-se, então, da estrutura das normas jurídicas
enquanto estímulos vetores da conduta humana, no espaço íntimo
do indivíduo, que se manifesta pelas marcas singulares da formação
ou construção de crenças e valores compartilhados na dimensão
cultural que vão constituir a sua experiência individual ou de grupo.
Daí afirmar-se que as normas morais ou jurídicas possuem
conteúdo emocional porque aprovam ou reprovam uma forma de
conduta em uma dimensão subjetiva e individual. As normas,
portanto, são resultados de necessidades e sentimentos, que se
expandem e se limitam até encontrar um sentido, tomando o formato
de crenças que se estabelecem pela própria experiência do indivíduo;
ou pelas observações das experiências de pessoas confiáveis; ou,
ainda, pelos discursos de pessoas confiantes. O processamento
psíquico cria os ideais da consciência coletiva que, finalmente, as
transformam em normas de conduta.
A percepção de pertencimento e de compromisso mútuo que liga
os indivíduos em uma unidade coletiva é área de investigação
privilegiada das Ciências Sociais, que pretende a diluição e prevenção
dos sentimentos de isolamento, solidão e alienação. A justiça social
traduz-se na preocupação com as questões de igualdade, à distribuição
justa dos recursos, oportunidades, participação e poder. Partilhar a
visão de sociedade justa, estabelecer o sentimento de urgência, o
desenvolvimento de possibilidades de solução dos problemas, é área
exclusiva das Ciências Jurídicas.
E, finalmente, no delineamento dos processos colaborativos de
tomada de decisão que permitem envolvimento significativo de todos
os membros, a identificação e definição dos problemas que afetam o
indivíduo, em se organizar de forma eficaz para responder às suas
próprias necessidades, e de tomar parte nas decisões que determinam
o seu futuro, definitivamente, é área das Ciências Humanas.

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Esta obra é, então, o resultado do esforço das Ciências Sociais ao
contemplar os Direitos Humanos e a Prestação Jurisdicional, na forma
de Mestrado Profissional.

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

ACESSO À JUSTIÇA E ATENDIMENTO AO PÚBLICO:


REFLEXÕES A PARTIR DA TEORIA DA AÇÃO
COMUNICACIONAL DE HURGEN HABERMAS
Por Kárita Barros Lustosa; Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

RESUMO: O acesso à Justiça, direito fundamental, é diretamente relacionado


ao atendimento de quem integra o sistema jurisdicional e quem busca a
prestação da assistência judicial. A comunicação se revela como ferramenta,
pois é um fator que possibilita o entendimento entre quem procura e quem é
procurado. A pesquisa em tela destaca os benefícios da comunicação
direcionada para o mútuo entendimento, de forma que não se busca apenas se
desincumbir da função de “atender”, mas ofertar atendimento humanizado.
Neste particular, pode haver contribuições significativas mediante o “agir
comunicativo” e o respeito ao próximo considerando suas particularidades,
suas diferenças. É diálogo no qual existe um ponto em comum entre os
envolvidos desejosos de que a mensagem possa fluir entre os participantes.
Encontram-se, entre estudiosos da arte da comunicação, conclusões no sentido
de que a comunicação humana só existe realmente quando se estabelece entre
duas ou mais pessoas um contato psicológico e elas conseguem se encontrar
ou reencontrar. O intuito é contribuir para a reflexão demonstrando como
percepções sobre as quais Habermas se debruçou podem ser úteis ao
aperfeiçoamento da prestação jurisdicional no tocante a ser facilitado o acesso
ao Poder Judiciário, direito resguardado na ordem constitucional por sua
particular relevância ao exercício da cidadania.
PALAVRAS CHAVE: Acesso. Judiciário. Comunicação. Direito
fundamental.
ABSTRACT: Access to justice, fundamental right, it is directly related to the
care of who is part of the judicial system and those seeking the provision of
legal assistance. Communication is revealed as a tool, it is a factor that allows
the understanding between those seeking and who is sought. The search
screen highlights the benefits of communication directed towards mutual
understanding, so that not only seeks to discharge the function of "meet", but
offer humanized care. In particular, there may be significant contributions
through "communicative action" and respect for others considering their
particularities, their differences. It is dialogue in which there is a common
thread among the eager involved that the message can flow between
participants. Are among the communication art scholars, conclusions in the
sense that human communication only really exists when established between
two or more people a psychological contact and they are able to discover or
rediscover. The aim is to contribute to the reflection demonstrating how
perceptions about which Habermas leaned may be helpful to the improvement
of judicial assistance with regard to easier access to the courts right

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

safeguarded in the constitutional order in its particular relevance to the


exercise of citizenship.
KEYWORDS: Access. Judiciary. Communication. Fundamental right.

INTRODUÇÃO

O acesso do cidadão ao Poder Judiciário é assunto que,


corriqueiramente, vem aparecendo entre pessoas que atuam, direta ou
indiretamente, no sistema legal, sendo objeto de atenção dos que
realizam a prestação jurisdicional (magistrados, advogados, ativistas
de movimentos sociais, entre outros). E é realmente merecedor de
atenção porque o acesso à Justiça consiste em direito fundamental.

Um fator crucial no assunto em comento é a existência de variadas


situações que representam obstáculos a quem procura a prestação
jurisdicional, basta se pensar naqueles que moram em cidades menos
desenvolvidas ou áreas essencialmente rurais, lugares em que
geralmente há baixos níveis de escolaridade; são locais cujos
moradores, normalmente, possuem dificuldades para falar, para se
comunicar, e chegam a se intimidar quando simplesmente precisam
pedir alguma informação, inclusive em locais que apresentem nuances
de maiores formalidades, como fóruns.

Quer se chamar atenção para os obstáculos culturais, econômicos e


sociais que são marcantes na sociedade brasileira.

Pode se pensar nos portadores de deficiências, os quais às vezes


enfrentam dificuldades nos atendimentos em geral, sendo comum que
assim ocorra por certa falta de sensibilidade com suas limitações.

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

As situações acima referenciadas são exemplos que levam a


determinado “item” do acesso ao Poder Judiciário: o atendimento, e
de forma ainda mais específica à comunicação no atendimento, pois
este é um mecanismo primordial ante à direta relação que guarda com
o direito de se informar e de se comunicar.

Existem iniciativas relevantes de órgãos integrantes do Judiciário,


contudo, como é inerente dinâmica da sociedade humana, há o que se
aprimorar.

Por um lado, ressalta-se que há mecanismos espalhados no texto


constitucional voltado para facilitar o acesso ao judiciário como o
benefício de assistência judiciária gratuita, a nomeação (dativa) de
advogado na localidade sem defensoria, entre outros que possibilite o
ingresso da população carente ao judiciário.

Entretanto, estes e outros mecanismos nem sempre funcionam


como deveriam, havendo falhas ou restrições a uma parte da
população por variantes, como retro apontado.

A morosidade da justiça, inegavelmente, ainda persiste como


ponto nevrálgico na prestação jurisdicional, sendo de conhecimento
geral que, em qualquer parte do país, existe um considerável espaço
de tempo entre o momento em que é ajuizada uma ação judicial e o
momento do julgamento de seus pedidos, o que se torna ainda mais
demorado se houver a fase de recursos.

Os aspectos ora abordados, isolada ou conjuntamente, dificultam o


contato de uma pessoa com o Poder Judiciário, e justificam a
necessidade de reflexões, e ações, em prol de garantia de acesso à
prestação jurisdicional.

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

O ordenamento constitucional em vigor exterioriza uma enfática


atenção aos direitos e garantias, tendo a Constituição Federal de 1988
um papel destacado como um documento “avançado, abrangente e
pormenorizado sobre a matéria, na história constitucional do país”
(PIOVESAN, 2012, p. 402).

Neste sentido,

O valor da dignidade humana impõe-se como núcleo básico


e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como
critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação
e compreensão do sistema constitucional instaurado em
1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm
constituir os princípios constitucionais que incorporam as
exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo
suporte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro. Na
ordem de 1988 esses valores passam a ser dotados de uma
especial força expansiva, projetando-se por todo o universo
constitucional e servindo como critério interpretativo de
todas as normas do ordenamento jurídico nacional.

É de se reconhecer que, apesar de haver um longo caminho a


ser percorrido pelo Brasil na concretização dos direitos fundamentais
dos cidadãos, é certo que se impõe o reconhecer também que a
estrutura geral do ordenamento jurídico brasileiro, a começar com a
Carta Política, revela uma construção legal voltada a assegurar a
proteção do núcleo de direitos essencialmente coligados à dignidade
da pessoa humana.

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

Em tal contextualização que se propõe a presente análise tratar


de um direito fundamental ao pleno exercício da cidadania: o acesso
ao Judiciário mediatizado por comunicação voltada ao entendimento
mútuo.

1. ATENDIMENTO AO PÚBLICO NO JUDICIÁRIO:


REFLEXÕES A PARTIR DA TEORIA HABERMASIANA

A preocupação em vincular qualidade como fator de atendimento


não é novidade. Ao longo de muitas décadas, busca-se realizar
serviços com qualidade, diante da simples razão de que isto envolve
uma atitude que resulta da decisão pessoal de se querer ou não prestar
um bom atendimento.

Destarte, a qualidade e seus desdobramentos de eficiência e


eficácia, tem sido tema recorrente em palestras e cursos de
capacitação, e continua latente como preocupação constante de
administradores privados e gestores públicos, cientes de relevância em
oferecer aos seus usuários serviços de melhor qualidade.

E precisamente no que concerne à temática da justiça acessível,


ainda na década de 80, fora objeto de análise na obra Acesso à Justiça,
da qual se extrai:

O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como


requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos
– de um sistema jurídico moderno igualitário que pretenda
garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

O enfoque sobre o acesso – o modo pelo qual os direitos se


tornam efetivos caracteriza crescentemente o estudo do
moderno processo civil. [...] O processo, no entanto, não
deveria ser colocado no vácuo. Os juízes precisam, agora,
reconhecer que as técnicas processuais servem a questões
sociais, que as cortes não são a única forma de solução de
conflitos a ser considerada e que qualquer regulamentação
processual, inclusive a criação ou encorajamento de
alternativas ao sistema judiciário formal tem um efeito
importante sobre a forma como opera a lei substantiva –
com que frequência ela é executada, em benefício de quem e
com que impacto social. Uma tarefa básica dos
processualistas modernos é expor o impacto substantivo dos
vários mecanimos de processamento de litígios. Eles
precisam, consequentemente, ampliar sua pesquisa para
mais além dos tribunais e utilizar análise da sociologia, da
política, da psicologia e da economia, e ademais, aprender
através de outras culturas. O “acesso” não é apenas um
direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele
é também, necessariamente, o ponto central da moderna
processualística. Seu estado pressupõe um alargamento e
aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna
ciência jurídica.

Tal raciocínio permanece atual por ser de contínua relevância


para a sociedade a ampliação dos ângulos de visão da ciência jurídica,

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

inclusive com foco na atuação jurisdicional, visando o alcance de um


efetivo acesso aos cidadãos, da forma mais abrangente possível.

É de se ponderar que, com respeito ao Poder Judiciário, isso


passa por diferentes campos, citando-se a razoável duração dos
processos, a gratuidade da justiça, simplificação, e mesmo
desburocratização, de procedimentos, o atendimento ao público, além
de vários outros.

Destes, um dos que ostenta importância primária é o


atendimento ao público: aparece quando alguém, por exemplo, se
dirige aos prédios forenses procurando auxílio para um problema,
quando são realizadas audiências, cotidianamente como na simples
necessidade de informação para localização de um cartório judicial e
das salas de realização de audiência.

Provavelmente em todas as formas de prestação jurisdicional


aparece o atendimento ao público, demonstrando intrínseca ligação
com o ato de se comunicar, levando a se pensar em acessibilidade
comunicacional, o que, no contexto ora proposto, remete a posturas
conscientes da necessidade de entendimento entre quem representa o
Judiciário – todos os colaboradores – e quem o procura.

É apropriado se reportar a alguns aspectos das ideias de Jürgen


Habermas, filósofo e sociólogo alemão, com vasta produção literária
significativamente hábil a contribuir em ponderações voltadas à
interação comunicativa e interação social, primeiramente por força da
sua densa análise e reflexão atrelada à teoria da ação comunicativa e
também ante a expressiva contribuição concernente à importância do
respeito ao próximo.

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

Num segundo momento porque um dos traços marcantes das


obras deste pensador é a interdisciplinaridade com diversas áreas de
conhecimento, motivo pelo qual os discursos habermasianos são, no
mínimo, elucidativos e oportunos para operadores do direito,
cientistas políticos, comunicólogos etc.

Embora a construção epistemológica deste pensador sobre o


agir comunicativo, às vezes seja objeto de críticas, em geral sob o
argumento de um excesso de abstração, é perfeitamente possível, a
partir de suas construções, serem estabelecidos modelos aprimorados
para a relação – principalmente uma relação mais humanizada, mais
sensibilizada – entre a sociedade e o Poder Judiciário.

Principalmente por ser perceptível que uma das colunas do


pensamento habermasiano é a linguagem; linguagem como um meio
de comunicação, o qual vai além de um simples instrumento para
troca de palavras, configurando um meio crucial a ser usado para
possibilitar o entendimento entre as pessoas.

Neste sentido é pertinente falar de um dos raciocínios


concebidos por Habermas ao falar sobre as perspectivas do agir
direcionado para o entendimento mútuo em sua obra Consciência
moral e agir comunicativo, sendo válido assinalar que não é pretensão
analisar detalhadamente as concepções de Habermas, o que atrairia
muitos pormenores que preencheriam facilmente uma grande
quantidade de páginas.

O intuito é apresentar, sem pretensão de esgotar o assunto,


como percepções sobre as quais Habermas se debruçou podem ser
aplicadas à atuação do Judiciário para aperfeiçoar sua prestação

26
Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

jurisdicional, precisamente no tocante a ser assegurado o pleno acesso


à Justiça, direito essencial a todo cidadão.

Destaca o autor que há, entre os elementos relacionados ao fim


desta reciprocidade, o “mundo da vida”, e solidariedades resultantes
dos grupos agregados (HABERMAS, 1989, p.164 a 166).

Do primeiro elemento são extraídas proposições resultantes de


rotinas, ou tradições, que acabam por formar hábitos culturais.

Os atores da comunicação realizam esforços de interpretação -


que aqui se compreenderá como esforços de entendimento – e tais
esforços englobam os padrões de “exegese consentidos” – que aqui se
compreenderá como modelos de interpretações socialmente acordados
ou aceitos. Do segundo elemento surge o apoio em que aparece a
contribuição de valores existentes em grupos socialmente integrados.

Os discursos habermasianos, além de manifestarem a


importância de um agir orientado para entendimento, também
demonstram insistentemente a necessidade de se respeitar e ter
sensibilidade em relação a diferenças, em outras palavras trabalha-se a
consciência da solidariedade.

Em sua obra A inclusão do outro: estudos de teoria política,


pensando sobre moral, Habermas faz um longo e detalhado percurso
histórico-científico, buscando encontrar um conteúdo cognitivo para
moralidade.

Vai às raízes da sociedade, percorrendo a trajetória da evolução


da sociedade moderna, passando por épocas com fortes influências
religiosas, depois por períodos onde começou nascer a neutralidade

27
Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

ideológica, e chega aos tempos hodiernos em que aparece a


moralidade racional e laica.

É possível se afirmar que, entre outras conclusões, o autor


entende haver uma “correlação entre solidariedade e justiça”.
(HABERMAS, 2002, p.43).

Em toda a mencionada obra é ressaltada a conscientização com


aspectos pontuais: o outro, o respeito por todos e por um, a alteridade.

Aliás, um aspecto colocado em relevo é no tocante à “inclusão


com sensibilidade para as diferenças” (HABERMAS, 2002, p. 164), o
que engloba minorias, e, em outras palavras, grupos marginalizados.

Acentua o papel de “valorizações fortes, que dependem de


tradições intersubjetivamente compartilhadas, mas culturalmente
específicas” (HABERMAS, 2002, 164). Este é um dos pontos altos
das concepções da racionalidade comunicativa referida – e abordada
com peculiar consistência por Habermas.

Depreende-se que ressaltar a ideia “do outro” e o surgimento de


valorizações fortes deve significar o despertar de comprometimento
para com as outras pessoas, incentivar a responsabilidade e o
reconhecimento da alteridade, o que ainda revela outro elemento
acentuado na obra do pensador: as relações intersubjetivas como
verdadeiros laços sociais. Remete a uma postura solidária e
comprometida de qualquer pessoa para com seus pares, algo a ser
pensado em praticamente todos os campos da vida, inclusive na
atuação do Judiciário.

Ou seja, trazendo especificamente para a conjuntura do


atendimento ao público, no âmbito da prestação jurisdicional, é muita

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

válida a preocupação em se difundir – e sedimentar – a adoção diária


de atitudes que façam da comunicação um instrumento facilitador do
acesso daqueles que diariamente batem às portas dos órgãos judiciais.

O agir orientado ao entendimento pode ser um eficiente modelo


de interação social, que se mostra útil, e principalmente factível,
porque tem como essência algo comum a essência humana: o ato de se
comunicar.

É uma postura a ser alcançada mediante a coordenação da ação,


a articulação com o outro, tendo como partida o diálogo, algo que, no
entendimento habermasiano é fundamental para a construção de
consensos sociais.

Contudo, é de se concluir que a comunicação viabiliza não só o


ponto de chegada (a formação dos consensos sociais), mas, antes, o
ponto de partida (a atuação dos poderes públicos estruturais –
Legislativo, Executivo e Judiciário – se inicia exatamente com a
entrega dos serviços que presta ao povo, à sociedade, público alvo do
serviço públicos em toda e qualquer esfera).

2. APERFEIÇAMENTO DO ATENDIMENTO AO
PÚBLICO NO PODER JUDICIÁRIO: A
COMUNICAÇÃO COMO UM INSTRUMENTO

Atender a outras pessoas é inerente à atuação do serviço público,


em qualquer poder ou esfera. Uma situação a ser considerada, quando
se trata de atendimento por parte de quem presta serviços na rede

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

pública, é que os órgãos públicos, de modo geral, não preparam


adequadamente os servidores.

Sabe-se que grande parte dos servidores públicos, efetivos ou não,


entram em exercício sem ao menos ter recebido treinamento básico ou
com mínimo de preparo para exercer as funções inerentes ao cargo,
salvo aqueles cargos que disponibilizam curso de formação, contudo,
estes cursos também, em sua maioria, não possuem um foco
direcionado ao tema atendimento ao público.

Outro ponto a se considerar é que atendimento ao público com


qualidade não se restringe a agir demonstrando cortesia.

Embora uma atuação de modo polido, obviamente, seja


importante, seguramente significa haver empatia com quem está sendo
atendido, com sensibilidade para percepção de limitações de quem
está buscando uma simples informação, a qual, entretanto, pode não
ser simples para quem está procurando.

Imagine-se uma pessoa que pergunta a um servidor sobre o estado


em que encontra um processo seu, talvez o primeiro e único de sua
vida, sendo já pessoa idosa. Responde o servidor prontamente que irá
fazer uma breve consulta no sistema e volta, sem muita demora,
informando que aquele feito está concluso.

O atendimento em si, conforme descrito, aparentemente seria


satisfatório, pois o colaborador teria agido sem demora e com
prontidão.

Todavia, será se a pessoa com a descrição hipoteticamente feita


acima teria compreendido o que é um feito, e o que é feito concluso?
Os termos, as palavras que teriam sido usados pelo servidor para

30
Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

fornecer a resposta são comuns no meio forense, no entanto, não


significa dizer que qualquer pessoa consiga entendê-los.

Às vezes uma pessoa visivelmente apresenta dificuldades em se


expressar, o que pode indicar pouca instrução escolar ou ser um
analfabeto, pode ser alguém que vive em zona rural e é mal
esclarecida, encontra dificuldades nas pequenas coisas, como o que
perguntar para resolver um problema, e possui limitações no tocante
aos termos e palavras que usa para se comunicar.

Daí a necessidade de uma atitude sensibilizada, porque, por mais


atualizada e completa que seja uma informação, esta deve ser
compreendida pelo destinatário. Isso é viabilizado pela comunicação
que seja voltada para o entendimento; no caso do atendimento do
Judiciário, quem fala deve falar buscando se fazer compreendido por
quem busca o atendimento.

O cerne da questão é consolidar a importância do papel dos


servidores públicos do Judiciário na comunicação, de forma que
aperfeiçoem sua percepção para com aqueles a quem diariamente
atendem e se imagine, no lugar do outro com quem está lidando, para
interagir com eficácia.

Em outras palavras, é o chamado atendimento humanizado, no


qual a pessoa não atende simplesmente para se desincumbir de uma
função, mas busca ouvir a pessoa com quem fala e se sensibilizar para
se colocar no lugar do outro e perceber como queria ser tratado.

É a tomada de consciência com relação a quem depende do seu


trabalho. É o ponto de partida para qualquer mudança, quer seja de
uma organização privada ou no serviço público.

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

Diálogo com entendimento ocorre quando há um ponto em comum


entre os envolvidos, de forma que a mensagem possa fluir entre os
participantes. Há quem afirme, ao tratar da arte da comunicação, que a
comunicação humana só existe realmente quando se estabelece entre
duas ou mais pessoas um contato psicológico e elas conseguem se
encontrar ou reencontrar (MINICUCCI, 2001, p. 49).

O elemento humano é o diferencial de uma organização, e


qualquer corpo organizacional, só terá metas atingíveis, se houver
comunicação – no sentido de entendimento – e se houver
comprometimento das pessoas que o compõem.

Certamente, tais fatores são diretamente relacionados ao


treinamento, à busca de conhecimento e de aprimoramento de
eventuais falhas.

Sob este prisma, é certo que, em se tratando de gestão por


qualidade no atendimento ofertado nas instituições públicas, um
detalhe - que de modo algum é um detalhe qualquer - é o desafio de
mudar a cultura tradicional entre todos os colaboradores no tocante a
como prestar atendimento, o que abrange múltiplos passos,
destacando-se treinamentos constantes para capacitação e
aperfeiçoamento e avaliações contínuas de desempenho (não se
descartando pensar na recompensa como incentivo).

Representam algumas formas de se consolidar a participação do


servidor como um ator destacado na organização em prol do
desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias
ao melhor desempenho profissional. (CHIAVENATO, 2004, p. 182)

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

Um ponto que merece consideração é que o servidor público,


diante do fato de ser também um humano, é suscetível de falhas, de
dificuldades pessoas, desencadeadas, por exemplo, por cansaço físico
e mental em épocas com aumento do volume de serviço forense. Não
se pode esquecer que são sujeitos a cumprimentos de metas de
produtividade.

Na coletânea de trabalhos de conclusão de curso que foram


apresentados no Programa de Capacitação em Poder Judiciário,
tratando-se do tema atendimento do balcão, após a análise de dados,
uma pesquisa concluiu que esta é uma atividade desgastante para o
servidor na medida em que lhe exige tempo, disposição e paciência.

De outro lado, é o espelho do cartório e se traduz no contato mais


direto com a sociedade. Uma das soluções pensadas é o
estabelecimento de escalas distribuídas em horas, para atendimento
por meio de rodízio, visando uma maior tranquilidade do servidor e,
em contrapartida, melhor atendimento ao público.

De fato, se mostra uma solução fácil, simples e prática, e, que pode


ser implantada em praticamente todos os setores dos órgãos judiciais.

Assinala-se que, quanto a recompensar para incentivar, embora a


própria legislação expressamente trate sobre os deveres dos servidores
públicos de atuarem com urbanidade e zelo, comporta se considerar
que ações simples, e que não acabem causando ônus financeiro aos
cofres públicos, significam mais que mera retribuição, e sim
reconhecimento, o que gera prazer, e, por sua vez, dá uma injeção de
ânimo.

33
Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

É da natureza humana o desejo de bem-estar e de valorização,


molas propulsoras por força da sensação de felicidade que
proporcionam: na família, na sociedade, e, logicamente, no universo
profissional.

Mendes e Linhares (1996) e Mendes e Abrahão (1996), assim


como diversos estudiosos, ao pesquisarem o liame entre trabalho e
prazer, observaram que sensações prazerosas são vivenciadas quando
o trabalho favorece a valorização e reconhecimento, em especial, pela
realização de uma tarefa significativa e importante para a organização
e a sociedade.

Fazer uso da criatividade e ter a possibilidade de expressar uma


marca pessoal também pode ser uma potencial fonte de satisfação, e
até de orgulho e admiração pelo próprio desempenho.

Portanto, isso pode ser considerado para estimular iniciativas dos


próprios servidores públicos, visando um círculo de satisfação de
quem presta os serviços e para quem é seu destinatário.

Destaca-se que a crescente atenção com respeito à conversa entre


diversas áreas de conhecimento, felizmente vem surgindo não apenas
na iniciativa privada como no espaço dos poderes públicos: o
caminhar conjunto dos conhecimentos oriundos da Sociologia, da
Psicologia, da História, enriquecem significativamente projetos,
ações, programas, enfim, contribui para resultados em qualquer
iniciativa, de segmento particular ou coletivo.

Projetando um atendimento qualificado - e diferenciado - em


função do desenvolvimento de habilidades emocionais, se percebe que
o conhecimento relativo a comportamento humano, à percepção de

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

sinais linguísticos e posturais, ou, ainda, à compreensão de


necessidades comuns às pessoas, entre outros aspectos relacionados
aos indivíduos humanos, não é algo proporcionado, aliás, alcançado,
por um único campo de conhecimento.

Alguém preparado para saber reagir positivamente nas diversas


situações do dia-a-dia, e desenvolver variadas habilidades emocionais,
é algo possibilitado pela soma do conhecimento de muitos campos
sistematizados do saber.

Isso se mostra especialmente oportuno quanto ao atendimento


ofertado num instituição pública, o que certamente inclui os órgãos
judiciais, porque simplesmente é o caminho para se difundir - e
sedimentar - entre os seus integrantes posturas conscientes da
importância da comunicação como meio de possibilitar o acesso dos
cidadãos.

O suporte formatado com a reunião de variados campos do


conhecimento científico que tornará possível uma prestação
jurisdicional em que, diariamente, servidores atuem capacitados com
diversas habilidades indispensáveis para oferecer um atendimento
com eficácia e eficiência, em que a ferramenta da comunicação
possibilite o entendimento entre quem pergunta e quem responde,
quem fala e quem ouve, quem procura e quem é procurado.

Além disso, a gestão estratégica focada no atendimento eficiente e


eficaz dos servidores públicos atuantes no sistema judicial, pode ser
oxigenada com variadas ações: reuniões periódicas de avaliação,
encontros para confraternizações, escalas planejas para o máximo de
alternâncias quanto aos períodos de férias e licenças, valorização de

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

desempenho dos colaboradores (inclui, obviamente, estagiários e


voluntários), entre outros elementos hábeis a criar um cenário propício
a facilitar o acesso à justiça.

Este conjunto de considerações se insere no contexto da eficiência


na prestação dos órgãos públicos. O legislador constituinte, com a EC
19/98, consagrou expressamente o princípio da eficiência (art. 37), a
ser empregado no serviço público em geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudos, pesquisas, programas e projetos, assim como outras


iniciativas podem contribuir para efetivação do acesso aos relevantes e
necessários serviços ofertados por parte dos órgãos judiciais.

Refletir sobre tal temática traz a consequência de se perceber a


clara relação com o ato de se comunicar, e é a comunicação um
instrumento pontual para uma prestação jurisdicional efetiva, sendo
necessária em várias situações: informar à população endereços dos
foros, dos organismos vinculados ao judiciário, os horários de
realização das audiências, o funcionamento dos juizados especiais, até
mesmo a localização nos prédios forenses, visto ser comum os
cartórios forenses não serem próximos às salas de audiências, às vezes
são instalados em pavilhões opostos dentro dos prédios, e até prédios
separados.

Estes são alguns itens que facilitam a vida de quem busca a tutela
jurisdicional, inclusive para pessoas menos esclarecidas, às vezes

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

intimidadas por terem vivência em cidades pequenas e afastadas ou


em áreas rurais, sendo pessoas com pouca instrução, ou por
circunstâncias pessoais, como timidez.

Não se pretende com as ponderações apresentadas, sugerir ou


afirmar que os órgãos do Judiciário deveriam instituir uma
padronização do atendimento ao público; a mecanização da atuação
dos colaboradores jamais seria condição de eficácia e eficiência na
comunicação.

Busca-se contribuir para a reflexão da relevância pontual da


comunicação como meio de entendimento mútuo entre servidores do
Judiciário e o público, o que envolve um atendimento sensibilizado,
solidário, comprometido, destes que lidam diariamente com quem
recorre aos órgãos judiciais.

Válido perseguir um ponto de equilíbrio: de um lado, é de se


difundir e sedimentar a cultura, em qualquer órgão público, o que
certamente engloba os órgãos do sistema judiciário, de que a
sociedade é a destinatária, direto e indireto, dos serviços prestados,
elemento sem o qual não haveria razão para existir servidor público.

De outra monta, é igualmente determinante um ambiente em que


haja incentivo e reconhecimento, voltados à satisfação do servidor, o
que gera a prestação de um serviço com o devido comprometimento e
que acaba funcionando como uma mola propulsora de desempenho
com zelo e eficiência.

É justificável a necessidade de reflexão e de consequentes atitudes,


e inclusive constantes esforços para aperfeiçoamento das instituições
integrantes do sistema judicial.

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Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

O “agir comunicativo” no trato diário dos servidores para com


aqueles que estão em busca da prestação jurisdicional deve ser
norteado por alguns fatores básicos, na verdade fundamentais:
habilidades comportamentais, atitude motivada por uma conduta em
que se sobressaia atenção e empatia para discernir do que o “atendido”
necessita, controle emocional, e o objetivo, que deve ser permanente,
de que sua atuação, mesmo em questões simples, corriqueiras, seja
mediatizada por um atendimento que supra a necessidade do cidadão.

Com toda certeza, refletir sobre uma postura solidária leva a


atitudes compreensivas, visto que solidariedade e compreensão
representam dois pilares quando se pensa em relações sociais, e, mais
precisamente, quando se pretende que tais relações sejam sólidas por
estarem lastreadas na comunicação como um instrumento para o
entendimento mútuo.

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Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Ed. Sérgio
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como desenhar cargos e avaliar o desempenho para alcançar
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40
Kárita Barros Lustosa & Lilian Rodrigues Cordeiro da Silva

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Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

ASPECTOS PSICOLÓGICO-COMPORTAMENTAIS DA
RELAÇÃO DE AUTORIDADE ENTRE O JUIZ E A
TESTEMUNHA
Por Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

RESUMO: Qual a razão do desconforto da testemunha perante o Juiz? No


presente estudo fez-se uma abordagem da importância da prova testemunhal
para o desenrolar do processo judicial. Para tanto, analisa-se a reconstrução da
verdade possível, através do processo, discutindo a superação da dicotomia
entre verdade real e verdade absoluta. Destaca-se o formalismo jurídico na
produção da prova testemunhal e a necessidade de uma reflexão crítica a
respeito desse formalismo e do perfil que a sociedade deseja do juiz. Em
atitude interdisciplinar, a partir de estudos de Horkheimer, Adorno, Freud e
Lima, traça-se um paralelo entre as relações de autoridade e de autoritarismo,
para se chegar à análise das relações de autoridade entre o juiz e as
testemunhas. Discute-se que a interação do Juiz com os demais sujeitos do
processo se dá por meio de uma relação de poder, em razão da ascendência
econômica que o magistrado tem sobre as partes, as testemunhas etc. Em
seguida, ainda sob enfoque interdisciplinar, navega-se sobre a maré da
psicologia do testemunho, técnica psicológica de grande valia para a coleta da
prova testemunhal. Por fim, discutidos aspectos do desconforto da testemunha
perante o juiz, e reconhecida a importância dos subsídios fornecidos pela
psicologia judiciária ao Direito, provoca-se o juiz a ver o mundo sob outras
janelas do conhecimento e a entender a necessidade de conhecer a sociedade
em que vive para melhor desempenhar seu desiderato.
PALAVRAS CHAVE: Direito. Psicologia. Psicologia do testemunho.

ABSTRACT: What is the reason of the witness discomfort before the Judge?
In the present study it was made an approach to the importance of witness
evidence for the conduct of the legal process. Therefore, it is analyzed the
possible reconstruction of the truth, through the process, discussing the
overcoming of the dichotomy between real truth and absolute truth. It is
standed the legal formalism in the production of witness evidence and the
need for critical thinking on this formalism and the profile that the society
demands on the judge. In an interdisciplinary approach, from Horkheimer,
Adorno, Freud and Lima studyes, it is drawn a parallel between the
relationship of authority and authoritarianism, to reach the analysis of
authority relations between the judge and witnesses. It is argued that the
interaction of the judge with the other subjects of the process is conducted
through a relationship of power, because of the economic ascendancy that the
magistrate has on the parties, witnesses etc. Then still under interdisciplinary

41
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

approach, it is analysed the witness psychology, psychological technique of


great value to the collection of witness testimony. Finally, it is discussed the
witness discomfort aspects before the judge, and recognized the importance of
subsidies provided by the judicial psychology to law, it is teased the judges to
see the world in other windows of knowledge and to understand the need to
know the society in which they lives to better perform their desideratum.
KEYWORDS: Law. Psichology. Witness Psychology.

Introdução

Max Horkheimer abordou o surgimento da autoridade dentro da


família. Ele afirma que a autoridade e o autoritarismo nascem a partir
da percepção que a criança tem da figura paterna, e do seu papel de
provedor dos recursos necessários para a preservação da família. A
força do pai impõe à criança a necessidade de se adequar à realidade
existente, às custas dos seus desejos egoísticos. Ao que a criança
perde ao obedecer ao pai, corresponde uma retribuição que consiste
em permanecer em um grupo familiar mantido e protegido por ele.
Essa relação é aplicada ao ambiente extrafamiliar (a sociedade
burguesa). Considerando uma onipresença da economia, o autor
conclui que a autoridade não é um fenômeno pessoal, mas um
mecanismo que sofre interferência das dependências do sujeito em
relação a outrem ou às instituições.

Já na lição de Adorno, qualquer autoridade é construída de forma


psicossocial, ou seja, a partir da formação da subjetividade do
indivíduo a partir dos seus relacionamentos sociais. Por mais
paradoxal que pareça, a figura da autoridade paterna é necessária para
que o sujeito subordine o princípio do prazer (busca por satisfação

42
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

pessoal) ao princípio da realidade (adequação social de sua conduta) e,


dessa forma, reúna condições de, no futuro agir, de maneira autônoma
e socialmente aceitável. Logo, o processo de formação demanda, para
a formação de um sujeito emancipado e autônomo, a internalização de
um ideal de autoridade

Para Tercio Sampaio Ferraz Júnior, no Direito o poder é


considerado como a capacidade de produzir obediência. Ideia muito
similar à noção de autoridade utilizada por Horkheimer e por Adorno.
Afinal, dizem respeito à dominação de um indivíduo sobre outro, com
vistas a conformar a conduta desse sujeito ao padrão de
comportamento tido como mais acertado pelo dominador.

Nesse quadro, o Juiz desempenha as suas funções por meio de


relações de autoridade com todos os outros sujeitos do processo,
sejam partes, Advogados, peritos, testemunhas etc. E as reações
dessas pessoas à autoridade do Magistrado podem ser positivas (levam
à emancipação, conforme a lição de Adorno) ou negativa (não levam à
emancipação).

É nesse contexto que se insere o problema, por exemplo, da


inquirição de testemunhas pelo Juiz, por meio de métodos tradicionais
de oitiva. Esse procedimento, apesar de legalmente previsto,
geralmente resulta na obtenção de informações vagas, imprecisas e
que pouco contribuem para a elucidação dos fatos e a formação do
convencimento judicial.

As circunstâncias espaciais (sala com pessoas não conhecidas),


socioculturais (perguntas formuladas com linguagem diversa daquela
que se usa fora do ambiente forense), e pessoais (idade, nervosismo,

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Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

temor reverencial), dentre outras, fazem com que o exercício da


autoridade judicial na oitiva de testemunhas resulte, muitas vezes, em
um tratamento não emancipatório dessa testemunha. Com as suas
condições pessoais não consideradas, essa testemunha não recebe do
Estado-juiz condições de interferir efetivamente no processo,
contribuindo com aquilo que sabe dos fatos, e intervindo na resolução
do conflito. Nesse caso, o processo mais vulnerabiliza a testemunha
(danos da oitiva inadequada) do que emancipa (colher as informações
e conseguir apurar a verdade).

É preciso discutir formas de verificar as particularidades da


testemunha que podem interferir na elucidação dos fatos, de forma
que as informações possam ser colhidas com clareza e confiabilidade,
favorecendo a eficácia da prova testemunhal para a apuração da
verdade e a resolução de conflitos. Dessa forma, a testemunha terá
condições de interagir com o juiz e com os fatos objeto de apuração, e
dessa forma se sentir como um instrumento para a resolução de um
conflito.

Para tanto, a partir de revisão bibliográfica com abordagem


indutiva, o presente artigo pretende discutir o poder do Juiz em
relação aos demais sujeitos do processo, sob o enfoque da Psicologia e
do Direito. Posteriormente, pretende discutir questões de direito
probatório, a obtenção da verdade possível no processo judicial, e o
papel do juiz na colheita e valoração da prova testemunhal.

Com isso, pretende-se construir uma compreensão técnica dessa


relação de autoridade sobre o Juiz e a testemunha que participa do
processo. Tudo com vistas a apresentar proposições de como proceder

44
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

a colheita dessa prova de maneira eficaz para a prestação jurisdicional,


e ao mesmo tempo emancipatória da testemunha.

2. PROVA E VERDADE

O processo judicial, de ordinário, requer dilação probatória para se


chegar à análise do mérito da questão posta em juízo.

Advirta-se, no entanto, que a noção de prova não está adstrita ao


Direito, vez que está presente em todas as manifestações da vida
humana e transcende ao campo do Direito (ECHANDIA, 1981, p. 9).

Lima (2016, p. 454) destaca haver, fundamentalmente, três


acepções da palavra prova: 1) prova como atividade probatória,
consistente no conjunto de atividades de verificação e demonstração,
mediante as quais se procura chegar à verdade dos fatos, relevantes
para o julgamento; 2) prova como resultado, caracteriza-se pela
formação da convicção do órgão julgador no curso do processo quanto
à existência (ou não), de determinada situação fática; 3) prova como
meio, são os instrumentos idôneos à formação da convicção do órgão
julgador acerca de existência (ou não) de determinada situação fática.

É, entre os assuntos da dogmática processual, aquele que exige do


aplicador e do estudioso maior volume de noções de outras áreas do
conhecimento. A interdisciplinaridade, aqui, não é apenas um desejo
acadêmico: sem observar essa característica, não há como interpretar e
aplicar corretamente as regras do direito probatório (DIDIER;
OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 38).

45
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

Segundo dispõe o art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal de


1988, são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios
ilícitos. Com isso, nossa Constituição assevera que, desde que
admissíveis as provas, há o direito fundamental à sua produção
(MARINONI; MITIDIERO, 2010, p. 333).

Com efeito, no âmbito do processo penal, o juiz formará sua


convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório
judicial. Não poderá fundamentar sua decisão exclusivamente nos
elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as
provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, consoante se extrai o
art. 155 do Código de Processo Penal.

Pode-se dizer que do direito à prova, conteúdo do direito


fundamental ao contraditório, extraem-se os direitos (DIDIER;
OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 41): a) à adequada oportunidade de
requerer provas; b) de produzir provas; c) de participar da produção da
prova; d) de manifestar-se sobre a prova produzida; e) ao exame, pelo
órgão julgador, da prova produzida.

Não raras vezes, salutar registrar, afirma-se que pela prova busca-
se a verdade, que, no processo penal, é denominada material, real ou
substancial, justamente para fazer contraste com a verdade formal ou
instrumental do processo civil (NUCCI, 2012, p. 388). No entanto, tal
dicotomia encontra-se superada, vez que, atualmente, através do
processo, busca-se a verdade possível, ou seja, a verdade que pode ser
reconstruída, segundo as regras do processo.

Atualmente considera-se a verdade como algo meramente utópico


e inalcançável, seja qual for a ciência que estiver analisando o

46
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

conhecimento humano dos fatos (NEVES, 2015, p. 483), sendo pueril


imaginar que se possa, com o processo, atingir a verdade real sobre
determinado acontecimento. Afinal, nem mesmo a ciência fala mais
em verdade absoluta, tema que é dedicado às discussões metafísicas e
religiosas (DIDIER; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 47).

Nucci (2012, p. 388), no interesse de definir a verdade, vale-se da


lição de Malatesta, para quem a verdade é a conformidade da noção
ideológica com a realidade, enquanto a certeza é a crença nessa
conformidade, provocando um estado subjetivo de espírito ligado a
um fato, ainda que essa crença não corresponda à realidade objetiva.
Carrara (1944, p. 291), por sua vez, ensina que “a certeza está em nós;
a verdade está nos fatos”.

É preciso revalorizar a verdade e redimencionar o seu papel


no processo. A justiça de uma decisão, como bem lembra
Taruffo, não depende apenas de ela finalizar um processo
que transcorreu de modo correto, com respeito a todas as
garantias processuais e mediante a interpretação e
aplicação adequada do direito. Tudo isso é necessário, mas
não suficiente para determinar a justiça de uma decisão.
Afinal, nenhuma decisão pode ser considerada justa se, a
despeito de tudo isso, estiver baseada numa reconstrução
falsa, não verdadeira, dos fatos discutidos no processo
(DIDIER; OLIVEIRA; BRAGA, 2015, p. 48).
Conclui-se, então, que “toda discussão sobre a verdade há de ser
contextualizada e vinculada a uma determinada situação”
(TARUFFO, 2007).

Para contextualizar a verdade a uma determinada situação,


analisar-se-ão alguns aspectos da produção da prova testemunhal.

47
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

3. DA PRODUÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL

Lima (2016, p. 628) define testemunha como “a pessoa


desinteressada e capaz de depor que, perante a autoridade judiciária,
declara o que sabe acerca de fatos percebidos pelos sentidos que
interessam à decisão da causa”. Esclarecendo, ainda, que “a prova
testemunhal tem por objetivo trazer ao processo dados do
conhecimento que derivam da percepção sensorial daquele que é
chamado a depor no processo.”

Efetivamente, a produção da prova testemunhal está regulada


no Código de Processo Penal, a partir do art. 202. Segundo
disposições de referido diploma, qualquer pessoa poderá ser
testemunha, a qual fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a
verdade do que souber e lhe for perguntado. Não se deferirá o
compromisso, no entanto, àqueles que guardam grau de proximidade
com o acusado, aos doentes, aos deficientes mentais, aos menores de
14 (quatorze) anos, entre outros.

A testemunha não pode eximir-se a obrigação de depor, embora


possa recusar-se a fazê-lo quando, por exemplo, for ascendente,
descendente ou cônjuge do acusado, salvo quando não for possível,
por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e das
circunstâncias.

O juiz advertirá a testemunha das penas cominadas ao falso


testemunho e se reconhecer que a testemunha fez afirmação falsa,
calou a verdade ou a negou, remeterá cópia do depoimento à
autoridade policial para instauração do inquérito policial.

48
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

As partes ainda poderão contraditar a testemunha, arguir


circunstâncias ou defeitos que a tornem suspeita de parcialidade, ou
indigna de fé.

Nesse aspecto, imperioso reconhecer a limitação da liberdade


individual. Busato (2011, p. 525) esclarece que não pode haver um
interesse individual desvinculado do interesse público, sem gerar a
correspondente reação controladora do Estado. Isso porque desde logo
se pode dizer que a pretensão individual constituiu um desvio, vez que
se o interesse individual for legítimo, estará incluído naqueles
interesses que foram agrupados e, assim, estará no âmbito de proteção
do Estado.

Nada obstante a existência de normatização a respeito da prova


testemunhal, necessária se faz uma reflexão crítica a respeito do
formalismo jurídico e do perfil que a sociedade deseja do juiz. Não
sem antes perpassar pelo estudo das relações de autoridade e de
autoritarismo que permeiam a relação entre o Juiz e a testemunha.

4. A AUTORIDADE

As relações de autoridade e as relações autoritárias permeiam


toda a histórica da civilização humana, em todas as esferas da vida
social. Grande estudioso desses fenômenos no século XX, Max
Horkheimer, pensador da Escola de Frankfurt, abordou o surgimento
da autoridade dentro da família nas várias etapas da história humana,
principalmente em abordagens acerca da influência econômica sobre
as relações de autoridade no seio da família burguesa.

49
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

Horkheimer desenvolveu os seus estudos sobre as relações de


autoridade motivado pelo contexto social e econômico da Europa do
início do século XX. Um ambiente em que o totalitarismo, marcado
por formas de pensar e agir autoritárias, estava em franca expansão.
Mais do que isso, Silva (2014, p. 15) destaca o grande interesse do
autor a respeito dos “mecanismos que impediriam que o proletariado
não partisse para o conflito e de certa forma buscasse uma
identificação com a classe dominante”. Ou seja, entender a autoridade
ajudaria a compreender as relações entre classes socais que se
relacionam por meio de mecanismos de dominação, e entender o
fenômeno autoritário ajudaria a entender o quadro geopolítico europeu
do período entre as Grandes Guerras.

Faz-se mister que desde logo se conceitue a autoridade e o


autoritarismo. Autoridade, conforme Lima (2010, p. 17-18), seria a
influência ou poder de alguém sobre outrem; ao passo que o
autoritarismo seria o exercício violento de autoridade. Enquanto a
autoridade não é necessariamente exercida de maneira violenta, o
autoritarismo é o exercício despótico da autoridade, ou a obtenção de
autoridade como fruto de um processo violento.

Nesse quadrante, desde logo importa analisar o conceito de


autoridade adotado por Theodor W. Adorno, para quem “[...]
autoridade é um conceito essencialmente psicossocial, que não
significa imediatamente a própria realidade social. [...] o conceito de
autoridade adquire seu significado no âmbito do contexto social em
que se apresenta” (ADORNO, 2006, p. 176, apud LIMA, 2010, p. 18).

50
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

Ou seja, aquilo que se conceitua como autoridade muda


conforme se altere o contexto social analisado. Admite-se, portanto, a
existência de autoridades políticas (toma decisões sensíveis sobre os
rumos da sociedade), da mesma forma que existem autoridades
técnicas (aquele que sabe mais sobre um certo assunto), religiosas,
carismáticas etc. O cerne da lição de Adorno, todavia, é a
compreensão de que qualquer autoridade é construída de forma
psicossocial, ou seja, a partir da formação da subjetividade do
indivíduo a partir dos seus relacionamentos sociais.

As análises de Horkheimer sobre a autoridade são


desenvolvidas tendo por base o discurso econômico (o marxismo era
muito presente no pensamento horkheimeriano) e a formação do
indivíduo a partir do ambiente familiar (viés psicanalítico), no
contexto da sociedade burguesa. Aliando Freud e Marx, Horkheimer
foca a formação psíquica do indivíduo, que exsurge do
entrecruzamento de um emaranhado de influências e de instituições.
Bem por isso, seus estudos sobre a autoridade não se restringem à
política; ao ter o indivíduo como foco, o autor chega a conclusões
aplicáveis em todas as esferas da vida em sociedade.

Como ressalta Silva (2014, p. 37), “[...] estamos lidando com


um pensador materialista que vê o mundo como um processo histórico
construído dialeticamente com a participação consciente do indivíduo
[...]”. Bem por isso Horkheimer começa a analisar a autoridade no
ambiente familiar (estrutura básica da sociedade burguesa) para
somente depois voltar seus olhos para as imbricações sociais culturais,
econômicas e políticas da autoridade.

51
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

Horkheimer, com base em critérios psicanalíticos descritos


por Silva (2014, p. 39), é categórico ao afirmar que a autoridade e o
autoritarismo nascem no seio da família burguesa, a partir da
percepção que a criança tem da figura paterna, e do seu papel de
provedor dos recursos necessários para a preservação da família.

Como desenvolvido por Freud em “Totem e Tabu”, a relação


pai e filho é marcada por uma série de interdições e ambivalências.

É verdade que no caso do pequeno Árpád (sujeito da


comunicação de Ferenczi), seus interesses totêmicos não
surgiram em relação direta com o complexo de Édipo, e
sim baseados em sua pré-condição narcisista, o temor da
castração. Mas qualquer leitor atento da história do
pequeno Hans encontrará provas abundantes de que ele
também admirava o pai por possuir um pênis grande e
temia-o por ameaçar o seu. O mesmo papel é
desempenhado pelo pai tanto no complexo de Édipo
quanto no complexo de castração, ou seja, o papel de um
inimigo temível dos interesses sexuais da infância. O
castigo com que ele ameaça é a castração, ou o seu
substituto, a cegueira. (FREUD, p. 84)

O filho admira e teme o pai, que é grande e ameaçador (complexo


de castração), e que rivaliza com os desejos sexuais desse filho
(complexo de Édipo). Ao crescer e destituir o pai do seu poder, o filho
também quer exercer a mesma precedência sobre os seus sucessores, e
para tanto eleva o pai à condição de figura admirada.

52
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

O pai é compreendido por Freud como um totem. A estrutura


totêmica poderia ser explicada, analogicamente, como “[...] um animal
temível pela comunidade totêmica, mas que ao mesmo tempo se torna
símbolo de devoção e lhe é conferido um caráter sagrado e protetor
daquele determinado clã” (RODRIGUES, 2013, p. 310).

Essa relação ambivalente entre pai e filho no seio do grupo


familiar, descrita por Freud, a partir do materialismo histórico de
Marx é desenvolvida por Horkheimer e aplicada ao ambiente
extrafamiliar (a sociedade burguesa).

A criança reconhece a força do pai como uma “necessidade de


adequar-se à realidade existente, portanto, ela racionalmente percebe
que há uma relação aí de perda e ganho” (SILVA, 2014, p. 41).
Noutros termos, ao que a criança perde ao obedecer ao pai,
corresponde uma retribuição que consiste em permanecer em um
grupo familiar mantido e protegido pelo pai. Mais do que isso,
reconhece-se que na sociedade burguesa grande parte dessa autoridade
paterna deriva do seu poder econômico.

Ele é o senhor da casa, porque ganha dinheiro ou pelo


menos o possui. [...] Assim como, na economia dos últimos
séculos, o poder direto cada vez menor obriga os homens a
aceitarem a relação de trabalho, assim também, dentro da
família, a agitação racional, a obediência espontânea
substituem a escravidão e a submissão. [...] Da influente
posição do homem na família depende, essencialmente, o
efeito em prol da autoridade, sua posição doméstica de
poder emana de seu papel de provedor. Se ele deixa de

53
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

ganhar ou de ter dinheiro, se perde sua posição social, seu


prestígio na família também periclita. (HORKHEIMER,
1990, p. 219 e p. 232, apud SILVA, 2014, p. 41)

Vê-se que, para Horkheimer, a relação de perda e ganho que é


aprendida no seio da família, que tem matiz psicanalítico (Freud), mas
também econômico (Marx), espraia-se por toda a vida social e
influencia as relações de autoridade que aí se desenvolvem. Nesse
grupo de relações se insere, por exemplo, o mercado de trabalho, com
empregados que obedecem a seus patrões como filhos obedecem a
seus pais. Ou prestadores de serviços que obedecem a seus clientes
etc.

Silva (2014, p. 45) registra que os indivíduos incorporam, sem que


sequer percebam, essa postura de respeitarem a autoridade de pessoas
que detém ascendência econômica sobre eles; a ponto de que “o
indivíduo passa a pensar e agir dentro da racionalidade que o mundo
econômico exige”.

Com base na sua compreensão sobre a interferência da economia


sobre todas as relações humanas, Horkheimer a chama de “um Deus
anônimo” (HORKHEIMER, 1990, apud SILVA, 2014, p. 44), por ser
algo que interfere em todas as instâncias da vida humana. Essa
onipresença da economia faz o autor concluir que a autoridade não é
um fenômeno pessoal, senão um mecanismo que sofre interferência
das dependências do sujeito em relação a outrem ou às instituições.

Esse autor inclusive se dedica à função econômica da família


burguesa para tratar da autoridade racional e da autoridade irracional.

