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Ana Paula de Barcellos

Professora Adjunta de Direito Constitucional da


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERI);
Doutora em Direito Público pela UERI

PONDERAÇÃO,
RACIONALIDADE E
ATIVIDADE JURISDICIONAL

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Rio de Janeiro • São Paulo • Recife L6tersbe!ANo.J•
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2005
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Arnaldo Lopes Süssekind — Presidente AGRADECIMENTOS
Carlos Alberto Menezes Direito
Caio Tácito
Luiz Emygdio F. da Rosa Jr.
Celso de Albuquerque Mello (in rnemoriam)
Ricardo Pereira Lira
Ricardo Lobo Torres Poder agradecer, já se disse, é uma benção divina. Mas é
Vicente de Paulo Barretto preciso retificar. Na verdade, não se tratapropriamente de
Revisão Tipográfica: M° de Fátima Cavalcanti poder agradecer. Sempre há o que agradecer. Na maior parte
das vezes a questão é ter olhos de ver o que se tem recebido
Capa: Sheila Neves
e humildade para reconhecer que, sozinhos, somos pouco
Editoração Eletrônica: TopTextos Edições Gráficas Ltda. mais que nada. No caso específico deste trabalho, o mais cego
2 tiragem - janeiro de 2007 e soberbo dos homens não teria como deixar de ser grato.
Há tanto a agradecer e a tantas pessoas que este registro,
JO. _ 0102 mais do que um costume editorial, tornou-se pessoalmente
tão importante quanto o próprio trabalho que o segue. Não
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte fui capaz de inventar novas línguas ou imaginar formas origi-
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. nais de demonstrar minha gratidão e tocar as pessoas. Mais
uma vez, só me restam as palavras de sempre. Seja como for,
Barcellos, Ana Paula de estou certa de que Deus ouvirá minhas orações em favor de
8426p Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional / Ana Paula de
Barcellos. — Rio de Janeiro: Renovar, 2005. cada um dos envolvidos.
356p. ; 21 cm Este livro corresponde, com pequenas adaptações, à tese
denominada "A técnica da ponderação: metodologia e parâ-
Inclui bibliografia metros jurídicos", apresentada em conclusão do Doutorado
ISBN 85-7147-511-3
em Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade
1. Direito constitucional — Brasil. I. Título. do Estado do Rio de Janeiro. Participaram da banca exami-
CDD 343.8104 nadora, para honra do trabalho e meu orgulho pessoal, além
Proibida a reprodução (Lei 9.610/98)
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
do Professor Luís Roberto Barroso, orientador do estudo, os dos trabalhando, justamente para que eu pudesse me dedicar
professores José Afonso da Silva, Clèmerson Merlin Clève, ao doutorado. Seu carinho em todo o tempo, porém, é o que
Ricardo Lobo Torres e Paulo Braga Galvão. Sou grata de vale a pena e sou muito grata a eles.
forma muito particular a cada um deles por suas críticas, Flávio Galdino, companheiro de jornadas acadêmicas,
observações e sugestões sobre a tese. A rigor, a expectativa participou de inúmeras discussões sobre diferentes pontos da
de ter tais professores na banca examinadora me impulsionou tese, reviu o texto e esteve sempre presente. Sou grata ainda
a realizar o melhor trabalho que fui capaz de produzir, e a meus alunos da Faculdade de Direito da UERJ. Muitas
apenas por isso já sou especialmente grata. vezes eles foram cobaias involuntárias das idéias desenvolvi-
O orientador deste trabalho foi o Professor Luis Roberto das neste trabalho e o produto obtido nos grupos de pesquisa
Barroso. Há pessoas que entram na vida de outras e mudam foi útil em muitos pontos da tese que agora se transforma
suas existências de forma maravilhosa e definitiva. Na minha em livro. Leandro Barifouse, além de cobaia, prestou impor-
vida, uma dessas pessoas é, sem dúvida, o Professor Luís tante ajuda na revisão dos originais.
Roberto Barroso. Há onze anos compartilhamos amizade, Passarei o resto de meus dias ocupada em agradecer a
companheirismo fraternal, projetos acadêmicos e profissio- meu marido, Daniel; não será suficiente, M28 será um prazer.
nais. Eu gostaria de veicular minha gratidão de uma forma Ele, como ontem, e a cada dia mais, é a alegria da minha vida.
precisa, que correspondesse ao que penso e sinto, mas essa Mais uma vez, sem ele, eu sequer seria eu mesma e nada
forma não existe na Terra. Só me resta dizer obrigada; mas disso teria importância ou valor algum. Obrigada, meu que-
me consola saber que serei perfeitamente compreendida. rido. Jonatas e Felipe são meus filhos de eleição e agradeço
Este trabalho não teria sido possível sem a ajuda incan- pelo carinho constante. Meus pais, José e Alice, e minha tia,
sável e preciosa em cada aspecto de Danielle Lins. Seu Marcelina, são incansáveis sustentáculos: obrigada mais uma
talento, sua inteligência e seu carinho foram imprescindíveis. vez.
Renata Ramos, lá de Cambridge, fez uma revisão completa e Reservo minhas melhores palavras para expressar minha
profunda do texto, além de ter sido uma interlocutora valiosa. gratidão a Deus, acima de tudo e de todos. Sinto-me como
Também reviram o texto, e me livraram de muitos proble- Abraão: em tudo tenho sido muito abençoada. A verdade é
mas, Eduardo Mendonça, Luís Eduardo Barbosa Moreira e o que toda boa dádiva vem de Deus e é preciso ser grata. Ao
insuperável Nelson Diz. Ajudaram muitíssimo na revisão Todo-Poderoso, portanto, pai de nosso Senhor e Salvador
formal e padronização, em momentos diversos, os Felipes Jesus Cristo, por seu amor e por sua bondade permanentes,
Fonte e Barcellos e Juba Rodrigues. Carmen Tiburcio foi e é agradeço com tudo o que sou e possuo.
um ser humano sob a forma de injeção de ânimo para quem
está ao seu redor.
Todas as pessoas que acabo de listar estão ou estiveram
vinculadas a minha segunda família: o escritório Luis Roberto
Barroso & Associados. Na verdade, se alguém não ajudou
diretamente neste trabalho foi porque não pôde. Esse é o
caso dos brilhantes advogados Karin Basílio Khalili, Viviane
Perez e Rafael Barroso Fontelles, que estavam muito ocupa-
Prefácio