54
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

No período feudal, os empreendimentos eram familiares, não havendo


distinção entre ambiente profissional e doméstico. Não havia,
portanto, distinção entre o pai e o patrão, de modo que a obediência ao
chefe-de-família era necessária à própria sobrevivência do indivíduo.
Havia uma obediência racional. Mas com o desenvolvimento do
mundo industrial, o indivíduo que ingressava no mercado de trabalho
não depende mais de um chefe-de-família para se manter. Esse sujeito
vive então uma dissociação entre o pai, que obedece por imperativo
não econômico, e o chefe, que obedece por imperativo econômico.

Para o autor, o respeito à autoridade de um pai que não tem mais


ascendência física (complexos de castração e de Édipo) nem
econômica (chefe-de-família) sobre o seu filho representam uma
autoridade irracional, que é preservada como uma imagem derivada
da estrutura da família patriarcal.

Apesar de todos estos importantes cambios, las


representaciones morales y religiosas; las imágenes
derivadas de la estructura de la familia patriarcal, siguen
constituyendo el núcleo de nuestra cultura. El respecto a
ley y el orden en el estado parece ir inextricablemente
ligado al respeto de los hijos a sus padres. Los
sentimientos, las actitudes y las convicciones que hunden
sus raíces en la familia mantienen unido nuestro sistema
cultural. (…). En la vida cotidiana, sin embargo, la
autoridad de la nación parece depender de la autoridad de
la familia. (HORKHEIMER, 2005, p. 83-84, apud SILVA,
2014, p. 89)

55
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

Ou seja, Horkheimer conecta essa autoridade irracional que o pai


mantém sobre o filho que dele já não mais depende, à autoridade que
as pessoas atribuem à lei, às instituições e, portanto, ao próprio estado
de direito. Dessa maneira, a família é um espaço produtor de uma
mentalidade autoritária, posto que talha na pessoa a estrutura psíquica
de obedecer e de ordenar, gérmen que favorece o respeito às
instituições e à lei, por entender que as pessoas carregam um
“sentimento de querer seguir alguma autoridade” (SILVA, 2014, p.
92).

Nesse diapasão, com base em Adorno, Lima (2010, p. 18) entende


que a presença da autoridade no processo de formação do indivíduo,
especialmente na primeira infância, é essencial para que ele se
emancipe e adquira autonomia de pensar e de agir no futuro. Ressalta
que “a dissolução de qualquer tipo de autoridade não esclarecida
[coação violenta], principalmente na primeira infância, constitui um
dos pressupostos mais importantes para a desbarbarização”
(ADORNO, 2006, p. 167, apud LIMA, 2010, p. 18-19). Todavia,
conquanto o autoritarismo (autoridade por coação violenta) seja
maléfico à formação da pessoa, a educação na primeira infância
demanda a presença de uma autoridade esclarecida.

[O processo de maturidade] É o processo – que Freud


denominou como desenvolvimento normal – pelo qual as
crianças em geral se identificam com uma figura de pai,
portanto, com uma autoridade, interiorizando-a,
apropriando-a, para então ficar sabendo, por um processo
sempre muito doloroso e marcante, que o pai, a figura

56
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

paterna, não corresponde ao eu ideal que apreenderam


dele, libertando-se assim do mesmo e tornando-se,
precisamente por essa via, pessoas emancipadas.
(ADORNO, 2006, p. 177, apud LIMA, 2010, p. 19)

Em outros termos, o processo de formação tem um caráter


dialético que demanda, para a formação de um sujeito emancipado e
autônomo, a internalização de um ideal de autoridade. Por mais
paradoxal que isso pareça, a figura da autoridade paterna é necessária
para que o filho subordine o princípio do prazer (busca por satisfação
pessoal) ao princípio da realidade (adequação social de sua conduta) e,
dessa forma, reúna condições de, no futuro agir, de maneira autônoma
e socialmente aceitável.

Citando Freud, Marcuse (1998, p. 93, apud LIMA, 2010, p. 20)


afirma que “o conflito funesto entre o indivíduo e a sociedade é vivido
e decidido em primeiro lugar e sobretudo na confrontação com o pai
[...]; a rebelião e o acesso à maturidade são estágios da luta contra o
pai”. Noutra senda, Lima (2010, p. 19) registra que, sem um ideal de
autoridade a ser internalizado e contra o qual irá se rebelar, o jovem
“dispara a sua rebeldia para todos os lados”, especialmente contra
figuras de autoridade do seio social, como professores, policiais,
chefes etc.

Como Lima (2010, p. 21) reflete:

Neste ponto fica claro o caráter dialético da formação,


impor limites para gerar a liberdade, utilizar a autoridade
para possibilitar a autonomia.

57
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

A formação que vise a autonomia deve proporcionar a


capacidade auto-reguladora aos indivíduos, para que eles
não se deixem conduzir pelo meio.

Ou seja, o indivíduo que não convive com um ideal de autoridade


(figura clássica do pai), a ser oportunamente questionado, sofre com
duas deficiências no seu processo de formação. A falta de alguém que
controle os anseios pessoais desse sujeito (princípio do prazer) na
primeira infância, adequando-os aos padrões sociais (princípio da
realidade), tende a resultar em uma pessoa que repudia a controle
social sobre as suas condutas. Noutra senda, essa mesma pessoa, por
não ter convivido com um ideal de autoridade que ela pudesse
questionar após a primeira infância, pode apresentar problemas para
se portar com autonomia; afinal, por não ter aprendido a questionar
figuras de autoridade, ou ela os repele, ou se submete irrefletidamente
aos seus comandos.

4.1. Autoridade e poder no Direito: relações de autoridade


entre o Juiz e a testemunha

As reflexões acima expostas, a respeito da autoridade e dos seus


reflexos na conduta e na vida humanas, são tão importantes para o
Direito como são para a Psicologia, para a Ciência Política, para a
Sociologia etc.

Isso porque a autoridade é, acima de tudo, uma relação de poder. E


as relações de poder são muito relevantes no mundo do Direito. Tercio
Sampaio Ferraz Júnior traça extensa reflexão sobre o poder e o Direito

58
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

em seus estudos de Filosofia do Direito. E o faz adotando uma ideia


geral do que seja poder que muito se aproxima daquela veiculada por
Horkheimer e Adorno a respeito da autoridade. Para o brasileiro, “o
poder que não é percebido é, de todos, o mais perfeito: aquele cujo
processo chegou a um fim; alter e ego, dominante e dominado, são
um só, embora continuem como se fosse distintos” (FERRAZ
JUNIOR, 2003, p. 15).

É certo que Ferraz Junior (2003, p. 19) ressalva que


tradicionalmente o poder não é incorporado na dogmática jurídica,
sendo encarado como um fato extrajurídico. Não obstante, ao
prosseguir com suas análises, ele assevera que, dentre outros sentidos,
no Direito o poder é considerado como “Algo que o homem detém,
ganha, perde, limita, aumenta. Poder nessa acepção tem a ver com
império, capacidade de produzir obediência, atributo essencial da
autoridade política, judiciária, legislativa, administrativa, policial”.
(FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 19).

Respeitadas as divergências entre os respectivos campos do saber,


entre os ambientes geopolíticos e temporais etc., a ideia de poder que
Ferraz Junior desenvolve no Direito é muito similar à noção de
autoridade utilizada por Horkheimer e por Adorno. Tanto para os
autores frankfurtianos, quanto para o jusfilósofo brasileiro, esses
institutos dizem respeito à dominação (física, psicológica, política,
econômica etc.) de um indivíduo sobre outro (ou outros), com vistas a
conformar a conduta desse sujeito (ou grupo de sujeitos) ao padrão de
comportamento tido como mais acertado pelo dominador.

59
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

Mais do que isso, os 3 (três) autores atribuem, cada um a seu


modo, um caráter instrumental ao poder ou à autoridade. Horkheimer
a enxerga como um instrumento de conformação da pessoa às regras
sociais (a partir do seu núcleo familiar burguês) e, posteriormente, às
regras econômicas capitalistas. Adorno trata a autoridade também
como um elemento de conformação das pessoas às regras sociais, mas
com foco na futura emancipação e autonomização do indivíduo.
Ferraz Junior, a seu turno, define o poder como um ato de
neutralização da vontade do submetido 2, sendo que “A causa final da
obediência está na finalidade perseguida, o chamado bem comum”
(2003, p. 22).

Feitas tais considerações, importa perceber que o Juiz, no


exercício da função jurisdicional, aplica o Direito e dirige o processo
com base em relações de autoridade (ou de poder) desenvolvidas com
os demais sujeitos do processo.

2
“Essa tendência da moderna teoria dos sistemas nos conduz, assim, a
ver o poder como um meio (medium) de comunicação, generalizado
simbolicamente. [...] Entendemos por meio (medium) de
comunicação, pois, uma espécie de construção paralingüística, isto é,
um código de símbolos gerais, que regula a transmissão de
performances seletivas. [...] Nesse sentido, nosso tipo ideal (Weber)
nos obriga a distinguir poder e coação para fazer algo determinado e
concreto, pois as possibilidades de escolha do coagido são reduzidas a
zero. [...] A função do poder (e do direito) coloca possíveis relações
causais independentes da vontade do submetido, ou seja, a causalidade
do poder (imputação) consiste na neutralização da vontade do
submetido e não em quebrar sua vontade. A função do poder (e do
direito) está na regulação da contingência e não em sua supressão”.
(FERRAZ JUNIOR, 2003, p. 36-40)
60
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

É o que se extrai da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015, o novo


Código de Processo Civil brasileiro. Nele se dispôs que ao Juiz
competem os poderes-deveres de impulsionar o processo (Art. 2º); de
prevenir e reprimir atos atentatórios à dignidade da justiça (Art. 139,
III); de exercer poder de polícia (Art. 139, VII, e Art. 360); de
determinar as provas que devam ser produzidas pelas partes para que
se possa julgar o feito (Art. 370); de ouvir testemunhas após lhes
advertir que é crime a testemunha mentir, calar ou ocultar a verdade
perante o Juiz (Art. 456 e Art. 458) etc.

Verifica-se, portanto, que no curso do processo judicial o Juiz


interage com os demais sujeitos do processo (partes, Advogados,
testemunhas etc.) por meio de uma relação de poder.

Ele exerce autoridade sobre a parte, porque tem a capacidade de


resolver a lide a favor ou contra a pretensão dela. Logo,
mediatamente, o Juiz é dotado de ascendência econômica sobre a
parte, à medida que decidirá uma questão com impacto econômico
direto ou indireto sobre ela. Noutra perspectiva, a testemunha também
está inserida em uma relação de autoridade com o Juiz, na medida em
que este, tal como o pai que pode castigar o filho, tem o dever de
ofício de iniciar a inquirição informando que mentiras ou omissões
durante a oitiva podem configurar conduta criminosa. O mesmo se
diga em relação ao Advogado, que tem seus requerimentos decididos
pelo Juiz, ou em relação ao perito, que tem seus honorários arbitrados
pelo Magistrado.

Mutatis mutandis, sob a perspectiva da autoridade, o Juiz assume


na condução do processo um papel análogo àquele que a figura do pai

61
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

representa na formação do indivíduo. O Juiz exerce poder para


conformar a conduta dos sujeitos processuais às normas jurídicas
materiais e processuais, assim como o pai molda a conduta do filho às
normas sociais.

Mais do que isso, assim como o pai é o objeto preferencial da


rebeldia do filho que passa a perceber a falibilidade dessa figura de
autoridade, também o Juiz é objeto preferencial da “rebeldia” de
sujeitos processuais que atuam no processo. Afinal, considere-se que
existem dois momentos processuais típicos para a manifestação da
irresignação do autor contra o réu (petição inicial e alegações finais), e
dois momentos processuais típicos para a manifestação da
irresignação do réu com o autor (contestação e alegações finais).
Paralelamente, existem incontáveis oportunidades no processo para
que qualquer das partes (ou ambas) questionem os atos do Juiz.
Conquanto a interposição de recursos seja uma conduta
institucionalizada e positivada no ordenamento brasileiro,
essencialmente ela decorre da irresignação das partes contra um ato do
Juiz. Em termos mais amoldados às reflexões de viés psicanalítico de
Horkheimer e Adorno, os recursos são manifestações da “rebeldia”
dos sujeitos processuais contra a autoridade do Juiz. Vê-se que o
próprio ordenamento jurídico, ao prever mais oportunidades
processuais de questionamento dos atos do Juiz, do que de
questionamento dos atos da outra parte, reconhece essa situação do
julgador de alvo preferencial da irresignação das partes.

Tudo a confirmar, portanto, que o Juiz desempenha a função


jurisdicional por meio da manutenção de relações de autoridade com

62
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

todos os outros sujeitos processuais. Bem como a confirmar que,


como efeito psicológico esperado, os sujeitos que são submetidos ao
poder do Juiz tendem a reagir a essa autoridade.

Com base no que Adorno reflete, essa reação do sujeito que sofre
o influxo da relação de autoridade pode ser positiva ou negativa. A
reação positiva pode ser admitida como aquela que resulta na
emancipação do sujeito; e a negativa como aquela que impede essa
emancipação.

Nesse quadro, há emancipação (resultado positivo do influxo de


autoridade) quando o poder exercido pelo Juiz conduz o sujeito à
pacificação. Ou seja, quando a sua pretensão é analisada e decidida de
maneira terminativa de um conflito que lhe serve de contexto, ou
quando esse sujeito atua para colaborar efetivamente com a resolução
de um conflito que o cerca. O sujeito que atua sob a égide da
autoridade judicial se emancipa, portanto, quando essa autoridade cria
um ambiente que permite investigar e discutir os fatos com
urbanidade, dialeticidade e verdadeira abertura para influenciar a
formação da futura decisão judicial.

Como assevera Lima (2010, p. 20):

Segundo os frankfurtianos, este conflito entre Eros e


Thánatos não tem possibilidade de conciliação, logo o
conflito entre indivíduo e sociedade também não. O que se
pode é elaborar as pulsões para que os conflitos internos
encontrem meios de sublimação, sem que se exteriorizem
de maneira violenta e irracional, prejudicando o indivíduo
e os outros no interior da sociedade.

63
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

Ou seja, o exercício do poder que cria um ambiente amistoso à


reflexão autônoma e crítica (tanto das testemunhas, das partes, quanto
do próprio Juiz) é emancipador e positivo para os sujeitos desse poder.

Noutro turno, a reação que impede a emancipação do indivíduo é


aquela que impede a sua interferência no processo de maneira
autônoma e crítica. Seja por ter o seu direito de ação ou de defesa
cerceados, seja por não dispor de instrumentos para interferir
efetivamente na convicção do julgador (com suas pretensões, seus
pontos de vista, suas versões dos fatos), o sujeito cuja aptidão para
interferir no processo é menoscabada não é emancipado em meio a
essa relação de poder.

Com base nas lições de Adorno, Lima (2010, p. 18-21) reflete:

O próprio Adorno explica que ‘a dissolução de qualquer


tipo de autoridade não esclarecida, principalmente na
primeira infância, constitui um dos pressupostos mais
importantes para a desbarbarização’. [...] Neste ponto fica
claro o caráter dialético da formação, impor limites para
gerar a liberdade, utilizar a autoridade para possibilitar a
autonomia.

Em outros termos, a autoridade judicial que é exercida de maneira


constritiva do agir autônomo dos demais sujeitos processuais, com
instrumentos e oportunidades para interferirem na formação da
decisão judicial, não emancipa. Isso porque não os conduz a um
ambiente em que eles possam interagir entre si e contribuírem para a
pacificação. Quando a resolução de um conflito vem somente da
autoridade do Juiz, não sendo construído em conjunto com as partes,

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Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

testemunhas etc., ele é instrumento de encerramento do processo, mas


não de construção dialética e crítica de consenso entre as pessoas.

Aqui surge a necessidade de o Juiz render-se à


interdisciplinaridade para ampliar suas potencialidades, diminuir a
distância teórica e fomentar uma articulação que permita o diálogo
entre as disciplinas correlatas, inclusive a Psicologia, ultrapassando os
hábitos intelectuais estabelecidos.

5. O JUIZ E A PSICOLOGIA DO TESTEMUNHO

A história do pensamento jurídico ocidental está imbuída de


formalismo, o que conduziu o Direito ao positivismo legalista da
Escola da Exegese e permaneceu no normativismo da Escola de Viena
e no pensamento neopositivista. A consequência desse modo de
conceber o Direito, segundo Prado (2013, p. 38), foi o seu
distanciamento da realidade, por meio da separação exagerada entre o
mundo dos conceitos e o mundo dos fatos.

Reagindo contra essa pretensão formalista que reduziu o raciocínio


jurídico a uma simples aplicação dedutiva de fatos, prossegue a
autora, Luís Recasés, Theodor Viehweg, Michel Villey, Chaim
Perelman e o chamando Grupo de Bruxelas, além de outros,
preconizam um alargamento do campo da lógica jurídica para
abranger outros processos de conhecimento que correspondem à vida
de real do Direito.

65
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

Cappelletti (1993, p. 32) ressalta a mudança de postura do juiz


exigida pela própria sociedade, a dizer que antes “o formalismo tendia
a acentuar o elemento da lógica pua e mecânica do processo
jurisdicional, ignorando e encobrindo, ao contrário, o elemento
voluntarismo, discricional, da escolha”. E que hoje “o papel do juiz é
muito mais difícil e complexo, e de que o juiz, moral e politicamente,
é bem mais responsável por suas decisões do que haviam sugerido as
doutrinas tradicionais”.

Nalini, que realiza um diligente trabalho no aperfeiçoamento da


formação dos juízes, entende serem requisitos do bom julgador a
higidez psíquica e o interesse pela natureza humana (PRADO, 2013,
p. 44).

Prado prossegue a dizer que pondera Nalini que o juiz deve


proferir a sentença com sentimento e não se reduzir a um mero
burocrata repetidor de decisões alheias, com a finalidade de aderir á
maioria e conclui (2013, p. 44).

Prado (2013, p. 44) ressalta que Nalini:

[...] conclui que a exigência legal de uma conduta privada


irrepreensível torna o magistrado muito crítico em relação
a pessoas com comportamentos flexíveis. Apegado à
dogmática do direito objetivo, convence-se das verdades
axiomáticas e protege-se na couraça da ordem e da
pretensa neutralidade. A parcela de poder que a ele
confiada e a possibilidade de decidir sobre o destino
alheio, tornam-no prepotentes: é reverenciado por
advogados e servidores, temido pelas partes, distante de
todos. Considerando-se predestinado e dono do futuro das
partes no processo, revela-se desumano, mero técnico

66
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

eficiente e pouco humilde, esquecido da matéria-prima das


demandas: as dores, sofrimentos e tragédias humanas.

Conclui Prado que o Direito, além de ser examinado sob o enfoque


normativo, deve ser tratado numa perspectiva valorativa e numa
dimensão fática, para cuja compreensão são úteis diversas disciplinas,
inclusive a Psicologia.

Nesse aspecto, salienta Gomes (2000) que tema interessante e de


grande valia para o desempenho da função jurisdicional é o relativo à
psicologia judiciária, em especial o pertinente às técnicas psicológicas
de inquirição de testemunhas. Isso porque a prova testemunhal revela-
se importante no âmbito do processo, principalmente na área penal,
pois nesta seara o supremo bem, que é a liberdade humana, pode
sofrer cerceamento com base em depoimentos coletados.

Daí a imprescindibilidade de deter o juiz conhecimentos a


respeito da psicologia do testemunho, pois assim poderá,
com maior precisão e segurança, desvendar os mistérios
da alma humana, quando da coleta dessa prova, vindo,
por conseguinte, a haurir subsídios revestidos de maior
margem de certeza para ensejar a formação de seu
convencimento e levar a um julgamento justo e correto
(GOMES, 2000).

Segundo a autora, dentre os diversos pontos a serem


considerados pelo juiz, quando da audição da testemunha, está a
linguagem não verbal, para o fim de verificar se há coadunância entre
a linguagem oral e aquela revelada pela expressão fisionômica, pelos
gestos, pelas atitudes, pelo olhar. Isso porque a linguagem corporal é
sempre mais veraz, espontânea e de difícil dissimulação.

67
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

Assim, na comunicação não verbal pode estar o exato


esclarecimento do conteúdo que se esconde através das palavras, e que
somente pode ser aferido se o juiz ficar atendo em relação ao
comportamento adotado pela testemunha (GOMES, 2000).

Outro aspecto relevante está na análise da percepção que a


testemunha tem sobre certo acontecimento, da sua memória e da
forma de expressão do fato, ou seja, no tripé: percepção, memória e
expressão do fato.

A percepção, segundo Ambrosio (2010) é o processo que consiste


em atribuir significado às informações (experiências vividas) captadas
pelo sistema sensorial que chegaram ao córtex cerebral, traduzindo,
verdadeira experiência psíquica complexa e pessoal que sofre a
influência de diversos fatores internos e externos.

Diversos fatores externos podem influir na percepção, dentre eles,


a violência, que tende a diminuir a capacidade de captação das
informações, pois a pessoa que estava com atenção voltada à própria
defesa, o que pode também prejudicar a qualidade do testemunho
(AMBROSIO, 2010).

Conclui Gomes (2010) que cada testemunha percebe o fato de


acordo com a sua individualidade, de acordo com a sua vivência e a
concepção a respeito do mundo. E que a informação recebida nunca
será retratada exatamente como o fato aconteceu, mas sempre tendo a
colaboração decorrente da experiência de cada testemunha, da sua
capacidade de maior ou menor percepção, da sua visão peculiar a
respeito da situação.

68
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

O processo de memória, explica Ambrosio (2010), é complexo e


compreende uma rede de relações entre o evento, o contexto, o estado
de espírito e o conhecimento do observador a respeito dos fatos que
ocorreram. Sofre ainda atuações de inúmeros fatores, como as
crenças, os padrões, novas informações, experiências vividas, dentre
outros.

Nesse aspecto, muito conhecida a amnésia emocional, que se


observa como decorrência de um profundo abalo emocional e que
torna a pessoa incapaz de se lembrar a situação perturbadora
(AMBROSIO, 2010).

Nesse sentido, que se considerarmos que os depoimentos,


em regra, envolvem uma carga emocional intensa,
compreende-se a constância com que a amnésia emocional
se apresenta não só autos autores, como nas testemunhas.
Em situações de emoção profunda de nada adianta o juiz
forçar ou ameaçar as testemunhas para prestar
esclarecimentos sobre determinados fatos, pois os detalhes
podem ter sido esquecidos voluntariamente.

Já o processo de evocação das lembranças (reconstrução na mente


da experiência vivida) é direta e profundamente influenciado pelo
lapso temporal decorrido entre o fato e o testemunho, verificando-se
uma diminuição no grau de retenção das informações à medida que o
tempo passa (AMBROSIO, 2010).

A idade da testemunha também influencia o processo de evocação,


chegando-se a afirmar (MYRA Y LOPES, 2009) que nem as crianças,
nem os idosos são testemunhas dignas de confiança. Aquelas são
extremamente sugestionáveis; estes tendem a recordar mais facilmente

69
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

do passado remoto do que do passado recente, consoante aponta


Ambrosio (2010).

Por derradeiro, quanto à expressão do testemunho, prossegue a


autora a asseverar que são raras as pessoas que conseguem observar
com precisão os fatos, mantê-los exatos em sua memória e reproduzi-
los com fidedignidade por meio do processo de evocação voluntária, e
que, em geral, os indivíduos não possuem inteligência verbal para
exprimir de forma exata suas vivências.

Por tal razão, conclui que o julgador deve intervir o mínimo


possível no depoimento da testemunha. Pois toda resposta ou é
imantada pelas tendências afetivas do interrogado ou é produto de
lembranças fragmentadas, preenchidas por deduções lógicas do
indivíduo, ou ainda, é equivocada em razão do medo sentido pela
testemunha à pergunta.

Não se pode ignorar o fato de que os tipos de perguntas, a


linguagem usada entre o interrogador e a testemunha, geralmente com
expressões e construções lingüísticas próprios do Direito, e também o
ambiente colaboram para a qualidade do testemunho. Ora, se o
ambiente da sala de audiências se apresenta desagradável até para os
operadores do Direito, para aqueles que não estão acostumados ao
meio forense, esse ambiente se apresenta ainda mais ameaçador
(AMBROSIO, 2010).

O interrogador há de estar sempre atento ao grau de maturidade e


experiência da pessoa, já que a testemunha desequilibrada e
fragilizada não encontra a melhor forma de se expressar, não

70
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

concatena as idéias ou as palavras lhe fogem à mente, tornando-se,


assim, como bem ressaltado por Ambrosio (2010) potencial vítima de
manipulação pela parte interessada.

Assim, arremata a autora, mais do que qualquer juramento ou


advertência sobre a responsabilidade do testemunho, é a análise prévia
do tipo de personalidade e das relações afetivas da testemunha que
permitirá verificar se o testemunho é ou não imparcial, já que um
testemunho só poderá ser valorado conhecendo quem o fez. Isso
porque o tipo de personalidade, os hábitos e as tendências afetivas da
testemunha afetam decisivamente a elucidação feita por ela sobre os
fatos e disso resulta que nenhum testemunho é perfeito. Mas por meio
dos instrumentos de análise psicológica é possível aferir o grau de
fidedignidade do relato da testemunha.

Enfim, a inquirição de testemunhas não é só um dos inúmeros atos


processuais a ser praticado pelo juiz, mas possui uma relevância
enorme para o desvendamento da verdade, pelo que o Magistrado não
deve olvidar a responsabilidade que possui ao intervir na coleta dessa
prova. E, indubitavelmente, a psicologia judiciária pode fornecer
subsídios relevantes para o melhor desempenho desse desiderato
(GOMES, 2000).

Para isso, o Juiz precisa ver o mundo por outras janelas, além
daquelas abertas pelo estudo do Direito, sequioso pelo conhecimento e
exploração doutras áreas do conhecimento, reforçando a necessidade
da adoção da interdisciplinaridade no Direito e da formação
humanística do Magistrado.

71
Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

CONCLUSÃO

Se certo que já resulta insólito sustentar velhas teses reducionistas


que via o juiz como um aplicador mecânico de normas, um cego
executante da vontade do legislador (ALEMÃO; BARROSO, 2011),
não é menos certa a necessidade de que o juiz se afaste do
formalismo, rebele-se, liberte-se das amarras do positivismo jurídico,
passe a ver o mundo com outros olhos, amparado pelo conhecimento,
exploração e aplicação de outra áreas do saber, crie, adéque-se às
dinâmicas sociais, econômicas e culturais para, assim,pode atender ao
que dele se espera.

O juiz não pode mais ser insensível, alheio ao mundo, desconhecer


a sociedade em que vive. Imperiosa a formação humanística para que
o juiz entenda a necessidade de interagir com outras áreas do saber e
melhor desempenhe seu árduo mister.

Além disso, deve o juiz se conscientizar de que lhe compete o


importante papel de conduzir a atuação de todos os outros envolvidos
no processo (partes, testemunhas etc.) com base em uma relação de
autoridade. E que esse poder deve ser exercido de maneira esclarecida
e emancipatória, com vistas a criar um ambiente em que todos os
envolvidos possam participar, dialética e criticamente, na elucidação
de fatos e na formação da decisão.

Especificamente em relação às testemunhas, a autoridade judicial


deve ser empregada para verificar as particularidades que podem
interferir na elucidação dos fatos, e para guiar o testemunho de forma

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Alex Rabelo & Gisele Pereira de Assunção Veronezi

que as informações possam ser prestadas com clareza e


confiabilidade. Uso de ambiente acolhedor, de linguagem adequada à
condição sociocultural da testemunha, e de perguntas curtas e abertas
são posturas do juiz que podem favorecer a obtenção de um
testemunho claro. Noutra senda, analisar as informações prestadas
com atenção para as particularidades de cada testemunha (idade,
estado emocional, grau de instrução, envolvimento pessoal com as
partes etc.) permite que se afira o grau de confiabilidade delas.

Assim como ocorre com as partes, a testemunha que tem


condições de interagir com o juiz e com os fatos objeto de apuração, e
dessa forma se sentir como um instrumento para a resolução de um
conflito, emancipa-se por meio do exercício esclarecido da autoridade
judicial. E as reflexões acima, ao permitirem uma interação entre juiz
e testemunha que valoriza as particularidades sociais e psicológicas da
última, e que potencializa a influência das informações prestadas
sobre a formação do convencimento judicial, favorecem a eficácia da
prova testemunhal para a apuração da verdade e a resolução de
conflitos.

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76
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

FALSAS MEMÓRIAS E DEPOIMENTO DE


TESTEMUNHAS: CONTRIBUIÇÕES DA
PSICOLOGIA À PRESTAÇÃO JURISDICIONAL
Por Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

RESUMO: O presente estudo traz reflexões sobre falsas memórias,


depoimento de testemunhas e contribuições da psicologia à prestação
jurisdicional. Dá-se enfoque, inicialmente, à psicologia jurídica, cujos
conhecimentos têm sido utilizados para embasar decisões judiciais sobre
guarda, visitação, tutela, interdição, e que também oferece subsídios na
investigação sobre a veracidade e a validade do testemunho, inclusive quando
envolve as denominadas falsas memórias ou recordações falsas. Estas falsas
memórias são informações armazenadas no cérebro sem um estímulo real
objetivo e que são lembradas como se fossem reais. Elas sofrem influência,
dentre outros, de fatores como o impacto emocional do fato ocorrido e do
tempo transcorrido entre o testemunho e o evento presenciado. Apresentam-se
como preocupação para o direito, diante da importância da prova testemunhal
nos processos judiciais, nos quais esta pode ser a única espécie de prova
existente. A psicologia do testemunho considera os vários fatores que podem
interferir no depoimento daquele que presenciou um episódio relevante para o
processo e que atuará como testemunha, declarando em juízo o que sua
memória registrou como acontecimento, condicionada pela sua percepção
subjetiva sobre o ocorrido. Nesse contexto, os saberes trazidos pela psicologia
jurídica se mostram essenciais na busca de uma prestação jurisdicional justa,
que se aproxime o máximo possível da verdade dos fatos.
PALAVRAS-CHAVE: Falsas memórias; Testemunha; Decisão judicial.
ABSTRACT: The present study brings reflexions on false memories, witness
testimony and contributions of psychology to jurisdictional service. Has
focused initially the legal psychology, whose knowledge have been used to
support judicial decisions on custody, visitation, guardianship, interdiction,
and also provides grants in research on the veracity and validity of the
testimony, even when it involves the so-called false memories and false
remembrances. These false memories are information stored in the brain with
no real stimulus objective and are remembered as if they were real. They are
influenced, among others, factors such as the emotional impact of the event
occurred and the time between the witness and the witnessed event. They
present as concern for the right, on the importance of oral testimony in
judicial proceedings in which this may be the only kind of existing evidence.
The testimony of psychology considers the various factors that may interfere
with the testimony that he witnessed an important episode for the process and
to act as a witness, declaring in court that his memory registered as an event,
conditioned by their subjective perception of what happened. In this context,

75
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

the knowledge brought by the legal psychology show essential in the quest for
a just jurisdictional service, that approximates as much as possible the truth of
the facts.
Keywords: False memories; Witness; Judicial decision.

1. Introdução

Há, no meio jurídico, grande preocupação de se obter provas


confiáveis que pudessem ser utilizadas nos processos judiciais para a
solução das questões controvertidas. Em se tratando de testemunhos,
essa tarefa se apresenta desafiadora diante da complexidade do
cérebro humano e dos inúmeros fatores que podem determinar a
credibilidade ou não da prova testemunhal. Por isso, a psicologia
jurídica assume especial relevância para o direito, pois fornece
elementos para a compreensão dos inúmeros fenômenos que
influenciam na memória da testemunha e no modo como esta
apreende, valora e registra mentalmente os fatos presenciados.

Assim, a memória, enquanto capacidade humana de captar e


armazenar informações consideradas relevantes pelo sujeito, torna-se
objeto de reflexão e investigação do direito e da psicologia.

Na seara jurídica, merecem especial atenção os aspectos que


envolvem a denominada memória explícita e sua capacidade de
armazenar informações passíveis de serem verbalizadas para o
esclarecimento dos fatos debatidos no processo.

O estudo sobre memória humana teve um considerável


crescimento na década de 1990, com inúmeras pesquisas sobre as
circunstâncias em que pessoas se recordam dos fatos.

76
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

A psicologia jurídica também oferece subsídios na investigação


sobre as falsas memórias ou recordações falsas. Estas falsas
memórias são lembranças de fatos específicos que não aconteceram,
ou que não ocorreram do modo apreendido pela memória do
indivíduo. Elas não se confundem com a mentira, em que o sujeito
falseia conscientemente os acontecimentos narrados, tendo clareza
sobre a realidade verdadeiramente ocorrida. Nas falsas memórias, o
depoente crê sinceramente no que fala e, para ele, trata-se de verdade
absoluta.

Podem consubstanciar-se em causas geradoras das falsas


recordações, dentre outros, os fatores emocionais, as influências
externas, o decurso do tempo entre a observação do fato e a colheita
da prova oral.

As falsas memórias apresentam-se como grande preocupação para


aqueles que lidam com o direito, diante da importância da prova
testemunhal nos processos judiciais, nos quais esta pode ser a única
espécie de prova existente. Nesse contexto, os saberes trazidos pela
psicologia jurídica se mostram essenciais na busca de uma prestação
jurisdicional justa, que se aproxime o máximo possível da verdade dos
fatos.

2. BREVES ANOTAÇÕES SOBRE PSICOLOGIA


JURÍDICA

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Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

A psicologia, assim definida como o estudo da mente, pode ser


interpretada como aprendizagem científica do comportamento e dos
processos mentais. Comportamento se define como ações do ser
humano, como caminhar e se alimentar, por exemplo. Quanto aos
processos mentais, estes são experiências internas, a exemplo das
lembranças e dos sentimentos (TRINDADE, 2011).

Destaca-se que “a psicologia trabalha com a realidade psíquica,


elaborada pelo indivíduo a partir dos conteúdos armazenados na
mente” (FIORELLI; MANGINI, 2015).

Direito e psicologia possuem pontos em comum, uma vez que


ambos lidam com o comportamento humano. Enquanto a psicologia
se preocupa com a compreensão do comportamento humano, o direito
é um conjunto de regras reguladoras desse comportamento
(TRINDADE, 2011).

Pontes de Miranda (2004, p. 36), ao definir os fundamentos do


direito, relaciona-o à psicologia com a seguinte reflexão:

Qual, porém, sob o ponto de vista científico, o fundamento do


direito? Poderíamos responder à pergunta, a súbitas, de assalto:
uma criação do pensar coletivo, uma teoria da vontade, em que
as tendências e lutas étnicas se concretizam, e para cuja
restauração imaginosa, o direito, mais uma vez, irá beber ideias
na psicologia.

O citado autor enfatiza haver um aspecto sociológico e outro


psicológico na vida jurídica. Ele vê a psicologia através de uma
classificação de fatos psíquicos que são as causas dos fenômenos
jurídicos (MIRANDA, 2004).

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Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

A contínua e dinâmica evolução dos saberes psicológicos fez


surgir diversos enfoques e perspectivas específicos, e algumas
especializações terminaram por ganhar grande destaque, como é o
caso da psicologia jurídica.

Os primeiros sinais de surgimento da psicologia jurídica tiveram


início no século XVIII. O anseio de se criar regras de convivência de
acordo com as normas de conduta estabelecidas por um grupo social
ensejou uma relação natural entre a psicologia e o direito (JESUS,
2006).

No Brasil, a atuação dos psicólogos na área de psicologia jurídica


teve início antes do reconhecimento da profissão, na década de
sessenta. A inserção desses profissionais nas instituições jurídicas
iniciou de forma lenta, muitas vezes informal, com estágio e serviços
voluntários, tendo sido regulamentada como profissão em 1964. Fica
evidente que o foco inicial do trabalho do psicólogo no Brasil foi a
compreensão da conduta humana no que se refere a crimes e sua
reincidência (ROVINSKI, 2009).

O trabalho técnico do psicólogo nas instituições jurídicas


brasileiras tem crescido a cada dia, tendo como exemplo a atuação na
psicologia policial, no direito de família, na vara da Infância e
Juventude, nas penitenciárias, na psicologia do testemunho e na
vitimologia (ROVINSKI, 2009).

A psicologia jurídica auxilia o esclarecimento de questões


relevantes para o processo e comumente embasa decisões sobre
guarda, visitação, tutela, interdição. Também fornece elementos para a
análise da veracidade e validade do testemunho, a dosagem da sanção

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Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

penal, a concessão de progressão e regressão de regime de


cumprimento de pena, para o estabelecimento de medidas sócio-
educativas, etc (BRANDÃO; GONÇALVES, 2011).

É através de referidas atuações que esta ciência cumpre seu papel


de ajudar o direito a atingir seus fins. É a psicologia para o direito,
como ciência auxiliar do direito (TRINDADE, 2011).

Nesse passo, “a psicologia do testemunho, historicamente a


primeira grande articulação entre psicologia e direito, demonstra a
psicologização que se encontra em curso: não só o criminoso deve ser
examinado, mas também aquele que vê e relata aquilo que viu”
(VILELA, 2002, p. 16). O papel desta ciência no que se refere à prova
testemunhal é analisar os processos internos que vão determinar a
veracidade do relato das pessoas que prestam depoimento.

Os estudos da psicologia do testemunho evidenciam a necessidade


da compreensão dos mecanismos da memória e dos processos de
fixação e exteriorização desta, como também o entendimento acerca
das falsas memórias.

3. MEMÓRIAS, FALSAS MEMÓRIAS E PSICOLOGIA


DO TESTEMUNHO

No cérebro humano, ao lado da consciência e da linguagem, a


memória é um dos elementos primordiais para se entender a vida da
mente. Ela está umbilicalmente ligada a mudanças de determinados
padrões face à experiência. (DEL NERO, 1997).

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Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

A memória é a capacidade de fixar, conservar, evocar e reconhecer


os acontecimentos. Estas capacidades se referem as quatro etapas da
memória. A fixação se relaciona com o estabelecimento de
associações entre um fenômeno passado e conhecido e o novo
fenômeno. Evidencia-se que as experiências com maior carga afetiva
são fixadas mais facilmente do que as experiências que são tidas como
indiferentes (TRINDADE, 2011).

Assim, “a emoção intervém de maneira determinante e contribui


decisivamente para que aconteçam composições, lacunas, distorções,
ampliações, reduções dos conteúdos e, sem dúvida, afeta o próprio
reconhecimento” (FIORELLI; MANGINI, 2015, p. 21).

Entender a relação entre a memória de curto e de longo prazo é


muito importante para a compreensão do cérebro humano. Os fatos
externos, e alguns internos, entram no cérebro onde ficam guardados
por certo tempo na memória de curto prazo, situada principalmente no
hipocampo. Depois, pela ação do interesse, dependendo da
importância, reforço e atenção, grava-se a informação de forma
distribuída em vários locais do cérebro, a longo prazo, podendo ser
equiparada a um disco rígido de computador (DEL NERO, 1997).

Seguindo a mesma linha, estudos sobre retenção e perturbação da


memória sustentam que a entrada no cérebro é processada por um
depósito da memória a curto prazo. A informação é transformada
depois, em depósito a longo prazo. A memória a longo prazo é
dividida em uma forma intermediária, entendida como relativamente
sensível às perturbações, e uma forma verdadeiramente a longo prazo,

81
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

relativamente insensível às perturbações (KANDEL; SCHWARTZ;


JESSELL, 1997).

Pois bem, existe um grau de entrelaçamento entre a memória e a


consciência. Articulam-se, concomitantemente a consciência do
episódio e sua memória. É raro haver perda de memória antiga;
contudo, pode existir problema na gravação de fatos novos, bem como
nos mecanismos de busca dos antigos (DEL NERO, 1997).

Outra importante classificação sobre a memória se refere à


memória explícita, assim entendida como a que inclui aprendizado
sobre pessoas, lugares e coisas, que permitem uma descrição verbal; e
a memória implícita, que inclui formas de aprendizado perceptivo e
motor, não se exigindo um conhecimento consciente (KANDEL;
SCHWARTZ; JESSELL, 1997).

Na seara jurídica, merecem especial atenção os aspectos que


envolvem essa memória explícita e sua capacidade de armazenar
informações passíveis de serem verbalizadas para o esclarecimento
dos fatos debatidos no processo.

Anota-se que há uma tendência natural do indivíduo de esquecer


questões dolorosas. Isso faz com que quem sofreu ou presenciou
algum evento doloroso não se lembre de detalhes no momento de seu
testemunho (FIORELLI; MANGINI, 2015). Desse modo, embora o
parto costume ser muito doloroso, a mãe geralmente se lembra do
rostinho do bebê, do médico, da enfermeira, e não mais da dor em si e,
por isso, têm outros filhos (IZQUIERDO, 2016).

Ressalta-se que “o esquecimento não é um processo passivo, mas


o efeito de forças que se opõem ao aparecimento, na consciência, de

82
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

experiências desagradáveis ou, por qualquer motivo, repelidas pelo


ego.” (TRINDADE, 2011, p. 268).

Na análise dos aspectos da memória, ganha destaque um evento


bastante comum, denominado de ampliação de atributos. Aquilo que
foi tido como “ruim”, pode ser lembrado como muito pior do que foi
realmente; ao contrário, aquilo que foi “bom” pode se tornar muito
melhor que a experiência vivenciada. A emoção nesses casos é de
suma importância nos mecanismos de ampliação dessas qualidades
(JUNIOR; FIORELLI; FIORELLI, 2006).

Outro fator bastante importante a ser considerado é o lapso entre a


observação de um fato pela testemunha e sua declaração em juízo, que
geralmente é consideravelmente longo.

No correr desse tempo, a testemunha recebe e integra informações


novas, despreza outras, reelabora seu relato conforme o que vai
contando a outras pessoas. A consequência é que suas memórias vão
se transformando no passar do tempo e isso repercute no momento de
suas declarações em juízo. As memórias se deterioram com o passar
do tempo (JESUS, 2006).

Além disso, nesse complexo processo da memória, podem surgir


várias alterações que devem ser consideradas no processo judicial. A
exemplo, tem-se a amnésia, que podem receber variadas
denominações. Retrógradas, são caracterizadas pelo desaparecimento
de lembranças antigas, sendo frequente a substituição do que foi
esquecido por elementos imaginativos. Ilusões mnemônicas, são
deformações da memória pelo acréscimo de elementos falsos,
imaginativos, de influência afetiva. E alucinações mnêmicas, que são

83
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

criações imaginativas com aparência de lembranças (TRINDADE,


2011).

Dentre as alterações significativas da memória encontram-se


também as paramnésias. Estas são lembranças distorcidas.
Caracteriza-se de duas formas, a primeira quando, ao chegar num
lugar desconhecido ou ver uma pessoa pela primeira vez, se tem a
sensação de que aquele lugar ou aquela pessoa já era conhecido. Outra
forma pode acontecer quando se está acostumado a ir a determinado
lugar, mas a sensação da memória é a de que nunca tinha estado
naquele lugar antes (TRINDADE, 2004).

Mais que isso, deve-se dizer, ainda, que é possível criar falsas
memórias. Existem pessoas que completam os hiatos da memória com
suposições plausíveis, como se realmente tivessem visto ou
experimentado aquilo de que se recordam (MYERS, 1999, apud
FIORELLI; MAGUNI, 2015).

O estudo sobre memória humana falsa teve um considerável


evolução na década de 1990. Pesquisas sobre as circunstâncias em que
pessoas se recordam de fatos específicos como se estes tivessem
ocorrido em suas vidas, quando na verdade, nunca aconteceram,
passaram a ter importância científica a partir do momento em que
estas memórias começaram a ser observadas sob o ponto de vista
jurídico, nos diversos tipos de julgamentos, civis ou criminais
(STEIN, 2010).

Nessa perspectiva, a lembrança pode ser altamente manipulada


partindo de informações erradas de acontecimentos que não foram

84
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

vivenciados ou de alteração dos fatos realmente vividos (LOFTUS,


s.d., apud DI GESU, 2014).

Assim, “existem dois tipos de falsas memórias: as ocorridas de


fatos que não existiram e o ressurgimento de lembranças recalcadas a
partir da inflação da imaginação.” (DI GESU, 2014, p. 134).

Algumas falsas memórias são produzidas de forma espontânea


decorrente de um processo normal de compreensão do evento
presenciado. Outras são produzidas por sugestões externas, de modo
deliberado ou de forma acidental. Nesse caso, as pessoas passam a se
lembrar dos fatos que foram sugeridos como se realmente tivessem
acontecido (NYGAARDY; STEIN, 2003).

O desenvolvimento dessas falsas recordações centra-se mais na


indução, isto é, em perguntas dirigidas e de informações não
verdadeiras. Importante destacar que as falsas memórias não se
confundem com a mentira. Isso porque, na mentira existe a
consciência de que o fato não corresponde com a verdade, a pessoa
mente com a intenção de burlar a realidade (DI GESU, 2014).

Assim, as falsas memórias são semelhantes às memórias


verdadeiras, tanto no que se refere a sua base cognitiva quanto
neurofisiológica. Porém, aquelas, apesar de serem frutos do
funcionamento normal, não patológico de nossa memória, se
diferenciam das verdadeiras porque são compostas no todo ou em
parte de eventos que não aconteceram realmente (NEUFELD;
BRUST; STEIN, 2010).

Centenas de experiências foram realizadas por Loftus (s.d., apud


DI GESU, 2014), reconhecida pesquisadora no assunto, objetivando

85
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

provar como a exposição a informações não verdadeiras podem


distorcer a memória. Seu trabalho evidenciou que a desinformação é
capaz de modificar as lembranças nas situações mais comuns do dia a
dia, quando falamos com outras pessoas, quando uma reportagem fala
sobre o fato vivenciado por nós ou quando somos interrogados de
forma evocativa, ou seja, pelo resgate voluntário das recordações.

Algumas teorias buscam explicar o fenômeno das falsas


recordações. A primeira, Teoria do Paradigma Construtivista,
sustenta que a memória é criada como um sistema único, construído
da interpretação dos eventos testemunhados. A segunda, Teoria do
Monitoramento da Fonte, explica que falhas na lembrança são
provenientes de julgamento errado da fonte de informação lembrada
(DI GESU, 2014).

A terceira e última teoria, a do Traço Difuso, defende ser a


memória composta de dois sistemas, a memória de essência e a
memória literal. Defende, ainda, que há um armazenamento separado
para os dois sistemas de memória dentro da mesma experiência
vivida. As literais capturam os detalhes específicos e superficiais, e as
de essência registram a compreensão do significado do fato vivido
(NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010). Assim, um mesmo fato
presenciado pode ter um armazenamento diferente na memória.

É de notável importância exemplificar o fenômeno aqui estudado


através da história vivida por Elizabeth Loftus, hoje uma renomada
pesquisadora na área de falsas memórias:

Uma jovem americana perde sua mãe afogada na piscina de casa


aos 14 anos. Passados 30 anos, um tio comenta em uma reunião

86
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

de família que a jovem foi a primeira a encontrar a mãe boiando


na piscina. A partir desse momento ela passa a lembrar
vividamente a impactante cena que teria presenciado. Alguns
dias depois, ela recebe um telefonema do irmão, desculpando-se
pelo tio, informando que ele havia confundido e que na realidade
quem encontrou a mãe na piscina fora sua tia (s.d., apud
NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 21).

Como visto, a memória, enquanto reconstrução e reprodução de


um fato, não se encontra isenta de alterações com o tempo, ainda que
estejam nítidas na mente. Mais que isso, a vivacidade de uma
lembrança não é prova de que algo realmente aconteceu, não se
podendo ter certeza de que um fato é real por parecer real, tendo em
vista que as memórias irreais também tem aparência de serem reais
(MYERS, 1999, apud JUNIOR; FIORELLI; FIORELLI, 2006). Estar
ciente dessas nuances é indispensável para que se identifique possíveis
influências das falsas memórias no depoimento testemunhal.

4. INFLUÊNCIAS DAS FALSAS MEMÓRIAS NO


DEPOIMENTO TESTEMUNHAL E VERDADE
PROCESSUAL

Uma reflexão sobre o processo e o que se entende por prova é


essencial para se compreender a importância do estudo da memória e
seus reflexos no âmbito jurídico.

A princípio, há que se dizer que “o processo, na visão do ideal,


objetiva fazer a reconstrução histórica dos fatos ocorridos para que se

87
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

possa extrair as respectivas consequências em face daquilo que ficar


demonstrado.” (TÁVORA; ALENCAR, 2016, p.613).

Toda decisão humana, independentemente de qual seja o ambiente


em que foi proferida, seja em um baile de carnaval ou em um processo
jurisdicional, é feita com fundamentos produzidos a partir da análise
de várias circunstâncias, em diversos elementos de prova (JÚNIOR;
BRAGA; OLIVEIRA, 2015).

No processo judicial, objetiva-se decidir quem tem razão. O


magistrado, no entanto, prolata sua decisão com base nos elementos
existentes nos autos e não fundado numa verdade abstratamente
considerada. “Como princípio processual básico, tem-se como ponto
de partida para a discussão acerca da controvérsia jurisdicional o fato
de que a verdade não existe, mas se constrói por um decisum que
advém de fatos expostos”. (BITTAR; ALMEIDA, 2016, p. 516).

Ao analisar as lições de Perelman (1971) sobre argumentação,


lógica e direito, Bittar e Almeida (2016) evidenciam que a verdade
processual deve ser entendida como a administração da discordância.
E sustentam que no âmbito do processo penal, a ficção da verdade real
é teleologia sistemática. Isso porque, esta depende da individualidade
psicológica dos sujeitos envolvidos na relação processual, tornando
difícil a apuração que tenha por embasamento uma verdade purificada
e integral.

Nessa senda de argumentação, importante destacar qual é o papel


da testemunha na lide, seja ela civil ou penal. As testemunhas são
fontes de prova e devem ser entendidas como “pontes através dos
quais os fatos passam a chegar, primeiro aos sentidos, depois à mente

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Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

do juiz.” (MOREIRA, 2006, apud JUNIOR; BRAGA; OLIVEIRA,


2015, p. 39).

A testemunha é uma pessoa física possuidora de capacidade, que


pode depor, desde que não esteja impedida ou suspeita. Assim, serão
inquiridas a respeito de fatos relevantes para o julgamento
(TRINDADE, 2011).

No entanto, embora as pessoas não tenham consciência dos


processos que determinam suas percepções no armazenamento da
memória, tais percepções são de extrema importância na estruturação
mental dos acontecimentos que vivem ou presenciam (JESUS, 2006).

Certamente, todos os processos de distorção da memória,


incansavelmente exarados outrora, têm reflexos sérios na busca da
verdade processual.

Pois bem, “a prova dificilmente servirá para reconstituir um evento


pretérito; não se pode voltar no tempo.” Com base nesses dizeres é
que se afirma que o processo não objetiva a busca da verdade ideal,
porque esta não se alcança. O correto é entender que a verdade
almejada no processo é aquela entendida como a mais próxima
possível da real, própria da condição humana (JUNIOR; BRAGA;
OLIVEIRA, 2015).

Assim, para que se compreenda o significado de verdade


processual, necessário diferenciar verdade formal e verdade real.

Por verdade formal entende-se aquela que emerge do processo,


consoante as provas e argumentos trazidos pelas partes. O juiz deve se
contentar com a realidade traduzida pelas provas apresentadas no

89
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

processo, sem que seja obrigado, ele mesmo buscar a verdade. Esse é
o exemplo do que ocorre no processo civil brasileiro (NUCCI, 2013).

Quanto à verdade real, esta atua como princípio norteador da


atuação do magistrado, despertando um sentimento de busca pela
realidade ocorrida. O juiz assume postura ativa, determinando a
produção das provas que entender pertinentes e necessárias, ao
contrário da atitude passiva que se contenta com a verdade formal e
com as provas trazidas pelas partes. Isso se justifica pela seriedade das
consequências do julgamento, principalmente em direito penal,
respeitando, por óbvio, as limitações impostas por vedações legais à
utilização de provas consideradas ilícitas (NUCCI, 2011).

Nietzsche (1998, apud CARVALHO, 2015, p. 367) determina “a


incursão do processo penal no equívoco de crer na descoberta da
verdade através da captura do real, quando verdade e realidade são
valorações e, na qualidade de juízos interpretativos, de inexequível
apreensão pelos sentidos”.

A atuação das testemunhas no processo judicial, tem esse


propósito de alcançar a verdade, seja ela formal ou material, mas
sempre a mais próxima possível da verdade dos fatos, respeitadas as
limitações humanas do julgador e dos demais atores do processo.
Assim sendo, a “prática processual nada mais é do que a
representação crônica de inúmeras interpretações possíveis [...].”
(CARVALHO, 2015, p. 367).

Ao se falar em falsas memórias no processo penal, a questão


adquire maior peso, dada a importância da testemunha para essa
espécie processual, sendo o mais fácil e comum meio probatório. Com

90
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

grande frequência a prova testemunhal é a única a embasar não só a


acusação mas também a condenação, ante a ausência de outros
elementos probatórios. Várias decisões condenatórias são
fundamentadas exclusivamente na prova oral e, às vezes, na palavra
da vítima, principalmente em casos de crimes sexuais (DI GESU,
2014).

Já em matéria civil, admite-se a presunção da veracidade de fatos


não contestados e as declarações da testemunha assumem grau inferior
de importância. Além disso, é comum a utilização de outros meios de
prova, como é o caso de documentos, perícias, etc.

DI GESU (2014, p. 133), citando Loftus (s.d.), relata uma


intrigante história sobre falsas recordações:

No Missouri, em 1992, um confessor ajudou Beth Rutherford,


então com 22 anos, a se lembrar que entre os 7 e os 14 anos ela
havia sido violentada com regularidade pelo pai, um pastor, por
vezes com a ajuda da mãe. Encorajada pelo confessor, Beth
lembrou que tinha ficado grávida duas vezes do pai, que a
forçara a fazer um aborto sozinha, usando um cabide. O pai teve
de abandonar o ministério, mas exames médicos revelaram que a
jovem ainda era virgem e nunca havia engravidado.

Referido caso somente pôde ser desvelado porque existia um fato


real se contradizendo ao testemunhado. Interessante notar que “o
problema dos erros na identificação das memórias tem se tornado
mais notórios com a aplicação da tecnologia do DNA.” (TRINDADE,
2011, p. 279).

Como se vê no exemplo acima, o desenvolvimento de falsas


memórias pode decorrer de estímulo externo, indução por uma

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Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

determinada pessoa ou pela exposição à informação noticiada na


mídia.

Freud (apud CARVALHO, 2015) já se preocupava com a falta de


garantia do testemunho e, em 1906, numa conferência pronunciada na
Universidade de Viena, tratou da problemática, ressaltando que a
prova testemunhal significa a base de inúmeras sentenças
condenatórias em casos considerados discutíveis. Asseverou, ainda, a
necessidade de discussão e criação novos métodos de investigação,
num estudo conjunto entre psicólogos, psiquiatras e operadores do
direito.

A atuação conjunta dos conhecimentos da psicologia e do direito é


necessária para a análise consistente das declarações contidas em
depoimentos testemunhais.

Também não se pode desprezar a interferência de aspectos físicos


dos sentidos na experimentação dos fatos presenciados, e a
necessidade de avaliação prévia da capacidade de testemunho. E nessa
ordem de ideias, toda testemunha que tenha que fazer declarações que
“viu” deve ser, antes de mais nada, submetida a exame oftalmológico
que demonstre sua capacidade visual. Do mesmo modo, a capacidade
auditiva também deve ser estimada quando as testemunhas devam
informar sobre ruídos e conversas, assim como sua capacidade de
testemunhar, em sentido estrito, esta sendo avaliada através de exame
psicotécnico específico (MIRA Y LÓPEZ, 2005).

É possível, ainda, analisar a testemunha e seu comportamento,


através do estudo de suas características, de sua personalidade e
também das condições oferecidas no momento do testemunho. Nessa

92
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

linha, elas podem ser: independentes, especialmente motivadas,


ansiosas, hostil, improdutiva, extrovertida, introvertida. Cada qual
deve ser questionada de forma específica, respeitando suas diferenças
e características, de forma a se aproveitar melhor o depoimento do
ponto de vista da aproximação maior com a verdade relatada
(TRINDADE, 2011).

O uso de vários sentidos (visão, audição, tato), ao tratar de um


determinado assunto, ativa diferentes formas de memória. Daí a
conveniência, em certos casos específicos, de se reconstituir os fatos
testemunhados (FIORELLI; MANGINI, 2015).

Muito útil, também, no momento da coleta de informações, que o


juiz crie um ambiente acolhedor e favorável, inspirando confiança,
para que a testemunha, que geralmente desconhece o ritual forense e
experimenta um natural constrangimento nessa posição, sinta-se o
mais à vontade possível diante da sabatina. O magistrado que assume
uma postura calma e ponderada, mesmo diante de eventuais
discussões e contratempos ocorridos nas audiências, detém melhores
condições de obter um depoimento mais fidedigno. Além disso, deve-
se reconhecer a importância do ato de testemunhar, agradecendo o
depoente a cooperação prestada à justiça (TRINDADE, 2011).

Outra importante técnica aplicável ao interrogatório é a entrevista


cognitiva, que visa identificar em que momento poderá haver uma
brecha para a formação de uma recordação falsa. Analisa-se a
narrativa e a exatidão da resposta e se utiliza a interrogativa para
suprir a pobreza de detalhes do relatado, podendo se valer de
perguntas abertas e fechadas. Observa-se que quanto mais se restringe

93
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

a pergunta, maior a probabilidade de indução da resposta. Deve-se


evitar, ainda, as perguntas identificadoras, onde existe intensa
contaminação da resposta, pois podem levar o entrevistado a
descrever de algo que nunca tenha visto (DI GESU, 2014).

Todas essas técnicas, obviamente, repercutem na proximidade da


veracidade dos fatos e podem contribuir para um ambiente que auxilie
na diminuição da incidência de recordações não verdadeiras.

Existem inúmeras outros instrumentais técnicos, todos objetivando


a redução de danos nos depoimentos prestados em Juízo. São muitos
os esforços da psicologia do testemunho no aprimoramento dessas
técnicas, contudo, no meio jurídico deve haver uma preocupação
maior e constante com a qualidade dos depoimentos prestados,
evitando-se entrevistas sugestivas, de moco a perceber a prova
testemunhal como fator de humanização, nunca se distanciando do
que Freud preconizava, do “diálogo entre as disciplinas como
instrumento de preparação.” (CARVALHO, 2015, p. 414).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Direito e psicologia interrelacionam-se na busca da qualidade


técnica da prova testemunhal, imprescindível para o esclarecimento
dos fatos controvertidos em juízo e para a formação do
convencimento do julgador.

O estudo sobre falsas memórias experimentou grande avanço,


sensibilizando aqueles que lidam com o processo judicial ou são por

94
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

este atingidos, diante da possibilidade de haver injustas condenações,


mormente criminais, baseadas em falsas recordações.

São vários os fatores que influenciam os registros da memória e é


subjetivo o modo pelo qual são interpretados os episódios
presenciados pelo indivíduo. Destarte, faz-se necessário envidar
esforços para compreender os aspectos psicológicos que afetam a
credibilidade do testemunho.

Por isso, é de suma importância o apoderamento pelo juiz das


técnicas de entrevista e de colheita da prova oral, de modo a obter
melhor qualidade e fidedignidade dos depoimentos obtidos, sem
olvidar da possibilidade da presença de falsas memórias nas
declarações testemunhais.

Estabelecer diálogo entre os saberes jurídicos e psicológicos,


admitir que verdade processual e realidade podem se distanciar,
reconhecer a importância da prova testemunhal e a presença de falsas
memórias nesta, tudo isso é imprescindível para se obter uma justa e
efetiva prestação jurisdicional.

Embora se admita, atualmente, certa inviabilidade de se alcançar


uma verdade absoluta no processo, a obtenção da verdade possível
(verdade processual) será tanto mais legítima quanto mais se
aproximar da verdade realmente ocorrida no terreno dos fatos.

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filosofia do direito. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2016.

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98
Andrea Cardinale Urani & Suzidarly Ribeiro Teixeira Fernandes

99
Ricardo Gagliardi

A ESSÊNCIA DO SER HUMANO E OS CONFLITOS


SOCIAIS
Por Ricardo Gagliardi

RESUMO: O presente artigo analisa qual a natureza da essência do ser


humano e estabelece relação com os conflitos sociais, com foco
interdisciplinar. Os estudos são delimitados pela filosofia, psicologia,
antropologia, psiquiatria, biologia, sociologia e direito. Ao final, conclui que a
essência do ser humano e sua primordial diferença de outros animais, além
dos aspectos morfológicos e fisiológicos, passa pelo autoconhecimento,
autoconsciência, imaginação, racionalidade, socializadas pela linguagem e
comunicação. Conclui que o ser humano nasce com elementos genéticos de
conhecimento, que podem ser caracterizados como bons ou maus, porém, são
tratados como neutros, tendo em vista estarem moldados em sua natureza
instintiva. Assim, pode-se dizer que é a influência cultural que contribui
significantemente para o desenvolvimento de sua personalidade. Esse
parâmetro propicia estabelecer o fato de que os conflitos sociais são gerados
por fatores culturais.

PALAVRAS-CHAVE: Conflito Social; Natureza Humana; Influência


Cultural.

ABSTRACT: The present article analyzes the nature of the human being and
establishes a relationship with social conflicts, with an interdisciplinary focus.
The studies are delimited by the philosophy, psychology, anthropology,
psychiatry, biology, sociology and law. At the end, he concludes that the
essence of the human being and his primordial difference from other animals,
besides the morphological and physiological aspects, passes through self-
knowledge, self-consciousness, imagination, rationality, socialized by
language and communication. It concludes that the human being is born with
genetic elements of knowledge, which can be characterized as good or bad,
but are treated as neutral, in order to be shaped in their instinctive nature.
Thus, it can be said that it is the cultural influence that contributes
significantly to the development of his personality. This parameter establishes
the fact that social conflicts are generated by cultural factors.
KEY-WORDS: Social Conflict; Nature of the Human; Cultural Influence.

99
Ricardo Gagliardi

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O estudo da natureza da essência do ser humano passa a ser


importante na medida em que propicia entender melhor os seus
conflitos, alvo da análise do Poder Judiciário, por meio das decisões
judiciais.

Dentro de um conjunto de sistemas de conhecimento


interdisciplinares, pretende-se estabelecer parâmetros e conceitos da
essência da natureza do ser humano, com o fim de ser saber se há
algum elemento que a possa caracterizar e a diferenciar das demais
espécies de animais.

Ao desenvolver tal caminho, busca-se saber o grau de influência


da herança genética e da vida cultural sobre o comportamento humano
e suas necessidades. Assim, acredita-se poder estabelecer uma relação
com o conflito social.

Os problemas resumem-se em se desvendar a natureza do ser


humano, analisar a possibilidade de classificação dessa natureza
humana, e se perguntar se os conflitos sociais seguem causas
biológicas e/ou culturais.

Desse modo, as hipóteses do trabalho que se colocam são: sim,


seria possível uma conclusão sobre análise da natureza humana diante
da inteligência; o ser humano tem bom comportamento por natureza; e
a causa dos conflitos é cultural por excelência.

100
Ricardo Gagliardi

Pleitea-se com os resultados, de maneira genérica e mais ampla,


desenvolver novos estudos que passem a trabalhar conceitos como
necessidades humanas, a teoria do desvio e as relações sociais, a fim
de desenvolver meios de melhoria dos sistemas de direito postos, para
o alcance dos preceitos, reconhecidos como valores supremos,
positivados quando da elaboração do Texto Magno Brasileiro, exposto
em seu preâmbulo – quais sejam – garantia ao exercício dos direitos
sociais e individuais, liberdade, segurança, bem estar social,
desenvolvimento, igualdade e justiça e o que prega os direitos
fundamentais – direito à dignidade da pessoa e à busca da felicidade.
(BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADI 3300/DF; ADPF 132/RJ;
ADI 4277/DF; e ADI 3510/DF)

2. EM BUSCA DA NATUREZA DA ESSÊNCIA HUMANA

Aristóteles (2006, p. 39) acreditava ser o homem um ser político, e


dependia dos outros para viver em sociedade. Diz que o homem nasce
voltado aos próprios interesses e depois aos interesses dos seus.
Diferencia o homem bom do bom cidadão, na medida em que este é o
que “presta bons serviços à sua Cidade, e essa Cidade pode ser ruim
em princípio. Em uma Cidade constitucional, os bons cidadãos sabem
governar e obedecer. O homem bom é aquele bem preparado para
governar”. Dizia ainda o filósofo que a busca da felicidade e a sua
possibilidade é que caracteriza essa essência (ARISTÓTELES, 2009,
p. 232-234). Esclarece que a busca da excelência é da alma humana e
não do corpo (ARISTÓTELES, 2009, p. 36-37).

101
Ricardo Gagliardi

Filósofos como Aristóteles (2006, p. 36, 46-49 e 233-239) e


Hobbes (2012, p. 61-72) acreditavam no conceito de “prudência” ou
“virtude”, presentes em alguns homens, para significar a qualidade
que poderia satisfazer a alma, com características de autodominação,
equilíbrio ou “mediedade” (BITTAR, 2003, p. 1025-1028) pela razão,
não pelo excesso e não pela falta.

FREUD (2010, p. 29-31), esclarece nesse ponto, com base na


própria conduta do ser humano, que o propósito da vida do homem
tem sido o de buscar a felicidade. Trata tal intenção pelos aspectos
positivo e negativo, significando ter “experiência de intensos
sentimentos de prazer” e por outro lado ter a “ausência de sofrimento
e de desprazer”. Faz crítica, no entanto, já que o sentimento de
“prazer” é passageiro e é bem mais fácil de experimentar o
“sofrimento”, diante do próprio corpo (refere-se a doenças e a
temporariedade da vida), do mundo externo (refere-se a guerras) e dos
relacionamentos com outros seres humanos. Critica ainda a teoria de
que haveria uma finalidade da vida humana. Para ele, o fato de se
desejar que se tenha uma finalidade somente existe em vista da
religião, ente cultural.

Assim como fez Montagu, Fromm (1987, p. 296-310), apontou


que há tempos existem dúvidas sobre se havia algum elemento que se
pudesse caracterizar como “natureza humana”. Em seus estudos
apontou uma série de argumentos, em diversas áreas do
conhecimento, para desfigurar tais essências.

Como primeiro fator, citado pelo autor, tem-se a tese do


‘enfocamento histórico’ do ser humano (1987, p. 296), principalmente

102
Ricardo Gagliardi

a partir de estudos de antropologia cultural. O resultado das enormes


diferenças do homem segue de acordo com suas épocas de existências
e não pode ser elemento para caracterizar a natureza da essência
humana. Chegou-se a dizer, baseado nessa tese, que o ser humano
“nasce como uma folha de papel em branco em que cada cultura
escreve seu texto”3.

Lembra o autor (FROMM, 1987, p. 296-297) que o outro fator é


que historicamente tal pressuposição de ‘natureza humana fixa’ fora
usada como um “escudo” para a prática de atos desumanos, como a
defesa da escravidão, sendo exemplo o próprio Aristóteles (2006, p.
35-36), diante da época em que esteve inserido, ou para provar a
racionalidade da forma capitalista, caracterizando algumas
‘características como humanas inatas’, para justificar a
4
competitividade, a aquisitividade e o egoísmo .

O terceiro fator, segundo Fromm (1987, p. 297), que depõe sobre o


conceito de natureza humana é a influência do pensamento
evolucionário, já que se enfatiza o desenvolvimento do ser humano de
acordo com o tempo, “do processo de evolução”, conforme teoria de
Darwin e cientistas evolucionistas posteriores. Em sua maioria, datam
como ‘evento particular’ da essência humana a “feitura de utensílios”,
tese criticada por Karl Marx, por estar ligada a idéia contemporânea
de produção, segundo o autor acima citado.

3
Nesse último ponto, equipara-se à teoria defendida por Rousseau, como se verá à
frente.
4
Hobbes defendeu, como se verá no próximo item, que o homem nasce com
elementos negativos como egoísmo e competitividade.

103
Ricardo Gagliardi

O autor vem, por outro lado, defender essa natureza humana, em


termos morfológicos, anatômicos, fisiológicos e neurológicos
(FROMM, 1987, p. 297). Para Simpson (1949, apud FROMM, 1987,
p. 299),

“o homem é um animal, mas é muito mais importante verificar que


a essência de sua natureza singular está, precisamente, naquelas
características que ele não compartilha com as de quaisquer outros
animais. Seu lugar na natureza e a sua significação suprema não são
definidos por sua animalidade, mas por sua humanidade.”

Nos termos acima, definiu-se a essência ou a natureza do ser


humano,

[...] não pode ser definida em termos de uma qualidade


específica como o amor, o ódio, a razão, o bem ou o mal, mas
apenas em termos de contradições fundamentais que
caracterizam a existência humana e que têm suas raízes na
dicotomia biológica entre os instintos ausentes e a
autoconsciência. (FROMM, 1987, p. 305-306).

Referido autor (FROMM, 1987, 296-310), baseado em várias


áreas do estudo humano, descreve que o ser humano é o único animal
que sabe das consequências do mundo e de sua vida, e que tal
consciência gera um constante desequilíbrio que o distingue do
animal, que entende ser inevitável. Para ele, esse desequilíbrio pode
ser relativamente estabilizado com o apoio da cultura para enfrentar os
problemas existenciais, e principalmente, da cultura religiosa. Essa
condição é defendida por FREUD (2010, p. 26-29), ao retratar que

104
Ricardo Gagliardi

essa “ideia de uma finalidade na vida existe em função do sistema


religioso”.

Continuando, Fromm (1987, 296-310) descreve que o animal


irracional vive em harmonia com a natureza. “A autoconsciência, a
razão e a imaginação conturbaram a “harmonia” que caracteriza a
vida animal”. Essa harmonia não quer dizer vida tranquila e pacífica,
e sim que suas características se adaptaram ao processo de evolução.
Conclui que isso “colocou o homem em estado de anomalia, aberração
do universo”, pois é parte da natureza e incapaz de transformá-la e, ao
mesmo tempo “transcende a natureza”.

Por isso, o ser humano necessita de um mapa ou de uma linha


referencial para lhe dar uma visão de mundo, de um objetivo para lhe
dar sentido à vida e de um objeto de devoção (FROMM, 1987, p. 310-
311). Tal posição é pactuada por FREUD (2010, p. 331-336) quando
trata a religião como ente cultural: “aceita tudo o que desde a infância
lhe ensinaram sobre Deus e Jesus Cristo. Tem uma experiência
religiosa [...]”

Dessa forma, da análise das obras pesquisadas, a essência da


natureza humana pode ser sim caracterizada, especialmente diante dos
elementos que diferenciam o ser humano dos demais animais. Essas
diferenças estão nos aspectos morfológicos, anatômicos, fisiológicos e
neurológicos, que traduzem as qualidades da autoconsciência, a razão
e a imaginação, bem como a habilidade de comunicação e de
sociabilidade.

105
Ricardo Gagliardi

3. EM BUSCA DA CLASSIFICAÇÃO DA NATUREZA da


ESSÊNCIA HUMANA E DE SUA INFLUÊNCIA BIOLÓGICA
OU CULTURAL

Há uma grande celeuma entre os jusfilósofos e demais cientistas


acerca da natureza humana em sua origem, e ainda sobre a
classificação entre boa ou má. Verifica-se que cada teorização descrita
foi influenciada pelos aspectos de vida de uma época e local, e de suas
necessidades, buscando formas diversas de pensar a razão.

Rousseau (1999, p. 9-18) diz que "O homem é bom por natureza. É
a sociedade que o corrompe."

Quando, no entanto, estampa essa diferença entre bom e mau, fê-lo


em momento em que já se vivia em sociedade civil (1712-1778). No
estado selvagem, segundo ele, não havia tal distinção. O autor
acreditava que em estado de natureza o homem parecia ser bom, na
medida em que procurava satisfazer suas singelas necessidades sem
estabelecer conflitos com outros indivíduos, sem necessidade de
impor sua força ou de escravizar.

Dizia Aristóteles (2009, p. 232-234), que o homem não é mau em


sua essência.

É fato de grande concretude nessa avaliação a influência cultural


no ser humano, especialmente para influenciar eventuais conflitos
sociais. Morin (1993, apud MELLO, 1997, p. 67-68) afirma que “a
interação entre a herança genética e a herança cultural aprofunda e
torna mais complexa ainda a integração biopsicossocial [...]”

106
Ricardo Gagliardi

Percebe-se que uma primeira posição se alinha a classificação de


que o ser humano biologicamente é bom por natureza, e que
influências culturais é que iriam propiciar conflitos sociais, inclusive,
os destrutivos. Embora alguns autores admitam que possa haver
alguma influência genética, ainda assim, é a herança e formação
cultural que vai reger a conduta dos indivíduos e da sociedade.

Do lado oposto, Hobbes (2012, p. 107-117 e p. 136-141) narrou


que o homem é mau por natureza. Diz que é mau porque interessado
em satisfazer os próprios interesses, de forma egoística e mesquinha.
Na conceituação desse autor, o estado de natureza é um estado a ser
superado, já que não havia a mínima segurança e certeza para a vida.
Ainda, diversamente do que defende Aristóteles ao assemelhar o
homem a certas criaturas como as abelhas, considerando-os seres
políticos, expõe essências próprias do homem, como o uso da arte das
palavras; a necessidade de competição entre os homens, razão para o
ódio, a inveja e a guerra; a diferenciação pelo homem entre bem
comum e bem particular; o uso da razão pelo homem e sua
consciência; a diferenciação entre os homens da injúria e do dano; e o
fato de o pacto entre os homens ser social, artificial e não natural.
Hobbes (2012, p. 136-141; e 247-255) diz que a prudência, no
entanto, não é suficiente para que se atinja a paz social e acredita ser
necessário o Estado moderno para tal, por meio do Direito e da
Sanção.

Lorenz (1963, apud MELLO, 1997, p. 68), zoólogo, etólogo e


ornitólogo austríaco afirma, como nos animais irracionais, no ser
humano a agressão é parte essencial dos instintos de proteção.

107
Ricardo Gagliardi

Freud (2010, p. 76-78; 80-82; 84-91; 122), na mesma linha,


defende que todo homem carrega um componente inato que incita a
maldade, próprio do instinto humano e, pode-se dizer, baseado em
suas necessidades da libido e da exploração de outrem. Acredita que o
ser humano tem entre “seus dotes instintuais” a tendência à
agressividade, destruição e crueldade, contida pelas influências
culturais, impostas pela vida em civilização, especialmente pelo
sentimento de culpa, originado da tensão entre o Superego e o Ego.

Nessa segunda linha, verifica-se que a tese é de que o ser humano


é mau por natureza. Ele é biologicamente mau, tendo em vista
algumas características inatas, como o egoísmo e o espírito
competitivo, que de pronto, não se pode negar, já que tais estão
presentes nitidamente nos comportamentos dos bebês e crianças. As
críticas a essa tese são de que a paz seria inatingível e ainda poderia
incidir em uma diminuição da responsabilidade penal Lorenz
(LORENZ, 1963, apud MELLO, 1997, p. 68). Por outro lado, não
exclui o ambiente cultural, de modo que também atua influenciando a
geração de conflitos.

Modernamente, por um terceiro olhar, a psiquiatria e a psicologia


forenses têm contribuído para a descrição de como pode ser
considerada a natureza do homem, ao tratar do “caráter”,
principalmente após exames de neuroimagem demonstrando as
mesmas coincidências em algumas localidades cerebrais.

Descreve-se “caráter” como a maneira de a pessoa expressar as


suas disposições afetivas (SENNE, 1963, on line). O caráter se
evidencia através do comportamento interpessoal.

108
Ricardo Gagliardi

A harmonia do comportamento humano depende do predomínio


dos sentimentos sociais (sociabilidade) sobre os impulsos egoístas,
individuais, o que se faz classificar a pessoa de bom ou mau caráter.
Diante das influências culturais, pode haver esse desequilíbrio.

No caso do indivíduo portador de psicopatia, por exemplo, não há


o sentimento de sociabilidade.

Acompanhando os estudos da doutora Morana (2013, p. 04-05,


19), relacionados aos transtornos específicos da personalidade, anota-
se como espécie, o transtorno antissocial. Em uma nova subdivisão,
classificam-se em transtorno global da personalidade, entendida
como psicopatia, e o transtorno parcial, ambos as hipóteses
reveladoras de indivíduos portadores de mau caráter.

Estudos recentes, baseados em pesquisas científicas, descrevem


que há precedentes observáveis de que os tratamentos terapêuticos e
farmacológicos (MORANA, 2013, p. 64-69) em pessoas portadoras de
psicopatia não surtem os efeitos de recuperação ou de garantia de
reintegração social, segundo autores como Hemphill e Harris
(MORANA, 2013, p. 06). Ainda que tais transtornos, em regra, são
congênitos (MORANA, 2013, p. 56 e ss.).

Pelo contrário, dados albergados em pesquisas nacionais e


internacionais, mostram maiores números de reincidências criminais
(MORANA, 2013, p. 05-06) por parte desses indivíduos, o que se
revela dado preocupante para a harmonia e a paz social.

Dessa forma, pode-se observar que alguns seres humanos (pessoas


com transtorno social da personalidade) nascem com deficiência de
caráter, ou seja, são maus por natureza. O controle social, nesses

109
Ricardo Gagliardi

casos, pode favorecer para que cumpram as regras e as normas


impostas, porém, não deixarão de ser mesquinhos e egoístas. Isso
diverge da tese exposta por Rousseau, pelo menos em parte.

De qualquer forma, segundo estimativas, tal grupo de indivíduos


seria em números diminutos. No caso dos psicopatas, cerca de 1% da
população (MORANA, 2013, p. 06).

Há ainda os indivíduos que por doença congênita ou adquirida,


como os doentes mentais, não entendem o que fazem, de forma que
não podem ser classificadas em boas ou más.

Nas três hipóteses colocadas em estudo, não havendo influências


genéticas (posição de Rousseau), ainda que possa haver influências
genéticas, em grau extremo (teorização da psiquiatria sobre a não
sociabilidade de pessoa com transtorno global da personalidade) ou
com índice variável (teorização filosófica de Hobbes), a questão
relacionada à formação cultural humana é fundamental e fator mais
sério para a consecução de conflitos sociais.

Em uma quarta forma de análise, sobre o comportamento humano,


tese que se parece a mais razoável, restringindo-se aos aspectos da
terceira hipótese, o ser humano nasce com características
biopsicológicas que podem ser denominadas boas ou más. Isso, por si
só, não deve ser considerado para classificar a natureza do ser
humano, como se disse no item um dessa produção. Dessa forma, a
influência da cultura aliada aos aspectos de vida e convivência é que
vão ditar quais daquelas características vão prevalecer.

Nesse sentido, ainda assim, eventual classificação entre “bem” e


“mau” deve se pautar pela natureza de vida e de existência da espécie,

110
Ricardo Gagliardi

mesmo que dentro de uma cadeia alimentar no âmbito do ecossistema,


ou, nas palavras de Aristóteles, no que é útil delas, pela sua essência.
Não se pode dizer nessa concepção que o leão ou outros mamíferos
carnívoros são maus porque vivem da caça e da morte de outros
mamíferos ou porque afugentam, quando adultos, outros machos. É da
natureza deles. Faz parte de um sistema natural de seleção e
desenvolvimento das espécies. Para Darwin (BAUM, 2006, p. 73-95),
hábitos e instintos sofrem constantemente ação da seleção natural, por
meio de uma “série ou história de eventos no decorrer de um longo
tempo”, denominada filogênese, podendo ser transmitidos por
hereditariedade genética aos seus descendentes lhes conferindo uma
maior vantagem na luta pela existência. Baum (2006, p. 85-86)
salienta que a seleção natural afeta o comportamento de cinco
maneiras, entre elas, por “fornecer padrões constantes de
comportamento – reflexos e padrões fixos de ação – que servem à
sobrevivência e reprodução.”

É da natureza do homem satisfazer algumas de suas necessidades


de maneira egoística e outras que levam a compaixão. Isso, por si só,
não o caracterizaria em bom ou mau. Considerando a classificação
das necessidades humanas, com base na teoria da hierarquia das
necessidades, proposta por Maslow (1970, p. 38, apud FADIMAN e
FRAGER, 1979, p. 268), e da evolução da sociedade, cada vez mais,
elas se tornam mais complexas.

Montagu (1978, p. 11-12, 25 apud MELLO, 1997, p. 68-69)


defende tese de que o comportamento humano específico é regido
“pelas experiências que acumula ao longo de sua vida”. Concorda
com a teoria de que os seres humanos têm indicadores genéticos, que

111
Ricardo Gagliardi

podem ser classificados como bons ou maus, já que pode manifestar


qualquer tipo de comportamento, não somente a agressividade, mas
também os bons comportamentos.

Fromm (1987), cientista psicanalista, a partir de estudos


antropológicos, acerca da origem dos primeiros homens, Homo,
baseado nos antropólogos Choukoutien, Mumford, Narr, Blanc,
Davie, destaca que os “fenômenos de destrutividade e crueldade
requerem, para sua compreensão, uma apreciação da motivação
religiosa”, portanto cultural, “que pode existir mais do que a
motivação destrutiva ou cruel”. Defende que o ser humano carrega
componentes genéticos, mas que são os fatores culturais que se
destacam para desenvolver ou não uma condição inata.

Como se relatou, não é que o ser humano nasça como uma folha
em branco. Ele possui sim elementos genéticos comportamentais,
biopsicológicos, que se traduzem em características que podem ser
reconhecidas universalmente, como boas ou más, ou de modo
dependente do contexto cultural em que estiver envolvido. Durante
sua vida, essas características, umas ou outras, podem ou não aflorar
e, isso, é dependente das influências culturais a que estiver envolvido.

4. AS NECESSIDADES HUMANAS E SEUS DIREITOS

Mas quais as necessidades buscadas pelos seres humanos?


Alicerçado em teses jusfilosóficas, verifica-se que o ser humano busca
satisfazer seu “Eu” profundo, sua psyqué, sua alma (PLATÃO, 1999,

112
Ricardo Gagliardi

p. 46-48), e para tal deve valorizar a vida dos outros. Diferencia


Platão, o corpo da alma. Esclarece o filósofo (PLATÃO, 1999, p. 110-
114) sobre o benefício para o indivíduo entregar-se em nome da
virtude e da sabedoria. Defende a idéia de virtude em Apologia de
Sócrates (PLATÃO, 1999, p. 90).

Aristóteles (2006, p. 233-239) traduz isso na busca da essência, o


que denomina “busca moderada de virtude”, como a amizade, a
liberdade para exercer atividades. Divide os bens em três categorias:
os bens materiais, os bens corporais e os bens da alma. Esclarece que
a felicidade humana depende do alcance de todas elas.

Retrata o filósofo grego:

[...] os quais facilmente demonstram que a humanidade não


adquire nem preserva a virtude graças aos bens materiais, mas
amplia a sua capacidade de adquirir bens materiais graças às
suas virtudes, e também é verdade que a felicidade, resulte ela de
prazeres ou de virtudes, ou de ambos, é mais comumente
encontrada com aqueles cuja mente ou cujo caráter são mais
bem cultivados, e que possuem uma parcela moderada de bens,
do que entre aqueles que possuem uma quantidade exagerada de
bens, mas são deficientes no que diz respeito às qualidades
morais e intelectuais. (ARISTÓTELES, 2006, p. 234)

Continuando, Aristóteles declara que não basta a virtude moderada


em um indivíduo. Isso porque os bens materiais e corporais são
limitados. O excesso de bens torna-se inútil e até prejudicial aos
donos. Por outro lado, declara que os bens da alma, quanto maiores
mais úteis serão. Anota, em uma escala, as necessidades da alma em
grau superior, mais nobre, da qual as outras lhe serviriam.

113
Ricardo Gagliardi

Freud (2010, p. 29-30; 32; 64; 66; 78-79; 82) defende que o ser
humano busca a felicidade, como propósito de sua vida, que vem a
significar a realização de prazeres e a ausência de desprazer. Almeja a
“satisfação irrestrita de todas as necessidades”. Ao mesmo tempo,
com a participação na vida em civilização, teve limitada a sua
liberdade para a satisfação de suas necessidades mais instintivas, para
dar lugar a uma maior segurança.

Para Baum (2006, p. 293-294), “as pessoas relatam uma maior


felicidade quando estão livres da possibilidade de consequências
aversivas” ou de reforço ou coerção, e “[...] quando seu ambiente
permite escolhas [...] e essas escolhas têm consequências reforçadoras
em vez de aversivas”. Relatou que as pessoas sentem-se mais felizes
quando estão livres de relações de exploração e recebem um incentivo
equitativo. Para ele,

a felicidade (reforço) deriva de condições em nós próprios e nos


outros (reforçadores), que me última instância estão ligadas à
aptidão: a sobrevivência e o conforto pessoais, o bem-estar dos
filhos, o bem-estar dos membros da família e de outros parentes,
o bem-estar das pessoas que não são parentes, mas com as quais
mantemos relações mutuamente benéficas [...].

Das teorias das necessidades humanas, sem adentrar na discussão


sobre as teses prevalecentes, se elas estariam formadas de forma
piramidal, portanto, vertical, ou horizontal, discutidas por Maslow
(1970, p. 38, apud FADIMAN e FRAGER, 1979, p. 268) e Neef,
verifica-se a formação de cinco principais grupos de necessidades:
fisiológicas, de segurança, de relacionamento, de autoestima, e da
auto-realização.

114
Ricardo Gagliardi

As necessidades mais complexas, oriundas da natureza da


inteligência e maturidade humana, consideradas as de cunho afetivo e
psicológicas, nesse sentir, somente podem ser alcançadas por meio da
satisfação da alma, na mesma linha de pensamento de Aristóteles,
acima abordado.

As mais básicas vigiam ou poderiam estar presentes no estado de


natureza como no estado atual de evolução. As consideradas sociais
ou superiores, por sua vez, são necessidades típicas do estado de vida
após o pacto social.

Segundo Maslow (1970, p. 38, apud FADIMAN e FRAGER,


1979, p. 268), na base da pirâmide estão as necessidades fisiológicas,
como respiração, alimentação, de sexo, de sono e de excreções. Logo
acima, vem às necessidades de segurança, ordem ou estabilidade,
listadas como saúde corporal, emprego, estabilidade financeira,
conforto, segurança da família, moradia e da propriedade de bens
materiais. Estas duas primeiras seriam necessidades básicas. Na
sequência, elencou as necessidades de relacionamento, como de
amizade, das relações familiares e das relações íntimas. Estas são as
necessidades de cunho afetivo. Quase no topo, há as necessidades
relacionadas à autoestima, como confiança e aprovação, realização, e
respeito dos outros e pelos outros. No topo da pirâmide, estão às
necessidades de auto-realização, estampadas por atitudes que denotam
moralidade, criatividade, espontaneidade, resolução de problemas,
falta de preconceito e aceitação dos fatos, bem como alto de grau de
interesse social, incluindo a tese da mente ecológica (BATESON,
1972).

115
Ricardo Gagliardi

Delimitadas as necessidades humanas, a partir daí, cabe o estudo


das relações humanas e dos conflitos sociais. Por exemplo,
relacionando como crimes, segundo indicadores estatísticos, conforme
sistemas SPROC e EPROC5 e livros de registros das escrivanias
criminais das Comarcas de Xambioá e de Colméia, dos registros de
todas as ações penais instauradas6, comparando-se os crimes em
geral com os casos de crimes contra o patrimônio descritos no Código
Penal7, com ou sem violência, resultaram, nos anos de 2010, 2011,
2012 e 2013, respectivamente, em percentual aproximado, 24 e 39; 36
e 17; 31 e 36; 29 e 18. As espécies de delitos patrimoniais, retratam
índices entre quase um quarto até mais de um terço das hipóteses da
delinquência registradas e com provas mínimas indiciárias,
necessárias para a instauração de ação penal.

Nos mesmos patamares acima, nas mesmas Comarcas,


comparando-se com os casos de crimes de violência contra a pessoa 8,
consumados ou tentados, resultaram, nos anos de 2010, 2011, 2012 e
2013, respectivamente, em percentual, 31 e 10; 21 e 17; 26 e 53; 35 e
23.

5
Ambos, SPROC e EPROC, são sistemas eletrônicos de processamento dos
procedimentos e processos judiciais no Estado do Tocantins, Brasil. Cabe ressaltar que
o SPROC trata-se de um mero sistema de controle e banco de dados dos processos
físicos, em desuso a partir da instalação do EPROC no Estado do Tocantins entre os
anos de 2011-2014. Este é um sistema moderno de processamento dos processos e
procedimentos judiciais, o que foi denominado sistema dos processos digitais ou
eletrônicos, substituindo a matriz dos autos físicos.
6
Observe-se que esses números não revelam plenamente a realidade dos fatos, já que
apenas se considera as ações penais instauradas. Sabe-se que há inquéritos policiais
instaurados sem conclusão da autoria, por exemplo.
7
Artigos 155 a 186 do Código Penal, exceto artigos 163 a 167.
8
Artigos 121 a 129 do Código Penal.

116
Ricardo Gagliardi

Essas espécies de delitos, como exemplos, são motivados pelas


necessidades básicas, fisiológicas e materiais, e talvez por
necessidades ligadas à autoestima, o que redundaria em um estudo
mais profundo e específico. Isso, de certo modo, reflete o modo e
meio de vida e a ausência, pelo menos em parte, de enquadramento da
pessoa dentro das regras sociais estabelecidas (MIRANDA ROSA,
2004, p. 82, apud SABADELL, 2013, p. 73-75), que tentam atingir as
“metas culturais” (SABADELL, 2013, p. 78-79).

É possível defender que a necessidade é avaliada em cada


indivíduo, como ser humano, detentor de direitos. Como sujeito de
direitos. Nesse ponto, anota-se que o direito ao bem comum objetado
pela sociedade e pelo Estado está na busca do direito à felicidade ou
ao equilíbrio de vida, de cada indivíduo.

Bobbio (2004, p. 57), nesse ponto defende ser justo que cada
pessoa seja tratada e respeitada para que possa satisfazer as suas
próprias necessidades, principalmente a felicidade, “que é um fim
individual por excelência.”

E continua concluindo:

É com o nascimento do Estado de direito que ocorre a passagem


final do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos
cidadãos. No Estado despótico, os indivíduos singulares só têm
deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos
possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado
de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos
privados, mas também os direitos públicos. O Estado de direito é
o Estado dos cidadãos. (BOBBIO, 2004, p. 58).

117
Ricardo Gagliardi

Muitas são as necessidades humanas. O Estado deve propiciar às


pessoas a garantia das necessidades básicas, e o incentivo (reforço
positivo) das necessidades superiores.

5. TEORIA DO CONFLITO. UMA BREVE ANÁLISE

Passando a análise da teoria dos conflitos, tem-se em uma análise


perfunctória da ciência empírica que os conflitos estão intimamente
ligados a vida em grupo. Verifica-se isso no meio dos gorilas, dos
chimpanzés, das matilhas de lobos ou cães, cardumes, das manadas de
elefantes ou touros. Nas relações humanas, relacionada com a teoria
da ecologia criminal (SHECAIRA, 2013, p. 146-151). O conflito está
intimamente ligado ao íntimo do ser humano, para a satisfação de suas
necessidades, fisiológicas (agressão defensiva, na teoria de Fromm) e
as mais complexas nas relações sociais e satisfação de sua razão de
existir (agressão maligna ou instrumental, na teoria de Fromm).

Como já explanado anteriormente, muitas dessas necessidades


surgiram no decorrer da evolução das relações humanas e sociais,
como produto da cultura, incluindo a religiosa, a partir da
característica da autoconsciência e imaginação, essência do ser
humano.

O antropólogo polaco Malinowski (1941, apud MELLO, 1997, p.


75-76), considerado um dos fundadores da antropologia social, afirma
que os “fatores decisivos em uma guerra são “artificiais” e não se
encontram “enraizados na natureza humana”, daí ser ela um fenômeno
cultural”, principalmente ao fazer comparações com outras sociedades
pacíficas.

118
Ricardo Gagliardi

Como um conflito, Durkheim (2007, p. 40, 82-84) entendeu a


criminalidade como um fato social, que em regra está dentro da
normalidade. Passaria a ser anormal somente quando atingisse taxas
em nível elevado.

Autores como García-Pablo de Molina (2013, p. 20) e Gomes


(1997, p. 36-38) entendem o delito como um problema social e
comunitário.

Pode-se declamar que não haveria democracia se não houvesse


conflito. Pode-se dizer que a democracia não acaba o conflito, pois ela
supõe o conflito, para regulamentá-lo.

Portanto, sendo o conflito algo intrínseco aos seres vivos,


incluindo os seres humanos, a fórmula desejada é a de sua resolução
da maneira mais branda e harmônica possível. Com relação ao
conflito social denominado delito, a sua resolução não se direciona
para sua erradicação, mas para seu controle razoável (GARCÍA-
PABLO DE MOLINA, 2013, p. 153).

Nesse sentir, como forma de evitar a ocorrência de conflitos mais


graves, entre eles, os delitos, busca-se atuar incisivamente nos fatores
e causas que gerem uma desestrutura de vida, tendo por fundamento, a
prevenção primária, e restabelecendo o zelo, nas prevenções
secundárias e terciárias (GARCÍA-PABLO DE MOLINA, 2013, p.
143-145).

Como contribuição preponderante no que concerne aos meios de


gestão ou de política criminal e em geral, ao se tratar das prevenções,
não se pode deixar de anotar a classificação esmiuçada por Sá (2013,
p. 56-60). Para ele, duas espécies de conflitos devem ser

119
Ricardo Gagliardi

diagnosticadas, o interpessoal e o intrapessoal. A primeira,


considerada pelo autor como sendo a maioria das hipóteses de
conflitos, advém de condutas socialmente não desejadas, mas que se
encontram voltadas aos objetivos da pessoa, que de certa forma
entende legítimos. Há o interesse da busca por uma necessidade, de
um fim. O outro, a espécie dos intraindividuais, há conflito passado e
primitivo, muitas vezes oriundos da infância, e não resolvidos. Isso
faz gerar “descarga de tensões” (SÁ, 2013, p. 59) posteriores, com
tendência irracional, e muitas vezes com objetivos ilegítimos. A busca
é como de um fim em si, apenas para expandir as frustrações.

A formação e o desenvolvimento do Estado moderno incentiva a


busca mais forte pelas necessidades, o que traz a lume o reforço no
desenvolvimento das pessoas por valores éticos e morais, em suas
autonomias, para a busca do equilíbrio interno. Os aspectos de estudo
do conflito social passam a ser culturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A essência do ser humano e sua primordial diferença de outros


animais, além dos aspectos morfológicos e fisiológicos, passa pelo
autoconhecimento, autoconsciência, imaginação, racionalidade,
socializadas pela linguagem e comunicação. Dessa forma, plenamente
possível a caracterização da natureza da essência humana.

Compactua-se com um grupo de cientistas, como Darwin, Fromm


e Montagu que entendem que o ser humano nasce com elementos

120
Ricardo Gagliardi

genéticos de conhecimento, que podem ser caracterizados como bons


ou maus, dependendo da cultura em que se está inserido, porém, não
se leva isso em consideração, já que foi concebido assim, e que diante
da herança cultural, no percorrer de sua vida, vai sendo moldado,
desenvolvendo sua personalidade.

A caracterização dos aspectos genéticos, por si só, para fins destes


estudos, não influenciarão a criação de instrumentos de reação social,
preventivos ou reparadores, acerca dos conflitos sociais. Entende-se
que a natureza boa ou má não deve ser condicionada aos aspectos
instintivos naturais e, assim como Rousseau, portanto, acredita-se que
em regra o ser humano nasce bom ou, pelo menos, neutro, e que a
vida, por suas influências e experiências, é que o personaliza.

Portanto, são as vulnerabilidades sociais e psicológicas é que vão


propiciar desvios às regras, conflitos sociais, intrapessoais e/ou
interpessoais, violando-se as normas sociais estabelecidas, inclusive
gerando os delitos.

O caráter é inato à pessoa. Agora, na estrita conceituação de


“caráter”, nas disposições afetivas, analisa-se o predomínio da
sociabilidade sobre os impulsos egoístas. A exceção, segundo a
psiquiatria e psicologia forense, está quando se trata do mau caráter,
aquele que possui desvios de caráter, como condição congênita. É o
caso do transtorno global da personalidade ou psicopatia, que acomete
cerca de 1% da população. Esses nasceriam maus por natureza e,
segundo estudos, mereceriam um maior controle social e um
tratamento diferenciado quando da prevenção terciária.

121
Ricardo Gagliardi

A filosofia e a psicologia vêm a contribuir para estampar as


necessidades dos seres humanos, alvo de geração de conflitos. Em
forma piramidal ou não, sequencial ou não, há uma gama de
necessidades humanas, sendo que no topo encontra-se a
autorrealização, e que pode se assemelhar com a “virtude”, condição
do ser humano estampada por Aristóteles e seus mestres, do equilíbrio
mental e intelectual.

A hipótese é que quanto maior são solidificados esses conceitos na


educação dos cidadãos, e garantidas suas necessidades, especialmente
as básicas, menores serão os conflitos sociais. Em algumas Comarcas
do Estado do Tocantins, há um índice alto de conflitos descritos como
crimes contra a vida e contra o patrimônio, oriundo da busca dessas
necessidades, o que denota a violação desses direitos básicos.

Os conflitos estão intimamente ligados à vida em grupo, mesmo


que entre os seres irracionais. Entre os humanos, além disso, com o
desenvolvimento das necessidades, oriundo das características
essenciais de sua natureza e diferença com os outros animais, por
influência do desenvolvimento cultural, elas se tornaram mais
complexas, gerando conflitos e resultados catastróficos, como as
guerras. Os conflitos ainda estão intimamente ligados aos anseios
democráticos e republicanos, como essência dessas estruturas ou
formas de governo. A opinião divergente é de sua essência. Em outra
classificação, os conflitos podem ser gerados por questões
intraindividuais e interindividuais, cada qual merecendo uma
intervenção diferenciada e personalizada, própria da criminologia
clínica.

122
Ricardo Gagliardi

O direito à busca desse equilíbrio social, e que se denomina busca


ao direito da satisfação das necessidades, principalmente ao direito à
felicidade, açodado por moderna teoria da ciência política e de Estado
democrático, estampada por Bobbio, passa a ser direito individual do
cidadão, como ser sujeito de direitos, motivo da existência do Estado e
do pacto social, que devem ser garantidos em última instância pela
decisão judicial.

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127
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

O FENÔMENO PSICOLÓGICO DA FALSA MEMÓRIA E


O CRIME DE FALSO TESTEMUNHO: UMA ANÁLISE NO
ÂMBITO DO PROCESSO PENAL
Por Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

RESUMO: O presente artigo trata do estudo do fenômeno psicológico da


Falsa Memória, fazendo uma abordagem de seus aspectos psicológicos e
analisando as suas conseqüências jurídicas, no âmbito do Processo Penal, à
luz da Teoria Geral do Crime e da Teoria Geral da Pena, a fim de verificar se
tal fenômeno teria o condão de fazer com que a testemunha seja penalmente
responsabilizada, nos termos do tipo penal tipificado no artigo 342 do Código
Penal Brasileiro, o Crime de Falso Testemunho. Para tanto, foi realizada uma
pesquisa teórica, com base na obras de renomados juristas e psicólogos, e
partiu-se da hipótese de que não restaria configurado o Crime de Falso
Testemunho se esse decorresse de uma Falsa Memória. Hipótese essa que foi
confirmada, após uma análise sistematizada dos aspectos gerais, dos
princípios norteadores e das provas no Processo Penal, bem como das
elementares do Crime de Falso Testemunho e dos aspectos psicológicos da
Falsa Memória, sob uma abordagem à luz das Teorias da Psicanálise e da
Psicologia Analítica.
PALAVRAS CHAVE: Processo Penal; Falsa Memória; Falso Testemunho;
Atipicidade.
ABSTRACT: This article deals with the study of the psychological
phenomenon of the False Memory, analyzing its psychological aspects and
analyzing its legal consequences in the context of the Criminal Procedure in
the light of the General Theory of Crime and the General Theory of Pena, in
order to To verify if such phenomenon would have the effect of making the
witness be criminally responsible, under the terms of the criminal type
typified in article 342 of the Brazilian Penal Code, the Crime of False
Witness. In order to do so, a theoretical research was carried out, based on the
works of renowned jurists and psychologists, and it was hypothesized that the
Crime of False Witness would not be configured if it resulted from a False
Memory. This hypothesis was confirmed, after a systematic analysis of the
general aspects, guiding principles and evidence in the Criminal Procedure, as
well as the elementary of Crime of False Witness and the psychological
aspects of False Memory, under an approach in the light of Psychoanalysis
Theories And Analytical Psychology.
KEYWORD: Criminal proceedings; False Memory; False Testimony;
Atypical fact.

127
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

INTRODUÇÃO

Superando a fase da Vingança Penal (Divina, Privada ou Pública),


existente nas sociedades mais primitivas (CUNHA, 2015a), o Estado
chama para si a responsabilidade de solucionar eventuais conflitos
sociais e de viabilizar a aplicação do direito penal. Assim, a
persecução criminal passa a ser de responsabilidade do Estado, que a
realiza por meio de um instrumento de atuação da jurisdição, o
Processo Penal.

O Processo Penal, por sua vez, concretiza-se com a execução de


um procedimento, que diz respeito a atos que devem estar previstos
em lei, em observância à segurança jurídica.

Além de leis, há princípios que norteiam todo o tramitar desse


procedimento. Esses princípios são de suma relevância e têm respaldo
constitucional, inclusive. Logo, a observância de tais princípios é
imprescindível para a validade do provimento jurisdicional dado no
fim do processo.

Por meio do processo penal, o juiz, órgão representante do Estado


na atividade jurisdicional, objetiva colher o máximo de informações e
de provas que lhe permitam chegar o mais próximo possível da
verdade real com relação aos fatos tipificados como crime e
imputados ao acusado, bem como que lhe permitam se convencer

128
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

acerca da inocência ou não do acusado, e com base nas quais motivará


sua decisão.

Embora não se possa afirmar que uma prova tem maior peso que
outra, fato é que assume grande destaque a prova testemunhal, dada a
riqueza de informações que podem ser colhidas por meio dela.

Todavia, para que o juiz não seja induzido ao erro, a lei encontrou
uma forma de responsabilizar penalmente a testemunha que,
conscientemente, faça falsa afirmação ou que nega ou que, até mesmo,
cala a verdade. Nesses casos, a testemunha estaria cometendo um
crime contra a Administração da Justiça e estaria incursa nas penas do
tipo penal previsto no artigo 342 do Código Penal Brasileiro,
denominado Crime de Falso Testemunho.

Há divergências quanto à necessidade de estar a testemunha


compromissada ou não a dizer a verdade, para restar configurado o
crime de falso testemunho.

Porém, o principal objetivo do presente artigo é compreender as


conseqüências jurídicas de um fenômeno estudado pela Psicologia,
denominado de Falsas Memórias, quando tal fenômeno ocorre durante
o depoimento de uma testemunha.

Para tanto, por meio de uma pesquisa teórica, iremos analisar as


elementares do Crime de Falso Testemunho, à luz da Teoria Geral do
Crime e da Teoria Geral da Pena, bem como iremos estudar o
fenômeno das Falsas Memórias, enfocando seus aspectos
psicológicos, enfatizando as teorias da psicanálise e da psicologia
analítica. Buscaremos, assim, concluir se, diante desse fenômeno

129
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

psicológico, a testemunha deveria ou não ser penalmente


responsabilizada.

2. DO PROCESSO PENAL: ASPECTOS GERAIS

O Processo Penal é o instrumento de atuação da jurisdição, por


meio do qual o Estado atrai para si o jus puniendi. Esse instrumento se
constitui numa sequência de atos, que, por sua vez, configuram o
procedimento.

Assim, o processo penal

deve conferir efetividade ao direito penal, fornecendo os meios e


o caminho para materializar a aplicação da pena ao concreto.
Tem como finalidades a pacificação social obtida com a solução
do conflito (mediata), e a viabilização da aplicação do direito
penal, concretizando-o (imediata). (TÁVORA; ALENCAR, 2015,
p. 77).

Quanto aos seus princípios informadores, o processo penal no


Brasil é um sistema acusatório, que tem como principais
características a separação das funções de julgar, acusar e defender e a
regência dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da
publicidade, da imparcialidade e do livre convencimento motivado.

No que tange à lei processual penal no tempo, ao processo penal


aplica-se a lei tão logo ela seja inserida no mundo jurídico,
independentemente de ser mais gravosa, nos termos do artigo 2º, do
Código de Processo Penal.

130
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

Quanto à lei processual penal no espaço, frise-se que, em razão da


aplicação do princípio da territorialidade absoluta, a lei penal
brasileira deverá ser aplicada a todos os processos que tramitem no
território nacional. As ressalvas estão previstas nos incisos do artigo
1º, do Código de Processo Penal.

Para sabermos mais sobre o processo penal no Brasil, é importante


estudarmos acerca dos princípios que o norteiam.

2.1. DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PROCESSO PENAL

Os princípios norteadores do processo penal são os seguintes:

- Princípio da presunção de inocência ou da não-culpabilidade:


nos termos do artigo 5º, inciso LVII, da CF/88, a sentença
condenatória transitada em julgado é pressuposto para o
reconhecimento da autoria de uma infração penal (TÁVORA;
ALENCAR, 2015);

- Princípio da imparcialidade do juiz: o juiz não pode ter vínculos


subjetivos com o processo, para que possa conduzi-lo com isenção
(TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da igualdade processual: corolário do artigo 5º, caput,


da CF/88, esse princípio consagra o tratamento isonômico das partes
no decorrer do processo (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio do contraditório ou bilateralidade da audiência: ambas


as partes podem influir no convencimento do juiz, devendo ser dada a

131
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

elas igual oportunidade de participação e manifestação no processo


(TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da ampla defesa: nos termos do artigo 5º, inciso LV, da


CF/88, as partes devem ter ampla possibilidade de defesa (técnica ou
autodefesa), podendo lançar mão dos meios e recursos disponíveis
(TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da ação, demanda ou iniciativa das partes: a CF/88


não admite o processo judicialiforme. Assim, devem as partes
provocar o Estado, por meio do seu direito de ação, a fim de que ele
dê o provimento jurisdicional (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da oficialidade: a persecução criminal é de


incumbência de órgãos oficiais, como o Ministério Público, titular da
ação penal, e a polícia judiciária (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da oficiosidade: em regra, a atuação oficial na


persecução criminal ocorre sem necessidade de autorização, exceto
nos casos em que deve haver a representação da vítima ou a
requisição do Ministro da Justiça (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da verdade real: que será tratado mais adiante;

- Princípio da obrigatoriedade: a persecução penal é de ordem


pública. Assim, não pode o órgão oficial escolher entre dar início ou
não à persecução criminal (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da disponibilidade: é o oposto do princípio anterior.


Vigora nos crimes de ação penal privada, cabendo à vítima o juízo de
conveniência ou oportunidade quanto ao início da ação penal
(TÁVORA; ALENCAR, 2015);

132
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

- Princípio do impulso oficial: iniciado o processo, cabe ao juiz a


promoção dos atos necessários para que o processo chegue ao final e
seja dado o provimento jurisdicional (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da motivação das decisões: uma vez que a


fundamentação é o alicerce da segurança jurídica numa decisão
judicial, esse princípio assevera que o juiz é livre para decidir, desde
que o faça motivadamente. Decorre do artigo 93, inciso IX, da CF/8
(TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da publicidade: nos termos do artigo 93, inciso IX, da


CF/88, em regra, os atos processuais são regidos pela vedação ao
sigilo, exceto as hipóteses previstas legalmente (TÁVORA;
ALENCAR, 2015);

- Princípio do duplo grau de jurisdição: o sistema recursal garante


que as decisões judiciais possam ser revistas e reapreciadas pelos
tribunais do país (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio do juiz natural: veda a criação de juízos ou tribunais de


exceção e assegura o direito de ser processado pelo juiz competente,
nos termos dos incisos LIII e XXXVII, do artigo 5º, da CF/88
(TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio do promotor natural ou do promotor legal: veda que o


Chefe do Ministério Público, arbitrariamente, designe um promotor
para patrocinar um caso específico (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio do defensor natural: veda a designação de defensor


diverso para atuar no lugar de defensor público que tem atribuição
legal para atuar na causa (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

133
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

- Princípio do devido processo legal: assegura a tutela de bens


jurídicos por meios do devido procedimento e reclama uma atuação
substancialmente adequada, correta e razoável (TÁVORA;
ALENCAR, 2015);

- Princípio do favor rei ou favor réu: na ponderação entre o direito


de punir do Estado e o status libertatis do acusado, deve prevalecer
este último, devendo a dúvida sempre militar em favor do acusado (in
dúbio pro réu) (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da economia processual: impõe que seja produzida a


menor quantidade de atos processuais possível e com maior
efetividade (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da oralidade: assegura que os atos processuais possam


ser produzidos de forma verbal (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da autoritariedade: somente autoridades públicas são


incumbidas da persecução penal estatal (TÁVORA; ALENCAR,
2015);

- Princípio da duração razoável do processo: fruto da Emenda


Constitucional n.º 45/2004, assegura às partes a celeridade na
tramitação processual (TÁVORA; ALENCAR, 2015);

- Princípio da proporcionalidade: no processo penal, tem especial


aplicação na disciplina legal da validade da prova. Deve ser visto na
vertente da proibição do excesso e da proteção deficiente (TÁVORA;
ALENCAR, 2015);

- Princípio da inexigibilidade de autoincriminação: que também


será estudado mais adiante;

134
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

- Princípio da cooperação processual: veda omissões propositais


que fujam do escopo da regra do duty to mitigate the loss (dever de
reduzir o prejuízo) (TÁVORA; ALENCAR, 2015).

Dada a importância que assumem face ao tema central deste


artigo, vejamos a seguir, de forma mais aprofundada, sobre os
Princípios da Verdade Real e da Inexigibilidade de Autoincriminação.

2.1.1 Do Princípio da Verdade Real e Do Princípio da


Inexigibilidade de Autoincriminação

Em função da estreita e importante relação que esses princípios


guardam com o tema central deste artigo, optou-se por se abordá-los
de forma mais aprofundada. Vejamos:

- Princípio da Verdade Real: segundo Renato Brasileiro (2011),


esse princípio é também denominado de Princípio da Verdade
Substancial (terminologia adotada pelo artigo 566, do CPP), Princípio
da Livre-Investigação da Prova no Interior do Processo, Princípio da
Imparcialidade do Juiz na Direção e Apreciação da Prova, Princípio
da Investigação, Princípio Inquisitivo e Principio da Investigação
Judicial da Prova.

Nas palavras de Nestor Távora e de Rosmar Rodrigues Alencar


(2015),

O processo penal não se conformar com ilações fictícias ou


afastadas da realidade. O magistrado pauta o seu trabalho na
reconstrução da verdade dos fatos, superando eventual desídia
das partes na colheita probatória, como forma de exarar um

135
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

provimento jurisdicional mais próximo possível do ideal de


justiça. (TÁVORA; ALENCAR, 2015, p. 57).

Todavia, a própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º,


inciso LVI, bem como o Código de Processo Penal, em seu artigo 157,
vedam a produção de provas ilícitas, ainda que por meio delas a
verdade real fosse retratada.

Como bem leciona Aury Lopes Júnior (2007), é um grave erro se


falar em verdade real, não só porque a própria noção de verdade é
excessiva e difícil de ser apreendida, mas também pelo fato de não se
poder atribuir o adjetivo de real a um fato passado, que só existe no
imaginário (LOPES JR, 2007, p. 540-550).

Ora, conforme veremos melhor adiante, uma falsa memória é para


o seu depoente a verdade real acerca dos fatos que ele tem gravados
em seu imaginário.

- Princípio da Inexigibilidade de Autoincriminação: também


denominado de Nemo Tenetur se Detegere e de Princípio da
Autodefesa, assegura que ninguém pode ser compelido a produzir
prova contra si mesmo. Guarda semelhança com o conhecido Aviso
de Miranda, que consiste na realização da advertência ao acusado dos
seus direitos constitucionais, que constituem o núcleo de garantias
fundamentais dispostos na Constituição Federal, dentre os quais estão
os direitos de: silêncio ou permanecer calado; não ser compelido a
confessar; inexigibilidade de dizer a verdade; não adotar conduta ativa
que possa lhe causa incriminação; não produzir prova incriminadora
invasiva ou que imponha penetração em seu organismo (TÁVORA;
ALENCAR, 2015, p. 75).

136
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

Como se verifica, esse princípio tem incidência relativamente ao


mérito não somente do interrogatório, mas também das declarações ou
do depoimento.

Nesse diapasão é o seguinte trecho da lavra do Ministro Celso de


Mello:

Esta Suprema Corte, fiel aos postulados constitucionais que


expressivamente delimitam o círculo de atuação das instituições
estatais, enfatizou que qualquer indivíduo “tem, dentre as várias
prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o
direito de permanecer calado. ‘Nemo tenetur se detegere’.
Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um
ilícito penal” (RTJ 141/512, Re. Min. CELSO DE MELLO). Em
suma: o direito ao silêncio – e o de não produzir provas contra si
próprio (HC 96.219-MC/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO) –
constitui prerrogativa individual que não pode ser
desconsiderada por qualquer dos Poderes da República.(STF –
HC 96982/DF – Rel. Min. Celso de Mello – Info nº 530).

Assim, grande relevância assume esse princípio no caso de a


testemunha ser acusada de cometer o ilícito de falso testemunho ao
permanecer-se calada, conforme veremos mais adiante.

2..2 DOS MEIOS DE PROVA

Quando o Estado chamou para si o dever de punir e de dirimir os


conflitos sociais, ele instituiu o processo como instrumento adequado
a essa finalidade. O processo é composto de várias fases, dentre elas

137
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

há uma em que são produzidas as provas, que buscam esclarecer o


caso. É a chamada fase de instrução processual.

Diversos são os meios de provas admitidos pela lei: exames


periciais, interrogatório, documentos, testemunhas etc.

No presente artigo, é pertinente que vejamos um pouco mais sobre


a prova testemunhal.

2.2.1 Da Prova Testemunhal

As testemunhas receberam tratamento especial do legislador no


Capítulo VI, do Título VII, do Código de Processo Penal, título esse
que trata especificamente da prova no Processo Penal.

Nas lições de Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar (2015),


“Testemunha é a pessoa desinteressada que declara em juízo o que
sabe sobre os fatos, em face das percepções colhidas sensorialmente.”
(TÁVORA; ALENCAR, 2015, p. 656).

Segundo os autores, o depoimento da testemunha seria um dever,


por meio do qual estaria contribuindo com a Administração da Justiça,
descortinando a verdade (TÁVORA; ALENCAR, 2015, p. 657).

No entanto, para resguardar o prestígio da Justiça, “se fazia


necessário que o Direito cercasse a perícia e o testemunho com todas
as garantias possíveis, impedindo pareceres e depoimentos levianos e
mendazes”. (CUNHA, 2015a, p.834). Assim, em havendo

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Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

depoimentos levianos e mendazes, restaria tipificado o crime de Falso


Testemunho.

Távora e Alencar (2015) ensinam, ainda, que, dentre os deveres da


testemunha, estaria o compromisso com a verdade, nos termos do
artigo 203, do Código de Processo Penal Brasileiro.

Para eles, “A testemunha, como regra, é compromissada a dizer a


verdade, e caso venha a fazer afirmação falsa, negar ou calar a
verdade, incide nas penas do art. 342 do CP (falso testemunho).”
(TÁVORA; ALENCAR, 2015, p. 657).

Contudo, quanto ao compromisso de dizer a verdade, é necessário


que se esclareça que as testemunhas se classificam em: numerárias –
aquelas que arroladas pelas partes e que são compromissadas;
extranumerárias – que são ouvidas por iniciativa do juiz e que
também prestam compromisso; informantes – são as dispostas no
artigo 206, do CPP, os menores de 14 anos, os doentes e os deficientes
legais e que não são compromissadas (TÁVORA; ALENCAR, 2015,
p. 660).

Vale lembrar que, ao se comprometer a dizer a verdade, a


testemunha deve ser advertida de que caso faça falsa afirmação, ou
distorça a verdade ou se negue a depor, estará incorrendo nas penas do
crime de falso testemunho, pois a testemunha só poderá se negar a
depor quando o que seria dito pudesse lhe incriminar, e ninguém está
obrigado a fazer prova contra si mesmo, nos termos do já abordado
Princípio Nemo Tenetur se Detegere, consagrado no inciso LXIII,
artigo 5º da Constituição Federal e no art. 8º, §2º, alínea “g”, do Pacto
de San José da Costa Rica.

139
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

Feitas essas considerações, vamos agora aprofundar um pouco


mais nosso estudo acerca do Crime de Falso Testemunho.

3. DO CRIME DE FALSO TESTEMUNHO

Acerca do Crime de Falso Testemunho, veja o que diz o Código


Penal Brasileiro:

Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade,


como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em
processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em
juízo arbitral:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

§1º As penas aumentam-se de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se


o crime é praticado mediante suborno ou se cometido com o fim
de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou
em processo civil em que for parte entidade da administração
pública direta ou indireta.

§2º O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo


em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a
verdade. (Art. 342 do Código Penal Brasileiro)

Por se tratar de Crime Contra a Administração da Justiça e dada a


sua gravidade, esse artigo foi alterado pela Lei 12.850/13, tendo a
pena sido alterada de 1 a 3 anos, de reclusão, para de 2 a 4 anos, de
reclusão. Em decorrência dessa alteração, passou a ser inaplicável a
suspensão condicional do processo, já que a pena mínima é de 2 anos.

140
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

Além disso, havendo a possibilidade de a pena ser aumentada, nos


termos do §1º, a pena pode ultrapassar 4 anos, passando a ser possível
a prisão preventiva do agente, ainda que seja primário.

Trata-se de crime de mão própria, ou de atuação pessoal ou


conduta fungível, só podendo ser praticado por uma pessoa física que
foi chamada a depor, na qualidade de testemunha (CUNHA, 2015b).

Nos termos do artigo 203, do Código de Processo Penal Brasileiro,


a testemunha está compromissada a dizer a verdade.

Vejamos:

Art. 203. A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa


de dizer a verdade do que souber e Ihe for perguntado, devendo
declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua
profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em
que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com
qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as
razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa
avaliar-se de sua credibilidade. (Art. 203 do Código de Processo
Penal Brasileiro)

Ao se fazer a distinção entre a testemunha


numerária/extranumerária e a informante, surgem controvérsias
quanto se esta praticaria o crime de falso testemunho, uma vez que
não estaria compromissada, conforme se verifica da leitura dos artigos
206 e 207 do Código de Processo Penal:

Art. 206. A testemunha não poderá eximir-se da obrigação de


depor. Poderão, entretanto, recusar-se a fazê-lo o ascendente ou
descendente, o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que
desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho adotivo do

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Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se
ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias.

Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de


função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo,
salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu
testemunho.

Uma primeira corrente entende que, em razão de a prestação de


compromisso não se constituir numa elementar do tipo, “qualquer
pessoa que se dispuser a prestar depoimento na condição de
testemunha (numerária ou informante), se faltar com a verdade, terá
cometido o ilícito penal em estudo (RT 321/71, 392/115,415/63).”
(CUNHA, 2015, p. 835).

Assim, também, entende Noronha (1995):

Parece-me que desde que deponham, as testemunhas


‘informantes’ não estão dispensadas de dizer a verdade, já que
por seus depoimentos pode o juiz firmar a convicção, o que lhe é
perfeitamente lícito, em face do princípio do inconcusso,
consagrado pelo Código de Processo, do livre convencimento,
aliás, posto em relevo na ‘Exposição de Motivos’. Observa-se
também que a lei penal não distingue ao se referir à testemunha.
Por outro lado, força é convir, que se fossem elas eximidas do
dever de dizer a verdade, seria inútil permitir-lhes o depoimento.
(NORONHA, Direito Penal, 1995, v.4, p. 388).

Apesar de esse parecer ser também o entendimento do STF (RT


712/491), para a corrente dominante somente a testemunha que prestar
compromisso pode praticar falso testemunho, por estar
compromissada a dizer a verdade.

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Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

Como adepto dessa corrente, Mirabete (2000) faz a seguinte


observação:

Se a lei não as submete ao compromisso de dizer a verdade, o


que as distingue das compromissadas, as testemunhas
informantes não podem cometer o ilícito em apreço.
(MIRABETE, 2000, p. 403).

Quanto à vítima, não há polêmica. Ela não pratica o crime de falso


testemunho, podendo, todavia, responder pelo crime de denunciação
caluniosa, disposto no artigo 339, do Código Penal Brasileiro.

No que tange à possibilidade de concurso de agentes, embora o


STF já tenha decidido no sentido de admitir a coautoria do advogado
que instrui a testemunha, a maioria dos Tribunais entende ser
incompatível o crime de falso testemunho com o instituto da
coautoria, entendendo ser admissível apenas concurso de agente na
modalidade de participação e que, na hipótese do causídico, haveria a
mera participação, ou, se for o caso, corrupção de testemunha,
conduta que configura tipo próprio, nos termos do artigo 339, do
Código Penal (CUNHA, 2015b).

Acerca da consumação, a doutrina entende que se trata de crime


formal, não exigindo, portanto, para sua caracterização, nenhum
evento ou ato posterior. Consuma-se, portanto, no momento em que se
encerra o depoimento, quando da lavratura da assinatura do depoente
(CUNHA, 2015b).

Sobre a possibilidade de tentativa, há controvérsias.

Segundo Cunha (2015b), seria inadmissível em razão do momento


consumativo do delito, que é o encerramento do depoimento.

143
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

Já para Hungria (1958, p. 478), caso o depoimento não se encerre,


por alguma razão, estaria configurada a tentativa.

O tipo penal, em seu §2º, traz ainda hipóteses de extinção da


punibilidade, que ocorrem quando o agente se retrata ou declara a
verdade. E deixa claro que tais hipóteses devem ocorrer antes de a
sentença ser prolatada, a fim de evitar um erro judiciário (CUNHA,
2015b).

Para o tema central deste artigo, surge uma questão de suma


importância e que, portanto, deve ser estudada, que é a definição da
palavra verdade. Lembrando que, incorre no crime de falso
testemunho a testemunha que: faz afirmação falsa, distorcendo a
verdade - seria a falsidade positiva; ou nega a verdade - seria a
falsidade negativa; ou cala a verdade – seria a reticência.

Segundo Cunha (2015b), a verdade é

A perfeita correspondência entre a realidade e sua expressão. Da


falta de correspondência entre ambas surge o erro (engano
inconsciente) ou a mentira (afirmação contrária à verdade a fim
de induzir a erro).(CUNHA, 2015, p. 837)

Quando se trata de erro, há um defeito de percepção que afasta a


voluntariedade da ação. E, nas lições de Cunha (2015b), temos que a
falsidade é extraída da comparação do depoimento da testemunha e a
ciência que ela tem sobre um fato verdadeiro (teoria subjetiva).

Partindo dessa premissa, passaremos a tecer análises acerca das


falsas memórias e sobre a solução jurídica dada quando elas são
proferidas em juízo, durante o depoimento de uma testemunha.

144
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

4. DAS FALSAS MEMÓRIAS PROFERIDAS PELA


TESTEMUNHA

Para falar sobre a questão das falsas memórias, ou falsas


lembranças, ou, ainda, lembranças encobridoras é preciso se fazer
uma abordagem psicológica antes de apontar as soluções jurídicas
adotadas para, efetivamente lidarem com esta realidade: a realidade de
que o ser humano têm falsas memórias, por causa disso incorrem em
ilícitos, dentre eles o crime de falso testemunho.

Para discorrer sobre o tema, com uma abordagem da


psicologia, privilegiaremos as teorias da psicanálise e da psicologia
analítica, a partir de textos de autoras como Cymbot (2010) e Mangini
e Fiorelli (2014).

A primeira autora de referência, Cymbot (In: ZIMERMAN;


COLTRO, 2010), escreveu um artigo que versa sobre a importância
das subjetividades, demarcando-as como o principal aspecto a
influenciar na criação das falsas memórias; fala do papel do
consciente e do inconsciente na formação das memórias e das
lembranças a partir do pensamento de Freud, expresso na sua teoria da
psicanálise.

Para Freud, segundo Cymbot, nem sempre as memórias ou


lembranças expressam a verdade, devido a mecanismos existentes na
própria mente e psique dos sujeitos. Há lembranças encobridoras,
formadas a partir da associação de ideias, lapsos e outros mecanismos

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Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

que a mente desenvolve com engenhosidade e que são frequentes em


todos os seres humanos e que precisam ser analisados.

Ela questiona já no título do artigo se nossas lembranças guardam


intimidade com as ficções? Mais ou menos? São sempre fontes
suspeitas?

E vai buscar em Freud as respostas, tentando demonstrar como as


memórias se formam e porque há memórias encobridoras das
verdadeiras memórias.

A autora (CYMBOT, 2010. In: ZIMERMAN; COLTRO, 2010, p.


337) acentua a impossibilidade de que o evento e a fantasia, evocados
por uma falsa memória, emergem de processos conscientes e
inconscientes, frisando que

O modelo médico inicial que pressupõe uma associação entre


percepção, registro e evocação foi revisto pelo neurologista e
criador da psicanálise, SIGMUND FREUD. Ele postulou a
insustentabilidade da separação entre evento e fantasia,
realidade e imaginação, processos conscientes e processos
inconscientes, mundo interno e mundo externo, sanidade e
Loucura.

Ela diz ainda que há um contingente não tolerado pelo


psiquismo de uma pessoa quando ela evoca uma falsa memória,
advindo de um possível trauma, e o que está por trás desta distorção é
muito mais complexo do que se possa imaginar a partir de uma análise
superficial.

Segundo FREUD, o trauma é psíquico e se refere à sobrecarga


emocional e de afetos não tolerada que confere o tom traumático

146
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

e dramático do conteúdo da lembrança. Neste sentido, a memória


não é só produto do registro do fato com isenção e objetividade,
e a fantasia não é só imagem. Nelas intervêm as sensações, a
qualidade e a intensidade dos afetos, as angústias e suas defesas,
as fantasias e as alucinações que constituem os pensamentos, os
mitos pessoais, o grau de desenvolvimento emocional, a história
das relações do sujeito com ele mesmo, com outros, com o mundo
à sua volta e a história das identificações deste sujeito com
outros, que lhes conferem forma e sentido. (CYMBOT, 2010. In:
ZIMERMAN; COLTRO, 2010, p. 337-338).

Como, então, os magistrados têm lidado com esta realidade?


Ela é conhecida por eles?

A autora (2010, p. 338) diz, sobre os juízes, que “eles


sabem, como o sabem os psicanalistas, que é escassa a confiabilidade
nas lembranças e que uma recordação que repetidamente é evocada
pode se fixar, se cristalizar na mente enquanto verdade” e que, para
eles “avaliar, diagnosticar, julgar envolvem uma tarefa complexa,
nada simples de ser realizada”.

Entende-se, no entanto, que na maioria das vezes os


magistrados não têm a real dimensão da complexidade deste
fenômeno e as decisões são prolatadas a partir de um referencial
meramente positivista da adequação da violação do direito tipificado
em lei, aplicando-se apenas e tão somente a pena a ser imputada,
descrita no Código.

Seria preciso que os magistrados e magistradas, assim como


promotores e defensores, mediadores, conciliadores e facilitadores
entendessem mais sobre o funcionamento psicológico das pessoas,

147
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

mesmo daquelas que trazem um aspecto totalmente normal, pois já diz


o ditado popular: de longe, todos, somos normais.

Para a proposta psicanalítica, existe um mecanismo bem


imbricado no funcionamento psicológico das pessoas, como refere
Cymbot, In: Zimerman e Coltro (2010, p. 338)

De acordo com a proposta psicanalítica, há no funcionamento


psicológico das pessoas, ainda que elas não se encontrem sob
pressão interna ou externa, mecanismos falsificadores das
memórias (...). Os humanos consideram aquilo que eles ouvem,
sentem, imaginam e pensam como verdades, como fatos. Eles não
precisam de testes de realidade, de provas ou de evidências para
acreditarem em algo.

Para Freud, existe sim uma intimidade entre as lembranças e


as ficções, entre o peso dos impulsos e a racionalidade de uma
lembrança, entre a forma como singularidade humana percebe e vive
um evento e como ele reaparece na forma de uma lembrança ou
memória. A psicanálise de Freud considera

(...) que as memórias guardam intimidade com a invenção, com a


ficção. Elas estão concebidas enquanto recortes emocionais
expressivos de uma lógica que é pessoal, é falaz, é criação, é
ficção útil e resultante de associação de pensamentos, de
conexões de ideias que obedecem ao determinismo dos processos
inconscientes e de sua intersecção com os processos conscientes.
(CYMBOT, In: ZIMERMAN; COLTRO, 2010, p. 338).

E que

(...) O caráter irracional, apaixonado e demoníaco dos impulsos


humanos marca a influência nas lembranças, nos raciocínios e

148
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

nos juízos. (...) Estes fatores, constitutivos da singularidade,


interferem nos sistemas de pensamento e de julgamento, na
percepção e na atenção, na qualidade dos vínculos do sujeito
consigo e com o outro; interferem no modo do sujeito sentir, se
proteger, agir e reagir às suas experiências e existir, bem como
em seu sistema de valores, sua ética. (CYMBOT, In:
ZIMERMAN; COLTRO, 2010, p. 339).

Assim, “(...) o sujeito que relata, bem como o sujeito que o escuta,
revela-se e se oculta quando relata ou quando escuta.” (CYMBOT, in:
ZIMERMAN; COLTRO, 2010, p. 339) e “de acordo com a proposta
psicanalítica, as lembranças são sempre fontes suspeitas” (p.340).

Além de conhecer o funcionamento psicológico dos sujeitos,


precisa levar em consideração também os processos como se formam
as linguagens e a função das palavras neste contexto de reproduzir
eventos e evocar lembranças. Ou seja, precisa entender os diversos
usos das palavras, para que elas sirvam.

E precisa entender que as palavras não servem somente para


comunicar verdades, mas também para comunicar mentiras contidas
no pensamento e nos sentimentos. Mentiras ditas, muitas vezes, no
mais profundo âmago do sujeito, iludindo-o e o levando a iludir os
outros, descarregando impulsos e emoções também mascaradas.
Assim, a psicanálise entende que é o sujeito que significa o evento,

(...) a proposta psicanalítica concebe que o sujeito anteceda o


evento e o signifique e, nestes termos, não há evento separado de
quem o vive, o interpreta, o significa. Desta perspectiva, o que se
denomina de fato histórico, evento, acontecimento, compreende

149
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

uma verdade que é provisória e subjetiva, podendo haver mais ou


menos distorções na apreciação dos eventos vividos pela pessoa.
(CYMBOT, In: ZIMERMAN; COLTRO, 2010, p.340).

Ainda, sobre a importância e significância da linguagem e das


palavras para Freud, lembremo-nos de seus estudos sobre os atos
falhos, chistes e falhas mentais. Freud veementemente aponta para as

resistências dos homens em se responsabilizarem por seus


sentimentos, pensamentos e atos. Ele escreveu a respeito das
falhas mentais, dos pensamentos e atos compulsivos, dos erros,
dos esquecimentos que são gerados psiquicamente e de maneira
ativa, dos desejos arbitrários e obscuros do ser humano que
compõem as lembranças, os pensamentos, os sonhos, os
comportamentos, os sintomas. (CYMBOT, In: ZIMERMAN;
COLTRO, 2010, p.341).

Freud se refere a uma incrível e engenhosa capacidade dos seres


humanos de, pelo tecido das palavras e da linguagem mental, dando
significado a elas, construírem falsas lembranças, as quais ele chama
de lembranças encobridoras.

Ele qualifica de encobridoras porque elas encobrem a


lembrança real de eventos que, de alguma forma sobrecarregam a
mente de sentimentos não tolerados. Estas lembranças encobridoras
podem ser tão nítidas e detalhadas quanto uma lembrança real, mas se
trata de uma espécie de teatro que o psiquismo inventa. “Ou seja,
certas lembranças são substituídas por outras aparentemente inocentes
para aliviar a mente de uma sobrecarga psíquica de angústias não
toleradas” (CYMROT, In: ZIMERMAN; COLTRO, 2010, p.343).

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Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

E mais, o ser humano torna-se capaz de construir pontes e


associações de ideias entre as diferentes memórias, enxertar partes
falsas em lembranças parcialmente reais. Dai a importância da análise
para descobrir a real importância e a forma como se dão estas
construções. Isto vale para todo mundo. Cymbot reconhece e reafirma
o peso da subjetividade humana e dos conteúdos conscientes e
inconscientes desta subjetividade.

(...). Isto quer dizer que a subjetividade humana não pode ser
subestimada e que a sua marca encontra-se em qualquer
manifestação humana. Ela interfere na visão que a pessoa tem de
si mesma, do que lhe sucede na vida, dos outros, do mundo. Isto
vale para os intitulados juízes, réus, psicanalistas, pacientes.
(CYMBOT, In: ZIMERMAM; COLTRO, 2010, p.343)

Porém tem que ser demarcado que nem todos os pensadores


da psicologia vêem na questão das falsas memórias conteúdos
conscientes e inconscientes.

Segundo Fioreli e Mangini (2014), a memória é desencadeada por


sinais ou estímulos que captam a atenção do sujeito. A memória, pela
atenção, capta estes estímulos e a lembrança é ativada.

Esses autores falam do papel da emoção como um dos


contingentes que afetam nas distorções, composições ou lacunas que
induzem ao reconhecimento ou ao encobrimento de uma memória/
lembrança.

Para eles, existe uma tendência natural de que as lembranças


dolorosas sejam barradas pelo inconsciente e tendam a ser esquecidas,
mas sobre isto não há consenso entre os estudiosos da psicanálise.

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Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

Pode haver outros contingentes, não de fundo psíquico que cheguem a


interferir no esquecimento ou manutenção de uma lembrança. E há
memórias irreais como a recordação de alucinações que passam, por
exemplo, pessoas que jejuam muito tempo.

Nestes casos, as visões parecem muito reais e a recordação disto


pode perdurar por toda uma vida.

Os autores do livro Psicologia Jurídica (FIORELLI; MANGINI,


2014) destacam conceitos como a ampliação de atributos e o
conteúdo emocional da lembrança que podem chegar à condição de
uma fantasia, e que inclusive, podem fazer parte da narrativa de uma
vítima, réu ou testemunha.

Essas fantasias são, em outras palavras, as chamadas falsas


lembranças ou falsas memórias que podem advir de diferentes
situações como do uso de drogas, da hipnose, dos transtornos de
personalidade, pensamento ou percepção.

Os autores retro mencionados se baseiam no pensamento de Jung,


para quem a memória é a “faculdade de reproduzir conteúdos
inconscientes” (JUNG, 1991, p. 18 apud FIORELLI; MANGINI,
2014, p. 21) e para quem os mecanismos psíquicos são uma espécie de
proteção para a mente, embora, de alguma forma, criem obstáculos
para a imediata identificação da verdade dos acontecimentos.

Este pensamento derruba por terra aquele de muitas pessoas,


inclusive juízes, de que quanto mais forte e viva tenha sido uma
experiência ou evento, mais fácil e rapidamente ser faz a lembrança
dele.

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Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

Sobre isto, Myra y Lopes (2007, p. 174 apud FIORELLI;


MANGINI, 2014, p. 21) diz que

o juiz crê que quanto mais viva e emotiva tenha sido a situação,
tanto melhor tem que ser recordada pelo sujeito [...] crê que tem
que ser severo ao exigir uma recordação precisa dos detalhes
fundamentais. Pois bem, são precisamente esses detalhes que se
olvidam.

Fiorelli e Mangini (2014) falam do mecanismo da ampliação


dos atributos, que devem ser levados, muito, em consideração pelos
operadores do direito quando do julgamento ou da prolação de
decisões, em especial do relato de testemunhas.

Eles dizem que

Entre as distorções ocasionadas pelo psiquismo registra-se a


“ampliação de atributos”. Lembra-se do “ruim” como muito
pior do que foi na realidade; o “bom” torna-se extremamente
melhor! A emoção desempenha papel notável neste mecanismo
que contribui para distorcem depoimentos (salienta-se, de modo
involuntário). A história é farta em exemplos de pessoas ‘”más”
que não foram, de fato, tão ruins, e de “santos” que não foram
tão bons... (FIORELLI; MANGINI, 2014, p.22).

Há, também, para os autores retro mencionados (2014, p. 24)

(...) a indução de falsas lembranças na criança por um de seus


genitores. Na tentativa de vingar-se do outro, essa pessoa
promove a construção de recordações falsas de situações
gravíssimas, capazes de afastar, definitivamente a criança do pai
ou da mãe. A esse respeito, veja-se (...) a alienação parental e
suas muitas e imprevisíveis consequências. (p. 24a).

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Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

A ativação da memória merece especial atenção quando se trata


de pessoas de idade avançada, entre as quais se torna mais
frequente o fenômeno da confabulação, por meio do qual o
indivíduo preenche, com aparente lógica, lacunas da
recuperação (...). O conteúdo, entretanto, ainda que verossímil,
não apresenta vínculo com a realidade.

Por isto, precisa também saber que não são especialmente


confiáveis as memórias relativas a períodos anteriores aos 3 (três)
anos de idade e aquelas recuperadas sob hipnose ou influência de
drogas. Assim, como se deve desconfiar de narrativas de pais em
contextos de casos onde se afigura a alienação parental por parte de
um dos pares.

Importante se faz, então, que operadores de direito nesta área


entendam como se dá o desenvolvimento humano, a formação do
aparato mental e o papel da sexualidade; as fases deste
desenvolvimento e a sua relação com a configuração da
personalidade.

Formas de melhorar e ativar a memória são as associações,


analogias, a reconstituição dos fatos e contextos assim como o
relaxamento com a criação de imagens mentais acompanhando a
descrição de um acontecimento.

Utilizar estas formas, no entanto, exige preparo do magistrado,


promotores e defensores ou da equipe multidisciplinar que atende ou
faz a oitiva de réus, vítimas, testemunhas em processos judiciais ou
das partes e ou outros componentes em uma hetero-composição
extrajudicial.

154
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

4.1 DA SOLUÇÃO JURÍDICA À LUZ DA TEORIA GERAL DO


CRIME E DA TEORIA GERAL DA PENA

A testemunha, ao proferir uma falsa memória, não tem


conhecimento de seu conteúdo falso, pois a mentiras foram primeiro
ditas, muitas vezes, no mais profundo âmago do sujeito, iludindo,
inclusive, a ele mesmo e o levando a, involuntariamente, iludir os
outros. Estaria, ainda assim, configurado o crime de Falso
Testemunho?

Segundo a Teoria Geral do Crime, a conduta tem que decorrer de


um movimento humano voluntário, ou seja, dominável pela vontade
(CUNHA, 2015a)

Cunha (2015a) nos ensina que, pare que se configure o fato típico,
é necessário que o comportamento praticado seja precedido da
vontade do seu agente. Caso contrário, ainda que tal conduta se
enquadre em um tipo penal previsto, estaria desfigurado estará o fato
típico.

São várias as teorias da culpabilibidade:

- Teoria Psicológica da Culpabilidade (Franz Von Liszt e Ernst


Von Beling): para a qual, a culpabilidade consiste na relação psíquica
entre o autor e o resultado (CUNHA, 2015a).

- Teoria Psicológica Normativa (Reinhart Frank): segundo a qual


o dolo e a culpa seriam elementos da culpabilidade, e não espécies
(CUNHA, 2015a).

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Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

- Teoria Normativa Pura da Culpabilidade ou Extremada da


Culpabilidade (Hans Welzel): essa teoria migrou o dolo e a culpa para
o fato típico. Esse dolo estaria, contudo, despido da consciência da
ilicitude (CUNHA, 2015a).

- Teoria Limitada da Culpabilidade: foi a teoria adotada pelo


Código Penal Brasileiro. Essa teoria se diverge da teoria normativa
pura apenas no tocante à natureza jurídica das descriminantes
putativas sobre a situação fática(CUNHA, 2015a).

Assim, a falta de consciência de ilicitude configurada numa falsa


memória levaria ao erro de tipo, pois a falsa percepção da realidade,
pelo agente, afeta um elemento que integra o tipo penal (MIRABETE,
2002).

Ainda segundo a Teoria Geral do Crime, nas lições de CUNHA


(2015a), são dois os elementos que devem estar presentes para haver a
imputabilidade: o elemento intelectivo, que permite que o agente
tenha consciência do caráter ilícito do fato; e o elemento volitivo, que
permite que o agente tenha domínio sobre a sua vontade. Nas falsas
memórias estariam ausentes os dois elementos.

Nosso Código Penal define alguns critérios para que se esteja


diante de um caso de inimputabilidade: Critério Biológico, que
considera apenas o desenvolvimento mental do agente; Critério
Psicológico: para o qual apenas importa se o agente tinha capacidade
de entendimento e autodeterminação, independentemente de sua
condição mental ou idade; e Critério Biopsicológico, que leva em
consideração tanto a condição mental do agente quanto se este era
incapaz de entender o caráter ilícito de sua conduta.

156
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

É razoável, portanto, concluir que as falsas memórias ensejariam a


inimputabilidade do agente.

Para Queiroz (2008, p. 366),

A expressão doença mental deve ser entendida em sentido amplo,


a fim de compreender toda e qualquer alteração mórbida da
saúde mental apta a comprometer, total ou parcialmente, a
capacidade de entendimento do seu portador, como
esquizofrênico, psicose maníaco-depressiva, psicose alcoólica,
paranóia, epilepsia, demência senil, paralisia progressiva, sífilis
cerebral, arteriosclerose cerebral, histeria etc., pouco
importando a causa geradora de semelhante estado, se natural
ou tóxica (v.g.,uso de droga lícita ou ilícita), por exemplo.

Ora, se o agente não tem conhecimento de que o que ele fala é


falso, pois para ele é uma verdade, não estaria ele fazendo, de fato,
uma alegação falsa, que configuraria o crime de falso testemunho,
pois faltaria o potencial conhecimento da ilicitude, que é o segundo
elemento da culpabilidade.

Se, conforme a Teoria Geral do Crime, o crime é composto de três


substratos: fato típico, ilicitude e culpabilidade (CUNHA, 2015a),
diante de falsa alegação proveniente de uma falsa memória não
restaria configurado o crime de falso testemunho, por faltar elemento
da culpabilidade.

Além disso, não faria qualquer sentido a aplicação da pena


prevista no artigo 342 do Código Penal, pois, segundo a Teoria Geral
da Pena, no momento da sentença, o juiz há de observar as finalidades
preventiva especial e retributivas da pena. E, quando da execução da

157
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

pena imposta, ganharia relevo a prevenção especial positiva,


consubstanciada na ressocialização (CUNHA, 2015a).

Em se tratando de falsas memórias, portanto, não há razão de se


pretender a aplicação da pena em nenhuma de suas finalidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após fazermos todas essas ponderações, estudando desde os


aspectos gerais do Processo Penal, conhecendo um pouco de cada um
de seus princípios norteadores, fazendo uma abordagem mais
aprofundada no que diz respeito aos Princípios da Verdade Real e da
Inexigibilidade de Autoincriminação; após conhecer os meios de
prova admitidos em nossa legislação, sobretudo acerca da prova
testemunhal, e, tendo estudado, minuciosamente, o Crime de Falso
Testemunho e o fenômeno das Falsas Memórias, em nosso sentir,
outra conclusão não seria viável, à luz da Teoria Geral do Crime e da
Teoria Geral da Pena, que não fosse entender que o depoimento de
uma testemunha que resulte de uma Falsa Memória (compreendida em
seus aspectos psicológicos) não teria o condão de torná-la incursa nas
penas do Crime de Falso Testemunho; principalmente, em razão de
estar ausente uma condição sine qua non o delito não estaria
configurado, que é a consciência de sua ilicitude.

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158
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

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161
Eliandra Milhomem de Souza & Maria Edna de Jesus Dias

162
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

A MEDIAÇAO NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS


Por Eurípedes Lamounier & Rogério Adriano de Melo Silva

RESUMO: O presente artigo visa destrinchar sobre uma das formas de


resolução de conflitos e que pode auxiliar na construção de uma sociedade
mais livre justa e solidária, onde os próprios cidadãos possam efetivar a
justiça e a democracia: a Mediação. A mediação faz com que a sociedade aja
no sentido de evitar e solucionar conflitos, sem necessariamente depender da
morosa; e, às vezes, ineficaz, do Poder Judiciário. Desta forma, o presente
artigo tem como ponto inicial os Direitos Humanos, sendo estes o fundamento
para a prática de justiça, balizado no Princípio Constitucional da Dignidade da
Pessoa Humana. Ulteriormente, conceituaremos, faremos um breve histórico
da mediação no campo jurídico, bem como suas características, elementos e
benefícios. Finalmente, um breve comentário sobre a mediação no
recentíssimo Código de Processo Civil.
PALAVRAS-CHAVE: Mediação; Solução de Conflito; Novo Código de
Processo Civil.
ABSTRACT: This article aims to tease out of a form of conflict resolution
and can help build a freer society just and solidary where citizens themselves
can carry out justice and democracy: mediation. Mediation makes the society
to act in order to prevent and resolve conflicts without necessarily depend on
the time-consuming; and sometimes ineffective, the judiciary. Thus, this
article has as a starting point human rights, which are the foundation for the
practice of justice, marked the Constitutional Principle of Human Dignity.
Subsequently, we conceptualize, we will make a brief history of mediation in
the legal field as well as its features, elements and benefits. Finally, a brief
comment on the mediation in the very recent Code of Civil Procedure.
KEYWORDS: Mediation; Conflict Resolution; New Civil Procedure Code.

INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira é formada por uma quantidade enorme de


valores, por pessoas que têm objetivos diversos e, no convívio das
mais variadas pessoas e objetivos é que nascem os conflitos. Define-
se, de forma sucinta que os conflitos fazem parte dos relacionamentos

161
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

entre os indivíduos. Contudo, para que a coexistência em sociedade


seja conservada, os embates devem ser tratados de forma adequada.
Deste modo, o presente trabalho tem por finalidade conceituar e
estudar uma das diversas formas alternativas de resolução de
conflitos, qual seja, a mediação.

Com o fim da ditadura militar no Brasil (1964-1984), com a


consequente instalação do Estado Democrático de Direito, observou-
se uma grande ampliação de um sem número de demandas junto ao
Poder Judiciário. Esse crescimento, aliado às complexas relações
intersociais; contribuiu no sentido de se pensar se a jurisdição, com
suas deficiências e morosidade, seria uma aliada do povo, afinal o
Poder Judiciário, hodiernamente, não tem exercido a sua função
jurisdicional de forma eficaz e com eficiência.

Assim, a falência administrativa do Estado Brasileiro, no intuito de


satisfazer - em coadunação com os preceitos constitucionais – os
desejos da sociedade na solução dos conflitos direciona à edificação
do entendimento que os próprios conflitantes seriam legitimados para
solucioná-las, o que nos leva a meditar sobre o modelo jurisdicional
atual.

O Conselho Nacional de Justiça, por meio do seu programa Justiça


em números, nos informa que em 2014, a taxa de congestionamento
do Poder Judiciário foi de 71,4%, o que representa pequeno aumento
em relação ao índice de 70,6%, registrado em 2013.

Mais ainda, a quantidade de novos que aportam ao Poder


Judiciário aumenta a cada ano, contudo o ritmo de crescimento, que já
foi de 8,6% entre 2010 e 2011, tem diminuído. Em 2014, a Justiça

162
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

brasileira recebeu 28,88 milhões de novos processos, 1,1% a mais do


que em 2013. Entre 2012 e 2013 a elevação foi de 1,9%. Frise-se que,
uma das prioridades da atual gestão do aludido Conselho é o estímulo
às formas alternativas de resolução de conflitos, dentre elas a
mediação, afinal, a intenção é evitar o excesso de judicialização dos
conflitos e promover a paz social.

O índice de Atendimento à Demanda (IAD), o qual nos dá


capacidade do Poder Judiciário em dar vazão ao total de feitos que
foram protocolizados no ano anterior, no ano de 2014, foi de 98,7%; e
tem se mantido em torno deste patamar desde 2011, apesar das
mudanças legislativas e das metas instituídas. Como ainda está abaixo
de 100%, o índice mostra que o estoque de processos continuará
crescendo neste ano de 2016. Interessantemente, na Justiça de 1º grau,
o IAD dos processos em fase de conhecimento já é de 103,2%,
entretanto, na fase executória dos processos, um dos principais
entraves do Judiciário, o índice é de apenas 92,3%.

Sob a análise destes fatos, a mediação surge como um instrumento


que viabilizaria a diminuição das taxas de congestionamento do Poder
Judiciário, bem como um meio pelo qual a sociedade exerce sua
cidadania, visando a concretização de decisões consensuais e de forma
autônoma.

Somente a título de esclarecimento, a mediação é conduzida por


uma terceira pessoa; a qual, necessariamente, deverá ter um
comportamento neutro e imparcial, devendo este auxiliar os litigantes
na solução da lide. O instituto da mediação é formado, basicamente,
por três elementos, sendo estes, as partes, a disputa e o mediador.

163
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

Lado outro, a conciliação ajuda o Poder Judiciário evitando-se a


existência de um novo processo judicial. No âmbito desta, a terceira
pessoa, qual seja o conciliador, tem a faculdade, na forma direta, de
interferir no próprio acordo final, pois o objetivo é o entendimento dos
litigantes, independentemente da qualidade das soluções ou da
interferência na interpretação das questões. O conciliador, além de
aproximar as partes envolvidas, pode dar sugestões, bem como, dizer
desvantagens e/ou vantagens, sempre visando a resolução do conflito.

Por último, a arbitragem é o caminho alternativo de solução de


lides mais parecida com os julgamentos do Poder Judiciário. Contudo,
diferentemente do Judiciário que tem rito estabelecido na lei e as
partes não tem a escolha de participar ou não dos autos - afinal se a
parte citada não comparecer, poderá sofrer as consequências da
revelia, tudo nos termos do artigo 344, do CPC/2015.

Porém, diferentemente deste, na arbitragem as partes possuem


autonomia de vontade para decidir se irão participar ou não. Tendo em
vista que autonomia de vontade significa que as partes são livres para
criar suas obrigações, estas devem estar de acordo com a lei. Assim
sendo, os participantes que convencionarem a arbitragem, através da
livre e consciente manifestação de vontade, amparados pelo Princípio
da autonomia da vontade, terão o que for estabelecido entre eles como
algo obrigatório.

Transpostos os conceitos acima, a velocidade com que os fatos


chegam ao nosso alcance, bem como a velocidade da disseminação do
conhecimento, pelas mais variadas formas, escrita, televisiva e,

164
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

principalmente, pelas redes sociais; tem um forte fator de contraste


com a morosidade e burocracia do Estado Brasileiro.

Denota-se a prevalência dos interesses privados, e não do público;


no seio da atividade estatal, sendo que a soberania do privado, ainda
perdura na atualidade no processo político e administrativo brasileiro.
Importante dizer que a sociedade brasileira sempre procurou caminhos
alternativos para resolver seus problemas, fosse de forma litigiosa ou
consensual, afinal é do caráter humano não se conformar com as
situações da vida e lutar para que as mesmas sejam modificadas.

No sistema capitalista, principalmente na sua faceta neoliberal, o


indivíduo define-se pelo ter e não pelo ser, sendo o Estado o defensor
das propriedades e não das liberdades individuais.

O entendimento de Coutinho, em sua monografia A Prática da


Mediação e o Acesso à Justiça: por um Agir Comunicativo, nos
ensina, de forma interessante que:

Com este processo de globalização econômica e a inserção da


lógica neoliberal no Estado e, como dissemos, o ser humano
visto exclusivamente como sujeito-proprietário, tem-se um
aumento considerável dos conflitos e das ações distribuídas nos
tribunais. Ocorre que o sistema jurisdicional buscado pelo
sujeito de direito, para dar resposta aos seus conflitos, não
estava preparado e nem estruturado física, humana e
metodologicamente para o rápido e excessivo aumento da
demanda. Tornando-se ineficaz para a solução das lides.

Diante do fato da sociedade passar a buscar e exigir do Poder


Judiciário a resposta para seus problemas cotidianos, houve um forte
crescimento da quantidade de processos judiciais nos cartórios e

165
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

secretarias judiciais; os quais, geralmente, trabalham com déficit de


funcionários; o que gerou, dentre outras razões, as taxas de
contingenciamento dos feitos judiciais ano após ano.

Tendo em vista o aumento das demandas judiciais, bem como, a


ineficiência estatal para diminuir o volume de processos encalhados
nas prateleiras do Poder Judiciário, as mazelas do aludido Poder se
tornaram conhecidas da sociedade, tendo em vista sua desestruturação
e burocracia em vista de leis, ainda defasadas e mecanismos
ultrapassados de tramitação processual. Logo, o papel jurisdicional do
Estado, ou seja, de prolatar o direito dos cidadãos-jurisdicionados,
passou a ser cada vez ineficiente, moroso e insatisfatório, tornando-se
cada vez mais vagaroso, menos efetivo, trazendo a insatisfação no
meio social.

O presente artigo visa refletir sobre uma prática ainda pouco


utilizada no Brasil como meio de resolução de conflitos e que pode
auxiliar na construção de uma sociedade mais consciente de seus
direitos, onde os cidadãos possam vivenciar a justiça e a democracia:
a Mediação.

Deste modo, o presente artigo tem como ponto inicial os Direitos


Humanos como fundamento prático de justiça, em virtude do
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto nos artigos 1º, III,
da Carta Magna. Ulteriormente, faremos um breve relato histórico e
traremos o conceito jurídico da mediação, bem como, seus princípios
e características. Por fim, um breve relato da mediação no novo
Código de Processo Civil.

166
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

2. A MEDIAÇÃO E OS DIREITOS HUMANOS

O instituto da mediação e sua utilização no âmbito dos conflitos


sociais têm correlação com os Direitos Humanos; tendo em vista, na
vigente Carta Política Brasileira, constar a dignidade da pessoa
humana como um dos fundamentos da nossa nação. Nesse contexto,
Vasconcelos (2008, p. 53) assevera que a mediação de conflitos não
caminha à margem dos princípios jurídicos, mas fortemente ligados
aos Direitos Humanos. No mesmo sentido Sarlet aduz que,

(...) na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a


dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e que
não pode ser perdido ou alienado, porquanto, deixando de
existir, não haveria mais limite a ser respeitado (este sendo
considerado o elemento fixo e imutável da dignidade). Como
tarefa (prestação) imposta ao Estado, a dignidade da pessoa
reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de
preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promoção
da dignidade, especialmente criando condições que possibilitem
o pleno exercício e fruição da dignidade, sendo portanto
dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se
perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar ele
próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais
básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da
comunidade (este seria, portanto, o elemento mutável da
dignidade. (Sarlet, 2009. p. 52-53).

Deste modo, a aplicabilidade do instituto da mediação faculta ao


ser humano o fortalecimento da sua dignidade, proporcionando um
caminho alternativo para a solução dos conflitos sociais,

167
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

oportunizando um diálogo entre as partes envolvidas, dirimindo


anseios, problemas, dúvidas, ressentimentos, etc., resultantes de toda
lide; o que gera a pacificação no meio social em geral.

Com a aplicabilidade do instituto da mediação na solução do


conflito entre as partes, desta não sairão ganhadores ou perdedores,
mas se concretizará uma solução satisfatória, não sendo esta imposta
pelo julgador, mas encontrada e construída por para ambas as partes.

Deste modo, passa a ser possível o nascimento de um caminho


para se encontrar a solução de nossas questões corriqueiras – tendo
estas um imenso fator de influenciação nas nossas relações
interpessoais -, o qual será aplainado pelo diálogo, fazendo com que
as adversidades ocupem menos espaços no nosso cotidiano social.

3. CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA MEDIAÇÃO

De acordo com Lia Sampaio, “a mediação é um processo pacífico


de resolução de conflitos em que uma terceira pessoa, imparcial e
independente, com a necessária capacitação, facilita o diálogo entre as
partes para que melhor entendam o conflito e busquem alcançar
soluções criativas e possíveis”.

Comenta Vezzulla que:

168
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

[...] mediação é a técnica privada de solução de conflitos que


vem demonstrando, no mundo, sua grande eficiência nos
conflitos interpessoais, pois com ela, são as próprias partes que
acham as soluções. O mediador somente as ajuda a procurá-las,
introduzindo, com suas técnicas, os critérios e os raciocínios que
lhes permitirão um entendimento melhor. (1998, págs. 15-16).

O uso da mediação como caminho de resolver conflitos é utilizada


desde os primórdios da humanidade. A propósito, Rozane Cachapuz,
(2006. p. 64), assevera que sua existência remonta aos idos de 3.000
a.C. na Grécia.

Conforme Moore (1999), a mediação tem longa e efetiva prática


nas civilizações confucionistas, budistas, hinduístas, islâmicas, cristãs
e judaicas, além de muitas tribos indígenas.

A maioria quase absoluta dos mediadores, no começo, não tinha


treinamento e desempenhavam seus papéis, conjuntamente com outros
deveres e atribuições em seus respectivos meios sociais.

Somente no começo do século XX, de acordo com MOORE, o


instituto da mediação institucionalizou-se e desenvolveu-se,
profissionalizando-se de forma duradoura e eficaz. Vejamos:

Este crescimento deve-se em parte a um reconhecimento mais


amplo dos direitos humanos e da dignidade dos indivíduos, à
expansão das aspirações pela participação democrática em todos
os níveis sociais e políticos, à crença de que um indivíduo tem o
direito de participar e de ter o controle das decisões que afetam
a sua própria vida, a um apoio ético aos acordos particulares e
às tendências, em algumas regiões, para maior tolerância à
diversidade. (Moore, 1999, p. 34).

169
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

Na Bíblia Sagrada, constata-se a presença da mediação, conforme


se conclui da simples leitura do texto abaixo, litteris:

Se teu irmão tiver pecado contra ti, vai e repreende-o entre ti e


ele somente; se te ouvir, terás ganho teu irmão. Se não te escutar,
toma contigo uma ou duas pessoas, a fim de que toda a questão
se resolva pela decisão de duas ou três testemunhas.Se recusa
ouvi-los, dize-o à Igreja. E se recusar ouvir também a Igreja,
seja ele para ti como um pagão e um publicano. (Mateus 18:15-
17).

Conclui-se que, o instituto da mediação sempre esteve presente nas


mais remotas sociedades humanas, contudo somente a partir do século
passado é que esta passa a ter uma estruturação; sendo, a partir daí
utilizada pelos mais diversos países ocidentais, tais como Alemanha,
Bélgica, Japão, França, Inglaterra, EUA, dentre inúmeros outros.

Importante dizer que, no caso dos Estados Unidos, este país


somente aderiu à mediação visando o descongestionamento dos seus
Tribunais. Com relação ao acesso ao Poder Judiciário norte
americano, na visão de Rodrigues Júnior (2006, p. 67-68), este não é
conceituado como um “direito social”, mas, antes, como um problema
social, tanto que os meios alternativos de resolução de conflitos
passaram a ser objeto de ministrações de cursos básicos em
Faculdades de Direito. No âmbito do Poder Judiciário Americano, foi
criado um sistema de multiportas, ou seja, aos conflitantes são
oferecidas diferentes caminhos para solução de suas disputas. É,
previamente, realizado um diagnóstico do litígio; sendo,
ulteriormente, encaminhado por meio do canal mais adequado a cada
situação.

170
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

Assim, denota-se que a mediação judicial ou extrajudicial,


continua fazendo parte da história da humanidade. Com relação à sua
utilização, motivos à parte, os resultados de sua aplicabilidade,
principalmente no fator de trazer a paz social, mostram-se mais
eficazes do que os processos judiciais, tendo em vista a continuidade
dos liames pessoais e/ou comerciais que, eventualmente, possuam as
partes conflitantes.

No âmbito da legislação brasileira, o instituto da mediação teve


sua gênese com o Projeto de Lei nº 4.827/98, da Deputada Zulaiê
Cobra, tendo o texto inicial levado à Câmara uma regulamentação
concreta, conceituando a mediação e trazendo algumas disposições a
respeito.

Na Câmara dos Deputados, no ano de 2002, o aludido projeto foi


aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e enviado ao
Senado Federal, aonde foi autuado como PLC nº 94/02. Contudo, em
1999 uma comissão do Instituto Brasileiro de Direito Processual
(IBDP) elaborou um Anteprojeto de Lei sobre a mediação no processo
civil, sendo que mencionado anteprojeto foi amplamente debatido,
tendo sido elaborado um texto final.

O texto foi apresentado à Presidência da República, e tendo em


vista a existência do PLC acima constante, o Ministério da Justiça
realizou audiência pública, na qual estavam presentes a acima
mencionada Deputada, seus colaboradores, o IBDP e demais
organizações sociais envolvidas com o tema da mediação. Após
debaterem sobre os anteprojetos suso mencionados, foi elaborado um
texto consensual com a parlamentar acima constante e estabelecida a

171
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

estratégia de encaminhamento ao Senador Pedro Simon - Relator do


PLC, solicitando-lhe que o projeto de consenso fosse apresentado
como substitutivo. Entretanto, o Senador Pedro Simon apresentou
substitutivo inspirado no texto originariamente elaborado pelo IBDP,
com algumas alterações.

O Poder Executivo Federal, entretanto e ulteriormente à Emenda


Constitucional nº 45/04, apresentou quantidade considerável de
Projetos de Lei visando alterar o CPC/1973, o que gerou um novo
relatório do PLC nº 94/2002. Passado quatro anos, em 14.03.2006, o
relatório foi recebido e aprovado pela Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ) tendo sido prejudicado o projeto inicial. No dia 1º.08.06,
o mencionado projeto foi encaminhado à CCJC, que o recebeu em 7
de agosto, contudo o mesmo não mais tramitou, estando paralisado
desde abril de 2007.

No ano de 2009, o Sen. José Sarney, Presidente do Senado


Federal, convocou uma Comissão de Juristas, a qual seria presidida
pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça Luiz Fux, tendo a
finalidade de apresentar o novo Código de Processo Civil.

Em um exíguo tempo foi apresentado um Anteprojeto, logo


convertido em Projeto de Lei nº 166/10. Aludido PL foi submetido
reiteradas consultas e audiências públicas, recebeu um Substitutivo da
Relatoria do Sen. Valter Pereira, tendo sido votado e enviado à
Câmara, onde tomou o número 8.046/2010.

Na Câmara Federal o Projeto de Lei nº 8.046/2010, seguiu seu


tramite regular e foi aprovado, tornou-se a Lei nº 13.105/2015; e

172
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

entrou em vigor, conforme decisão do colendo Conselho Nacional de


Justiça, no dia 18.03. 2016

No novo CPC nota-se a presença da preocupação do legislador


ordinário com o instituto da mediação, o qual será analisado mais
adiante.

4. CARACTERÍSTICAS DA MEDIAÇÃO

No escólio de Gláucia Falsarelli Foley, a análise feita por


Schwerin é a mais completa, tendo em vista que a mesma reúne
elementos da mediação a partir das suas finalidades. Para este, o
instituto da mediação trata-se de um meio:

1. Apto a lidar com as raízes dos problemas;

2. Não-coercitivo;

3. Voluntário e permite aos disputantes resolverem seus problemas


por eles próprios;

4. Mais rápido, barato e igualitário;

5. Desenvolve a capacidade de comunicação entre os membros da


comunidade;

6. Reduz o congestionamento das Cortes;

7. Reduz as tensões na comunidade;

8. Não-burocrático e flexível;

173
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

9. Os mediadores não são profissionalizados, eles representam a


comunidade e compartilham os valores, não sendo estranhos aos
disputantes; e,

10. Um vínculo de empoderamento da comunidade e um estímulo


às mudanças sociais.

O instituto da mediação encontra-se totalmente na contramão do


sistema judicial, afinal este último é dialético, binário, com partes
conflitantes diante de um juiz, tendo como resultado final uma
sentença imperativa baseada na legislação vigente. Por outro lado, a
mediação tem como forma a horizontalidade, participação dos
conflitantes e o diálogo entre estes.

Diferentemente do sistema judicial, as partes não são submetidas à


uma sentença imperativa; mas propõem e aceitam as suas próprias
alternativas, visando o término do conflito e a permanência dos liames
entre estes. Tem-se que a sentença judicial põe fim ao processo, mas a
mediação põe fim ao conflito no meio social

A propósito, Walsir Edson Rodrigues Júnior, leciona que:

[...] só por meio da mediação é possível resolver os conflitos de


forma integral, pois os verdadeiros interesses das partes são
tratados de forma ampla e conjunta, graças à informalidade e
flexibilidade desse processo. Além disso, a mediação permite que
a criatividade seja utilizada na construção de soluções mais
satisfatórias para as partes. (RODRIGUES JÚNIOR, 2006. p.
91).

A utilização da mediação pelas partes conflitantes torna-os


independentes, bem como no meio social nos quais estão inseridos.

174
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

Deixam-se de lado as relações adversiais e passa-se a buscar uma


pacificação da sociedade, permitindo apurar os interesses concretos
dos conflitantes, bem como a solução total da lide existente

5. ELEMENTOS E BENEFÍCIOS DA MEDIAÇÃO

Para a concretização e o desenvolvimento da mediação três


elementos devem estar presentes, sendo estes: as partes, a disputa e o
mediador.

Como a função precípua do mediador é tentar pacificar os ânimos


dos conflitantes, facilitando o diálogo entre estes, visando que estas
cheguem à uma solução comum, pode-se concluir que o mediador não
precisa, necessiariamente, ser bacharel em Direito, ou possua
formação de nível superior. Deste modo, o primordial será a sua
habilidade na condução da mediação entre as partes, alcançando os
objetivos das suas atribuições.

Frise-se, que a principal razão da mediação é que os conflitantes


construam um acordo de forma voluntária e consensual. Neste ponto,
podemos dizer que a mediação tem, dentre outros, os seguintes
objetivos/benefícios, senão vejamos:

5.1. DIMINUI O CONGESTIONAMENTO DO JUDICIÁRIO

175
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

Com a utilização da mediação, mudam-se os paradigmas de uma


cultura de adversários para uma cultura aonde prepondere o dialógo.
Os conflitantes passar a resolver suas contendas de forma pacífica por
meio de diálogos. Deste modo, o que importa não seria ganhar o
processo, mas pacificar o conflito existente entre estes, utilizando-se
de meios viáveis para a continuidade e fortalecimento das relações
sociais.

5.2. CONSERVA O DIÁLOGO E OS LIAMES ENTRE OS


CONFLITANTES

A justiça concretizada nos Areópagos Pátrios tem como


característica ser litigiosa, sendo as sentenças prolatadas com base nas
provas constantes dos autos, tendo assim seus olhos voltado ao que já
ocorreu e não para o futuro, Foley, pontua que:

Não raro, os ‘clientes da justiça’ sentem-se excluídos do


processo conduzido por seus advogados, os quais fornecem
estratégias baseadas na interpretação da lei que e no interesse
imediato das partes. Muitos clientes ficam intimidados com a
formalidade do processo de adjudicação e sentem que não estão
aptos a participar de forma ativa. Trata-se da “advocacia
ritualística”, conforme denomina W. Simon, pela qual “os
litigantes não são os sujeitos da cerimônia, mas os pretextos para
ela. (2009, págs. 09-10).

Neste aspecto, o cidadão torna-se o senhor de todas as suas


relações, podendo assim se exteriorizar seus desejos, sonhos,

176
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

angústias, expectativas, etc.; tornando-se, assim, interlocutor direto


dessas mesmas conexões, sem necessariamente perder sua identidade
e relações com os demais integrantes da comunidade.

5.3. SOLUÇÃO DE CONFLITOS DE FORMA MAIS RÁPIDA

Com relação ao presente benefício, importante dizer que no


entendimento de Wald Filho (2010):

a principal porta de entrada do Judiciário continua bem


engarrafada. Na média dos Tribunais de Justiça estaduais, o
tempo esperado para a divulgação de uma sentença de primeira
instância ainda equivale a cinco anos, segundo dados divulgados
no relatório Justiça em Números 2009 do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ).

Barbosa, em seu famoso discurso para seus afilhados,


bacharelandos de 1920 da Faculdade de São Paulo, já nos admoestava:

Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e


manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador
contraria o direito das partes e, assim, as lesa no patrimônio,
honra e liberdade. (BARBOSA, Rui, 1999, pág. 40).

Consequentemente, a demora na prestação jurisdicional gera o


descrédito do Poder Judiciário perante a sociedade brasileira, o que
gera uma maior desigualdade nas relações interpessoais. Por outro
lado, com a mediação um processo idêntico pode ser solucionado,
dependendo da disponibilidade das partes, em curtíssimo espaço de
tempo.

177
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

5.4. REDUÇÃO DOS CUSTOS NA SOLUÇÃO DE UM CONFLITO

O Centro de Pesquisas sobre o Sistema de Justiça Brasileiro


(CPJUS) do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), divulgou
nos Tribunais de Justiça brasileiros, no ano de 2013, o custo médio do
processo era de R$ 2.369,73. A justiça estadual conseguiu os melhores
resultados: um custo médio de R$ 1.795,71. A pesquisa mostra
também que, no Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins, no ano
de 2013, o custo médio de um processo era de R$ 2.347,79
(RECONDO, 2015).

Tendo em vista o exíguo tempo de duração de um processo em


razão da presença da mediação, tem-se a sensível diminuição das
custas processuais, por não haver a presença do Estado, tornando a
paz social e a solução dos conflitos acessível às camadas mais
humildes da nossa população.

5.5. TORNAR ACESSÍVEL E INSERIR A COMUNIDADE NA


SOLUÇÃO DAS LIDES

A mediação propicia que a própria comunidade utilize e produza a


cultura e o conhecimento local, visando a elucidação dos problemas
que a afeta, emancipando e capacitando cada integrante seu. Para
Spengler,

178
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

Nestes termos, a mediação difere das práticas tradicionais de


jurisdição justamente porque o seu local de trabalho é a
sociedade, sendo a sua base de operações o pluralismo de
valores, a presença de sistemas de vida diversos e alternativos,
sua finalidade consiste em reabrir os canais de comunicação
interrompidos, reconstruir laços sociais destruídos. O que se
propõe é pensar a mediação não apenas como meio de acesso à
justiça, aproximando o cidadão comum e “desafogando” o
Poder Judiciário. Pretende-se “discutir/fazer mediação”
enquanto meio de tratamento de conflitos não só
quantitativamente, mas qualitativamente mais eficaz,
proporcionando às partes a reapropriação do problema,
responsabilizando-se por tais escolhas e jurisconstruindo1 os
caminhos possíveis. (2010, pág. 02).

Deste modo, a mediação torna a própria comunidade a


protagonista de seu próprio futuro, tornando prático a determinação
constitucional de que todo poder emana do povo que poderá,
inclusive, exercê-lo de forma pessoal.

6. A MEDIAÇÃO NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Diferentemente do seu antecessor (CPC/1973), o artigo 3º e seus


parágrafos do novo Código de Processo Civil/2015, induzem à
composição entre as partes mediante a boa-fé, cooperação, duração
razoável do processo, com vistas à satisfação de interesses de forma
justa e efetiva.

179
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

Por sua vez, o artigo 334, do mesmo diploma legislativo, assevera


que preenchidas as condições da ação e não for caso de improcedência
liminar do pedido, deverá o Juiz designar uma audiência de
conciliação ou de mediação, a qual deverá acontecer com
antecedência mínima de trinta dias, e a parte requerida ser
devidamente citada com, pelo menos, vinte dias de antecedência.
Deste modo, ocorre a existência da autocomposição como regra, salvo
o desinteresse dos conflitantes exarado de forma expressa:

Conforme prescreve o artigo 335 e seguintes do CPC/15, a


realização da aludida audiência de mediação não acarreta prejuízo
para o direito de defesa, bem como da contestação do réu, quando este
não puder estar presente ou mesmo não havendo acordo; e inclusive se
a audiência for cancelada

Outra mudança de paradigma no novo Diploma Adjetivo Civil é o


Amicus Curiae (art. 138 e seus parágrafos) como terceiro nos casos
em que o juiz ou relator considerar a relevância da matéria, bem como
a especificidade do tema objeto da demanda ou mesmo a repercussão
social do litígio no sentido de facilitar o trabalho do juiz e mesmo dos
envolvidos no processo o que demonstra a busca por uma cultura
democrática do próprio judiciário que se abre a sociedade
(OLIVEIRA SOBRINHO, 2015).

Neste mesmo norte, Bolzam e Santos em sua monografia A


mediação e a conciliação no novo Código de Processo Civil, aduzem:

Efetivamente, a autocomposição precisa assumir, no cenário da


resolução dos conflitos de interesses, o lugar que lhe pertence,
produzindo, assim, os resultados que de tais métodos se espera,

180
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

pois são ferramentas capazes de aliviar o número de demandas,


que asseguram um processo escorreito e, principalmente, trazem
efetiva pacificação social aos envolvidos na demanda – sejam
eles partes, advogados, servidores – e permitem ao Judiciário,
destarte, que se debruce sobre as causas que não comportem
transação, ou naquelas em que se afigure de fato inviável a
composição amigável.

Com a visão de incrementar uma cultura da paz e de solução


adequada de conflitos mediante a autocomposição, o novo CPC
determinou, nos termos do artigo 165, a criação dos centros de
solução consensual de conflitos onde serão realizadas audiências de
conciliação e mediação.

Consequentemente, ao incorporar-se a nova metodologia do


CPC/2015, os Juízes de Direito serão estimulados a encaminhar, caso
os próprios advogados das partes não peçam ao Poder Judiciário – que
os autos sejam remetidos aos Centros de Mediação e Conciliação,
antes mesmo da citação da parte requerida.

À medida que estas práticas sejam mais difundidas e utilizadas


pelos jurisdicionados, haverá uma sensível diminuição do volume
processual que adentra aos fóruns deste país, decrescendo-se o índice
de contingenciamento da Justiça brasileira.

CONCLUSÃO

No presente artigo científico chegamos à conclusão de que a


aplicabilidade do instituto da mediação é um dos caminhos mais

181
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

eficazes para a solução alternativa de conflitos, tendo em vista a


interatividade das partes envolvidas por meio de diálogo, o qual
restabelece as relações interpessoais, mantendo e fortalecendo os
liames entre as partes envolvidas.

Deste modo a mediação não visa somente o término do processo


judicial; afinal, na maioria dos casos os litigantes judiciais, não ficam
satisfeitos com o resultado da lide pouco importando o teor da
sentença judicial; já na mediação, as partes constroem a solução e
juntas chegam ao consenso e resolvem não só o processo, mas
igualmente a sua raiz, ou seja, o conflito.

O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana possui a


sua importância para a mediação, pois oferece ao litigante a
possibilidade de promover-se e construir seu próprio futuro, sendo
este fruto de suas escolhas e desejos. Importante dizer que na
preservação da dignidade da pessoa humana é demonstrada
veementemente no acordo final, o qual é fruto do processo de
mediação entre as partes conflitantes.

Tendo em vista os custos dos processos judiciais, bem como o


tempo decorrido para o término destes, na atualidade a mediação é
medida que se impõe, não apenas para diminuir a quantidade de
processos que abarrotam as prateleiras do Poder Judiciário, mas
também para se alcançar a pacificação social, sendo este um instituto
que deve ser aplicado de forma mais contundente tanto nas faculdades
de direito, como no vulgo, extirpando-se a distorcida visão de juiz,
partes e advogados, a qual muitos ainda enxergam como o melhor
caminho na solução dos litígios.

182
Eurípedes do C. Lamounier & Rogério Adriano B. de Melo Silva

Em boa hora o novo Código de Processo Civil inovou trazendo a


necessidade das audiências de conciliação e mediação; o que
certamente contribuirá para a construção de uma sociedade mais livre,
justa e solidária.

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188
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

FATORES PSICOLÓGICOS EXTERNOS


E A TOMADA DE DECISÃO
Por Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

RESUMO: O O ato de decidir envolve um complexo sistema psicológico,


lógico e valorativo do ser humano que pode sofrer influência externa. A
convicção do julgador deve ser formada a partir da lógica, razão e moral,
enquanto elementos de construção da decisão racional, de forma a afastar
qualquer influência externa. A maturidade, convívio social e a discrição do
julgador são ferramentas indispensáveis na busca pela decisão reconhecida e
respeitada pela sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Convicção do Julgador; Decisão Racional; Influência
de Fatores Psicológicos Externos.
ABSTRACT: The act of deciding involves a complex system of
psychological, logical and evaluation belonling to one that can be influenced
by external factors. The conviction of the judge should derive from logic,
reason and moral, as elements of construction of the rational decision, as
mean to avert any external influence. Maturity, social coexistence and the
judge´s discretion are indispensable tools in the search for the decision that is
recognized and respected by society.
KEYWORDS: Conviction of judge. Rational Decision. Influence of external
psychological factors.

INTRODUÇÃO

A tomada de decisão envolve um complexo sistema psicológico,


lógico e valorativo do ser humano que por sua vez estão propícios a
sofrerem influências externas no processo deliberativo.

A partir dos diversos modos de tomada de decisão analisaremos


aqueles que resultam da lógica, razão e dos valores morais,
desconsiderando os demais porquanto desprovidos de conteúdo
racional.

187
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

A lógica formal auxilia a tomada de decisão direcionando o


indivíduo para a busca da verdade por meio de um sistema racional de
regras, a partir de elementos objetivos e estruturantes, ao tempo em
que deixa a cargo da psicologia o estudo dos elementos subjetivos que
influenciam na convicção.

A ausência desta subjetividade no campo silogístico da lógica


formal prejudica a análise valorativa dos fatos pelo julgador,
proporcionando um ambiente adequado para o surgimento da lógica
jurídica.

A lógica jurídica orientada pela razão e preocupada com os


aspectos valorativos a incidir na convicção do julgador, atua na busca
pela decisão racional, considerando a insuficiência da estrutura
silogística da lógica formal para a resolução dos conflitos.

A moral como regra de conduta atua diretamente na convicção do


julgador, reafirmando conceitos de bem, mal, justo e injusto. Ela exige
um dever ser na conduta do julgador, de modo que a análise dos
elementos valorativos como produto do pensamento lógico é condição
para o surgimento das decisões racionais.

A decisão racional deve resultar da convicção do julgador formada


a partir do conhecimento decorrente do pensamento logico-racional e
de valores morais, de modo a afastar todo e qualquer fator psicológico
externo que atue influenciando o tomador de decisão.

A construção de uma decisão racional perpassa pelo grau de


maturidade do magistrado necessário para o enfrentamento de

188
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

situações complexas, bem como para obter a melhor interpretação


possível.

Argumenta-se ainda, sobre os efeitos decorrentes do isolamento do


magistrado com relação ao convívio social e a necessidade do mesmo
ter contato com a realidade e a cultura de cada lugar, a fim de valorar
o conteúdo moral, bem como para que suas decisões sejam
reconhecidas e respeitadas, sendo indispensável que suas ações sejam
sempre discretas e arraigadas de bom senso e equilíbrio.

Assim, a lógica, a moral e a ética agregadas ao conhecimento


multicultural do julgador sobre a psicologia, filosofia e tantas outras
ciências serão os parâmetros necessários para que o mesmo aplique à
hermenêutica ao caso concreto, ao tempo em que tais elementos se
apresentarão como manto protetor atuando contra as pressões internas
e externas.

1. OS MODOS DE TOMADA DE DECISÃO

O processo que envolve a tomada de decisão mostra-se bastante


complexo ao ponto de envolver todo o sistema psicológico, lógico e
valorativo do julgador, enquanto ser humano.

Estes, via de regra, não são racionais, visto que são pessoas
passíveis de incoerência, sentimentos e tendências que lhes tornam
eventualmente vulneráveis a diversos fatores externos que podem
interferir cabalmente no processo deliberativo inerente a sua função
jurisdicional de decidir.

189
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

Sobre a racionalidade do pensamento humano há que se ressaltar


que os indivíduos trabalham basicamente com (02) dois sistemas
psicológicos internos. O primeiro age de forma lenta, visto que
necessita de lapso temporal para analisar, avaliar e justificar
mentalmente o raciocínio a fim de subsidiar a correta tomada de
decisão. O segundo age por força do hábito fornecendo respostas
céleres e automáticas que dispensam o uso do pensamento racional.

As decisões não programadas que compreendem o primeiro


sistema exigem discernimento, intuição e criatividade que indicam a
impossibilidade de racionalidade integral no processo decisório face
ao caráter subjetivo das escolhas.

Os principais modos de tomada de decisão do ser humano ocorrem


por meio do instinto, crença subconsciente, crença consciente, valores,
intuição e inspiração. Abordaremos no presente artigo, apenas alguns
modos, superficialmente, sem a intenção de esgotar o tema, mas com
o propósito de realçar as formas de tomada de decisão que levam em
consideração a razão e os valores morais.

Na tomada de decisão por meio do instinto, a decisão se baseia na


experiência pessoal e a ação sempre antecede o pensamento de modo
que não ocorre pausa para a reflexão. A reação é meramente instintiva
e, portanto desprovida de carga racional.

A crença consciente é a típica tomada de decisão racional, visto


que nesta hipótese o pensamento antecede à ação do indivíduo que por
sua vez é controlada durante todo o desencadeamento do pensamento
humano. A decisão na crença consciente emana da própria experiência
de vida da pessoa. Utiliza-se a pausa entre o pensamento e a ação

190
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

como o espaço adequado para a atuação da lógica objetivando


construir um raciocínio que melhor se amolda à determinada hipótese.

BARRETT ao comentar sobre a incidência do pensamento lógico


na crença consciente, aduz que: “você cria uma pausa entre um
evento e a sua resposta a ele para que possa usar a lógica e receber
sugestões para determinar a melhor maneira de satisfazer as suas
necessidades”(2014, P. 199).

A crença consciente é uma tomada decisão que se ampara no


pensamento racional e lógico que conduz o tomador da decisão, de
modo a permitir uma pausa para reflexão e concatenação do
pensamento lógico.

A decisão baseada em valores exige prévio conhecimento do


julgador acerca do significado dos respectivos elementos valorativos,
a partir da crença que cada indivíduo possui sobre determinado objeto
a ser valorado. A decisão lógica não subsiste quando analisada sob a
ótica valorativa, eis que o julgador mesmo após exercer um
pensamento lógico sobre determinado tema, dificilmente atuará contra
seus valores.

BARRETT dissertando a respeito da decisão tomada em valores,


aduz que:

Não quero dizer com isso que não haja lugar para a tomada de
decisão baseada em crenças conscientes, tendo como referência o
pensamento racional e lógico. Há lugar para esse tipo de tomada de
decisão. No entanto, você irá rapidamente perceber que todas as
decisões fundamentais que você precisa tomar na vida devem passar
pelo teste de valores. Se uma decisão parece lógica, mas vai contra os
seus valores, você irá preferir não ir adiante (2014, P.200).

191
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

Os valores sobrepõem ao pensamento lógico, sendo que tais


decisões não são tomadas com base na experiência do passado, mas
sempre projetadas para o futuro a partir dos valores de vida inerentes a
pessoa do tomador de decisão.

Na tomada de decisão por meio da intuição o pensamento que


parece ilógico reflete a sabedoria de vida e os valores mais profundos
do ser humano. O pensamento surge de forma desarticulada e não
permite o seu controle por parte do indivíduo.

Ao comparar com a inspiração, BARRETT assim ressaltou a


respeito da intuição:

A inspiração é diferente da intuição. A intuição é não diretiva. A


intuição é uma ideia ou descoberta que surge de lugar algum em um
momento não determinado e que oferece uma solução ou pista para
resolver um problema que está em sua mente. A intuição pode ser
mais bem descrita como um momento Eureka, enquanto a inspiração
é mais bem descrita como o direcionamento necessário para
permanecer num estado de fluxo. (2014, P.201).

A intuição, que é formada pelo acúmulo de experiência se


apresenta como um sistema informal e ilógico, porém eficiente na
tomada de decisões. Ela proporciona rapidez na tomada de decisões
devendo ser aplicada de forma complementar aos métodos formais de
tomada de decisão a fim de evitar ao máximo possível o erro do
julgador.

A tomada de decisão baseada nas modalidades de crença


consciente e valores são as que mais se amoldam às decisões judiciais,
porquanto tais modalidades induzem o pensamento jurídico de forma
a conduzi-lo pelos caminhos da razão e da moral, motivo pelo qual
tomaremos como norte as decisões tomadas a partir da crença

192
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

consciente e dos valores, ressaltando fatores como a lógica, razão e


moral, enquanto elementos indispensáveis na tomada de decisão do
julgador.

2. DA LÓGICA FORMAL

Antes de adentrar à lógica jurídica introduzida pela nova retórica


de Perelman, mister tecer considerações propedêuticas sobre a própria
lógica sem a intenção de esgotar o assunto.

BUZAID, ao comentar sobre a origem e significado da lógica,


ensina que:

Etimologicamente Lógica, palavra de origem grega, significa razão,


estudo. Analisada pela visão do senso comum a palavra Lógica
assume conotação de coerência, de razoável. Assim a Lógica estuda
todas as técnicas e formas para distinguir um raciocínio correto de
um incorreto. (2010, P.41).

Ao contrário do que se pensa a origem da lógica não é o


pensamento de Aristóteles, mas Platão em sua dialética quando já
dispunha sobre lógica implícita. Todavia, somente a partir de
Aristóteles que o pensamento lógico ganhou contornos formais e
estruturantes.

BUZAID externa a grande preocupação da lógica com a


racionalidade, afirmando que: ‘‘Lógica é a arte de pensar. É um
sistema racional de regras para dirigir um espírito em busca da
verdade, que é seu objeto próprio e essencial’’. (2010, P.40).

193
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

A lógica é um sistema de argumentação racional que busca a


verdade preocupando-se com os elementos objetivos da
argumentação, enquanto a psicologia utiliza-se os elementos
subjetivos da lógica para alcançar a verdade. Ao discorrer sobre a
intenção da lógica formal, a doutrina de ALVES, esclarece que:

Assim, a Lógica é uma propedêutica à ciência. Não serve para


descobrir a verdade ou para inventar soluções de problemas, serve
apenas para ordenar o que já foi descoberto, dando-lhe coerência e
sistematização com vistas à justificação (demonstração) da verdade.
(2011, P.80/81).

A lógica formal preocupa-se com a coerência na condução do


raciocínio, não busca a verdade das proposições, mas tão somente as
condições formais ou estruturais que devem ser satisfeitas para a
configuração da verdade, de modo a se observar a racionalidade como
elemento estruturante do raciocínio.

Através do silogismo a lógica fixa as consequências de um fato


que diz respeito ao direito após a definição da premissa maior e menor
que resulta em uma conclusão.

No direito, a sentença deve ser clara e precisa, bem como


elaborada a partir de um raciocínio silogístico de premissas maior e
menor verdadeiras, para que a conclusão seja coerente. FERRAZ
JUNIOR, ao aplicar o silogismo no campo do direito observou a
seguinte relação:

Sendo toda decisão jurídica correlata de um conflito que a


desencadeia e de uma norma que a institucionaliza, a primeira
imagem que nos vem à mente é a de uma operação dedutiva em que:
(a) a norma (geral) funciona como premissa maior; (b) a descrição
do caso conflitivo, como premissa menor; e (c) a conclusão, como o
ato decisório stricto sensu (2011, p. 291).

194
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

Todavia, quando adentramos na seara jurídica o grande problema


do silogismo lógico é a ausência da subjetividade necessária ao
julgador na análise valorativa dos fatos. A lógica formal não
possibilita a subjetividade necessária ao tomador de decisão, visto que
preocupa-se apenas com os aspectos objetivos da estrutura de
argumentação, sendo que, inclusive, delega a psicologia o estudo dos
elementos subjetivos que formam a convicção do julgador. A estrutura
formal da lógica é insuficiente para a condução do pensamento lógico
apto a resultar numa decisão racional.

Assim, a ausência de subjetividade da lógica formal fez surgir uma


lógica jurídica voltada exatamente para o estudo dos valores,
conforme veremos a seguir.

3. LÓGICA JURÍDICA

A lógica jurídica pode ser entendida como a lógica formal aplicada


ao direito. Ela utiliza-se da estrutura formal da lógica tradicional para
aplicá-la ao pensamento jurídico, após o uso do pensamento racional.

BUENO, utilizando-se do conceito de PERELMAN em seu artigo,


assevera que:

A lógica jurídica é o conjunto de técnicas de raciocínios que


permitem ao julgador conciliar, em cada caso, o respeito ao direito e
a aceitabilidade da solução encontrada. As fontes do direito, tais
como postas em cada sistema jurídico, são o ponto de partida do
raciocínio do jurista, que tem como objetivo a adaptação dos textos

195
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

jurídicos às necessidades e às aspirações de uma sociedade viva, em


constante mutação.

A lógica jurídica tem por escopo o estudo das técnicas e razões


que permitem ao julgador tomar suas decisões e motivá-las, a partir de
raciocínio lógico-jurídico imparcial e independente, a fim de afastar as
pressões externas a que estão sujeitos aqueles que exercem o poder.

Ao contrário do raciocínio lógico-jurídico, o raciocínio


matemático não exige a honestidade e independência daquele que o
realiza, eis que a demonstração é puramente impessoal e de fácil
acompanhamento, porquanto exprime um resultado certo e
determinado, não cedendo espaços para análises subjetivas.

A lógica jurídica ao contrário da matemática pressupõe amplo


conhecimento da realidade através dos contextos sociais, políticos,
econômicos e históricos que subsidiarão o julgador na tomada da
decisão que por sua vez decidirá em consonância com a coerência e
segurança jurídica. Ela observa as consequências sociais da decisão e
o seu caráter de equidade, não esquecendo a necessidade de um
pensamento racional para justificar a resolução do conflito.

A resolução dessas situações conflitivas implica uma lógica


diferente da formal que se preocupe com a racionalidade do
pensamento, denominada por Perelman de lógica jurídica. BUENO,
ao tecer considerações a respeito da lógica jurídica, assim se
manifestou:

Em uma sociedade democrática, a segurança jurídica, o respeito


pelas regras e a busca da verdade, devem se conciliar com o respeito
à pessoa humana, com a proteção dos inocentes e com a salvaguarda
das relações de confiança, valores indispensáveis à vida em
sociedade. Tal preocupação, totalmente estranha à logica formal, faz

196
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

com que a lógica jurídica (a lógica da controvérsia) tenha como


objetivo o estabelecimento, caso a caso, da predominância de um ou
de outro valor.

A lógica jurídica mostra-se como uma forma de argumentação


apta a motivar as decisões conduzindo o julgador ao melhor
raciocínio possível na busca de encontrar um consenso entre as
partes envolvidas já que o direito tem por finalidade a proteção de
diversos valores que exigem a sua conformação em cada caso
concreto.

Chaim Perelman, o maior expoente da nova retórica,


desenvolveu uma argumentação lógica baseada na razão, sendo
que o auditório universal deve ser convencido por argumentos
racionais. A razoabilidade passa a ter contornos de fundamental
relevância a partir da nova retórica que começa a refutar os
argumentos desarrazoados, impondo-se no pós-positivismo
mediante raciocínios que visam estabelecer consenso sobre valores
quando estes são objetos de controvérsia.

Apesar da norma positiva já estar valorada, a atividade


judicante exige uma maior valoração em cada caso concreto
devendo o interprete através da argumentação jurídica eleger as
premissas que serão valoradas.

A nova retórica que se preocupou com o pós-positivismo


enfatiza a necessidade de um raciocínio de interpretação voltado
para os valores aplicado à determinada realidade. Por isso, a
irracionalidade das decisões foi a grande preocupação de

197
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

PERELMAN que para tanto introduziu o que denominou de nova


retórica, enfatizando a necessidade de julgamentos valorativos.

A doutrina de ABBOUD, CARNIO e OLIVEIRA, ao dissertar


sobre a preocupação externada por PERELMAN, dispôs que:

Para Perelman, o direito não é evidentemente a moral, mas na


prática, por não ser formalismo puro, importa a razão prática.(...)
Por insatisfação com a afirmação da irracionalidade da aplicação do
direito, Perelman elege como projeto teórico a ‘lógica dos
julgamentos de valor’, da qual nasce a nova retórica. (2014, p. 193).
A nova retórica introduziu a lógica jurídica dada a sua
preocupação em afastar decisões irracionais, voltando-se para a
necessidade de oferecer um pensamento lógico sobre o significado das
relações a partir de análises acerca dos valores intrínsecos constantes
na relação.

A lógica jurídica empenhada em enaltecer os significados dos


valores foi devidamente introduzida pela escola da nova retórica que
adequou o espectro normativo do direito positivo às relações sociais,
de modo a superar a lógica formal que limitava sua preocupação aos
aspectos estruturantes, não valorativos.

4. RACIONALIDADE

Toda e qualquer forma de saber e conhecer utiliza-se da razão


como meio adequado para a busca da verdade, sendo que a

198
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

sistematização do pensamento racional é o que denominamos de


lógica.
A respeito do objeto de estudo da razão, ALVES deixou claro em
que consistia:
(...). O estudo da razão, de modo mais estrito, do ponto de
vista da forma do pensamento e de seu uso no conhecimento,
ou como meio de chegar-se à demonstração da verdade, é o
que se chama Lógica. Seu objeto é o pensamento lógico’’.
(2011, P.80/81).

A razão encontra-se intimamente vinculada ao ato de


relacionar coisas e objetos e possibilita ao ser humano a descoberta
dessas relações que são projetadas a partir de um vasto número de
princípios de ordem lógica ou ontológica. Esta relação é responsável
por tornar a razão núcleo da própria natureza do ser humano que tem o
condão de ser o valor que exprime sentido aos demais elementos
valorativos, sendo ainda responsável por direcionar princípios de
correção do pensamento lógico.
Em sua obra, FERRAZ JÚNIOR esclarece sobre a força
diretiva da razão no que se refere à análise valorativa dessas relações
com ênfase para a correção do pensamento, onde ensina que:
A ideia de razão como relacionar preside, no desenvolvimento
do ocidente, o estabelecimento de diversos princípios de
correção, como os do pensamento correto (lógica), da
pesquisa correta (metodologia), do correto comportamento em
face de situações existenciais (prudência ou sabedoria
prática), da correta justificação das avaliações (retórica).
Nesse sentido, aos poucos, a razão acabou por tornar-se para
o homem uma espécie de núcleo de sua própria natureza
(animus rationale), um valor em si que incorpora a própria
dignidade da pessoa humana, não constituindo um meio para
obtenção de outros valores, mas o valor que dá sentido aos
demais. (2011, p. 329).

199
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

A razão é um valor que além de qualificar e imprimir sentido


aos demais é composta de uma carga de correção apta a canalizar
todo conteúdo do pensamento lógico.

A racionalidade e a irracionalidade exprimem, respectivamente,


um conceito de justo e injusto que norteou a elaboração da teoria
do discurso racional na busca pelo consenso, considerando a
insuficiência da metodologia jurídica tradicional em aplicar os
silogismos para resolução dos conflitos.

Ao abordar a racionalidade do que seja o justo, FERRAZ


JUNIOR destaca sua relação com a lógica jurídica que consiste em
interpretar a própria vontade do legislador, senão, vejamos:

No campo da argumentação jurídica, o tema da racionalidade na


identificação do justo chama atenção para o tema da lógica jurídica.
O tema ‘‘lógica jurídica’’ é normalmente associado entre os
operadores do direito a cânones interpretativos capazes de revelar a
intenção do legislador ou da vontade da lei. Essa visão guarda raízes
numa concepção tradicional que vê a lógica jurídica como ‘‘atividade
lógica’’, pressuposto da interpretação sistemática, teleológica,
histórica etc(2011, p. 291).

BRANCO, ao mencionar a teoria de ALEXY que prega a


racionalidade prática para resolução dos conflitos, descreve que:
Alexy desenvolve uma descrição estrutural do próprio Direito, em que
cuida de desvendar as características das normas jurídicas, situando
as como regras ou princípios, dedicando-se a retratar como se
aplicam essas normas (aspecto dinâmico ou ativo do Direito), com
respeito a necessidade de racionalidade prática, para que o processo
jurídico se legitime. Alexy elabora uma teoria da argumentação
jurídica que sirva de critério de orientação e de fiscalização da
racionalidade das decisões jurídicas (2009, P.159/160).

ALEXY entende que existem fatores que impedem a existência de


uma solução lógica na norma positivada, motivo pelo qual busca na

200
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

racionalidade o elemento valorativo apto a fornecer os parâmetros


necessários para o julgador tomar uma decisão, considerando a
insuficiência da lógica formal com suas estruturas silogísticas de
oferecer uma decisão racionalmente justificada.

As premissas valoradas devem ser fundamentadas racionalmente


sem a preocupação de fornecer uma única resposta correta, mas que
tal resposta seja obtida após uma deliberação racional desenvolvida,
de modo a afastar decisões de cunho irracionais.

Ao novamente citar ALEXY, BRANCO comenta a respeito da sua


teoria racional assegurando quanto sua propensão para restringir
decisões irracionais, vejamos:

A sua teoria efetivamente restringe o risco de decisões irracionais,


ainda que não forneça garantia plena de racionalidade das
conclusões que propicia. A decisão tomada não tem como não deixar
de incorporar um elemento de vontade, subjetivo. A deliberação não
será, porém, arbitrária ou desarrazoada, em virtude do modo como a
ela se chegou. (2009, p. 165).

A racionabilidade introduzida pela nova retórica de Perelman e


defendida por Alexy induz um pensamento lógico acrescentado de
uma análise valorativa dos fatos, a fim de justificar e dar sentido de
coerência ao processo deliberativo de tomada de decisão.

Assim, cabe ao julgador na construção de uma decisão racional,


além de exercer o pensamento lógico-racional, preocupar-se também
com a dimensão moral dos valores que conduzirão sua convicção em
busca da verdade durante o ato de decidir.

201
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

5. MORAL

O valor moral ganha contornos de alto relevo no direito, após a


constatação de que a norma positiva mesmo arraigada de moral, não é
suficiente para regular o convívio social.

A respeito do conceito e origem da moral, bem como seus


principais aspectos, DIMOULIS assevera em sua obra que:

A moral (do latim mores = modos de comportamento, costumes)


define-se como o conjunto de convicções de uma pessoa, de um grupo
ou da sociedade inteira sobre o bem e o mal. Sobre a origem das
convicções morais há várias opiniões. Dependendo da visão de cada
autor, a moral decorre da vontade de Deus, da necessidade do
convívio social, da reflexão humana sobre o justo ou mesmo da
propaganda dos poderosos. Todos concordam que a moral é
composta por regras de conduta que cumprem duas funções. Em
primeiro lugar, orientam o comportamento dos indivíduos na vida
cotidiana: todos devem fazer o bem e evitar a prática do mal. Em
segundo lugar, servem como critério de avaliação da conduta
humana. A sociedade as utiliza para julgar a conduta dos indivíduos,
que é aprovada ou reprovada segundo sua correspondência com os
imperativos morais. (2013, P. 53).

Sua origem decorre do latim mores que significa comportamento e


costumes, analisados sob a perspectiva de regra de conduta do
indivíduo.

A moral enquanto regra de conduta que orienta o comportamento


do ser humano encontra-se diretamente vinculada as convicções do
indivíduo ou de determinado grupo social acerca do bem e do mal, do
justo ou injusto, exigindo um determinado dever ser de cada pessoa.

A moral tem por finalidade ponderar e orientar o comportamento


humano, bem como a própria conduta do indivíduo no contexto social.

202
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

O valor moral do indivíduo pode ser entendido ainda como um


conjunto de valores existentes nas relações sociais adquiridos por
meio dos costumes com o objetivo de propiciar uma harmônica
convivência entre os seres humanos em um dado ambiente inserido
dentro de um determinado período histórico.

ABBOUD, CARNIO e OLIVEIRA, fazem questão de ressaltar


quanto à valoração moral afirmando que ‘‘(...) a moralidade, ou seja,
tudo aquilo que se amolda à moral, constitui-se como uma diretriz
comportamental que determina as atitudes e posturas de uma dada
sociedade, em um determinado período histórico’’. (2014, P. 150).

O contexto histórico é fundamental para compreendermos a moral


a partir do meio social em que ela está inserida, bem como para
entendermos a lógica de determinado comportamento humano,
sobretudo, analisar as mudanças dos sentidos morais de acordo com a
evolução histórica de determinada sociedade, considerando que a
moral se revela como resultado de específicos fatores sociais inseridos
em ambiente particular de uma determinada época.

Em que pese à existência de regras morais que não se encontram


inseridas no direito positivado, a moral e o direito constituem-se como
regras de condutas que apontam de forma inequívoca para um dever
ser.

Ao mencionar o entendimento de ALEXY sobre a complexa


relação entre o direito e a moral, especificamente, sobre a existência
de valor moral na norma positivada, ABBOUD, CARNIO e
OLIVEIRA, esclarecem que:

203
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

Robert Alexy defende a tese de que entre direito e moral existe


uma relação de complementariedade. A moral serviria, nesse
caso, como um parâmetro de correção do direito. Este
preservaria uma ‘‘autonomia relativa’’, na medida em que os
padrões de legalidade, conformidade com o ordenamento e
eficácia social, estariam mantidos, porém, na existência de
algum tipo de lacuna ou até mesmo em casos de evidente
injustiça, o discurso moral poderia corrigir o discurso
jurídico. (2014, p. 159).
Não obstante a tese da vinculação e da separação entre o direito e a
moral, a tese da complementariedade é a que melhor contempla a
relação entre os 02 (dois) sistemas, visto que a moral atuaria como
parâmetro de correção do direito sempre que houvesse lacunas da
norma positiva ou manifesto ato de injustiça.

A teoria de DWORKIN integra os princípios morais ao sistema


jurídico qualificando-os como princípios integrantes do próprio
direito, onde o direito seria um ramo da moral e desta forma haveria
uma interconexão entre os 02 (dois) sistemas.

BRANCO, ao dispor sobre o tema, deu ênfase ao posicionamento


de HABERMAS ao considerar que a teoria Dworkiana pregava que o
direito positivo era arraigado de conteúdo moral, ressaltando que:

Salienta Habermas a esse respeito que “a teoria dworkiana apóia-se


na premissa segundo a qual há pontos de vistas morais relevantes na
jurisprudência, porque o direito positivo assimilou inevitavelmente
conteúdos morais (2009, P.148).
É a síntese do pensamento Dworkiano a existência de princípios
supralegais de conteúdo moral que estão em patamar superior ao
direito positivo. Tais princípios morais atuariam diante da
insuficiência da norma positivada no que se refere à resolução dos
conflitos, agindo em busca de encontrar uma única resposta correta
para cada caso concreto, ao passo em que afastaria a hipótese de

204
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

diversas soluções ao caso e, conseqüentemente, ao forte


discricionarismo do julgador, enquanto tomador da decisão.

A teoria dos princípios supralegais de DWORKIN é criticada por


ALEXY para quem só seria possível chegar a uma resposta certa, caso
houvesse uma forma de hierarquizá-los, a partir de uma ordem
estabelecida de prioridades, onde cada princípio tivesse seu valor
previamente definido numa escala numérica.

Segundo ALEXY o mais importante é pretender que a sua resposta


seja a única correta. Assim, contribuiu com a elaboração de uma teoria
dos direitos fundamentais, conforme dito alhures, voltada para o
encontro de uma solução racional dos conflitos, apta a sopesar
diversos elementos de um sistema jurídico complexo composto por
regras e princípios.

A racionalidade defendida por ALEXY é complementada com a


necessidade de coerência ressaltada por DWORKIN, que por sua vez
foi delineada por BRANCO como:

O juiz age, na visão de Dworkin, de modo assemelhado. Deve ter


presente toda história jurídica da comunidade, suas leis e
expectativas, buscar compreendê-las e se voltar para o futuro,
construindo soluções coerentes. Essa coerência não dispensa a
dimensão da adequação, que impede interpretações sem nexo com a
história e o texto (2009, p.151).

A solução do conflito na ótica de DWORKIN passa por uma


análise dos fatos pretéritos de modo que a decisão seja
consequencialista ao se projetar para o futuro sem deixar de observar a
coerência de raciocínio.

O consequencialismo exige que além do domínio do conteúdo


moral, o julgador tenha conhecimentos sobre questões macros de
205
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

cunho econômico, político e social atentando-se para as consequencias


de sua decisão.

Assim, mais que o pensamento lógico e o uso da razão na arte de


relacionar os objetos, o julgador deve sopesar aspectos valorativos de
conteúdo moral para que suas decisões se tornem efetivamente
racionais, ou seja, fruto de um raciocínio lógico, fundamentado e
coerente para que seja utilizado visando o convencimento das partes.

6. DOS ELEMENTOS DE VALORAÇÃO NA DECISÃO

A tomada de decisão sempre foi relacionada às constantes


deliberações por parte do indivíduo que reafirmando uma escolha
afastam-se as demais preteridas. A decisão é ato de comunicação que
deve externar um discurso racional que tenha por finalidade a
conformação das partes envolvidas.

A atividade funcional do magistrado impõe diariamente a


necessidade de decidir frente às demandas judiciais das mais diversas
naturezas. A tomada de decisão é algo inerente à função jurisdicional,
visto que todo momento o julgador é obrigado a fazer escolhas e a
tomar parte em determinado processo decisório.

O julgamento é indissociável do processo mental de tomada de


decisão, visto que corresponde à própria ação em resposta ao
pensamento que tomou a decisão interna e se externou.

206
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

O julgador ao decidir utiliza-se do seu conhecimento técnico sobre


o assunto, valores, crenças, habilidades, pensamento filosófico e
ideológico, os quais guiam o sentido de suas decisões.

Podemos dizer ainda, que decidir é o ato de fazer escolhas sobre


um determinado assunto por quem se encontra na condição de julgar,
sendo que referida deliberação deverá ocorrer sem qualquer
interferência externa.

O Juiz deve ter a liberdade suficiente para fazer com


independência e imparcialidade a subsunção dos fatos à norma
positivada. Outrossim, deve construir um raciocínio lógico, a partir de
suas próprias concepções e valores que contribuirão para a formação
de sua convicção em prol de buscar a verdade ao caso concreto.

Ao decidir, o julgador deverá nortear sua convicção somente por


fatores psicológicos internos, a partir do seu conhecimento sobre a
norma positivada a incidir na relação, os aspectos valorativos
existentes, sobretudo, os de conteúdo moral e pela razão, enquanto
produto de um pensamento lógico-racional. Assim, a decisão racional
deve se manter livre e protegida de toda e qualquer incidência de
fatores psicológicos externos sobre a convicção do julgador, a
exemplo, de vaidade, religião, pressão política, mídia, relacionamento
social, insegurança, juizite, abuso de poder, emoção e imaturidade.

7. O MAGISTRADO E AS SUAS INFLUÊNCIAS

207
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

Todo magistrado carrega consigo uma carga de valores adquiridos


durante a vida seja os provenientes da família, da escola, dos amigos,
da sociedade onde cresceu, da sociedade onde vive enfim, são
aspectos externos que acabam influenciando o seu caráter e
personalidade e que fazem parte, indissociavelmente da sua vida e que
serão de suma importância para a tomada de qualquer decisão que
seja.

A capacidade de análise de qualquer questão passa,


necessariamente, pela questão pessoal e psicológica daquele que
decide, seja numa decisão administrativa, seja numa questão
gerencial, seja numa decisão jurídico-judicial. Esta herança ou
bagagem pessoal que se carrega é importante, ainda que se trate de
questões absolutamente objetivas, pois na análise de um caso concreto
deve-se levar em conta não só o aspecto material ofendido envolvido,
como também, os aspectos pessoais das partes que devem influenciar
para a tomada da decisão.

Um aspecto fundamental é a busca por um processo mais exato


possível para atender as garantias dos cidadãos, conforme DWORKIN
quando trata do fundamento político do direito. Esta busca vai da
capacidade de interpretação fundamental para que se possa atingir a
excelência nas decisões em busca da garantia plena visando “dar a
cada um o que é seu”, um dos princípios gerais do direito.

Nesta busca que vem a capacidade do julgador de que em


analisando o fato concreto e aplicando a lei, aplicar o princípio da
igualdade para ajustar a sua análise da maneira mais equânime
possível. Neste momento que nos vem à mente a magnífica frase de

208
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

Boaventura de Souza Santos que diz “Temos o direito de ser iguais


quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser
diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a
necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma
diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.”
É neste diapasão que se deve considerar um tratamento igual para os
iguais e desigual para os desiguais para que tenhamos a busca de uma
decisão mais exata e justa possível.

Dentro de todo este aspecto é que podemos verificar o que leva


uma pessoa a se tornar magistrado e até que ponto esta definição pode
influenciar na sua capacidade de julgamento. Saliente-se que os
magistrados de primeiro grau – todos – são concursados e, por isto,
são submetidos à prova científica e de títulos que os capacita a exercer
o cargo de Juiz, seja de direito, seja do trabalho, seja federal. Uns
prestam concurso por que entender ter o dom de julgar, outros pela
capacidade de solucionar conflitos, outros pela tranquilidade que o
cargo lhes proporciona com o salário e a inamovibilidade de
vencimentos e a vitaliciedade, outros ainda pelo simples fato do poder
que representa ser o Estado-juiz.

Dentre muitos aspectos, o concurso de provas e títulos foi o meio


mais eficaz para que chegar ao candidato mais qualificado e permitir,
desta maneira, que seja o mais independente possível na análise das
demandas que lhes couber analisar. Desta maneira, as provas tem sido
cada dia mais difíceis e voltada para aspectos meramente objetivos
que não permitem à banca do concurso conhecer o candidato para
definir o por quê da escolha da profissão e tampouco se tem ele a
maturidade necessária para analisar os casos concretos.

209
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

Em entrevista à revista Consultor Jurídico de 25 de outubro de


2015, o eminente Ministro João Otário de Noronha, do Superior
Tribunal de Justiça disse que “...Decidir é uma arte, é um
sacerdócio...” e fazendo uma comparação entre a entrada na
magistratura no Brasil e França disse que aqui muitos entram muito
jovens na magistratura e não possuem a maturidade necessária para
julgar causas complexas que dependem de conhecimento de mundo e
não só do jurídico e, em razão disto “...Ele precisa aprender a ser líder,
a decidir com segurança. O jovem precisa ser preparado, estudar
psicologia judiciária, aprender a medir a repercussão das suas decisões
no seio social”.

Todo este aspecto influencia e muito no que se vai aplicar da lei


quando da sua interpretação, pois não se pode aplicar uma
interpretação objetiva ou subjetiva individualmente, por que apenas
uma ou outra, não permite que se encontre o verdadeiro significado do
que se pretende interpretar e mais, a junção dos dois, não resiste a uma
interpretação a partir do caráter ontológico prévio do conceito de
sujeito e da desobjetificação provocada pelo círculo hermenêutico e
pela diferença ontológica.

Como o positivismo de Kelsen restringe a análise de fontes


solipsistas externas visando coibir a discricionariedade pela herança
positivista, a hermenêutica jurídica deve ser explorada
fenomenologicamente com base em textos e normas que criam um
ambiente interpretativo limitador para que não haja distorções ou
mesmo discricionariedade antidemocráricas conforme fala Lenio
Streck (2010, p. 163/164).

210
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

Cria-se aí uma forma de limite da jurisdição o mais perto possível


da exatidão para a aplicação de uma análise positivista ou pós-
positivista para se encontrar uma decisão constitucional,
principiológica e democrática.

Toda inovação deve ter um viés social que representa o momento


em que vive a sociedade e esta atualização não pode fugir às normas
de vigência, mas apenas todas factível a interpretação hermenêutica ao
cenário do momento para garantir a plena cidadania.

Conforme DWORKIN, a hermenêutica filosófica permite trabalhar


verdades hermenêuticas visando a busca de respostas corretas, sendo o
intérprete apenas um instrumento para a busca da mensagem correta,
ou mais correta possível da norma.

Como o direito é um eterno reconstruir, a interpretação da norma


vai depender sempre da maturidade do intérprete que vai adequar esta
análise à percepção da sociedade no momento histórico da
interpretação.

Portanto, é fundamental que o magistrado esteja preparado não só


sob o ponto de vista científico jurídico, mas também e especialmente,
sob o ponto de vista da maturidade pessoal para poder levar a cabo
uma decisão que atenda na maior exatidão possível o interesse das
partes de acordo com o momento temporal em que é prolatada.

Da mesma forma, o ilustre Desembargador José Renato Nalini,


fazendo uma análise da obra O juiz e a emoção: aspectos da lógica da
decisão judicial, da autora Lidia Reis de Almeida Prado, do alto da
sua experiência de décadas na magistratura diz que “Se os concursos
se preocupassem mais com o ser humano interessado em ingressar na

211
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

magistratura e menos com a possibilidade de decorar informações,


teria início a verdadeira reforma do Judiciário” e continua dizendo que
“Para julgar um ser humano, o juiz precisa ser cada vez mais humano.
O excesso de técnica pode ajudar a distanciá-lo desse ideal”.

Retrata ele a mesma preocupação do Ministro João Otávio de


Noronha em relação aos resultados dos concursos em que os
candidatos passam um longo tempo no preparo para as provas e, desta
forma, ficam longe da sociedade estudando para passar no concurso e
perdem a noção dos fatos quotidianos que os cercam, tendo uma pausa
na formação de sua personalidade e, muitas vezes do caráter, pois até
da família o candidato se isola para ter sucesso nos estudos e isto
atrapalha o seu “modo de ser” por atingir suas estruturas familiares.

A falta de atenção que pode haver neste momento de preparação –


muitas vezes um isolamento voluntário -, pode influenciar
negativamente o caráter do candidato. Esta falta de atenção a que se
submete o candidato pode trazer ou fazer imergir problemas
psicológicos que podem afetar a capacidade do julgador, pois como
teve um período de sofrimento profundo durante os estudos
(isolamento), pode passar a entender que se trata de um super-homem,
passando a ter ações arrogantes, sem entender que todo este esforço
deveria ser exclusivamente para atender aos interesse daqueles que
necessitam da sua atividade judicial para conseguir resguardar direito
material seu que foi atingido.

Muitas vezes, a impossibilidade de se ligar com este isolamento,


leva o candidato, já magistrado, a isolar-se da sociedade por achar que
é melhor que os demais, ou por medo de ser questionado de suas

212
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

decisões em eventos sociais. Esta imposição de poder a que é


acometido o magistrado, nada mais é do que um “ensimesmamento”
ocorrido pelo isolamento que, psicologicamente, acabou por macular
traços do seu caráter. Esta falta de relacionamento social traz, muitas
vezes, problemas para a interpretação da lei por desconhecimento dos
costumes locais que levam ao erro, pois embora sejamos um mesmo
país, os costumes regionais são bem diferentes entre o Rio Grande do
Sul e o Rio Grande do Norte. Fala-se a mesma língua e tem-se o
mesmo respeito pela lei e pela autoridade constituída, entretanto e só
para ficar em apenas um item, a diferença climática impõe costumes
totalmente diferentes aos cidadãos, e não levar isto em conta em uma
decisão judicial, poderia afastá-la da exatidão a que se refere
DWORKIN e que pretende a hermenêutica que deve ser adequada à
percepção de uma sociedade.

Dentro deste aspecto e conforme HART (2009. P.) para


interpretação das normas devemos sempre levar em consideração a
moral por que se trata de um direito natural ainda por que moral e
coerção coexistem, porquanto em cada decisão prolatada existe um
quê de ameaça.

A influência da moral sobre o direito é um dos pontos nos fatores


psicológicos que influenciam a decisão. A temporalidade e a presença
do magistrado na comarca é extremamente importante para a
compreensão da moral e dos costumes para a interpretação e aplicação
da lei ao caso concreto como já dito anteriormente. O conhecimento
do local, da cultura e tradições faz com que ele possa interpretar de
maneira mais adequada o caso concreto posto em julgamento.

213
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

A lógica aplicada na decisão deve ser formalmente clara para que


se tenha uma decisão objetiva no que diz respeito à interpretação da
lei. Estas técnicas jurídicas são importantes para que o universo
interpretativo tenha o limite daquilo que a lei permite ao caso
concreto, não podendo o julgador ultrapassar este limite, sob pena de
infringir princípios básicos do direito que garantem a igualdade dos
cidadãos que se socorrem do Poder Judiciário para resolver suas
demandas.

A aplicação objetiva deve ter como base ainda a moral do próprio


julgador, pois ela regula o comportamento dele em relação a seus atos
pessoais e, neste caso, em relação à hermenêutica por ele aplicada.
Este comportamento é o subjetivismo presente no livre
convencimento e também deve ser limitado ao que é posto pelas
normas e deve ser equilibrado com a objetividade legal para que se
possa aplicar ter um resultado que ao mesmo tempo resolva a questão
de direito e traga tranquilidade para a ordem social.

Indissociavelmente a isto é importante trazer a ética na analise das


decisões posto que, diante de tantas pressões externas e internas, é
nela que vai o magistrado se basear para conduzir os trabalhos de
maneira serena, conquanto ele, como ser de vontade está sujeito ao
amor, ódio, conhecimento e reconhecimento em todas as suas ações.

Amor e ódio caminham juntos já que se trata de questão


absolutamente emocional e que eleva sobremaneira a carga subjetiva
do magistrado como ser humano. Sabendo ligar com estas emoções tal
qual um eletricista trabalha com luvas para evitar os choques dos fios
desencapados, dá o magistrado o primeiro passo concreto para

214
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

resolver questões onde o equilíbrio e o bom senso devem ser o


primordial ponto. Esta capacidade profissional de tratar de causar
sensíveis (hard cases) e entender a aflição de cada um que procura o
judiciário para resolver suas pendências materiais que, muitas das
vezes, dizem respeito a questões absolutamente pessoais como guarde
de filhos, adoção depois de se ter passado um período com a criança
que se pretende adotar, ou seja, vai o magistrado tratar de questões
extremamente caras ao ser humano que se socorreu da sua decisão
para resolver problemas tão sensíveis sem, contudo, adentrar na seara
familiar ou pessoal da parte.

Este solipsismo é muito importante para o julgador por que ele traz
consigo na sua experiência de vida familiar, social e mesmo pessoal
que o permite ter a maturidade necessária para prolatar a decisão da
maneira mais exata possível, sem se comprometer de qualquer
maneira com o interesse das partes e sem se deixar levar pela
sensibilidade que o caso requer.

Passada esta parte emocionalmente sensível, vem a parte objetiva


que é o conhecimento que deve ter o magistrado para aplicar a
hermenêutica de maneira coerente e correta para atingir o objetivo de
decidir com o fim de social de resolver a questão colocada para
devolver a paz a contexto social que acabou distorcido em razão do
problema.

Neste ponto não podemos deixar de frisar que não basta ter o
magistrado um amplo e profundo conhecimento jurídico para atender
às demandas que lhe cabem decidir. Atualmente é necessário que
tenha conhecimento de psicologia, filosofia e tantas outras ciências

215
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

que lhe permitam examinar os casos de maneira multicultural,


retirando de cada base o necessário para o atendimento da maneira
mais exata possível, a fim de que possa ele entregar a decisão
satisfazendo não só a parte, mas todo o contexto social que lhe rodeia.

Obviamente que além do conhecimento como elemento objetivo,


temos ainda de volta um outro elemento subjetivo que muitas das
vezes atrapalham a atividade judicante em razão dos contextos
psicológicos que trazem este elemento: o reconhecimento.

Independentemente do que venha a decidir, o magistrado –


principalmente no interior que muitas das vezes é o único na comarca
– tem o reconhecimento e respeito social em razão de sua profissão,
muitas vezes pelo simples reconhecimento em si, outras por temor do
que possa a vir decidir, mas sobretudo pela sua capacidade de poder se
intrometer na vida das pessoas e decidir parte da vida delas que, por
sua vez, deverão reconhecer como “definitivo” aquilo que foi
decidido. Demos o destaque da decisão por que ela pode ser pelo juiz,
desembargador ou ministro e no momento onde houver a
irrecorribilidade desta decisão, deve o cidadão reconhecer como
correta a decisão, ainda que não lhe favoreça.

Embora deva o magistrado fazer parte da vida social para conhecer


a cultura, costumes e capacidade de entendimento de cada local,
buscando uma isonomia na aplicação da lei, deve ele ser
suficientemente discreto para que a autoridade de suas decisões não
sejam questionadas por atos e fatos pessoais. O juiz deve reconhecer o
tamanho da sua insignificância para aparecer somente na hora certa e
não dar ensejo a contestações de natureza pessoal. Existem apenas

216
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

dois momentos em que o magistrado aparece: o primeiro é quando ele


quer aparecer e daí é ruim para a magistratura como um todo,
porquanto ele aparece abusando de sua autoridade ou mesmo
praticando atos desnecessários e que o desvincula de sua atividade
judicante; o outro momento é quando a situação é tão grave que o
magistrado, dentro de suas funções e nos limites objetivos que já
falamos acima, aparece para resolver uma questão que está trazendo
desordem social e insegurança jurídica e, aí aparece ele para resolver
as questões postas.

No mais, deve o magistrado entender que este reconhecimento


social faz parte da carreira e que será sempre indissociável das
funções que ele exerce, devendo agir com prudência, cautela, sensatez
e sobretudo bom senso.

A vaidade que pode trazer este reconhecimento é muito prejudicial


não só ao magistrado, mas principalmente para a sociedade que passa
a ter um exemplo equivocado daquele que deveria apenas cumprir o
seu dever e entender que seu cargo é tão importante quanto o de um
professor de ensino fundamental a quem cabe educar e levar a cultura
ao futuro do nosso país. O magistrado, por trabalhar com os
problemas alheios, não é melhor que ninguém. Muito pelo contrário,
pois se tivéssemos educação, cultura, saúde e segurança pública, o
exercício da magistratura seria praticamente inócuo conquanto poucos
se utilizariam do Poder Judiciário para resolver suas questões, isto
obviamente numa sociedade utopicamente educada e equilibrada.

Outro ponto que deve ser levado em consideração é a religião a


que é ligado o magistrado, ou mesmo às partes, pois não pode ela

217
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

influenciar de nenhuma maneira nas decisões, principalmente se


levarmos em consideração o princípio da dignidade da pessoa
humana. Todo cidadão deve ser tratado com dignidade e qualquer
diferenciação que se faça acaba por ferir direitos humanos que tem um
caráter fundamental na apreciação de um fato concreto. As pressões
religiosas devem ser vistas com cautela, assim como pressões políticas
porquanto em ambos os casos busca-se a decisão em favor de poucos,
em detrimento do todo. A cautela do magistrado em relação a este tipo
de pressão deve ser sempre visando garantir a aplicação objetiva da
lei. Qualquer insegurança pode trazer sérios problemas à sociedade e
mesmo à magistratura.

Esta insegurança, muitas das vezes decorre da falta de


conhecimento técnico em relação à matéria a ser apreciada e muitas
das vezes em razão de segurança pessoal do juiz que vez por outra
abusam do poder ou mesmo tomam atos que não lhe cabem e que
muitos chamam de “juizite” e que devem ser censurados, pois afetam
a sociedade e a magistratura como um todo.

O equilíbrio é o ponto mais importante entre conhecimento


técnico, a capacidade de analisar as questões sem se nelas se envolver,
a certeza de que está julgando fatos e não pessoas, a sensibilidade de
que se está tratando com pessoas que estão sensibilizadas com a
questão e que devem ser tratadas com dignidade e que deve buscar o
julgamento mais exato possível para transmitir segurança jurídica ao
seu trabalho e segurança social à comunidade.

REFERÊNCIAS

218
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

ABBOUD, G., CARNIO, H.G.C., DE OLIVEIRA, R.T., Introdução


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BARRETT, Richard. A organização dirigida por valores, Campus,


1ª edição, Rio de Janeiro, 2014.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Juízo de ponderação na


jurisdição constitucional, São Paulo, Saraiva, 2009.

BUENO, Cássio Scarpinella. Considerações sobre uma lógica


jurídica. Disponível em
http://www.scarpinellabueno.com.br/Textos/Perelman1.pdf. Acesso
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BUZAID, Aidê. Introdução à lógica jurídica, São Paulo, Editora


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DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito,


São Paulo, Revista dos Tribunais, 5ª edição, 2013.

DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos


Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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Florianópolis: Edipappi, 2006.

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JÚNIOR, Tércio Sampaio Ferraz. Introdução ao estudo do direito,


São Paulo, Atlas, 2011.

219
Pedro Nelson de Miranda Coutinho & Reynaldo Borges Leal

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e


Outros Escritos. Trad. Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret,
2004.

STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude


positivista?, Revista NEJ – Eletrônica, vol. 15 – n.1 – p. 158-173 /
jan-abr 2010, disponível em :www.univali.br/periodicos

220
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

A RAZÃO E A EMOÇÃO NA DECISÃO JUDICIAL


Por Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

RESUMO: O presente trabalho apresentará, de forma sucinta, a incidência da


lógica e dos aspectos psicológicos na decisão judicial, sem a pretensão de
esgotar completamente o assunto, uma vez que o tema reclama um estudo
minucioso das diferentes possibilidades de aplicação da lógica, bem como dos
diversos fenômenos psíquicos capazes de interferir na tomada de decisões
judiciais. Seria o Direito um sistema lógico? A aplicação das normas a um
caso concreto seria puramente uma operação lógico-dedutiva? Seria o juiz um
sujeito desprovido de criatividade e de sensibilidade? Seria ele capaz de
abandonar todo o seu histórico de percepções ao tomar uma decisão? As
respostas a tais indagações se mostram de grande importância ante a grande
movimentação, em humanizar o direito. No decorrer do artigo, serão
analisados os conceitos de lógica e emoção, bem como sua importância e
pertinência na prestação jurisdicional. Serão abordados também assuntos
como a racionalidade jurídica e as diversas correntes existentes sobre a
interpretação jurídica. Constatou-se que, como qualquer indivíduo, o juiz é
suscetível a vários sentimentos, que por sua vez, são capazes de intervir em
suas decisões. A par da sabida ausência de neutralidade do julgador, deve-se
buscar sempre compatibilizar as emoções e a imparcialidade. Sendo, portanto,
imprescindível o autoconhecimento, no intuito de tentar se conscientizar
acerca da influência de suas crenças, valores e emoções em suas decisões,
promovendo o seu gerenciamento e controle.
PALAVRAS-CHAVE: Lógica; Psicológico; Decisão Judicial.
ABSTRACT: This paper will present briefly the influence of logical and
psychological aspects of the court decision, with no claim to completely
exhaust the subject, since the subject calls for a detailed study of the different
possibilities of application logic as well as many psychic phenomena able to
influence judicial decision-making. It would be a logical law system? The
application of the rules to a particular case would be a purely logical-
deductive operation? Would judge a man devoid of creativity and sensitivity?
Could he leave all his historical insights to make a decision? The answers to
these questions are very important show at the great movement in humanizing
the right. Throughout the article, the concepts will be analyzed logic and
emotion, as well as its importance and influence in the judgment. They will
also be addressed issues such as the legal rationality and the various existing
streams on the legal interpretation. It was found that, like any individual, the
judge is susceptible to various feelings, which in turn, are able to interfere in
their decisions. Besides the known lack of neutrality of the judge, should
always seek to reconcile the emotions and impartiality. It is therefore essential

219
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

self-knowledge, in order to try to reduce the influence of their beliefs, values


and emotions in their decisions.
KEYWORDS: Logic; Psychological; Judicial decision.

INTRODUÇÃO

Na concepção moderna de Estado, houve a separação em três


poderes, de tal modo que coube ao judiciário aplicar as leis aprovadas
pelo poder legislativo conforme as regras da Constituição Federal.

O judiciário na solução dos conflitos vale-se de um necessário


silogismo, cuja premissa maior é a lei e premissa menor são os fatos,
de sorte que assim o julgador realiza a subsunção dos fatos a norma,
formula sua ilação, prolata decisões. Ao julgar os conflitos ou as
pessoas nele envolvidas, determina se houve infração a lei, quem tem
razão e se alguém deve ser condenado ou não, deve fazer de maneira
elevada, imparcial e isenta.

Como intérprete da lei, cumpre ao magistrado atentar-se para o


percurso da sociedade que passa por inúmeras transformações, de
sorte que é imperioso ter em perspectiva essa dinâmica, dando vida a
lei, levando em consideração a letra da lei, as decisões anteriores dos
pretórios em casos iguais ou semelhantes, mas também os novos
arranjos sociais e os costumes vigentes.

Neste estudo foram agrupados diversos estudos sobre a lógica e a


influência de aspectos psicológicos nas decisões, alguns defendendo
que as decisões seriam fruto apenas da relação lógica entre o fato e a
norma, e outros afirmando que toda decisão sofre a influência de
aspectos psicológicos do julgador. Foram abordados também assuntos

220
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

como a racionalidade e a interpretação jurídica buscando apresentar as


diversas correntes existentes, explorando se a interpretação seria um
ato de conhecimento, um ato de vontade ou junção desses dois.

Não há dúvida que a lógica e o Direito estão interligados, mas para


grande parte das pessoas o Direito é uma manifestação meramente
lógica, onde cabe ao juiz, quando da aplicação da lei a um caso
concreto, deduzir com coerência de raciocínio a sentença, quando da
correta e adequada aplicação das normas relativas aos fatos.

A questão fática que se encontra para ser julgada implica na


correlação entre a lei reguladora e o fato concreto, de sorte que a
decisão judicial ganhe racionalidade e se sustente como produto
decorrente da lógica, como método dedutivo. O arcabouço normativo
reclama um encadeamento de normas, de tal modo que a norma
inferior encontra seu fundamento de validade na norma
hierarquicamente superior, parte-se da norma superior, mais abstrata e
abrangente, para uma norma inferior, esta de conteúdo mais restrito e
direto. Desse modo, tem-se que as normas estruturadas em forma de
pirâmide integram o ordenamento jurídico brasileiro e serão válidas na
medida em que se ajustarem entre si, se conformando umas com as
outras, notadamente com as normas da Constituição Federal.
(FREITAS, 2012)

Nesse sentido afirma Freitas (2012):

De acordo com esse modelo lógico-formal, o Direito, ou mais


especificamente, o raciocínio jurídico, seria construído a partir de
normas que se vinculam por inferência lógica, de sorte que seria
possível fazer-se um encadeamento racional das normas, desde uma
norma geral e abstrata, de hierarquia superior e na qual se fundam as

221
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

demais, até a mais concreta e específica, diretamente aplicável ao


caso concreto, formando-se assim uma pirâmide normativa cujo
ápice seria ocupado pela Constituição. Além dessa relação entre
normas, haveria também uma relação lógica de inferência entre as
normas e o fato posto em julgamento, de tal modo que a conclusão,
isto é, a sentença, seria o produto de um ato racional de aplicação
lógica.

No entanto, diversos estudos apontam que a sentença não se limita


a simplesmente a um juízo lógico, inclui também um juízo de valor,
pois o juiz é um ser que sofre a influência de seus valores e de suas
experiências, acabando por transmiti-los quando decide.

Os juízos jurídicos são juízos baseados em um conjunto particular


de valores, derivado de uma imensidade de processos a serem
decodificados, culturais, ideológicos, programáticos, psicológicos,
sociais, lógicos, funcionais e interpretativos. Esta coleção de fatores
evidencia a incapacidade de restringir a interpretação e aplicação do
Direito sistemas preordenados de lógica formal, com seus atributos de
impessoalidade, universalidade, autossuficiência e definitividade.
Toda e qualquer área do conhecimento que tem como objeto conduta
humana é suscetível à pessoalidade do estudioso, às limitações
geográficas, a insuficiência, pois interdisciplinar e mutável, diante das
próprias transformações sociais. (ALVES JÚNIOR, 2015)

O desafio constante do magistrado no cumprimento do seu dever é


afastar as vulnerabilidades, ter em perspectiva que como agente
político deve evitar o quanto possível de suas decisões, questões de
ordem pessoal, preconceitos, subjetivismos, convicções de ordem
moral, política partidária e religiosa, inerentes a todo ser humano;

222
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

atuando sempre com sobriedade e com serenidade, tendo como norte a


imparcialidade.

O monopólio da prestação jurisdicional deve conjugar


independência e imparcialidade. A condição humana da autoridade
não implica que seja fria e distante, mas que se evidencie a razão
concomitante ao controle das emoções, de forma a manter a influência
predominante dos aspectos psicológicos cognitivos ao sentenciar,
limitando as expressões sentimentais, uma vez que as decisões
judiciais não devem agasalhar interesses, subjetivismos ou valores
estranhos ao recorte fático.

No desate de interesses postos em julgamento, controvérsia entre


um conhecido e um indiferente, é necessária maior força de espírito
para dar razão a pessoa amiga do que para não lhe dar. É preciso
muito mais coragem para ser justo, correndo o risco de parecer
injusto, do que para ser injusto contanto que sejam salvas as
aparências da justiça. (Calamandrei apud Fontes, 1997, p. 203).

Não raro ocorre que o Juiz íntegro e dotado de elevado senso


moral, reprimindo de forma inconsciente uma inclinação pessoal a
favor de uma pessoa próxima ou com quem tenha algum vínculo, por
reação, acaba por adotar uma postura injusta, ao preocupar-se por
demasia em demonstrar imparcialidade, deixa de analisar com
equilíbrio o caso.

O presente trabalho busca maneiras de conciliar os valores,


experiências, subjetivismos e emoções com o dever constitucional de
imparcialidade do julgador ao decidir.

223
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

2. A LÓGICA

A lógica é uma subdivisão da filosofia que trata das normas do


pensamento racional ou da maneira de pensar de forma estruturada. O
sistema lógico é um conjunto de ilações e axiomas que tendem a
representar de maneira formal o raciocínio válido. Define como
pensar para evitar erros, fazendo uso da razão pelo método dedutivo e
indutivo.

A lógica formal, lógica clássica de Aristóteles é uma maneira de


pensar, de conhecer e de se organizar o raciocínio sem se considerar o
conteúdo, pois o raciocínio se baseia no relacionamento entre as
premissas e a conclusão, que no campo da lógica denominamos
inferência.

Fábio Ulhôa Coelho ensina que os lógicos não se ocupam da


veracidade ou falsidade da proposição, interessando-lhes apenas se o
argumento é válido ou não. Estudam, em outras palavras, as
circunstâncias segundo as quais se podem considerar lógico uma
inferência, ou seja, obediente aos princípios e regras do pensamento
lógico. Por esse motivo, inclusive, e para propiciar maior rapidez no
raciocínio, os lógicos desenvolvem uma linguagem exclusiva, uma
notação própria. Segundo o autor, como os lógicos não preocupam
com a verdade do que está sendo afirmado, acabam por dispensar os
mamíferos, asiáticos, Sócrates, ruminantes e tartarugas e adotam uma
ideia geral de “ser”, descrito por letras (A, B, C...). Então, o
argumento lógico ganha a seguinte maneira: Todo A é B; todo B é C;
logo, todo A é C. (COELHO, 1996)

224
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

Ressalte-se que os princípios referentes a lógica formal não estão


relacionados com fato do conteúdo da argumentação lógica serem
verdadeiros ou válidos. O argumento pode ser lógico, no entanto não
quer dizer que sua conclusão seja impreterivelmente verdadeira, que
corresponda à realidade. Ao contrário, a única garantia que o
raciocínio lógico apresenta é a de que, sendo verdadeiras as premissas
e válida a inferência, a conclusão será verdadeira. Ou seja, há duas
condições para que o raciocínio lógico nos leve à verdade: a
veracidade das premissas e a correção do próprio raciocínio. Desta
segunda condição apenas se ocupam os lógicos, já que da veracidade
das premissas cuidam os cientistas (biólogos, matemáticos, físicos,
sociólogos, psicólogos, etc.). (COELHO, 1996)

3. A LÓGICA JURÍDICA

A lógica jurídica estuda as maneiras racionais de justificar uma


proposição normativa, tanto via raciocínios dedutivos e indutivos,
atinentes a lógica formal, quanto via justificações baseadas na
analogia, na argumentação e na retórica.

Sobre o assunto, Karl Engisch (2001) afirma:


A lógica do jurista é uma lógica material que, com fundamento na
lógica formal e dentro dos quadros desta, por um lado, e em
combinação com a metodologia jurídica especial, por outro lado,
deve mostrar como é que nos assuntos jurídicos se alcançam juízos
"verdadeiros", ou "justos" (correctos), ou pelo menos "defensáveis".

A lógica jurídica trata-se de uma lógica de argumentação em que,


através do discurso, constrói-se a sabedoria jurídica, buscando a
justiça e a aceitabilidade das decisões judiciais.

225
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

Para Patrícia Silva (2015), a lógica jurídica é uma lógica


argumentativa, que se esforça em demonstrar a aceitabilidade das
premissas, cuja conclusão depende da ideia que os juízes e os
legisladores têm acerca de sua missão, do Direito e de como ele atuará
na sociedade.

4. A RACIONALIDADE JURÍDICA

Diversos estudos sobre o funcionamento do cérebro e da


mente começam a evidenciar que o homem desenvolveu
algumas predisposições inerentes e fundamentais a sua
condição humana, que estão codificadas em nosso cérebro,
exercendo uma poderosa influência na forma como sentimos,
pensamos e atuamos no mundo concreto.

Os resultados das pesquisas na área de ciências cognitivas e


neurocientíficas têm demonstrado que todo pensamento tem
correlação física no cérebro, e diferentemente do que pretendia
Descartes, não é possível separar, emoção e racionalidade,
espírito e cérebro.

Não podemos desconsiderar as espetaculares conquistas das


recentes pesquisas oriunda da neurociência e das ciências
cognitivas, sob a pena de deixarmos sem resposta indagações
determinantes inerentes à busca de modelos cognitivos e
emocionais que agem como fatores que condicionam a
racionalidade humana no trabalho de interpretação e aplicação
do direito, ou seja, não podemos ignorar os diversos fatores e
226
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

influências, inatos e adquiridos, que acabam por condicionar o


processo decisório.

Pode-se dizer que o pensamento está sujeito às emoções e


que devido às limitações da atenção e da memória a
racionalidade humana fica restringida, ou seja, não seria
possível decidir sem emoção e todas as decisões aparentemente
lógicas e razoáveis estariam corrompidas pela emoção.

5. INTERPRETAÇÃO JURÍDICA

Uma das grandes indagações no estudo do Direito é se a


interpretação seria um ato de conhecimento ou de vontade.

Para os racionalistas o homem é capaz de organizar a sua vida


social, emitir leis perfeitas, completas e harmônicas por meio da
razão, sendo capaz de criar um ordenamento jurídico sem necessidade
de retoques, fazendo com que os juristas apenas apreendessem o
conteúdo legal e o aplicassem aos casos concretos. Segundo eles, o
conhecimento do Direito Positivo ensejaria na verdade jurídica, sendo
que a interpretação seria considerada certa ou errada, dependendo se o
conhecimento do jurista é verdadeiro ou falso. Para os racionalistas o
juiz é um ser neutro, imparcial e escravo da lei.

Para os antirracionalistas a interpretação seria um ato de vontade,


que sofre a influência de diversos fatores tanto de ordem psíquica,
quanto política, social dentre outras. Eles consideram ser um ato de
vontade tanto do legislador quanto do aplicador o ato de criar normas.

227
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

Para eles a intepretação seria classificada como justa ou injusta e não


como verdadeira ou falsa.

O escritor Cyro Marcos da Silva afirma:

Julgar é sempre pensar (não se julga sem pensar, é o que se espera).


Não é porque julga ou porque pensa, que terá acesso garantido à
verdade. É estranho dizer isto, mas julgar e pensar não são
dependentes da verdade. Considerações de verdade não são aí levadas
em conta. Ora, um pensamento ou julgamento pode ser verdadeiro ou
falso. O engano está sempre por aí, valendo no julgamento, na
sentença, tanto quanto uma suposta verdade, isto é, valendo como
ficção. (SILVA, 2003, p. 75)
Já Kelsen, entende que a interpretação é um ato de
conhecimento e também de vontade. Nesse sentido são os
ensinamentos do Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul:

Kelsen põe os pés nestas duas posições, para dizer que a atuação do
jurista, enquanto jurista, corresponde apenas ao ato de conhecimento
da ordem jurídica, para estabelecimento do âmbito de execução da
norma aplicável. Como a norma superior é sempre mais ou menos
indeterminada, ou porque intencionalmente se quis deixar espaço
maior para o criador da norma inferior, ou porque inevitavelmente há
sempre uma margem de indeterminação, cabe ao jurista, na
interpretação da lei, estabelecer as diversas possibilidades decisórias.
Por conseqüência, a interpretação da lei não tem, necessariamente,
que levar a uma única decisão, como se só ela fosse justa ou reta, mas
a várias decisões, cada uma das quais (sob o ponto de vista da norma
que aplicam) possui um valor idêntico ao das outras, apesar de só
uma delas vir a ser Direito Positivo através da sentença judicial. A
escolha da alternativa já não é um ato de conhecimento, não encontra
nenhum fundamento no ordenamento jurídico, mas é um ato de
vontade. (AGUIAR JÚNIOR, 1989, p. 5)

O citado desembargador critica a Teoria Pura do Direito por


recusar ao jurista, por não procederem do Direito Positivo, qualquer

228
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

consideração em relação aos princípios éticos de bem ou de mal, de


justo e de injusto, pois na referida teoria o jurista e o Direito estariam
submetidos apenas ao ordenamento jurídico, que seria o único
parâmetro, luz e limite do pensamento jurídico. Assinala que tal teoria
teria caráter apenas ideológico, subordinando o jurista à vontade de
quem elaborou o ordenamento positivo, não a considerações sobre
moral, equidade, justiça e juízos sociais de valor.

O grande problema de não aceitarmos a influência de fatores


psicológicos na elaboração da decisão é vincular o intérprete ao
estreito caminho da lógica formal, o que pode desencadear decisões
absurdas e soluções práticas inadequadas e aberrantes. Corremos o
risco de esquecer que a lei é um instrumento para se realizar o justo e
que ela é um meio e não um fim em si. A lei é genérica e distante da
realidade do caso, sendo que as peculiaridades de cada caso só podem
ser conhecidas pelo julgador. Se desconsiderarmos os contornos do
caso, poderemos até garantir a segurança, mas provavelmente,
estaremos a negar a justiça, o que poderia se evitar se flexibilizarmos
o princípio normativo. (AGUIAR JÚNIOR, 1989, p. 17)

6. ASPECTOS PSICOLÓGICOS NA DECISÃO


JUDICIAL

Uma das questões enfrentadas pela psicologia judiciária está


relacionada ao juiz e a emoção, em que se busca ao decidir, o que
seria mais essencial, a razão ou a emoção, ou se as duas deveriam
estar associadas.

229
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

De acordo com Oliveira (2012), por muito tempo, no âmbito


jurídico, se ignorou a influência de mecanismos psicológicos no
processo decisório. Só há pouco tempo é que tem se aceitado a
influência dos aspectos psicológicos nas decisões judiciais, o que tem
apresentado também certa preocupação em relação a isso.

Existem diversos conceitos para definir o que é emoção, mas


iremos nos ater ao conceito formulado pelo neurologista e autor
português Damasio (1996) que define emoção como sendo uma
coleção de alterações, no corpo e no cérebro, como resposta a
conteúdos atinentes à própria percepção, reais ou lembrados,
relacionados a um determinado objeto ou acontecimento.

Por muito tempo a emoção foi totalmente ignorada no campo do


Direito. Acreditava-se que apenas a lógica deveria contribuir para a
tomada de decisão, no entanto, tal pensamento tem sofrido alterações
(OLIVEIRA, 2012).

Lídia Reis de Almeida Prado, como jurista e psicóloga, em sua


obra O juiz e a emoção: aspectos da lógica da decisão judicial,
conclui que há evidência de uma paulatina valorização da emoção na
tomada de decisão.

A referida autora esclarece que existem prenúncios de novas


configurações, novos modelos da justiça e do juiz, mais pertinentes a
atualidade, que passam a se abrir para a sensibilidade. A autora
acredita que tais transformações estariam anunciando os primeiros
sinais perceptíveis no Brasil, de uma lenta e gradativa comunhão entre
pensamento e sentimento no ato de julgar. (PRADO, 2010)

230
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

Durante um Congresso Nacional da Magistratura do Trabalho, o


ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, instigou
os juízes do Trabalho a pensar um novo humanismo, tendo por
fundamento o princípio de que o jurista pode fazer uma justiça melhor
se utilizar além da razão, dispositivos jurídicos com emoção. Segundo
ele: “o humanismo não se esgota no racionalismo porque ele também
comporta o sentimento”.

Assim, podemos observar que o judiciário começa a se abrir, a


aceitar e a reconhecer a existência e o valor da emoção na elaboração
de decisões judiciais, como forma de tornar a justiça mais humana.

Os juízos jurídicos são juízos de valor, uma vez que abrangem


questões de cunho moral e cultural em sua elaboração. O raciocínio
jurídico e as decisões judiciais não seguem esquemas determinados
anteriormente para sua elaboração, ou seja, trabalham com a coerência
visando a conformidade das normas às questões inerentes a cada caso.

Nesse mesmo sentido ensina Eduardo C. B. Bittar:

O ato de aplicar o direito sempre envolve uma complexa abordagem


da relação entre ser e dever-ser. Há aplicação em que existe o
tratamento conjugado do dever-se com o ser, de modo a que o dever-
ser torna-se ser. Em todo ato aplicativo interrompe-se a promessa de
que algo venha a ser, para que efetivamente o seja; na aplicação,
o dever-ser deixa de ser potência e torna-se ato. A norma em sua
aplicação, passa de seu estado letárgico, estático, adentrando ao
mundo do ser, no qual se insere com todas as problemáticas a ele
inerentes; sua natureza de dever ser, seu sentido neutro e impassível,
sua estrutura cristalina, sua perfeição apriorística, são apenas
momentos do sentido antes de sua revificação. Percebe-se que a
temática da aplicação envolve necessariamente a abordagem da
interpretação, pois não há aplicação sem interpretação. (BITTAR;
ALMEIDA, 2005, p. 507)

231
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

Embora não seja o único, um aspecto relevante nas decisões


judiciais é a personalidade do juiz. Sobre ela pesam a educação geral e
jurídica, os valores, as experiências, os aspectos intelectuais e
temperamentais. Afinal, o juiz, ainda que conhecedor do direito é um
ser humano, e como tal pensa, na grande maioria das vezes, sem fazer
uso do silogismo, partindo das conclusões para as premissas, estando
suscetível a emergência inelutável de diversos sentimentos quando
decide.

É em virtude da diferença de personalidade dos juízes, que a


uniformidade das decisões é tão difícil de ser alcançada, pois os
julgadores têm mapas mentais e emocionais também diferentes.

Há de se ressaltar também que os ideais de justiça presentes nos


julgadores estão relacionados com, além da aplicação da lei, à sua
moral e a decisão pelo que se mostra mais justo, é feita
subjetivamente.

Na escolha das premissas que sustentarão a sentença, os juízes


utilizam-se da intuição e dos sentimentos, valendo ressaltar que estão
incluídos na formação da intuição as normas, os princípios jurídicos e
as jurisprudências.

Frise-se que não se nega o valor do regramento jurídico, o que não


podemos é afirmar que a decisão judicial é fruto exclusivo do
silogismo, pois devemos levar em consideração a insurgência dos
aspectos psicológicos do juiz na produção da sentença.

O ato de julgar vai muito além da formação jurídica do julgador,


envolve inevitavelmente a personalidade do juiz e suas emoções.

232
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

Lídia Prado (2010) afirma que a sentença judicial, embora tenha


por base o conhecimento jurídico, constitui uma decisão como outra
qualquer. E, como ocorre em outras áreas do saber, lentamente
começa a se notar no direito a valorização da emoção no ato de
decidir, sem, contudo, desconsiderar a racionalidade.

Ressalte-se que, o fato da personalidade e das emoções do juiz


interferirem na decisão judicial, não quer dizer que o juiz dará uma
fundamentação psicológica ao caso, muito pelo contrário, é necessária
a fundamentação jurídica da decisão. A decisão precisa estar
amparada pelas leis e princípios jurídicos.

O jurista Cândido Rangel Dinamarco em seu livro A


instrumentalidade do processo, ensina que como a todo intérprete,
incumbe ao juiz colocar-se como canal de comunicação entre a carga
axiológica atual da sociedade em que vive e os textos, de forma que os
textos fiquem iluminados pelos valores reconhecidos e assim possam
manifestar a realidade da norma que contem no momento presente.
Segundo o jurista, o juiz que não assume essa postura perde a noção
da finalidade de sua atividade, a qual poderá ser exercida de maneira
bem mais cômoda, mas não corresponderá às exigências de justiça.
(DINAMARCO, 2009)

Dinamarco ainda afirma que aquele que, a pretexto de dar esta


interpretação evolutiva, pretender impor soluções suas
personalíssimas, decorrentes de suas opções políticas, crenças
religiosas, preconceitos, preferências etc., estará cometendo
ilegalidade e sua decisão não será legítima. (DINAMARCO, 2009)

Nesse mesmo sentido é o pensamento de Aguiar Júnior:

233
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

O Juiz não é servo da lei, nem escravo de sua vontade, mas submetido
ao ordenamento jurídico vigente, que é um sistema aberto afeiçoado
aos fins e valores que a sociedade quer atingir e preservar, no
pressuposto indeclinável de que essa ordem aspira à justiça. O
primeiro compromisso do julgador é com a justiça; estando ele
convencido de ser injusto o sistema, trazendo-lhe sua sujeição
inconciliável conflito de consciência, não há como exercer a atividade
operativa, porque toda aplicação que fizer será sempre uni modo de
efetivação do sistema. O intérprete não é um ser solto no espaço,
liberto de todas as peias, capaz de pôr a ordem jurídica entre
parênteses. Ele atua com a ordem jurídica, fazendo-a viva no caso
concreto. Inserido no ambiente social onde vive, tem o dever de
perceber e preservar os valores sociais imanentes dessa comunidade,
tratando de realizá-los. Sua atitude há de inserir-se no contexto
social, cujas idéias, valores e sentimentos não lhe é dado ignorar.
(AGUIAR JÚNIOR, 1989, p. 18)

Dessa forma, cabe ao juiz movimentar-se dentro dos limites


impostos pelo ordenamento jurídico, sempre amparado pela equidade,
pela analogia e pela razoabilidade.

O tomador de decisões seja ele de que área for, quando se permite


ser dominado pelos sentimentos e pela emoção, que são características
das funções psicológicas básicas e inconscientes, acaba por
comprometer a atenção, a percepção e o pensamento que estão
solidificados no desenvolvimento psicológico cognitivo, fazendo com
que o desempenho profissional fique comprometido. Da mesma
forma, quando o juiz não consegue se desvencilhar de suas
experiências, de suas emoções, a decisão judicial pode sofrer a
influência indevida dos fatores psicológicos primitivos e irrefletidos,
ficando, portanto, a decisão também comprometida.

Quando o julgador interpreta, sofre a influência de toda a sua vida,


de todas as experiências que ficaram gravadas em seu inconsciente,

234
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

podendo levá-lo a uma racionalização diferente daquilo que está sendo


interpretado.

Entretanto, os sentimentos, as emoções, as experiências não


excluem o compromisso do juiz de controlar-se emocionalmente, para
tornar possível expressar-se sem se contaminar pelas emoções
próprias e dos participantes. (FIORELLI; MANGINI, 2009).

Devemos ressaltar que a psicologia ‘sócio-histórica’, enfatiza as


emoções como organizadoras da ação, “toda emoção é um
chamamento à ação ou uma renúncia a ela. (...) As emoções são esse
organizador interno das nossas reações, que retesam, excitam,
estimulam ou inibem essas ou aquelas reações” (VIGOTSKY, 2004;
p. 139). O desenvolvimento da linguagem e do pensamento permitirá
que os afetos mais primitivos sejam controlados por meio da atividade
consciente. Assim, as funções psicológicas se expressam nas relações
sociais que a potencializem, a vontade é inicialmente social,
interpsicológica, para, aos poucos, tomar a dimensão intrapsicológica.
“Nesse sentido, o sentimento, o pensamento e a vontade – que formam
a tríplice natureza social da consciência – são historicamente
constituídos no contexto ideológico, psicológico e cultural” (MOLON,
2003; p. 94).

7. IMPARCIALIDADE X NEUTRALIDADE

Primeiramente, há de se distinguir no direito a neutralidade de


imparcialidade, pois os seus conceitos literais, os consideram como
sinônimos.

235
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

Imparcialidade é qualidade indispensável, é uma exigência ética,


onde o julgador dever estar desvinculado do interesse das partes. Já a
neutralidade significa que a sentença não possui valoração pessoal do
magistrado.

Para os racionalistas a atividade interpretativa seria uma atividade


neutra e imparcial, uma vez que o julgador se limitaria a compreender
o significado da norma e a conhecer o fato. Para eles a solução
jurídica estaria no texto da lei, cabendo ao magistrado apenas aplica-lo
ao caso.

Aguiar Júnior explica porque essa forma de interpretação é tão


enraizada, vejamos:

A persistência dessa idéia também se deve a um fator mítico,


que tem três faces: convém aos que elaboram a lei e impõem a
sua vontade dentro do Estado, fazer crer aos cidadãos ser ela
emanação da justiça e sua aplicação neutra e igual para
todos; o indivíduo tem necessidade de sentir-se seguro quanto
às conseqüências futuras de sua conduta, acreditando que a
regra geral, igualmente apreensível por todos, será também
aplicada ao seu caso; o julgador tranqüiliza seu espírito ao
convencer-se de que está apenas fazendo incidir a vontade da
lei, para a qual ele não contribui senão com sua participação
intelectual meramente operativa. (AGUIAR JÚNIOR, 1989, p.
8)
Podemos dizer que o juiz é imparcial quando decide segundo os
preceitos legais e constitucionais, respeitando os ditames normativos
como a ampla defesa, o devido processo legal, o contraditório e a
fundamentação das decisões. Quando ele formar seu convencimento
tendo por base os elementos apresentados pelas partes, após oferecer à
estas as mesmas oportunidades no processo.

236
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

A imparcialidade não pode ser separada do órgão de jurisdição,


sendo um imperativo indiscutível da ampla defesa e do contraditório.

Nesse sentido:

A fruição isonômica do direito ao contraditório e à ampla defesa re-


presenta uma das vigas mestras do processo, que permite às partes
declinar elementos de convicção idôneos, ou não, a suportar a
pretensão judicializada. Nessa perspectiva é que se desenvolve a
imparcialidade do Juiz, que, vinculado ao arcabouço normativo,
submete-se ao dever de promover a paridade de armas e a igualdade
de oportunidades, com vista à construção dos argumentos e do corpo
probatório; vigilante, contudo, em relação às manobras imorais e
antijurídicas, desnecessárias e protelatórias, absolutamente
indesejáveis na formação do seu livre convencimento político
(BARBOSA; PAMPLONA FILHO, 2011, p.262).

Cintra, Grinover e Dinamarco afirmam:

O juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as


partes, mas equidistante delas: ouvindo uma, não pode deixar de
ouvir a outra; somente assim se dará a ambas a possibilidade de
expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir sobre o
convencimento do juiz. Somente pela soma da parcialidade das partes
(uma representando a tese e a outra, a antítese), o juiz pode
corporificar a síntese, em um processo dialético. É por isso que foi
dito que as partes, em relação ao juiz, não têm papel de antagonistas,
mas sim de ´colaboradores necessários´: cada um dos contendores
age no processo tendo em vista o próprio interesse, mas a ação
combinada dos dois serve à justiça na eliminação do conflito ou
controvérsia que os envolve (CINTRA; GRINOVER; DINAMARCO,
1993, p. 53).

De tão importante que é, a imparcialidade tornou-se uma norma


universal, prevista em diversos documentos internacionais importantes
ratificados pelo Brasil.

237
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

A Declaração Universal de Direitos dos Homens, em seu artigo


10º, assim estabelece: Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a
uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e
imparcial, para decidir de seus direitos ou do fundamento de qualquer
acusação criminal contra ele.

Dispõe o artigo 26º da Declaração Americana dos Direitos e


Deveres do Homem: Toda pessoa acusada de um delito tem o direito
de ser ouvida em uma forma imparcial e pública, de ser julgada por
tribunais já estabelecidos de acordo com leis preexistentes, e de que se
lhe não inflijam penas cruéis, infamantes ou inusitadas.

Também o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, no


inciso I do artigo 14 estabelece: Todas as pessoas são iguais perante
os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser
ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal
competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na
apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela
ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil.

Em igual sentido, o Pacto de San José da Costa Rica, no artigo 8º -


Das Garantias Judiciais garante a imparcialidade: Toda pessoa terá o
direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo
razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e
imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer
acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus
direito e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer
outra natureza.

238
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

No Brasil, o Código de Ética da Magistratura, na busca pela


postura imparcial dos juízes, dedica um capítulo exclusivo à
imparcialidade. Vejamos:

CAPÍTULO III - IMPARCIALIDADE


Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a
verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo
de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo
o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição
ou preconceito.
Art. 9º Ao magistrado, no desempenho de sua atividade, cumpre
dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie
de injustificada discriminação.
Parágrafo único. Não se considera tratamento discriminatório
injustificado:
I - a audiência concedida a apenas uma das partes ou seu advogado,
contanto que se assegure igual direito à parte contrária, caso seja
solicitado;
II - o tratamento diferenciado resultante de lei.
(BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Código de Ética da
Magistratura Nacional).

Segundo a regra da imparcialidade ou alheabilidade, o juiz não


pode ter interesse pessoal em relação às partes litigantes e nem pode
auferir proveito econômico do litígio. A decisão proferida pelo
magistrado deve ser isenta de pressões de qualquer ordem.

Como ensina Rui Portanova, o juiz sempre será imparcial quando


não tiver interesse no julgamento, mas sendo o juiz humano é óbvio
que possui algum tipo de valoração, no entanto, esta não deve
atrapalhar ou beneficiar quaisquer das partes. (PORTANOVA, 1999).

A atuação do juiz tem como condição básica e essencial a


imparcialidade. Assim, o juiz jamais deverá tomar uma posição, não
deverá favorecer nenhuma das partes. Dessa forma, a imparcialidade

239
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

pode ser vista como um direito fundamental do cidadão, o qual tem


direito a ter um juiz independente e imparcial.

A imparcialidade é fundamental para que se tenha um processo


justo. É essencial que o magistrado seja imparcial, sob pena de se
retirar toda a legitimidade de sua decisão.

Já quando se fala em neutralidade, está se falando de


subjetividade, de ideias, raciocínios e comportamentos do indivíduo
enquanto ser humano.

No âmbito jurídico, o julgador não cumpre o papel simplesmente


de observador, ele exerce uma atividade interpretativa, atuando como
verdadeiro agente político ao dar o direito utilizando-se de critérios e
escolhas determinadas. Por isso, não podemos falar em juiz neutro,
pois, por mais que cumpra as exigências legais relativas a
imparcialidade, falta-lhe objetividade. E as suas decisões serão
carregadas de percepções construídas tendo por base sua vivência
pessoal.

Nesse mesmo sentido:

Representa-se escolarmente a sentença como o produto de um puro


jogo lógico, friamente realizado com base em conceitos abstratos,
ligados por inexorável concatenação de premissas e consequências;
mas, na realidade, no tabuleiro do juiz, as peças são homens vivos,
que irradiam invisíveis forças magnéticas que encontram
ressonâncias ou repulsões ilógicas, mas humanas, nos sentimentos do
judicante. Como se pode considerar fiel uma fundamentação que não
reproduza os meandros subterrâneos dessas correntes sentimentais, a
cuja influência mágica nenhum juiz, mesmo o mais severo, consegue
escapar? (CALAMANDREI, 1995. P. 175-176, apud, BARBOSA;
PAMPLONA FILHO, 2011, p.251).

240
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

Desta forma, enquanto o julgador pode e deve ser imparcial,


entende-se não ser possível alcançar a neutralidade, uma vez que o
indivíduo tem seu caráter e personalidade formados por princípios
subjetivos, sendo que o juiz, ao proferir uma sentença não consegue
abstrair seus valores, suas convicções e suas crenças, por serem
atributos inerentes ao ser humano.

O magistrado enquanto órgão do Poder Judiciário tem o dever de


imparcialidade, devendo se declarar suspeito ou impedido quando
tiver interesse próprio ou de alguém muito próximo, a quem se
vincula em razão de amizade, inimizade ou parentesco.

Nada obstante a reclamada imparcialidade, é complicado sustentar


sua neutralidade, pois é um ser humano singular, dotado de
sensibilidade, de experiências próprias, e de uma racionalidade
sabidamente associada a seus valores culturais e convicções de ordem
ideológicas.

O escritor Cyro Marcos da Silva também entende que o ideal de


neutralidade se mostra uma utopia:

Ao julgar, o juiz que sempre só julga em causa alheia, não tem


como escapar da sua própria causa, da sua própria história de
vida, de suas questões particulares, da ética do inconsciente
como texto. Em cada juiz, como em cada um de nós, um Édipo é
convocado perante o enigma de uma esfinge. Daí a
neutralidade, decantado o ideal, será um ideal impossível.
(SILVA, 2003, p. 84)
Não há como se sustentar a existência de um julgamento
genuinamente objetivo, desprovido de valores subjetivos.

241
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

Assim, temos que neutralidade e imparcialidade não podem ser


confundidas e que é possível o julgador mesmo não sendo neutro, ser
imparcial, cumprindo assim, sua obrigação legal.

8. AUTOCONHECIMENTO

Para que as decisões sofram o mínimo de influência possível dos


fatores psicológicos inconscientes, é necessário que o juiz tenha
autoconhecimento. Ele deve ser capaz de identificar aquilo que é
passível de interferir no processo decisório. Apenas por meio do
exercício da autorreflexão poderá buscar o controle das influências
psicológicas nas suas decisões, se conscientizando de cada um dos
fatores influenciadores.

Com o objetivo de se alcançar o autoconhecimento o juiz deve


fazer um profundo mergulho na sua própria história, buscando
reconhecer tudo o que possa de alguma forma interferir em seus
julgamentos, uma vez que a capacidade de julgamento da realidade
exterior é diretamente dependente de como é o juízo crítico de cada
ser em relação ao seu mundo interior. Sendo que esse juízo crítico
depende de diversos fatores, tanto conscientes quanto inconscientes.

Ao controlar o seu dinamismo psicológico, reconhecendo e


direcionando o que é absorvido pelos sentidos, o juiz conseguirá
alcançar o equilíbrio para proferir suas decisões, tal tarefa não trata

242
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

simplesmente de proceder a extirpação de seus próprios sentimentos e


emoções, mas antes do reconhecimento de sua história e da tomada de
consciência acerca da importância das dimensões emocionais de sua
própria existência humana.

O juiz deve buscar não se deixar influenciar pelos sentimentos e


emoções que foram despertados, muito embora, em seu íntimo, ele já
tenha firmado sua opinião e posição pessoal. Esse manejo não é fácil e
requer uma boa preparação, experiência e um alto grau de equilíbrio
mental, para que possa ser bem discriminada sua perspectiva
individual daquela exigida no contexto.

David Zimerman sustenta que o magistrado deve, para melhor


proferir sua decisão, desenvolver a capacidade de conter dentro de si
as angústias e sentimentos que lhe foram despertados no processo.
Segundo o autor, é importante que o juiz faça uma dissociação útil do
ego e manter bem separados o homem que tem plenos direitos e toda
ordem de sentimentos e o profissional que deve manter sua
neutralidade, disponibilidade e um verdadeiro interesse na sua função
(ZIMERMAN; COLTRO, 2002b).

Frise-se que não se pretende aqui que o juiz seja um indivíduo


desprovido de emoções ao julgar, muito menos se espera que o juiz
abandone a racionalidade do direito, o que se pretende é que seja
equilibrada a manifestação da razão e emoção, ambas interligadas e
indissociáveis.

Como já dito anteriormente, o juiz ao interpretar, inicia sua análise


com uma compreensão condicionada às suas experiências, portanto,
deve se esforçar para tentar se conscientizar de sua própria

243
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

subjetividade, de forma a permitir que profira sua decisão, o tanto


quanto possível, trabalhando com os limites da influência dos aspectos
psicológicos sobre o julgador (OLIVEIRA, 2012).

Sabe-se que os acontecimentos do mundo e as normas jurídicas


exercem influência sobre nós através da interpretação que fazemos,
assim, não se mostra exagerado afirmar que se conseguirmos
administrar de maneira adequada nossas interpretações, irá direcionar
e controlar o processo de aplicação do direito.

Concluindo, o juiz, para decidir, além de conhecer o ordenamento,


deve conhecer a si mesmo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por muito tempo, acreditava-se que razão e emoção não poderiam


caminhar juntas. Acreditava-se que o juiz deveria ater-se apenas ao
silogismo jurídico, afastando qualquer elemento que pudesse levar a
subjetividade na aplicação do direito, entendendo-se que o
distanciamento da emoção nas decisões garantiria um julgamento
mais acertado.

Com o tempo, passou-se a perceber que o juiz, não seria capaz de


se despir de suas experiências, de suas vivências e de suas crenças ao
decidir e que, portanto, razão e emoção estão sempre presentes na
decisão.

244
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

Diversas correntes existem em relação a interpretação jurídica.


Uma afirma ser a interpretação um ato de conhecimento, outra um ato
de vontade, e outra ainda, mais flexível e aparentemente mais sensata,
que entende ser a interpretação um ato que abrangeria tanto o
conhecimento, quanto a vontade.

É necessário reconhecer o valor do regramento jurídico, pois


cumprem uma função relevante. No entanto, não podemos afirmar que
o direito efetivo elaborado pelos tribunais seja absolutamente fundado
em conclusões retiradas das normas, devendo também considerarmos
a influência da personalidade do juiz nas tomadas de decisões.

Não podemos dizer que apenas são sensatas as decisões


meramente racionais, pois a razão e a emoção se misturam, e não é a
existência de emoção que retira a sensatez da decisão. Além disso, o
julgador deve saber que quando proferir uma decisão, não estará
utilizando apenas da razão e, portanto, não estará sendo neutro,
simplesmente por ser humano e passível de ser ‘atravessado’ por seus
sentimentos e emoções. Aspectos cognitivos e emocionais constituem
parte da mesma dinâmica psíquica, ordenadora dos pensamentos,
reflexões e das deliberações humanas.

Pode-se concluir que o juiz, por mais racional que pretenda ser ao
julgar, se encontra implicado visceralmente no emaranhado de seus
sentimentos e emoções, sendo, portanto, praticamente impossível se
atingir a neutralidade, onde as tentativas frustradas e ilusórias de
racionalizar as influências decorrentes de nossas convicções, valores,
tradições e sentimentos. Somos sujeitos a diversas determinações
inconscientes que acabam por moldar nossa percepção sobre o que é

245
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

apresentado de forma que a nossa subjetividade é transferida, mesmo


que involuntariamente, para as nossas decisões.

O fato de considerar a neutralidade inatingível, no entanto, não


retira do julgador o compromisso com o autocontrole e o
autoconhecimento, exercícios estes que devem ser desenvolvidos em
prol de uma decisão, buscar ao máximo o distanciamento dos fatores
emocionais, que nem podem ser totalmente controlados, tomando
consciência disto, é menos grave do que simplesmente agir sem
aceitar a influencia dos aspectos psicológicos sobre o julgador, pois é
a partir desta ciência das próprias emoções que se evitará os
preconceitos seus nos julgamentos, para que se tome medidas justas e
sem arbitrariedades.

Prolatar decisões é muito mais do que a atividade mecânica e


técnica de aplicar a lei ao caso concreto, a valoração dos fatos
percorre caminhos profundos da mente humana, numa trajetória
singular, com reflexões complexas que não raro nem o próprio
julgador é capaz de refazer toda a trilha.

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249
Jocy Gomes de Almeida & Manoel de Farias Reis Neto

250
Kathia Nemeth Perez

CONSIDERAÇÕES PSICOLÓGICAS SOBRE AS


“RAZÕES” EMOCIONAIS DA DECISÃO JUDICIAL
Por Kathia Nemeth Perez

RESUMO: A questão pertinente à investigação dos aspectos psicológicos, no


contexto da atividade judicante, especificamente no procedimento da tomada
de decisão judicial, engendra múltiplas explorações conceituais e exames das
práticas jurisdicionais. Nossas considerações abarcam os processos psíquicos
conscientes e inconscientes relacionados ao exercício da magistratura, no
intuito de analisar as relações entre a racionalidade e a emoção na arte de
julgar. O referencial sócio histórico de Vygotsky e o psicanalítico de Freud,
foram utilizados no presente estudo, como abordagens teórico-metodológicas
da Psicologia, através de alguns apontamentos acerca das emoções como
manifestação indissociável das funções psicológicas básicas, que engendram o
pensamento e a linguagem, a construção da subjetividade e a partir desses
pressupostos procedeu-se a análise e exploração de trabalhos que pesquisaram
magistrados acerca das emoções e razões jurídicas e legais pertinentes ao seu
trabalho, analisamos as dimensões sociais externas e a importância da
interioridade, que abriga as dimensões inenarráveis do inconsciente, instancia
psíquica que se insere nas atitudes e proposições mais racionalizadas, as quais
não podem ser ignoradas e nem desprezadas no intuito de obter decisões
comprometidas com a justiça e isentas de arbitrariedades.
PALAVRAS-CHAVE: decisão judicial; psicologia e psicanálise; psicologia
sócio histórica; razão e emoção.

INTRODUÇÃO

O propósito do presente trabalho implica numa reflexão acerca da


ampliação do nível subjetivo e pessoal inseridos na demanda da
psicologia do indivíduo, para um contexto de direitos e de limites da
atividade social em face da necessidade de intervenção jurídica.

Quais as implicações dos limites entre a atitude racional e as


emoções? Seria possível discriminar os motivos emocionais daqueles
de ordem racional e lógica, e separar as emoções da nossa
racionalidade? Há tempos a Psicologia se posiciona acerca da

249
Kathia Nemeth Perez

importância dos aspectos emocionais e racionais como os


componentes intrincados nos processos de desenvolvimento
psicológico que abrangem a formação da consciência, o sistema
cognitivo e o desenvolvimento da inteligência. Portanto, nos
processos de subjetivação não separa emoção da razão, mas uma
existe em função da outra, bem como observamos evidencias das
emoções como elemento privilegiado da formação de conceitos, da
racionalidade e do desenvolvimento psicológico.

Nesse sentido, para Vygotsky não se separam dos aspectos


psicológicos a emoção, a lógica e a racionalidade, os três
componentes engendram os processos psicológicos superiores,
mediados pelo pensamento e pela linguagem (VYGOTSKY, 2001). O
autor discorda da proposição e defesa de uma abordagem das emoções
compreendidas como resquícios de distúrbios ou vícios, restos da
suposta origem ancestral e primitiva de animais, rompe com a ideia de
origens ancestrais e primitivas das emoções, como se fossem
exclusivamente do campo biológico e disfuncional, com tendência ao
desaparecimento e à involução, destaca Magliolino (2010: 57-58). Há
uma preocupação com a natureza psicológica das emoções, onde se
afirma que ela assume uma característica ativa com uma função e
lugar no psiquismo, o de organizador interno das nossas reações, que
se mantém com o seu papel de orientador dinâmico interno das nossas
condutas (MAGLIOLINO, 2010 apud VYGOTSKI, 2004: 139).

As emoções seriam parte intrínseca do psiquismo e este se compõe


em funções cognitivas e afetivas circulantes na estrutura cerebral.
Portanto, as emoções não podem ser vistas numa dualidade cartesiana
do ponto de vista da Psicologia sócio histórica e tampouco da

250
Kathia Nemeth Perez

psicanálise, que não compactua com a concepção filosófica da divisão


mente-corpo. Tanto é que as expressões linguísticas de Freud
destacam os “mecanismos mentais”, sua concepção ontológica e
filosófica é fundada numa visão monista, que recusa a existência de
duas substancias distintas, a matéria e o espírito, mas de modo
paradoxal o autor vai optar por um “dualismo”, se opondo ao reino do
uno, que enfatiza a estabilidade sem tensões, do não conflito, do
conflito concebido como não essencial e neste sentido, vamos
encontrar em sua obra um apreciável conjunto de dualidades no nível
teórico-conceitual, como o princípio do prazer/princípio de realidade,
processo primário/ secundário, inconsciente/consciente, pulsões de
vida e de morte (MEZAN, 2002; LOUREIRO, 2002). Freud concebe a
exploração dos contrastes e heterogeneidades que o monismo tende a
diluir e eliminar e se interessa por manter a especificidade do
psíquico, seguindo os pressupostos da ciência do seu tempo, na
explicação dos fenômenos em geral, incluindo o fenômeno humano,
nesta ordem de fatores afirma sua convicção de que a psicanálise é
uma Ciência Natural (FIGUEIREDO, 1999).

Essas considerações que se interpõem no campo epistemológico


das ciências psicológicas reafirmam apenas alguns dos enfoques das
Psicologias e justificamos que no presente trabalho vamos discorrer
acerca dessas conceituações sobre as emoções em interação com os
imperativos da razão permeada no campo jurídico.

Ao dispor desses pressupostos, temos em vista investigar as


contribuições da Psicologia no contexto da atividade judicante, com
foco nos estudos psicológicos e jurídicos, processos psíquicos
conscientes e inconscientes relacionados ao exercício da Magistratura,

251
Kathia Nemeth Perez

que pretende explorar os conceitos da psicologia da consciência e o


inconsciente, abordados pela psicologia sócio histórica e a psicanálise
na mediação interacional entre o sujeito e o contexto social.

2. OS ASPECTOS PSICOLÓGICOS NAS RELAÇÕES DA


RACIONALIDADE E A EMOÇÃO NO EXERCÍCIO DAS DECISÕES
JUDICIAIS.

A psicologia dispõe de variadas facetas teórico-metodológicas e


vamos abordar a discussão do binômio razão e emoção, no campo da
psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), mais especificamente na
análise de textos sociológicos e básicos; bem como exploramos a
psicologia histórico-cultural de Vygotsky, pensador russo que viveu
entre os anos de 1896 a 1934 e deixou um consistente legado para a
Psicologia e áreas afins com vastas pesquisas que inserem os estudos
da neuropsicologia até os postulados da psicologia social
contemporânea (VYGOTSKY, 2001). Este autor defende o
desenvolvimento das emoções a partir da interação dos indivíduos
implicados na história humana e da sociedade, onde o papel dos
mecanismos biológicos é adaptativo, argumentando sobre o impacto
de processos cognitivos e linguísticos que afetam o nível orgânico e a
subjetividade. Discorda da abordagem organicista das emoções e esse
embate oferece visibilidade ao esforço para superar as dicotomias que
marcam o modo de pensar cartesiano. Outro ponto relevante nesse

252
Kathia Nemeth Perez

debate, ao qual Vygotsky se dedicou, é a compreensão da consciência


humana e sua relação com a emoção.

Para a confrontação da pertinência dessa tese, quanto ao papel das


emoções como a organizadora das ações humanas, observamos ao
longo da análise de entrevistas realizadas com Magistrados no
trabalho de Melo (2016), que são muitos os motivos que levam ao
trabalho de gestão de suas emoções, fundamentando que as emoções
fazem, realizam, vejamos a citação do relato de um dos entrevistados
nessa pesquisa:

Eu, por exemplo, quando julgo, eu procuro me interpretar. Pra


interpretar o fato que é posto à minha apreciação eu procuro
antes me interpretar: ‘Eu tou sendo aqui o quê: racista, sexista,
machista?’ Eu acho que esse é um exercício que um juiz que quer
atuar dentro desse marco da democracia, da legalidade
democrática, ele deveria se preocupar. É obvio que isso dá mais
trabalho (...). Quando você passa a pensar na sua própria
atuação, é óbvio que você tem uma carga de angústia que
aumenta. A reflexão te leva às vezes a ficar deprimido pelo que tá
acontecendo, que você tá julgando. Isso tem uma carga que não é
legal pro intérprete, uma coisa que fica pesada para trabalhar.
Seria muito mais fácil julgar de uma maneira em termos
eichmannianos, como Eichmann, né, uma coisa sem pensar, ir
fazendo o que tá posto ali e reproduzindo aquelas injustiçazinhas
sem o menor tipo de reflexão. (op. Cit. MELO, 2016: 2)

Em vista do relato apresentado em epígrafe, considera-se a


identificação das representações sociais do Magistrado como aquele
que tem o dever de refletir sobre a sua atividade, mas
simultaneamente deve afastar-se de todo e qualquer contágio com os
seus próprios aspectos psicológicos, em especial as emoções que
possam influenciar suas decisões, pois os mesmos devem manter a

253
Kathia Nemeth Perez

clivagem, permeando uma suposta neutralidade na perspectiva da


lógica racional.

A reflexividade no trabalho é identificada como aquele elemento


que faz a diferença: faz parte das representações sobre o ‘dever ser’
do Magistrado. Seria desejável possuir uma mentalidade capaz de
pensar profundamente, de modo complexo, possuindo um empenho
interpretativo para bem desempenhar sua função. Considerando serem
pouquíssimos sujeitos que atentam a essas prerrogativas, o Poder
Judiciário de modo paradoxal tende a verificar como crítica tal postura
que se caracteriza como diferente do comum, da maioria não pensante
nas próprias questões subjetivas.

Razão e emoção se entrelaçam e não se encontram em polos


opostos, não se elege uma ou outra, não se pode trabalhar com o
antagonismo dessa dualidade inventada pelo pensamento cartesiano,
porque são características humanas que não devem ser reduzidas a
uma polarização fictícia e marginal, uma vez que a capacidade do uso
da emoção corresponde a uma apropriação da capacidade cognitiva
para se empregar a lógica racional mediante as funções executivas
para a tomada de decisões assertivas, planejadas e eficazes. Assim,
manifesta-se que justamente a falta da expressividade emocional é que
poderá comprometer a racionalidade, em permanente intercâmbio de
sentimentos e afetos.

O tema das decisões judiciais deverá ser trabalhado na quebra do


paradigma dualista, os dois aspectos razão e emoção estão dentro do
mesmo contexto psicológico, obviamente, se encontram num
emaranhado da complexidade sócio histórica e subjetiva que envolve

254
Kathia Nemeth Perez

a tarefa decisória. Os aspectos subjetivos deverão ser levados em


conta, mediante a capacidade de julgar uma realidade exterior e o
estabelecimento do juízo crítico de cada sujeito humano em relação ao
seu íntimo e particularidades. Qualquer juízo de valor carrega uma
carga de contradições e aspectos conscientes e inconscientes, inerente
a todo ser humano, nesse sentido, a decisão judicial proferida pelo
Magistrado possui semelhanças que não poderia ser desconsideradas.
O convívio entre a razão e a emoção, o público e o privado, o
subjetivo e o objetivo, o interior e o exterior não podem ser
demonstrados nem tampouco negados, portanto, ciente desse convívio
inevitável entre a razão e a subjetividade psicológica, o debate alcança
os contornos e implicações desta relação e não mais na afirmação de
exclusões da emoção nas decisões judiciais.

A desqualificação das emoções no âmbito jurisdicional


aparentemente se contrapõe a ordem, a lei, a regra abstrata de conduta
que pertence ao mundo da racionalidade em geral. Mas considerando-
a no âmbito psicológico tanto quanto a racionalidade como uma
função cognitiva, pode-se afirmar que embora baseada no âmbito
específico do mundo jurídico, a decisão judicial é uma decisão como
outra qualquer, e tal como ocorre em outras áreas do conhecimento, se
observa lentamente uma valorização da emoção nesse campo do
direito, sem desconsiderar a racionalidade (MELO, 2016).

Essa falta de preocupação em tratar as emoções como um


aspecto importante da humanidade, deixando de oferecer-lhe a devida
credibilidade no universo da racionalidade estéril, foi objeto de
atenção de Vygotsky em sua persistente elaboração conceitual na

255
Kathia Nemeth Perez

formulação da Teoria das Emoções, em que é retomada, reformulada,


elaborada ao longo de sua obra:

Mas esta distinção sobre o objeto não é suficiente para


diferenciar as próprias sensações de acordo com sua natureza
psicológica, por isso a velha teoria estava condenada a
considerar emoção como um processo essencialmente passivo,
sensorial, de natureza psicológica, como uma sensação de uma
espécie particular, deixando de lado todos os elementos
construtivos do processo emocional, a motivação, o viés para a
ação, impulso, estando intimamente ligado nestes processos e
produzir nossas emoções fortíssimas motivações que influenciam
o nosso comportamento (VIGOTSKI, 2004: 77 – tradução nossa).

Nesse sentido, o autor defende uma noção de emoção como


processo psicológico que também se desenvolve, intricada nos
sistemas psicológicos, Vygotsky afirmará de modo mais incisivo que:
“Por conseguinte, as emoções complexas aparecem somente
historicamente e são a combinação de relações que surgem em
consequência da vida histórica, combinação que se dá no transcurso
do processo evolutivo das emoções” (VYGOTSKY, 2004: 126-127).

Do ponto de vista psicanalítico, Anna Freud (2006) considera que


as emoções estão relacionadas aos mecanismos defensivos da
ansiedade básica vivenciada por todos os seres humanos desde o
nascimento. A qualidade dessas defesas caracterizam os modos
primários ou secundários que se extravasam as emoções no cotidiano
da experiência vital (FREUD, 2006).

Na caracterização das emoções que interferem na atuação do juiz,


o próprio Magistrado se encontra subordinado a mecanismos
psicológicos de defesa, diante de questões que lhe ocasionam
sofrimento psíquico ocasionado por confrontar ou violentar seus

256
Kathia Nemeth Perez

valores pessoais. A ação pertinente nesse caso, poderia ser buscada a


partir do desenvolvimento da empatia, entendida por David Zimerman
(2002), como a capacidade de se colocar no papel do outro, de modo a
agir com sentimento legitimado acerca do sofrimento alheio e, com
isso, criar um envolvimento mínimo e sadio para a solução da causa
em questão. O autor ressalta que a ausência de um interesse autêntico
do juiz poderia resultar em uma desestabilização do trabalho, que se
restringiria a se tornar um “processo unicamente protocolar, monótono
e muitas vezes estéril” (ZIMERMAN; COLTRO, 2002, 584-585).
Observa-se a defesa da inclusão dos processos emocionais na
atividade judicante, como favorável a um equilíbrio para o
julgamento, sendo que o controle do mecanismo psicológico do juiz
permite o reconhecimento e o direcionamento do que tenha sido
capturado pelos sentidos perceptivos.

A estratégia metodológica desse direcionamento proposto pelo


autor induz a uma dissociação útil do self, ou seja, mesmo que esteja
passando por alguma crise emocional, o juiz deverá reconhecer e
assumir intimamente o que se passa consigo mesmo, tomar
consciência das suas questões emocionais íntimas, de modo que
mantenha efetiva separação entre o sujeito humano que tem plenos
direitos a toda ordem de sentimentos e o profissional que deve manter
sua imparcialidade, disponibilidade e um interesse genuíno na sua
função.

O atributo do exercício da empatia, da continência para que o juiz


possa; “conter dentro de si suas próprias angústias e sentimentos
difíceis que lhe foram despertados pelo processo para melhor proferir
sua decisão” (ZIMERMAN; COLTRO, 2002, p. 585-586).

257
Kathia Nemeth Perez

Zimerman e Coltro (2002) classificam três tipos de pressões


sofridas pelo juiz no seu papel profissional, provocando estresse
emocional: a primeira, proveniente do exterior seria originada por
familiares, econômicas e financeiras; a segunda, aquelas externas de
ordem profissional ocasionadas pela demanda do trabalho, comarcas
que não foram de sua escolha livre, relações conflituosas com colegas
de trabalho e a terceira, interiorizada e proveniente de seus desejos,
ansiedades, sentimentos de amor, ódio, vingança, ciúmes, culpa,
frustrações etc. Essas pressões tendem a ocasionar crises emocionais
que podem ser resolvidas de modo sadio e com consequente
crescimento pessoal e profissional, mas, também, podem ser doentias.
O enfrentamento desse estresse emocional pode ser amenizado por
modalidades de psicoterapias e a prática de grupos de reflexão
(FIORELLI; MANGINI, 2009, p. 115).

Para Fernandez e Fernandez (2008) a correlação íntima entre as


emoções e o direito é possível ser identificada: “na medida em que
inúmeras intuições e/ou emoções morais são capazes de orientar o
julgamento axiológico e de determinar a tarefa interpretativa do
operador jurídico”. Bem como as emoções são constituídas de atitudes
cognitivas conectadas a juízos normativos ou avaliativos que
abastecem os recursos indispensáveis para a tomada de decisão
racional, enquanto inversamente as emoções podem afetar nossas
escolhas racionais de diversas maneiras.

Mediante as colocações da análise apresentada, as relações da


emoção e razão no universo da subjetividade possuem caráter
indissociável, que precisam ser vistas como elementares no processo
de tomada de decisões judiciais.

258
Kathia Nemeth Perez

3. AS INTERFERÊNCIAS PSICOLÓGICAS QUE RECAEM SOBRE O


MAGISTRADO NA ARTE DE JULGAR

Existem distintas subjetividades e diferentes modos de pensar, de


acordo com o tipo, o caráter e a personalidade do sujeito humano. A
leitura Freudiana acerca da elaboração dos sonhos compele a
pressupor a existência de uma atividade psíquica inconsciente que é
mais abrangente e mais importante do que a atividade ligada à
consciência.

Essas descobertas demonstraram as hipóteses da atividade mental


inconsciente que nos sonhos atuam por meio da censura e repressão.
A partir do estudo dos fenômenos normais, por meio dos quais pôde
ser desvendado certo número de fenômenos patológicos e que dão a
chave de todos os enigmas da psicologia das neuroses, afirma Freud
em “Algumas lições elementares da psicanálise” (FREUD, 1980) que
o achado sobre o descobrimento do inconsciente revela as intenções
encobertas, o sentido oculto dos sintomas e colocaram em dúvida a
incidência da causalidade nos eventos mentais ou de sua pretensa
arbitrariedade.

Em “Mal estar na civilização”, Freud (2010) vai apontar caminhos


para recompor as vicissitudes da civilização, mas sua perspectiva é
pessimista, conforme podemos observar no trecho destacado abaixo,
atento as vicissitudes de seu tempo, refere à humanidade em constante

259
Kathia Nemeth Perez

confronto, iminência das guerras e desenvoltura dos conflitos


socioeconômicos:

Se justificadamente objetamos, em nosso estado atual de


civilização, que ele não preenche nossos requisitos de um
sistema de viver que faça feliz, que admite muito sofrimento
que se poderia provavelmente evitar; se, de modo
implacavelmente crítico, buscamos expor as raízes de sua
imperfeição, sem dúvida exercemos o nosso mero direito,
não nos mostramos inimigos da cultura. É lícito esperar
que pouco a pouco lhe introduziremos mudanças que
satisfaçam melhor as nossas necessidades e escapem a essa
crítica. Mas talvez nos familiarizemos igualmente com a
ideia de que há dificuldades inerentes à cultura, que não
cederão as tentativas de reforma. (FREUD, 2010: 53).

A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma


comunidade constitui o passo decisivo da civilização e a sua primeira
exigência, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que a lei, uma
vez criada, não será violada em favor de um indivíduo. Nesse
propósito reside a força da socialização.

No procedimento de decisão judicial, em se tratando da conduta,


os interesses pessoais em relação as partes litigantes não pode ser
admitido, segundo a regra da imparcialidade e nem pode granjear a
captação econômica de um litígio. O Magistrado em sua ação deve
estar isento de pressões de qualquer ordem e o juiz será imparcial
mediante a preservação da dignidade de não auferir qualquer interesse
no julgamento e sua humanidade deve possuir valoração, porém não
deverá atrapalhar ou beneficiar quaisquer partes (PORTANOVA,
1999).

260
Kathia Nemeth Perez

Nesse sentido, a imparcialidade é um dever profissional para o


Magistrado como para outras profissões, o Psicólogo, o Médico, o
Professor, empenhado ética e moralmente em seu ofício. O julgador
pode e deve ser imparcial e a reclamada imparcialidade se justifica de
forma inequívoca. Já a neutralidade seria um ideal impossível, tendo
em vista que o sujeito possui valores, crenças e convicções atribuídas
a sua condição humana, sendo importante a distinção clara entre a
imparcialidade (inerente ao campo de atribuição da ação decisória) e a
neutralidade (como uma idealização) que supõe um julgamento
genuinamente objetivo, desprovido de valores subjetivos.

O processo de reflexão exigida para a conscientização dos próprios


limites e a clivagem do eu, no sentido de atuar com a imparcialidade
requerida da função de julgar é trabalhosa. Melo (2016) defende que
a faculdade reflexiva deveria ser assumida pelo Magistrado como um
fardo “inescapável” que produz angústia geradora da ansiedade, a
dúvida, a consciência de sua própria falha: “Isso os conecta, de certa
forma, a uma comunidade moral em que se valoriza a busca por
justiça, uma justiça humanizada que fuja da mera aplicação da regra”
(MELO, 2016: 3):

Eu acho, eu acho assim... eu tenho colegas muito competentes


mesmo. Mas eu não sei se todos têm essa mesma... essa ansiedade
que eu tenho, que eu tou te passando, essa visão diferenciada do
todo. Mas muitos têm, muitos realmente têm. Você vê que... você
vai conversar com muitos colegas e lá no fundo eles ficam
angustiados com as questões, que chegam a eles, se envolvem
realmente nos processos, por mais que aparentemente não.

A estrutura da linguagem não se limita a refletir como num


espelho a estrutura do pensamento; é por isso que não se pode vestir o

261
Kathia Nemeth Perez

pensamento com palavras, como se de um ornamento se tratasse. O


pensamento sofre muitas alterações ao transformar-se em fala. Não se
limita a encontrar expressão na fala; encontra nela a sua realidade e a
sua forma (VYGOTSKY, 2001), fica evidente como os pensamentos
criam uma conexão e preenchem uma função resolvendo problemas,
mas a corrente do pensamento não é acompanhada do simultâneo
desabrochar do discurso, os dois processos não são idênticos e nessa
discrepância é que as emoções ‘falam’ por meio das ações, por meio
dos vácuos do discurso, observadas no relato acima.

Podemos comparar um pensamento com uma nuvem que faz cair


uma chuva de palavras. Como, precisamente, um pensamento não
tem correspondência imediata em palavras, a transição entre o
pensamento e as palavras passa pelo significado. Na nossa fala,
há sempre o pensamento oculto, há sempre o sub-texto. Houve
sempre lamentos acerca da inexpressibilidade do pensamento
devido ao fato de ser impossível uma transição direta do
pensamento para a palavra: Como poderá o coração exprimir-se?
Como poderá outro compreendê-lo? (F. Tjutchev) A comunicação
direta entre os espíritos é impossível, não só fisicamente mas
também psicologicamente. A comunicação só é possível de uma
forma indireta. O pensamento tem que passar primeiro pelos
significados e depois pelas palavras. (VYGOTSKY, 2001: 148)

Diante da reflexão já se apresenta a neutralidade como um mito,


enquanto a imparcialidade impõe uma obrigação profissional. A
neutralidade teve a sua importância na construção do Direito como
ciência positiva, que produzia a noção de atribuição para aqueles que
tinham tarefa de proceder uma decisão judicial, apesar desse mito
percorrer os recantos da consciência moral e ética. Melo (2016)
apresenta vários relatos em sua pesquisa, que ilustram ponderações
fulgentes acerca do mito da neutralidade e a interface das emoções
como realidade concreta das ações judicantes:

262
Kathia Nemeth Perez

Não há neutralidade no meu olhar, eu sou isso... e não há,


também, um erro nessa não neutralidade. A sentença vem do
sentir, existe um juiz aplicando a sentença, então desde sempre o
sistema se baseia numa pessoa humana aplicando a lei e
justificando naquele caso concreto e ele é uma pessoa humana. E
vai dar seu sentimento ali, o que que ele sentiu ali. Isso pra mim,
essa não neutralidade, não é ilegal, ela tá no sistema.”(M1) (...)
O consenso de que não existe neutralidade nas decisões judiciais
abre a porta para a discussão acerca do alcance da subjetividade
do juiz na interpretação e aplicação da lei e suas consequências –
e, mais do que isto, como é possível garantir que a prolação de
uma sentença seja um resultado equilibrado de forças em que não
esteja proeminente nem a subjetividade nem o que se chama
legalismo, ou apego exagerado à literalidade da lei. (MELO,
2016: 3-4)

Outra observação pertinente desse autor, diz respeito a vinculação


entre pensamento e motivação, sendo que esta seria determinada
pelos desejos, necessidades, interesses e emoções, noção que
corrobora com a teoria das emoções proferida por Vygotsky (2004) e
a metapsicologia freudiana (FREUD, 1979). Na base dos pensamentos
a vontade e os afetos se encontram respectivamente na dimensão
consciente e inconsciente do self. O desenvolvimento da criança
quando passa do egocentrismo para o processo dialógico, construindo
o diálogo interiorizado pelas palavras provenientes da interação
humana, representa a aquisição de uma habilitação para tomada de
decisões, compreendendo o significado e os sentidos do discurso:
“Uma verdadeira e exaustiva compreensão do pensamento de outrem
só é possível quando tivermos compreendido a sua base afetiva-
volitiva”. (VYGOTSKY, 2001: 149). O autor vai relacionar o
pensamento e a palavra, onde esta seria fundante da consciência,
categoria fundamental da Psicologia:

263
Kathia Nemeth Perez

A relação entre o pensamento e a palavra é um processo vivo; o


pensamento nasce através das palavras. Uma palavra vazia de
pensamento é uma coisa morta, e um pensamento despido de
palavras permanece uma sombra. A conexão entre ambos não é,
no entanto, algo de constante e já formado: emerge no decurso do
desenvolvimento e modifica-se também ela própria. (...)A palavra
não é o ponto de partida — a ação já existia antes dela; a palavra
é o termo do desenvolvimento, o coroamento da ação. (...)As
palavras desempenham um papel fundamental, não só no
desenvolvimento do pensamento mas também no desenvolvimento
histórico da consciência como um todo. Cada palavra é um
microcosmos da consciência humana. (VYGOTSKY, 2001: 151).

Em atenção ao que já foi exposto até aqui, as interferências de


cunho psicológico que recaem sobre o Magistrado na arte de julgar
são evidentes e preponderantes, não sendo cabível contrapor a
dimensão psicológica à ordem jurídica. É evidente e adequada a
decisão judicial resultar num ato consciente, imparcial e ao mesmo
tempo justo e pertinente interrogar a suposição de neutralidade na
tomada de decisões judiciais. Nesse sentido, como traduzir a
superação do mito da neutralidade e a necessária credibilidade do
Poder Judiciário por meio de ações que garantam o equilíbrio entre a
subjetividade dos juízes e a literalidade da lei?

Dois eixos de interpretação do papel das emoções nas


atividades judicantes se apresentam nessas questões, por um lado o
subjetivismo se afasta da racionalidade doutrinária, mas pode
responder pelo direito e pela justiça, subjetivamente. Por outro lado,
a sentença que cumpre exclusivamente as prerrogativas legais com
uma ação desinteressada do juiz, como executor da lei, frio e
distanciado emocionalmente, perde algo de sua humanidade e assim

264
Kathia Nemeth Perez

o desafio iminente é o de buscar um resultado contrabalançado


entre a subjetividade e o legalismo, que envolve a personalidade e as
nuances dos estudos da prática psicológica no campo da cognição e
da psicopatologia.

Vejamos mais um exemplo do trabalho sensível elaborado por


Melo (2016) acerca das decisões judiciais, através dos vários relatos
apresentados abaixo que evidenciam a particularidade das
subjetividades nas atividades judicantes:

Você é um homem, é um ser humano, não é uma máquina. Então


você tem seus sentimentos, tem coisa que... Meu deus do céu! Te
chateia, te aborrece, te entristece sobremaneira. Eu saio muito
triste daqui muitas vezes. Há dias, assim... que você não
consegue.” (M8) (Pág. 5)

(...)

M: O que eu fico intrigada é isso... Um juiz não pode fazer nada,


não pode tomar nenhuma iniciativa. Só se provocado...? M4: Olha
só... É. Na verdade sim... Porque, o que acontece... Eu acho que
nesse caso eu teria que ser provocado. Porque a princípio, ele é
homem. Entendeu? Então... Eu até acho que se fosse colocada
essa questão, se fosse requerido isso, eu teria que enfrentar e aí
poderia até flexibilizar essa questão formal e determinar uma
transferência, entendeu, prum presídio feminino. Mas eu acho
que, no caso, ele teria que se sentir prejudicado com relação a
isso. (Pág. 6)

(...)

Mas foi uma audiência tão pesada... durou acho que seis horas.
Ouvir todo mundo... E assim, no final, eu não sabia. Não é que
não soubesse. Eu sabia que aquela mãe não tinha condição de
criar aquela filha. Mas é um negócio muito sofrido, muito doído.
Eu tive que... Eu saí duas vezes no meio da audiência pra chorar

265
Kathia Nemeth Perez

no banheiro. Pedindo pelo amor de deus para eu fazer a coisa


certa. E aí eu dei a sentença em audiência, enfim... (M4) (Págs.5-
6)

(...)

M2: (...) Acho que a gente sofre mais do que bate. É, com certeza.
M: Por quê? M2: Porque é uma profissão muito isolada, você fica
muito só. A gente... Você entra no gabinete, é assim: você é
cercada de gente, então você tem um poder, né, um grande
poder, na verdade. Você fica sozinho, ali. Muita gente se
aproxima, porque você tem o tal do poder, então você é, assim...
tentado, digamos assim, de várias formas. E isso gera um
sofrimento, né. Não tem como não gerar. Muita solidão, na hora
de decidir, porque não tem como você... você não delega isso,
não tem como você delegar, você que tem que resolver aquilo ali,
você tá o dia inteiro decidindo coisas... (risos) ‘Faz isso, não faz
aquilo, dá, não dá uma coisa’. (MELO, 2016: 5-17)

O sofrimento do outro também comparece gerando sofrimento no


magistrado, onde o juiz pode encontrar motivação para agir. Em
certos casos, extrapola o lugar do poder-saber, não age somente ao
imperativo categórico de uma razão extrínseca da letra da lei.
Observamos nos relatos acima que o Juiz pode engajar-se em ações
sociais e tomar iniciativas nos processos em nome das suas crenças e
valores, sem necessariamente ferir a imparcialidade de suas decisões.
Sem dúvida, a capacidade de pensar, refletir, a partir do contato com
suas próprias limitações e ansiedades, leva ao experimentar da dor do
outro.

E nesses casos a empatia, enfatizada por Melo (2016), não seria a


condutora privilegiada para uma atuação mais equilibrada, pois
entendemos que é um requisito importante, mas não suficiente para a
resolução dos conflitos. A qualidade de vida dos magistrados se

266
Kathia Nemeth Perez

encontra não somente nos cuidados de si, mas é compreendida no


contexto em que vivencia suas relações pessoais, familiares e de
trabalho, determinante para uma intervenção definitiva visando atingir
essa meta, o que nos leva a crer que existe também uma dimensão
política e social contextualizado nas crenças, valores e dimensões
culturais que englobam a realidade do agir profissional do Magistrado.

A mudança psíquica alivia as dores íntimas, mas seus efeitos não


são capazes de extirpá-las e nesse sentido, sublimamos e aprendemos
a operar com resiliência, mas parafraseando Freud (2010: 21) nunca
dominaremos completamente as três fontes básicas do nosso
sofrimento, a saber, as forças da natureza, a fragilidade de nossos
organismos e as frustrações provocadas pelos outros da nossa
convivência. Toda a atividade conciliadora e equilibrada, será sempre
uma construção transitória, limitada em adequação e desempenho, se
não podemos abolir todo o sofrer, podemos abolir parte dele, e mitigar
outra parte, pois a experiência nos convenceu disso.

Quanto a fonte social do sofrimento, Freud alerta que percebemos


que somos incapazes de regulamentar suficientemente as relações
humanas para prevenir as angústias provocadas pelos ‘outros’, nesse
caso jaz uma parcela de natureza inconquistável, inerente a nossa
própria constituição psíquica, dos nossos conhecimentos mais
profundos não temos outra via senão chegar em meio a uma torturante
incerteza e incansável tatear (FREUD, 2010).

É com a faculdade do exercício da reflexão que o juiz vai entrar


em contato com a própria dor, enxergar a dor do outro, num processo
judicial, do seu lado, o Juiz é confrontado no ato decisório com a

267
Kathia Nemeth Perez

emergência do desamparo existencial, condenado a uma solidão que o


impossibilita comunicar-se com o outro, tentará algumas
aproximações mediante a busca de relações mais horizontais com seus
pares e subordinados com quem trabalha, mas uma grande dose de
cuidado de si – intransferível - lhe é imposta.

O autoconhecimento ou a consciência de si e o reconhecimento se


produz no contato com os outros sujeitos, interagindo se permite
reconhecer a si mesmo e aos outros, em uma dinâmica não só dialética
como a constatação da identidade e unidade entre esses processos.

Os aspectos psicológicos implicados nas decisões marcam sua


presença ativa em nível consciente e nos sinais e sintomas percebidos
como emergentes da dimensão inconsciente. No dinamismo
psicológico, as emoções constituem o pensamento racional e este se
alimenta das emoções. O ponto de encontro no centro da atividade do
sujeito humano, não está numa relação dicotômica entre sentido e
significado, entre razão e emoção, mas no complexo processo mesmo
de significação como atividade pessoal e social, imbricadas nos
procedimentos decisórios da atividade de julgar.

Partindo do pressuposto de que a decisão é um ato subjetivo,


compreendemos os passos desenvolvidos a partir da ciência do
problema, seguindo a comparação das razões nele envolvidas, a
formação de juízo acerca da problemática devidamente analisada e por
último o ato conclusivo de deliberação. Neste percurso é incluída
uma inevitável experiência de angustia, que pode ser vivenciada com
mais ou menos intensidade. A formação de juízos para Freud se
encontra em função das forças pulsionais onde o princípio de

268
Kathia Nemeth Perez

realidade estaria se sobrepondo ao princípio do prazer. (MATHIAS,


2013)

Sob o domínio do princípio do prazer, a concepção psicanalítica


entende que o organismo vai buscar um equilíbrio entre a satisfação
dos desejos e evitar a dor ou sofrimento, assim, para evitar a dor, o
aparelho psíquico buscará aliviar a tensão, escoando a energia
psíquica para uma ação determinada. Já para obter prazer as
necessidades internas deverão ser satisfeitas para que as tensões sejam
aliviadas ou minimizadas.

Sem que tenhamos um desfecho conclusivo acerca dos caminhos e


descaminhos dos juízos, se consideramos a situação onde a lei
apresenta ambiguidades e indeterminações que permitem várias
interpretações, um mesmo caso pode ter desfechos distintos e
completamente diferentes, se analisados por dois juízes. Um deles
pode procurar adequar a situação aos valores locais e buscar uma
conciliação com os seus valores pessoais aos coletivos. Outro poderá
identificar sua decisão a partir da sua intuição ou um impulso
inconsciente, a ordem psicológica se sobrepõe antes da ordem jurídica
e desse ponto de vista o conhecimento técnico-jurídico terá um papel
secundário no ato decisório, ainda que considerado antes da definitiva
deliberação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

269
Kathia Nemeth Perez

Quando se trata de investigar os aspectos psicológicos a partir das


explorações conceituais, examinamos a racionalidade e as emoções
como integrantes do processo cognitivo e por esta condição, atuam de
modo indissociável. Para a Psicologia não se pode extirpar a dimensão
emocional do pensamento racional e nem considerar as emoções que
são propulsoras das ações, como partes que poderiam ser excluídas da
razão e da lógica no ato decisório.

O ordenamento jurídico pressupõe a necessidade ética de realizar o


julgamento com imparcialidade, o que se enquadra nas possibilidades
concretas das ações judicantes, por outro lado, a suposta neutralidade
dessas ações deve ser devidamente desconsiderada, pois o sujeito da
ação possui experiências vivenciadas por sua história pessoal e
incorporados valores sócio-culturais inelutáveis, que acompanham
quaisquer ações indistintamente, sejam conscientes, refletidas e
autodeterminadas, ou precipitadas, não reflexivas e mesmo
inconscientes.

As emoções não são passíveis de segregação dos exames


criteriosos nas atitudes conscientes e planejadas cuidadosamente. No
seio da racionalidade as emoções atravessam a existência humana com
todo o bom senso, maturidade e preparo psicológico para realizar um
julgamento com justiça e isenção de arbitrariedades.

Por fim, o ato decisório se encontra implicado na subjetividade do


seu autor, que deverá estar ciente da sua própria interioridade e
reconhecer o outro através das experiências sensitivas, como
exterioridade. Esse propósito não é uma regra nem um imperativo
para o exercício da Magistratura, porém, aqui constatamos apenas a

270
Kathia Nemeth Perez

importância dos aspectos psicológicos implicados na lógica das


decisões judiciais. Desse modo, a atividade judicante será processada
pelas inúmeras experiências vitais acumuladas que vinculam o
presente contexto interativo ao universo subjetivo e se implicam na
universalização das representações simbólicas, por meio de signos
ideologicamente constituídos que refletem e retratam a realidade.

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273
Kathia Nemeth Perez

274
Enio Walcácer de O. Filho

UMA ANÁLISE DOGMÁTICA, JURÍDICA E


PSICOLÓGICA DO PROCEDIMENTO DE
RECEBIMENTO DA INICIAL ACUSATÓRIA NO
BRASIL
Por Enio Walcácer de O. Filho

RESUMO: Este artigo perfaz uma abordagem crítica do procedimento de


recebimento da inicial acusatória prevista no art. 395 e 396 do Código de
Processo Penal sob três enfoques: dogmático, jurisprudencial e psicológico –
com o objetivo de demonstrar a inconstitucionalidade e inconformidade do
procedimento à luz dos princípios do contraditório e da necessária
imparcialidade do juiz da causa penal. Em um primeiro momento é feito um
estudo dogmático abordando a natureza jurídica do recebimento da inicial
acusatória. Em um segundo tópico é feita uma análise da evolução doutrinária
no tratamento do tema, bem como uma abordagem do anteprojeto do Código
de Processo penal na trtatativa deste procedimento. AO final é feita uma
correlação entre as implicações cognitivas no atual modelo de recebimento da
inicial à luz da Teoria da Dissonância Cognitiva de Leon Festinger.
PALAVRAS-CHAVE: Lógica; Psicológico; Decisão Judicial; inicial
acusatória.

INTRODUÇÃO

A história do processo penal confunde-se com a evolução dos


direitos liberais, e consequentemente com a busca do combate ao
arbítrio estatal. Dentro desta função encontra-se, sobretudo, a
necessidade de se prover um sistema que evite o arbítrio na

Buscamos representar neste artigo a consolidação de uma pesquisa


que teve como hipótese uma falha procedimental que, estando
comprovada, redunda em uma necessária reformulação do
procedimento de recebimento e rejeição da inicial acusatória no
sistema processual penal brasileiro, normatizada no rito ordinário e

273
Enio Walcácer de O. Filho

aplicada subsidiariamente a todos os procedimentos, consoante aos


artigos 395 e 396 do Código de Processo Penal brasileiro.

A questão central diz respeito à algumas proposições: a) a natureza


jurídica do recebimento da inicial acusatória; b)a constitucionalidade
e conformidade desta etapa procedimental no sistema processual penal
brasileiro; c) a evolução jurisprudencial sobre o recebimento da
inicial; d) a influência da teoria da dissonância cognitiva na
imparcialidade do juiz ao julgar a causa penal neste sistema.

Focamos como objeto central deste estudo alguns elementos que


interagem e se relacionam na busca das respostas às questões que
formulamos inicialmente, são elas o direito posto, as jurisprudências e
doutrinas sobre o sistema, as influências psicológicas cognitivas no
julgador no sistema atual e a construção da realidade cognitiva inicial
em face da dissonância na apresentação da defesa do réu.

Como fonte de pesquisa utilizamos doutrinas nacionais de


Processo Penal pós 1988, jurisprudências nacionais do Supremo
Tribunal de Justiça e Superior Tribunal de Justiça bem como de
alguns Tribunais de Justiça dos Estados tendo como marcadores
temáticas relacionadas a: recebimento da inicial acusatória; rejeição
da inicial acusatória; sistema de recebimento da acusação;
fundamentação das decisões; decisões judiciais; motivação das
decisões. Utilizamos ainda o livro “Teoria da Dissonância Cognitiva”
de Leon Festinger de 1975 como base psicológica para influência das
impressões iniciais na decisão final e a necessária alteração do sistema
para rompimento com esta possível dissonância cognitiva gerada
como consequência do sistema vigente.

274
Enio Walcácer de O. Filho

Com a base teórica encontrada por meio dos parâmetros


escolhidos conseguimos ter uma visão geral do tema pretendido e
trabalhar com vistas à uma análise crítica do sistema brasileiro de
formação de culpa e a influência do sistema de recebimento e rejeição
da inicial na decisão final do magistrado. Percebemos a
inconstitucionalidade e inconformidade do sistema vigente e a
consequente necessidade de reformulação do sistema como
fundamento para a manutenção da isenção do magistrado no
julgamento de mérito do caso penal.

Faremos inicialmente uma análise dogmática nas doutrinas


anteriores e posteriores à 1988 sobre o ato processual do recebimento
da inicial acusatória, delineando a natureza jurídica do ato e a
necessidade de constitucionalização do rito à luz das garantias
fundamentais e a sua conformação com os Tratados de Direitos
Humanos dos quais o Brasil é signatário, lançando mão do método
histórico e positivista.

Em um segundo momento demonstraremos a necessidade de se


fazer uma cisão entre o rito processual de recebimento e o rito de
julgamento do mérito da causa penal tomando como base dedutiva a
teoria da dissonância cognitiva de Festinger. Neste sentido
defendemos a importância de se evitar a mácula da imparcialidade
necessária ao juiz como acontece no modelo atual de recebimento da
inicial, que permite ao magistrado um primeiro contato da causa penal
eminentemente sob a ótica da acusação e da autoridade policial, que
em geral convergem para uma ótica punitivista do caso penal..

275
Enio Walcácer de O. Filho

Com todo o conjunto de demonstrações buscamos apontar a


necessidade de um aperfeiçoamento do rito de recebimento da inicial
com soluções procedimentais processuais (alterações no Código de
Processo Penal) e estruturais no sistema judiciário (papel do juiz no
recebimento e no mérito da causa) com vistas à constitucionalização e
conformação do sistema e a busca do aperfeiçoamento da justiça penal
no Brasil.

2. A NATUREZA JURÍDICA DO RECEBIMENTO DA


INICIAL ACUSATÓRIA

A decisão é um ato jurisdicional, uma das funções exercidas pelo


poder judiciário, consistindo em um conjunto de “...atos que,
provindos do juiz, servem para preparar a sentença ou para regular o
andamento do processo” (MARQUES, 1998, p. 88). São atos que
impulsionam o processo na direção de sua conclusão, trazendo
maiores ou menores gravames ao réu. A sistemática processual
adotada em nosso Código de 1941 não é precisa na separação dos
atos, contudo nos traz uma luz quando trata dos prazos de cada ato
jurisdicional em seu art. 800, nos permitindo verificar cada um deles
de acordo com a profundidade cognitiva lançada sobre o
correspondente processo decisório no decurso da formação de culpa.
A divisão no diploma processual se dá entre: decisões definitivas,
interlocutórias mistas, interlocutórias simples e despachos de
expediente. Como cada ato tem um prazo máximo que deveria ser
cumprido, demonstra-se a necessidade de debruçamento maior ou
menor do magistrado para proferir cada um deles, os prazos para

276
Enio Walcácer de O. Filho

tomada de decisão são de: 10 dias para as decisões definitivas e


interlocutórias mistas, 5 dias para as interlocutórias simples e um dia
para os despachos de expediente.
Mesmo assim, com a demonstração do rol de possibilidades de
atos jurisdicionais decisórios não é possível saber quais são estes no
curso do processo, sendo necessário um exercício hermenêutico para a
sua catalogação mais precisa. Vejamos a classificação da doutrina
clássica de José Frederico Marques:
 Despachos são atos aptos “a prover o respeito do andamento do
processo” dando como exemplos a citação do réu, vistas do processo,
designação de data de audiência;
 Decisões interlocutórias simples são as que decidiriam questões
relativas à marcha processual e a sua regularidade sem por fim ao
processo, decidindo questão incidente ou emergente do processo;
 Decisões interlocutórias mistas que podem ser separadas em
terminativas ou não terminativas são decisões que podem por fim ao
processo, dando como exemplo a decisão de pronúncia, impronúncia,
rejeição da denúncia ou queixa;
 Decisões definitivas são aquelas que adentram em profundidade no
mérito da causa, decidindo total ou parcialmente o caso penal,
diferenciando-se da mista terminativa exatamente pelo debruçamento
exauriente sobre o mérito da questão.
Ainda assim a definição fica um tanto quanto insuficiente, mas já
possibilita, no cotejo do que preconiza o autor com o que é previsto no
código, uma definição mais precisa quanto ao debruçamento no
mérito da questão. Vejamos a nossa classificação quanto aos atos de
acordo com o debruçamento do magistrado quanto à formação de
culpa no curso do processo.

277
Enio Walcácer de O. Filho

O despacho é um ato de impulsionamento processual que não


necessita debruçamento sobre o caso penal, não sendo necessária a
manifestação de uma opinião do julgador sequer superficial sobre o
mérito da formação de culpa. Tal ato exige, portanto, um tempo
máximo para a manifestação de um dia, já que a única questão a se
observar é de índole puramente processual, não afetando a liberdade
do acusado. No exemplo usado por Frederico Marques seria a citação
do réu, ato que cumpre apenas uma etapa do processo sem gerar
nenhum gravame ao acusado, e que da mesma forma não exige do
magistrado nenhuma valoração. Senão vejamos o art. 396 do CPP, ele
diz claramente que tendo sido recebida a inicial acusatória, o juiz
deverá ordenar a citação do acusado. Ou seja, a valoração já
aconteceu sobre o caso quando da decisão pelo recebimento, cabendo
agora o cumprimento de uma formalidade processual que é o a
citação.
Já a decisão interlocutória simples é um ato no qual o juiz se
debruça sobre questões incidentes ou emergentes no processo, não
tendo condão de encerrar a marcha processual, sendo então relativa à
ordem do processo ou a questões paralelas ao processo. Uma prisão
preventiva é um exemplo de decisão interlocutória simples, já que o
magistrado não se debruçará sobre o mérito em si, mas sobre a
necessidade da medida como instrumento para preservar o andamento
ou mesmo a eficácia final do processo, daí por ser uma medida
cautelar. Por ser medida que não adentra no caso penal, sendo apenas
matéria a ele paralela, tem como tempo para a decisão 5 dias, que
demanda uma análise mais profunda do magistrado do que o mero
despacho mas não suficientemente profunda quanto a interlocutória
mista.
278
Enio Walcácer de O. Filho

A decisão interlocutória mista é uma decisão que tem o condão de


encerrar o processo prematuramente, sem adentrar no mérito da
questão. Quando uma decisão interlocutória mista põe fim ao processo
leva o nome de mista terminativa, quando não leva o nome de mista
não terminativa, porém ambas tem em comum o aprofundamento
maior no caso penal, na formação de culpa que se está buscando,
sendo previsto para tal decisão um tempo exatamente igual ao das
sentenças definitivas, de 10 dias, que demonstra a necessidade de um
debruçamento mais aprofundado do magistrado sobre o caso penal
para a prolação de sua decisão.
Diante do exposto, verifica-se que as decisões se diferenciam em
dois fatores: o tempo dado ao magistrado para se debruçar sobre a
questão e a possibilidade de encerramento da ação penal.
Cabe então fazer agora uma leitura constitucional sobre o que é
necessário conter em uma decisão judicial. Consoante ao art. 93 inciso
IX de nossa Carta, todas as decisões deverão ser fundamentadas, sob
pena de nulidade o que demonstra a estrita necessidade de se motivar
toda e qualquer decisão jurisdicional. Como o Código de Processo
Penal trata as decisões em graus de importância e profundidade
cognitiva, torna-se imperioso que toda e qualquer decisão seja
fundamentada, em maior ou menor grau de acordo com a
profundidade de avaliação que a decisão exige ao juiz. Ora, se é
necessário e pacífico em nossa jurisprudência que a decretação de
prisão preventiva seja motivada, e sendo ela uma decisão
interlocutória simples, que necessita uma valoração mais superficial
do que a interlocutória mista, não há razão para que a decisão sobre o
recebimento da inicial acusatória não seja motivado.

279
Enio Walcácer de O. Filho

A decisão que inicia uma ação penal é tão importante como a que
põe fim a ele, a ambas o art. 800 do código dá um prazo de 10 dias
para a decisão do magistrado, e demonstra que em ambas é necessário
um aprofundamento do magistrado na questão a ser decidida. No
recebimento da inicial o magistrado se debruça sobre o fumus
commissi delicti indicado na inicial acusatória e consubstanciado,
quando presente, na investigação preliminar realizada, em geral o
inquérito policial. Para isso precisa fazer uma análise apurada que
determinará se efetivamente se atingiu um nível mínimo de
probabilidade que permita que uma pessoa passe formalmente a
condição estigmatizante de réu em um processo penal. É inegável que
tal decisão tem um amplo efeito sobre o jus libertatis do acusado,
tanto dentro do processo quanto em nossa sociedade do espetáculo.
O recebimento da inicial é o momento processual em que se cria
uma relação jurídica entre os sujeitos (Bülow), ou se cria uma
situação jurídica (Goldschmidt) e até mesmo mais hodiernamente
onde se estabelece o procedimento em contraditório (Fazzalari).
(CINTRA, DINAMARCO, GRINOVER, 2014)
De qualquer forma, o recebimento da inicial em sede de processo
penal estabelece uma medida de sujeição do réu à certas medidas
restritivas de liberdade e em último caso sujeita o réu à única medida
em que se possibilita a restrição de seu jus libertatis, em limites
predeterminados pelo legislador no preceito secundário do tipo penal,
diante das regras ditadas pela Parte Geral do Código Penal. A
legitimação de cada ato procedimental é dada pelo contraditório sob a
ótica da acusação e defesa e pelos princípios da publicidade dos atos e
da fundamentação das decisões sob a ótica do magistrado. Ou seja,
nesta relação jurídica a observância das regras do jogo (devido
280
Enio Walcácer de O. Filho

processo legal), qualifica-se pelas decisões do Estado-Juiz que devem


ser sempre públicas e fundamentadas, exatamente para
endoprocessualmente permitir o contraditório e extraprocessualmente
permitir o controle do exercício do poder pelo Estado.
Como sendo o ato inaugural de sujeição do réu à etapa processual
de formação de culpa, essencial a sua fundamentação,
independentemente dos argumentos tradicionais do STF (que usam
precedentes anteriores à Constituição de 1988), que mantém uma
tendência em determinar o ato de recebimento como um mero
despacho! E qual é a justificativa da Corte para isso? Em geral utiliza-
se como analogia o caso do procedimento de crimes de
responsabilidade de funcionário público no art. 516 do CPP, que exige
apenas a fundamentação do despacho que rejeitar, e ainda cinge-se à
questão da admissibilidade do Recurso em Sentido Estrito e a sua
possibilidade apenas em sede de rejeição da inicial (cf. art. 58, I do
CPP). (HC 72.286, HC 101.971, HC 70.763)
Primeiro é importante sempre lembrar que o nosso Código de
Processo tem opções que refletem um regime fascista do qual foi
inspirado, modelo processual que não prezava pela publicidades dos
atos e nem pela fundamentação. Neste sentido, em todo os atos dos
ritos procedimentais, são previstas em abundância, por exemplo, as
possibilidades de recorrer em sentido estrito quando as decisões
trazem benefícios ao réu, enquanto há escassez de recursos quanto a
decisões que prejudicam o réu – como a exemplo o recebimento da
inicial acusatória ou mesmo o não acolhimento da tese de absolvição
sumária – ambas situações que não permitem recursos, mas que se
decididas em benefício do réu permitem recurso por parte da
acusação. Não há uma bilateralidade, uma paridade harmônica no jogo
281
Enio Walcácer de O. Filho

recursal, e se seguirmos por esta argumentação, a par das escolhas à


época da criação do diploma, estaremos nos rendendo ao espírito
daquela época e não buscando a constitucionalização e a conformação
do sistema processual penal brasileiro.
Aury lopes Jr. (2013, p. 153) tratando sobre a ausência de recurso
para enfrentar o recebimento da inicial acusatória defende que:
Trata-se de grave lacuna (ou melhor, de uma opção autoritária de um
Código de 1941) que desconsidera a lesividade e o gravame gerado
pelo recebimento de uma acusação, que trará, inegavelmente, um
imenso rol de penas processuais (estigmatização social e jurídica,
angústia e sofrimento psíquico, constrangimento inerente à submissão
ao exercício do poder estatal, etc.)

Tal opção legislativa, se coerente com o regime da época, não


coaduna-se mais com as exigências constitucionais e com os tempos
em que vivemos. Portanto é necessário dar uma interpretação
conforme a Constituição para o ato do recebimento da inicial
acusatória, em vista do gravame gerado, e em respeito à isonomia das
partes dos atos.
Vejamos ainda que a decisão que rejeita liminarmente a inicial
acusatória é tida majoritariamente como uma decisão interlocutória
mista terminativa, que exige, portanto, fundamentação. Sendo uma
decisão que nasce tal e qual nasce a decisão que recebe a inicial,
brotando dos elementos produzidos até então (investigação preliminar
+ argumentos da acusação), em mesmo grau cognitivo, com mesmo
prazo processual para a manifestação decisória (10 dias), não seria
razoável entender que a análise efetuada para receber seria diferente
da análise para rejeitar, sendo que os motivos determinantes da
decisão são exatamente os mesmos. Portanto, por amor a simetria
processual típica do contraditório, e aos princípios da publicidade e

282
Enio Walcácer de O. Filho

fundamentação das decisões, torna-se inviável o recebimento


desmotivado da inicial acusatória no processo penal.
Por simetria, interessante verificar o HC 183.355-MG da 5º Turma
do STJ, de relatoria do Min. Adilson Vieira, que decidiu que tanto a
rejeição quanto o acolhimento da absolvição sumária devem ser
fundamentados, sob pena de configura negativa da prestação
jurisdicional. Nota-se a similaridade que destoa também a decisão que
acolhe ou rejeita a absolvição sumária, cabendo recurso tão somente
quando a decisão traga benefícios ao réu. Portanto decidiu a Corte que
há a necessidade de fundamentação tanto na decisão que acolhe
quanto na que rejeita, pelo princípio da simetria. Já decidiu também
em outras ocasiões da mesma maneira o STJ entendendo que deve o
juiz manifestar-se sobre o acolhimento ou rejeição das teses aventadas
na resposta à acusação. (HC 138.089/SC, rel. Min Félix Fischer , HC
183.355/MG, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze)
O apego às terminologias e à interpretação dada ainda
anteriormente à Constituição de 1988 mantém o código como
instrumento olhado sob uma perspectiva apenas do poder (ex parte
principis) quando se exige, no processo democrático-constitucional
pós 1988 um olhar de proteção do acusado, sujeito de direitos, sob a
ótica dos direitos e garantias fundamentais e humanos (ex parte
populi) nos termos de Lafer (1998).
Assim resta claro que, para além do reducionismo decisório e o
apego a terminologias contraditórias adotadas pelo código, bem como
à política e perspectiva do processo penal, é claro que após a
Constituição de 1988, operou-se uma mudança que exige que se tenha
como natureza jurídica do recebimento da inicial acusatória uma
decisão interlocutória mista, com fulcro no contraditório, na
283
Enio Walcácer de O. Filho

publicidade, e na fundamentação das decisões, permitindo a


constitucionalização e a conformação deste ato na garantia dos
direitos do acusado.
Tal exigência se mostra consoante também com o Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, em seu art. 14 alínea
“a” quando diz que toda pessoa acusada tem o direito: “a ser
prontamente informada, numa língua que ela compreenda, de modo
detalhado, acerca da natureza e dos motivos da acusação apresentada
contra ela” A interpretação do dispositivo demonstra a necessidade,
em face a primeira etapa do contraditório, que é a de conhecer, de se
estarem demonstrados os fundamentos pelos quais o Estado lastreou-
se na aceitação da formação da relação processual na instauração do
procedimento em contraditório. Só quem pode delinear os motivos de
ser justa e a presença dos elementos para o estabelecimento da relação
é o juiz em seu ato de jurisdição (juris dicere).

3. SINAIS DE UMA EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL

Recentemente no HC 59.759, julgado em 12 de agosto de 2015,


tendo como relator o Min. Reynaldo Soares da Fonseca, ficou
decidido que:
FURTO (ART. 155, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL).
TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL, POR ALEGADA FALTA
DE JUSTA CAUSA (INOCORRÊNCIA), RECEBIMENTO DA
DENÚNCIA (AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO),
CONSTRANGIMENTO ILEGAL (CASO). RECURSO
ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS (PROVIMENTO).
1. O trancamento da ação penal, por meio do habeas corpus – ou do
recurso ordinário em habeas corpus – é medida de exceção, sendo
cabível tão-somente quando, de forma inequívoca, emergirem-se dos

284
Enio Walcácer de O. Filho

autos a atipicidade da conduta, a inocência do acusado ou, ainda,


quando for impedida a compreensão da acusação, em flagrante
prejuízo à defesa do acusado (Precedentes). Essas circunstâncias, a
propósito, não podem ser evidenciadas, de plano, da ação penal de
origem.
2. A decisão de recebimento da denúncia possui natureza
interlocutória, prescindindo de fundamentação complexa
(Precedentes).
3. Caso em que o julgador, nem mesmo de forma concisa, ressaltou a
presença dos requisitos viabilizadores da ação penal. Deixou de
verificar a presença dos pressupostos processuais e das condições da
ação, tampouco tratou da existência de justa causa para o exercício da
ação penal, limitando-se a cuidar da presença dos pressupostos
intrínsecos à peça processual, neste termos: “Recebo a denúncia, pois
a peça acusatória preenche todos os requisitos do art. 41 do CPP”.
4. A propósito, ponderou o próprio Parquet Federal: “a decisão que
recebeu a denúncia não analisou, sequer sucintamente, os requisitos
necessários para o início da persecução penal. A decisão ora
analisada deixa de analisar, portanto, além da justa causa para a
persecução penal, a possiblidade de absolvição sumária. Impõe-se a
anulação da decisão, para que sejam satisfeitas as exigências da lei
processual penal, viabilizando uma defesa ampla em favor do
acusado”.
5. “A falta de fundamentação não se confunde com a fundamentação
sucinta. Interpretação que se extrai do inciso IX do art. 93 da CF/88”
(STF, Segunda Turma, AgRg no HC-105.349/SP, Rel. Min. Ayres
Brito, DJ de 17/2/2011)
6. Na nova sistemática processual penal, há a resposta preliminar,
logo, os argumentos desenvolvidos devem ser minimamente
rechaçados, sobretudo se guardarem correspondência com o disposto
no art. 397 (inciso) do CPP.
7. Recurso Provido.
Tal decisão, por simetria dada à necessidade de fundamentar a
negativa quanto à absolvição sumária, como tratado no item anterior,
manifestou-se pela necessidade como parte do contraditório (CF/88,
art. 5º, LV) e da fundamentação das decisões (CF/88, 93, IX) que se
estabeleça com clareza os motivos pelos quais se entende que a ação
penal deva ser iniciada, em face de seu caráter de decisão
interlocutória mista que por certo inicia uma nova etapa na formação
de culpa do acusado.

285
Enio Walcácer de O. Filho

O entendimento pela necessidade de fundamentação das decisões


não é nova no Brasil, já sendo previsto após a primeira Constituição
de 1824 na Decisão de Governo nº 78 em que era prevista a
necessidade de fundamentação das decisões “(...) afim de conhecerem
as partes as razões, em que fundaram os julgadores as suas decisões
(...)” (BRASIL, 1824)
O TJSP já tinha decidido em igual sentido em 12 de fevereiro de
2015 no HC 2192869-68.2014 de relatoria do Des. J. Martins da
seguinte forma:
HABEAS CORPUS – DESPACHO QUE RECEBE A DENÚNCIA –
AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO – NULIDADE – Ocorrência:
Ainda que não seja cabível aprofundamento na análise das questões
trazidas na fase do art. 396-A do CPP, a decisão que recebe a
denúncia se mostra vazia de fundamentação e, portanto, impede o
prosseguimento da ação penal. Ordem concedida, para anular decisão
de recebimento da denúncia.

Nesta decisão, diferentemente da anteriormente citada, o que se


verifica é ainda uma timidez e um apego ao denominar o ato decisório
como despacho, quando deve ser tratado na atual sistemática
constitucional como decisão interlocutória, mas entendeu-se a
necessidade de fundamentação diante dos princípios regentes do
processo penal.
Lopes Jr. e Rosa (2015, p. 78) já tinham tecido duras críticas
acerca do recebimento imotivado na sistemática processual,
comparando o rito ao preconizado na Lei 8.038/1990, chamando a
atenção à diferença de tratamento entre alguns acusados com o
seguinte título “Quando o acusado é VIP, o recebimento da denúncia é
motivado”. Concluem em seu artigo os autores dizendo:
Só não conseguimos entender é o tratamento diferenciado dado pelo
próprio STF quando se trata de processo originário (VIP) e processo
não originário (do resto). Afinal de contas, em ambos os casos, não se

286
Enio Walcácer de O. Filho

deveria exigir que os magistrados dissessem os motivos justificadores


da instauração da ação penal? Dois pesos e duas medidas, diria o
ditado popular. Pelo que se apresenta, então, continuaremos, quando
não for acusado VIP: Recebo a denúncia. Cite-se. As razões são
omitidas, implícitas e violadoras de qualquer democracia
minimamente séria.

Entendemos da mesma forma que o papel do juiz de dizer o direito


no caso concreto obriga que ele fundamente a decisão e os motivos
que ensejaram o recebimento da inicial sob pena de fragilização do
contraditório e do princípio da publicidade, bem como do controle
operado pela fundamentação das decisões. Não que se tenha que
reduzir o direito dos acusados em ações originárias, mas sim
constitucionalizar o direito dos acusados nos ritos comuns,
equalizando os direitos e garantias constitucionais como corolário do
princípio da igualdade material.
No Anteprojeto de Lei de reforma do Código de Processo Penal,
infelizmente a lacuna ainda permanece, não ficando claro na
sistemática processual que se pretende adotar a necessidade ou não da
motivação do recebimento da inicial acusatória. Vejamos o que fala o
art. 259: “Todo acusado terá direito à defesa técnica em todos os atos
do processo penal, exigindo-se manifestação fundamentada sempre
que seja necessária ao efetivo exercício da ampla defesa e do
contraditório”. Ou seja, a fórmula traz um generalismo ao falar que a
fundamentação deve ser dada “sempre que seja necessária ao efetivo
exercício da ampla defesa”, ou seja, quando o julgador entender que
seja essa ampla defesa necessária, fórmula que não nos parece
solucionar a questão. O art. 260 e 261 repete a mesma fórmula usada
atualmente não sendo requisitada a fundamentação. No mesmo
caminho o art. 263 do anteprojeto segue na mesma fórmula defasada

287
Enio Walcácer de O. Filho

ao dizer que “Estando presentes as condições da ação e os


pressupostos processuais, o juiz receberá a acusação”, não ficando
clara a necessidade de fundamentação neste momento processual, a
não ser que o intérprete da lei tenha o bom senso de entender que o ato
é necessário ao efetivo exercício da ampla defesa e do contraditório
(ex vi. art. 259, supra). Não penso ser bom caminho aguardar a
bondade dos bons, ou o bom senso se manifestar, não é este o sentido
do direito.
Cabe assinalar que o Anteprojeto do Código de Processo Penal
continua adotando o sistema criticado de especial atenção ao ato de
recebimento/rejeição nos procedimentos ordinários, criando uma
desigualdade processual sob a ótica do acusado, permitindo um
sistema constitucional e moderno para alguns e um sistema retrógrado
com vistas ao sistema passado, sem atendimento ao contraditório e
ampla defesa. Vejamos a previsão para, nos dizeres de Lopes Jr e
Rosa, os VIPs:
Art. 304. Apresentada a resposta, o relator designará dia para que o
tribunal delibere sobre o recebimento da denúncia ou da queixa, se
não for o caso de extinção da punibilidade ou de absolvição sumária,
quando tais questões não dependerem de prova, nos limites e nos
termos em que narrada a peça acusatória.

§ 1º No julgamento de que trata este artigo, será facultada sustentação


oral pelo prazo de 15 (quinze) minutos, primeiro à acusação, depois à
defesa.

§ 2º Encerrados os debates, o tribunal decidirá por maioria.

Como se verifica, no caso dos procedimentos de ação penal


originária, haverá o amplo atendimento dos princípios essencialmente
importantes para a consolidação de um processo penal constitucional,
tomaremos então como base este modelo para a análise que será feita

288
Enio Walcácer de O. Filho

no próximo capítulo, quanto ao aperfeiçoamento do rito de


nascimento da ação penal, dada a sua importância e afetação ao status
dignitatis do acusado.
Contudo temos que reconhecer o avanço proposto pelo
Anteprojeto do Código de Processo Penal ao prever recurso no caso
de recebimento da inicial, o que demonstra a necessidade que este
recebimento seja motivado. Ora, se é cabível recurso é necessário,
exatamente para o exercício deste recurso, que a decisão seja
acompanhada de fundamentação que permita o exercício da ponte
entre o contraditório e ampla defesa no sentido de conhecer
(contraditório) – produzir elementos para esta defesa (ampla defesa) –
contra argumentar (contraditório).

4. UM PASSO ADIANTE: O APERFEIÇOAMENTO DO


RITO DE RECEBIMENTO/REJEIÇÃO DA INICIAL
ACUSATÓRIA

O que se mostra necessário é uma alteração efetiva do


procedimento de recebimento/rejeição da inicial, onde fique
consolidada a importância deste momento para o acusado, na
inauguração de uma nova etapa em que ele figurará como réu, posição
estigmatizatória na sociedade, como já tratado anteriormente.
Neste ponto, como argumentamos ao final do capítulo precedente,
o Anteprojeto do novo Código de Processo Penal se mostra ainda
pouco inovador na constitucionalização dos procedimentos penais.
Poderia ter seguido o caminho previsto no art. 6º da Lei 8.038/1990,
que criou um verdadeiro procedimento oral, em respeito ao sistema

289
Enio Walcácer de O. Filho

processual constitucional, que exige fundamentação e vai além, exige


contraditório para que seja aceita a inicial acusatória, vejamos o texto:
Art. 6º - A seguir, o relator pedirá dia para que o Tribunal delibere
sobre o recebimento, a rejeição da denúncia ou da queixa, ou a
improcedência da acusação, se a decisão não depender de outras
provas.

§ 1º - No julgamento de que trata este artigo, será facultada


sustentação oral pelo prazo de quinze minutos, primeiro à acusação,
depois à defesa.

§ 2º - Encerrados os debates, o Tribunal passará a deliberar,


determinando o Presidente as pessoas que poderão permanecer no
recinto, observado o disposto no inciso II do art. 12 desta lei.

Contudo, a escolha até agora no anteprojeto admitiu este


rito procedimental apenas e tão somente para os que já eram
beneficiados por ele, sendo a sua previsão tratada no Capítulo V
apenas para os procedimentos da ação penal originária.
Como se vê, o modelo adotado para os processos de
competência originária, segue o que entendemos com uma evolução
do sistema rumo ao horizonte previsto pela Constituição para a
formação de culpa. Um procedimento que se norteia pela oralidade,
contraditório, publicidade e fundamentação na decisão, em respeito
aos princípios constitucionalmente insculpidos na mudança da ótica
processual para a vertente de proteção do acusado contra o poder
estatal (ex parte populi).
Tal escolha, de não adoção do contraditório para juízo
de admissibilidade da inicial acusatória reflete em certa medida o
pensamento do relator do Anteprojeto Eugênio Pacelli de Oliveira,
que já defendia a ideia da desnecessidade deste com o seguinte
argumento:

290
Enio Walcácer de O. Filho

Não há no texto constitucional qualquer exigência de exercício de


ampla defesa antes da ação penal. Aliás, como vimos no exame do
sistema acusatório, a característica essencial deste sistema processual,
ao lado da atribuição a órgãos diferentes das funções de acusar e
julgar, é o início da fase processual a partir justamente do ingresso da
jurisdição após o oferecimento da peça acusatória. Nada impede,
portanto, que se ouça a defesa antes do recebimento da acusação. No
entanto, nada há que obrigue o legislador a assim se conduzir. (2015,
p. 684)

Tal argumento, ao nosso ver, demonstra certa imprecisão na


interpretação dos dispositivos constitucionais regentes do processo,
como é o instituto qualificador do processo, no sentido dado por
Fazzalari de procedimento em contraditório. Nas palavras de Rosa
(2006, p. 221):
Entretanto, a visão prevalente, a la Dinamarco, demonstra o
desconhecimento da atual compreensão de processo, já apontada por
Cordero, dado que o processo na contemporânea configuração da
relação jurídica, segundo Fazzalari, é o procedimento em
contraditório. Até porque existem outros processos, como o tributário,
administrativo, nem sempre em contraditório. O contraditório é, pois,
a característica que diferencia o processo do procedimento
O que qualifica, pois o processo é o contraditório, e sendo esta a
sua essência qualificadora, inclusive com assento constitucional (ex vi.
art. 5º, LV CF/88), devendo o procedimento se desenvolver por meio
deste contraditório, desde o seu nascimento, ato jurisdicional que
decide pelo recebimento/não recebimento, até a sua conclusão - ato
jurisdicional que decide pelo acolhimento/não acolhimento da
pretensão punitiva.
Tal entendimento por nós manifestado é a essência do que
preconiza Fazzalari (apud ROSA, 2006, p. 222) quando diz que
“l'essenza stessa del contraddittorio esige che vi partecipino almeno
due soggetti, un interessado e un controinteressato: sull’uno dei quali

291
Enio Walcácer de O. Filho

l’atto finale è destinato a svolgere effetti favorevoli e sull'atro effetti


pregiudizievoli.”
O valor do processo penal então, no sistema que se tenta
estabelecer como democrático, é exatamente o de permitir a
materialização dos ditames constitucionais em um palco onde o
diálogo aconteça sempre previamente a uma decisão, que deve
fundamentar-se em argumentos válidos dentro deste sistema, e
manifestar-se por meio de uma fundamentação racional, permitindo a
irresignação pelas partes neste palco dialogal que é o processo.
Portanto, a qualificação do contraditório exige não apenas um
momento em que o princípio se qualifica, mas a sua utilização como
base anterior a qualquer decisão relevante que se tome dentro do
processo, sendo o nascimento da ação penal um destes momentos
fulcrais no caso penal.
Em uma tentativa de interpretação coerente do sistema de
recebimento/rejeição da inicial acusatória, Geraldo Prado defende que
no momento processual do art. 395, não há efetivamente o seu
recebimento, fazendo apenas o magistrado uma avaliação apriorística
das condições da ação, argumenta o autor que apenas após a citação e
a apresentação da resposta à acusação é que “...o juiz poderá receber a
inicial (art. 399), caso não a rejeite à luz dos novos argumentos ou não
absolva o acusado com fundamento em alguma das causas previstas
no art. 397 do mesmo estatuto”. (2008, p. 4-5)
Apesar de entender como essencial a dialética, e como já
argumentamos defender a necessidade do contraditório prévio ao ato
de recebimento ou rejeição da inicial, bem como a necessidade de
fundamentação também do recebimento, entendemos como
impossível ainda, no sistema como está, o entendimento que o
292
Enio Walcácer de O. Filho

recebimento da inicial só seria feito no momento processual do art.


399 do CPP. Tal posicionamento que mantemos se justifica pelo
momento processual anterior, previsto no art. 397, que possibilita ao
magistrado a absolvição sumária do acusado logo após o recebimento
da resposta à acusação, e antes de designar o dia e a hora para a
audiência de instrução. Ora, se no art. 397 do CPP (momento anterior
ao 399), ainda não tivesse sido recebida a inicial, como argumenta
Geraldo Prado, como poderia o juiz sentenciar o réu absolvendo-o,
julgaria qual processo se ele ainda não tinha se formado?
Defendemos ainda a necessidade de alteração do texto legal para
promoção do contraditório antes do ato de recebimento da inicial
acusatória, sob a ótica de alguns princípios como o da isonomia entre
a acusação e a defesa. Na sistemática atual do CPP, o inquérito
policial, regra gera, tem um prazo para a sua conclusão de 30 dias
quando o réu está solto, ainda existindo um prazo de 15 dias, neste
mesmo caso, para que seja oferecida a inicial acusatória. Mesmo com
a alteração trazida pela Lei 13.245 em janeiro de 2016, ampliando os
poderes do advogado nas investigações preliminares, é importante
notar que o levantamento dos elementos informativos é feita
primordialmente pela ótica da acusação permitindo que o primeiro
contato do magistrado ao receber a inicial acusatória seja com
elementos, tanto da inicial acusatória quanto do inquérito policial e a
opinião da autoridade judiciária, sob uma ótica basicamente unilateral
e voltada para a culpa do acusado.

5. A COGNIÇÃO INICIAL DO JUIZ E SEUS EFEITOS


PROCESSUAIS

293
Enio Walcácer de O. Filho

5.1. AS COGNIÇÕES INICIAIS DO CASO PENAL: O


ETIQUETAMENTO POLICIAL

O primeiro contato que um magistrado tem com o caso penal se dá


sob a ótica da acusação. Tem em suas mãos não apenas a versão do
acusador, mas toda uma carga de elementos cognitivos produzidos no
bojo da investigação preliminar, em regra produzida pelas polícias
judiciárias, com carga eminentemente acusatória.
Como já defendemos, por falta de uma evolução no inquérito
policial no Brasil, que persiste no mesmo procedimento desde 1871,
há uma quase exígua consolidação dos direitos e garantias
fundamentais nesta etapa procedimental o que permite uma
unilateralidade nas afirmações e elementos ali inseridos, mesmo após
a Lei 13.245/2016, visto que a grande maioria dos acusados não tem
advogados nesta etapa procedimental, já que não é dever do Estado
assegurar a defesa gratuita neste momento da persecução.
Importante então notar que a polícia judiciária, na realização do
inquérito policial, não mantém uma posição neutra em relação ao
investigado, sendo imparcial. Pelo contrário o que se constata é que a
polícia judiciária atua como acusadora fomentando um conjunto de
elementos que buscam corroborar a culpa do investigado, em geral
naquelas populações tradicionalmente selecionadas como alvo do
sistema penal, a “violência cotidiana do sistema penal recai sobre os
setores mais vulneráveis da população” (ZAFFARONI, 2010, p.154)
Os setores mais vulneráveis da sociedade já são estigmatizados
pelos próprios policiais e rotulados diante de cognições previamente
internalizadas nas corporações policiais ou o que Zaffaroni (2010, p.

294
Enio Walcácer de O. Filho

141) chama de “processo deteriorizante de identidade” pelo qual passa


o recruta de internalização de estereótipos do “inimigo” e formas
procedimentais de atuação em que liga a “eficiência” de sua atuação à
comprovação por meio de sua investigação que o suspeito deve ser de
fato denunciado pelo MP. O que se vincula à eficiência do inquérito é
o indiciamento do acusado, o seu processamento e a sua condenação.
Axiologicamente se liga a efetividade da atuação não na busca da
justiça e sim na condenação do acusado.
Há então uma introjeção no papel do policial como o de acusador,
o “homem bom” que deve combater o mal. Defende Zimbardo (2012,
p. 26) que “sustentar uma dicotomia bem-mal também permite que
“boas pessoas” se eximam de sua responsabilidade”. Há uma
introjeção de um papel que deve ser cumprido pelo policial, que foca
no eficientismo e no punitivismo, há uma burocratização do papel do
investigador, do delegado, do escrivão, cada um cumpre apenas seu
papel, vinculado à formação da culpa sob a ótica punitivista, “pode-se
dizer que a organização como um todo é um instrumento para eliminar
responsabilidade” (BAUMAN, 1998, p.190), no caso da ação policial
ainda assegurado pelo fato de que a pessoa será julgada adiante, e que
qualquer erro pode ser desfeito na Ação Penal posterior. Contudo,
alguns danos podem ser irreversíveis.
Neste cenário brasileiro onde em regra já se sabe quem são os
inimigos, e o que se busca dos inimigos (punição), já temos uma
cognição previamente formada nos órgãos policiais de persecução que
se transmite na elaboração do inquérito e na sua conclusão e que virá a
contaminar toda a persecução penal posterior, fornecendo apenas
elementos que buscarão direcionar a ação penal, desde o seu princípio,

295
Enio Walcácer de O. Filho

para a condenação do acusado (em geral na investigação e específico


na ação penal).
Entendamos agora o que se considera dissonância cognitiva nos
termos de Festinger (1975, p. 13):
Em resumo, proponho que a dissonância, isto é, a existência de
relações discordantes entre cognições, é um fator motivante per se.
Pelo termo cognição, aqui e no restante do livro, entendo qualquer
conhecimento, opinião ou convicção sobre o meio ambiente, sobre nós
próprios ou o nosso comportamento. A dissonância cognitiva pode ser
considerada uma condição antecedente que leva à atividade orientada
para a redução da dissonância, tal como a fome conduz à atividade
orientada no sentido de redução da fome.
O que se propõe na teoria psicológica de Festigner é que a
depender do prévio conhecimento (cognição) que temos sobre
determinado assunto agimos no sentido de manter aquele
conhecimento evitando outros conhecimentos que sejam dissonantes.
No caso policial poderíamos dizer que para certas pessoas alvos do
sistema, onde existe uma propensão a ligar a atividade e o modo como
a pessoa foi preso com os conhecimentos e convicções da corporação
e do treinamento policial que ligam àquela pessoa à ideia de culpado,
há uma atividade de investigação que se orienta para encontrar
elementos que corroborem essa visão e a dispensa de elementos que
criem um estado de dissonância cognitiva nos policiais. Tal fator, com
suporte na teoria de Festinger (1975, p. 13), seria uma motivação
psicológica inerente à um indivíduo tal e qual a fome, e adverte que “é
uma motivação muito diferente daquela com que os psicólogos estão
habituados a lidar, mas nem por isso é menos poderosa.”
Essa motivação que guia a etapa investigativa para um fim
orientado a fim de reduzir a dissonância do investigador
posteriormente vem a contaminar também o julgador, no que é foco
aqui de nosso trabalho de pesquisa.

296
Enio Walcácer de O. Filho

5.2. A COGNIÇÃO INICIAL DO MAGISTRADO: A


DIFICULDADE DE SE INVERTER DECISÕES

Quando um magistrado se depara com a inicial acusatória,


como regra ele tem a sua mão um conjunto de cognições previamente
orientados a um determinado fim, a condenação do réu. Diante de si o
magistrado, quando antes da decisão entre o recebimento e a rejeição
da inicial, tem vários elementos informativos concatenados
logicamente e direcionados à conclusão que chegou a autoridade
policial quando do indiciamento do investigado. Ao final do inquérito,
consoante à Lei 12.830/2013 em seu art. 2º §6º, a autoridade policial
deverá “...análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a
autoria, materialidade e suas circunstâncias.”. Verificamos que neste
análise final do que foi produzido a autoridade policial deduz uma
autoria e não apenas, como deveria ser feito, indícios desta autoria,
indicando consoante ao seu entendimento se o investigado é ou não é
culpado fundamentado em tudo que foi colhido e registrado no
inquérito policial – uma construção unilateral de uma história, já que o
inquérito não permite o contraditório, a ampla-defesa, a participação
efetiva do réu na produção dos elementos de informação, que como
veremos, mesmo não podendo ser utilizados como prova, consoante
ao art. 155 do CPP.
Diante deste quadro percebe-se que no momento inicial da
etapa judicial do processo penal, em regra no primeiro contato do juiz
com o caso penal, ele têm à sua disposição alguns elementos de
conhecimento, quais sejam: a denúncia com a narração da história que

297
Enio Walcácer de O. Filho

corrobora o pedido de condenação do MP; o indiciamento do


delegado que indica a autoria do fato segundo a sua opinião
investigativa; uma série de elementos investigativos colhidos como
forma de corroborar a visão policial sobre o caso; algumas provas
antecipadas em regra relacionadas à materialidade do fato.
Sobre estes elementos temos que perceber que, no que tange à
Denúncia do MP ela foi construída tendo como base exclusiva, como
regra, a cognição do caso dada pelo inquérito policial, portanto a
“história” ali contada é nada mais do que um resumo sintético do
colhido no procedimento investigatório, com um incremento
doutrinário e jurisprudencial que corrobore a necessidade de
condenação do acusado. Para dar mais consonância às afirmações do
inquérito dá-se apenas uma roupagem mais robusta a todo material já
produzido, juridicamente falando, buscando mais elementos agora
jurídicos que corroborem o que fora colhido na investigação.
Sobre os elementos do inquérito estes estão na grande maioria
direcionados à uma tese previamente construída, nas palavras de
Lopes Jr.e Rosa (2015, p.35):
a polícia, não raras vezes, toma como verdadeira a hipótese primeva e
fecha os olhos (e ouvidos) para outras linhas investigativas,
canalizando os esforços em comprovar apenas a veracidade dessa
hipótese descartando preciosas informações que poderiam, inclusive,
negá-la.
Estes elementos em regra unidirecional não apontam teses e
antíteses próprias do sistema contraditório exigido pela Constituição
de 1988, já se iniciando com uma hipótese central que faz com que a
investigação seja direcionada ao propósito de reduzir as dissonâncias
corroborando a hipótese inicial. No sistema processual brasileira
grande parte das investigações não iniciadas após a prisão em
flagrante, onde o ato de ter flagrado o acusado já exige o indiciamento
298
Enio Walcácer de O. Filho

inicial (hipótese de culpa) que é apenas ratificado ao final (certeza de


culpa), sendo ao longo deste caminho reduzidas as dissonâncias e
reforçadas as consonâncias nas cognições juntadas aos autos. É um
evento natural, conforme Festinger (1975, p. 25) “a presença da
dissonância dá azo a pressões para reduzi-la ou eliminá-la”, ou seja,
naturalmente a hipótese inicial guiará toda a investigação a
comprovação da hipótese já lançada ex anti. Somemos isto aos
etiquetamentos sociais históricos e aos etiquetamentos de certas
condutas, pessoas e regiões pelas corporações policiais, todos estes
elementos cognitivos somados exercem uma pressão quase irresistível
a uma condenação prévia sendo construída ao longo do processo.
É diante destes elementos que se encontra então os magistrados
quando do recebimento da inicial acusatória. Uma somatória de um
grande número de cognições que permitem a visão apenas de um lado
da história. Inicialmente há uma pressão irresistível na cognição do
juiz para o recebimento da inicial acusatória, já que ele não tem,
aparentemente, nenhuma dissonância cognitiva no que é apresentado.
Neste sentido os casos em que a inicial são rejeitadas acontecem tão
somente quando há uma má elaboração na inicial acusatória ou
mesmo quando alguma falha jurídica é cometida. Há então apenas
possibilidade de dissonância quanto aos elementos legais para a
aceitação da inicial.
Por outro lado, na grande maioria dos casos quando a inicial
acusatória é recebida, uma mácula já foi cometida com o então
formalmente acusado. Tudo que foi despejado nas mãos do juiz, e
toda a carga de cognições dada a ele foi relativa à acusação. Como no
sistema de recebimento do procedimento ordinário não há, como nas
ações originária dos Tribunais, debate prévio, há o contato inicial com
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Enio Walcácer de O. Filho

uma cognição apenas, e sem dissonância aparente, sendo que só há a


visão da acusação (polícia e MP), o juiz decide com relativa
facilidade, mesmo quando fundamentando a decisão o fazendo com
uma base relativamente sólida, tendo em vista os elementos que tem à
sua disposição (inquérito+denúncia).
Nesta decisão inicial o juiz demonstra a fundamenta uma escolha
relativamente fácil, em face de elementos que corroboram, via de
rega, uma visão apenas do caso. Em experimento descrito por
Festinger (1975, p. 80-81), há um estudo sobre a dificuldade de se
modificar uma decisão depois de tomada e a busca que se dá pelo
indivíduo decisor em buscar elementos que corroborem a sua decisão
inicial, evitando uma mudança de entendimento, vejamos o que diz o
autor:
1. Após uma decisão, registra-se uma busca ativa de informações que
produzam uma cognição consoante com a ação empreendida.
2. Após uma decisão, registra-se um aumento de confiança na decisão
ou um aumento da discrepância em atratividade entre as alternativas
envolvidas na escolha, ou ambas as coisas. Cada um reflete a redução
bem sucedida da dissonância.
3. A redução bem sucedida da dissonância manifesta-se também na
dificuldade em inverter uma decisão, uma vez que esta tenha sido
tomada, e na implicação que a cognição mudada tem para a futura
ação relevante.
4. Os efeitos acima indicados variam diretamente com a magnitude da
dissonância criada pela decisão.
Neste sentido, a decisão inicial do magistrado em receber a inicial
acusatória indica uma propensão de sua cognição com os elementos
trazidos para a sua apreciação, que devem ser utilizados como
fundamento para a sua decisão. A depender da magnitude da decisão
(apenas recebimento / recebimento e decretação de prisão /
recebimento e decretação de qualquer cautelar), ampliam a dificuldade
de reversão da decisão final do magistrado, e a atenção que ele dará a

300
Enio Walcácer de O. Filho

outros elementos cognitivos que serão apresentados e que tenderão a


ampliar a sua dissonância cognitiva, ou seja, a força dissonante que
terá para si a defesa do acusado.
Há então, para além da versão legalmente imposta de uma
presunção que assiste ao réu, de que é inocente, uma real cognição do
magistrado pela culpa do acusado, que no processo real, de acordo
com a teoria da dissonância cognitiva, terá que descontruir a imagem
de acusado que fora construída na mente do magistrado com os
elementos cognitivos inicialmente apresentados (ip+denúncia), e tão
maior deverá ser o conjunto de provas e argumentos da defesa
(cognições) quanto maior foi o contato do magistrado com estes
elementos acusatórios de cognição: decretação de cautelares reais,
pessoais, probatórias e o recebimento da inicial acusatória.
Importante então entender de que forma que o magistrado se
comporta em relação às novas cognições que lhe serão apresentadas
pela defesa para a sua decisão final. Partimos então do entendimento
que as novas cognições apresentadas são involuntariamente expostas
ao juiz que não pode evitá-las, por dever legal o trabalho do
magistrado é expor-se à dissonância gerada pelo contraditório, mas
que de forma que este contraditório age diante de uma pessoa que foi
exposta previamente a uma cognição apenas e obrigado a decidir
diante apenas desta cognição?
Festinger (1975, p. 125) explica que diante destes elementos
dissonantes:
será muito provável a observação de coisas tais como tentativas para
evitar ou escapar a nova exposição, interpretação ou percepção
errônea do material, ou qualquer outra técnica ou manobra que ajude a
abolir a dissonância recém-introduzida e impedir nova introdução de
dissonância.

301
Enio Walcácer de O. Filho

É provável então que diante de uma dissonância que se apresente


ao magistrado ele busque a redução da dissonância não apenas
aderindo a teoria de defesa, mas também por “...processos defensivos
que rapidamente se estabelecem para impedir que a nova cognição se
consolide de forma irrevogável.” (FESTINGER, 1975, p. 127)
Esclarecemos que tais eventos de negação à cognição que seja
dissonante não são conscientes sendo naturais com relação à reação
das pessoas. Desta feita verifica-se que o preconizado
constitucionalmente quanto à cognição inicial que deveria ter o juiz,
revestida na presunção de inocência, torna-se invertida diante da
sistemática processual, o que faz com que seja iniciado o processo,
após a decisão de recebimento da inicial, com uma presunção
cognitiva de culpa por parte do juiz.
Diz Festinger (1975, p. 159):
Quando existe dissonância, as pessoas estarão aptas a furtar-se ao
impacto da informação que aumenta a dissonância, mesmo se exposta
à força a tal informação, recorrendo a vários meios de percepção
errônea, a negação de validade, etc.
A “realidade” do caso criminal e consequentemente do réu é
gestacionada no imaginário do magistrado à partir da construção da
linguagem nas peças das quais ele dispõe inicialmente, é como cita
Sapir (apud DEFLEUR e BALL-ROKEACH, 1993, p. 270):
...a língua condiciona fortemente todo o nosso modo de pensar acerca
de problemas e processos sociais. Os seres humanos não vivem
sozinhos em um mundo objetivo nem no mundo da atividade social,
como é geralmente admitido, mas se acham bem a mercê da língua em
particular que se tornou meio de expressão para a sua sociedade. É
bastante ilusório imaginar que a gente se ajusta à realidade
essencialmente sem recorrer ao emprego da língua e que esta seja um
meio incidental de resolver problemas específicos de comunicação ou
reflexão.
Ou seja, há uma realidade que se constrói inicialmente por meio de
palavras e significados na mente do julgador, que se vê compelido a

302
Enio Walcácer de O. Filho

buscar uma dissonância diante dos elementos cognitivos que lhes são
apresentados por diversos outros órgãos de atuação estatal, que por
sua vez já carregam consigo uma visão determinada de mundo, parcial
portanto e determinada, visando a persuasão do juiz quanto à culpa do
acusado. Há então uma contaminação inicial do magistrado que
dificulta a defesa posterior já que o juiz não mais é imparcial ao caso,
dispondo à partir daí de uma possibilidade de dissonância cognitiva
que reduzirá as chances da defesa no processo dialógico da formação
de culpa.
Tais informações corroboram o nosso entendimento, agora sob a
égide psicológica da necessidade de alteração total do rito de
recebimento da inicial acusatória para que seja possível a
consolidação da presunção de inocência e seja direito do réu o
julgamento por um juiz que seja de fato imparcial e que tenha a
formação da cognição feita a partir da ignorância do caso e não sob o
efeito de um conjunto cognitivo inicial acusatório que terá extrema
relevância para a sua decisão ao final do processo.

Portanto defendemos aqui, para dar um passo ais adiante ainda no


sistema processual vigente, que para que haja um rompimento na
cadeia cognitiva do magistrado que aprecia os elementos da acusação
com o magistrado que julgue o mérito da causa, seja o procedimento
penal bipartido em uma forma similar ao procedimento adotado no
Tribunal do Júri, permitindo que primeiro se julgue a acusação -
decidindo pelo recebimento ou rejeição da inicial, em um
procedimento em que se permita o contraditório e ampla-defesa -, e
após seja remetida a decisão tão somente como as provas antecipadas,
não repetíveis e cautelares para um novo juiz que, ignorando a causa

303
Enio Walcácer de O. Filho

a ser debatida, sem a influência de elementos cognitivos


extraprocessuais, possa decidir diante das cognições produzidas em
contraditório judicial, oportunizando em mesma medida acusação e
defesa, em momento processual concentrado (audiência uma de
instrução) a produção dialética do conhecimento que levará o
magistrado a sua decisão final, sem as máculas de uma inevitável
dissonância cognitiva como no sistema tradicional hoje utilizado no
Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. O recebimento da inicial acusatória é, na sistemática processual,


uma decisão interlocutória mista não terminativa exigindo, portanto
fundamentação do magistrado, demonstrando os elementos fáticos-
jurídicos que consubstanciaram esta decisão como
constitucionalização de conformação do ato inaugural da ação penal
no Processo Penal Brasileiro;
2. A jurisprudência vem evoluindo e exigindo do recebimento da
inicial acusatória a fundamentação do magistrado por entender que o
ato de formalização da acusação pelo Estado, com a transformação do
então denunciado em réu, é ato estigmatizante sendo essencial que os
elementos que justificaram a decisão pelo magistrado sejam
discorridos para conhecimento do réu, em homenagem ao
contraditório (conhecer) e a constitucionalização e conformação do
sistema processual penal;

304
Enio Walcácer de O. Filho

3. O Código de Processo Penal projetado, em tramitação, não


mudará em nada o sistema processual do rito de recebimento,
mantendo uma discriminação processual injustificável entre os
procedimentos originários nos Tribunais e os ritos comuns, não
trazendo a necessária constitucionalização do procedimento para a
maior parcela dos alvos do sistema penal brasileiro, tendo evoluído
tão somente na previsão de recurso contra o recebimento;
4. O sistema atual de recebimento macula a imparcialidade do
magistrado possibilitando a sua afetação pela dissonância cognitiva
em uma resistência à modificar o seu entendimento inicial ligado à
culpa quando da decisão pelo recebimento da inicial, graças aos
elementos dos itens 5 e 6;
5. Há uma dissonância cognitiva maior à medida em que o juiz
tem contato antecipadamente com o caso penal, quando da tomada de
decisões cautelares no processo, sejam elas reais, pessoais ou
probatórias, fazendo com que haja uma resistência natural aos
elementos cognitivos que serão trazidos pela defesa apenas em
momento processual posterior ao recebimento da inicial acusatória.
6. As cognições trazidas pelo inquérito policial e pela inicial
acusatória são eminentemente voltadas para a visão punitivista,
trazendo ao magistrado uma visão que se consolida inicialmente
dificultando naturalmente, consoante a teoria de Festinger, à aceitação
de fatos contrários àquela cognição inicial;
7. Para se evitar essa dissonância cognitiva decorrente dos itens 5 e
6 torna-se necessária a bipartição do rito processual em uma primeira
etapa onde se julgaria o recebimento da acusação e após uma segunda
etapa onde se faria apenas o debate do mérito por um juiz que não
tivesse tido contato inicial com nenhuma das cognições (acusação e
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Enio Walcácer de O. Filho

defesa) para que a decisão final não fosse maculada em decorrência da


teoria da dissonância cognitiva e a dificuldade que se tem de alterar
uma decisão inicialmente tomada.
8. Para efetivação deste sistema bipartido é essencial que se amplie
a atuação do Juiz de Garantias no anteprojeto do Código de Processo
Penal permitindo que toda a cognição decorrente dos elementos de
investigação sejam filtrados antes de que se inicie a ação penal onde o
juiz de mérito buscará efetivamente formar a sua convicção por meio
das cognições dialogadas e contraditórias próprio do sistema
acusatório exigido por nossa Constituição Federal de 1988.

REFERENCIAIS CONSULTADOS

BAUMAM, Zygmunt. Modernidade e holocausto. Trad: Marcus


Penchel. Zahar. Rio de Janeiro, 1998.
BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do
Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto:
Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
BRASIL. Código de Processo Penal (Decreto 3.689/1941. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-
lei/del3689compilado.htm>. Acesso em: 13/05/2015.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo.
Malheiros. São Paulo, 2014.

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Enio Walcácer de O. Filho

DEFLEUR, Melvin Lawrence. BALL-ROKEACH, Sandra. Teorias


da comunicação de massa. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1993.
FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Trad: Eduardo
Almeida. Zahar. Rio de Janeiro, 1975.
LAFER, Celso. A reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo
com o pensamento de Hannah Arendt. Companhia das Letras. São
Paulo, 1988.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. Saraiva. São Paulo,
2013.
LOPES JR, Aury. ROSA, Alexandre Morais da. Processo Penal no
limte. Empório do Direito, Florianópolis, 2015.
MARQUES. José Frederico. Elementos do direito processual penal.
1º ed. vol. 1. Bookseller. Campinas, SP, 1998.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. Aproximação ao direito penal
contemporâneo. trad. Roberto Barbosa Alves. Revista dos Tribunais.
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ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda
de legitimidade do sistema penal. Tradução: Vânia Romano Pedrosa e
Amir Lopes da Conceição. Editora Revan. Rio de Janeiro, 2010.
ZIMBARDO, Philip. O efeito lúcifer. Trad: Thiago Novaes Lima.
Record. Rio de Janeiro, 2012.

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