DIREITO, RACIONALIDADE
E PAIXÃO

I. A autora

Há professores que mudam a vida dos seus alunos. Pelo


talento, pelo amor ao ensino ou por um gesto amistoso,
servem de inspiração, exemplo ou símbolo para os jovens
estudiosos. Tive alguns mestres assim ao longo da vida, e
os guardo na mente e no coração. Nos meus melhores
sonhos, vivo a esperança de ser um desses.
É menos comum, na vida acadêmica, um aluno mudar
a vida de seu professor. Foi o meu caso, na longa interação
acadêmica que mantenho com Ana Paula de Barcellos. Aliás,
percebi que isto poderia acontecer desde o primeiro mo-
mento, quando ela venceu o concurso para se tornar minha
monitora, pouco mais de dez anos atrás. A velocidade e
profundidade com que dava retorno às pesquisas que eu lhe
passava impuseram a mim mesmo, desde o começo do nosso
convívio, um novo ritmo e um outro patamar.
De lá para cá, Ana Paula e eu desenvolvemos uma
intensa relação profissional e acadêmica, na qual ela tem
sido não apenas uma interlocutora brilhante, construtiva e Em homenagem à autora e ao leitor, animo-me a
dedicada, mas também co-autora de diversos trabalhos que algumas reflexões acerca do atual estágio do debate cons-
produzimos juntos. Em livro recente que escrevi, prestei titucional no Brasil, que serviu de cenário e de inspiração
sobre ela o depoimento que me pareceu justo: para o desenvolvimento da tese que ora apresento.

"(...) E Ana Paula de Barcellos, que há dez anos ingres-


sou na vida acadêmica pelas minhas mãos, tendo sido II. Neoconstitucionalismo, interpretação constitucional e
minha monitora e minha orientanda de mestrado e de judicialização das relações sociais no Brasil
doutorado, até tornar-se professora da UERJ por con-
curso público. O leitor imaginará que tenha sido pro- A dogmática jurídica brasileira sofreu, nos últimos
veitosa para a jovem estudiosa a convivência com seu anos, o impacto de um conjunto novo e denso de idéias,
professor. Mas deve saber que a recíproca é mais identificadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo ou
intensamente verdadeira: de longa data beneficio-me principialismo. Trata-se de um esforço de superação do
eu de seu talento privilegiado, de sua inteligência legalismo estrito, característico do positivismo normativis-
emocional e de sua dedicação plena a todos os projetos ta, sem recorrer às categorias metafísicas do jusnaturalis-
com os quais se compromete". mo. Nele se incluem a atribuição de normatividade aos
princípios e a definição de suas relações com valores e
Um primeiro marco dessa relação foi sua dissertação regras; a reabilitação da argumentação jurídica; a formação
de mestrado, intitulada A eficácia jurídica dos princípios de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvi-
constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa huma- mento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada
na. Um trabalho precioso, que se tornou leitura obrigatória sobre a idéia de dignidade da pessoa humana. Nesse
no tema. Já agora vem à luz sua tese de doutorado, uma ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito
obra-prima acerca do novo papel de juízes e tribunais na e a Ética.
interpretação do direito: Ponderação, racionalidade e ati- Fenômeno contemporâneo, que entre nós iniciou seu
vidade jurisdicional. Trata-se, provavelmente, do mais curso após a Carta de 1988, foi a passagem da Constituição
bem-sucedido esforço já realizado na dogmática jurídica para o centro do sistema jurídico. À supremacia até então
brasileira de desenvolver parâmetros de juridicidade e meramente formal da Lei Maior agregou-se uma valia
racionalidade na contenção da discricionariedade judicial'. material e axiológica, potencializada pela abertura do sis-
tema jurídico e pela normatividade de seus princípios'.

Luis Roberto Barroso, Temas de direito constitucional, t. 111, 2005,


Registros. 3 V. Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 6: "O Código
2 Sem surpresa, seu trabalho foi aprovado com nota máxima, em Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador
banca da qual participaram, além de mim, como orientador, os eminen- do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilisticos
tes professores José Afonso da Silva, Clêmerson Merlin Ceve, Ricardo quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira
Lobo Torres e Paulo Braga Galvão. cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional". Vejam-se, também,
Compreendida como ordem objetiva de valores4 e como nalização do direitos, uma verdadeira mudança de para-
sistema aberto de princípios e regras', a Constituição digma que deu novo sentido e alcance a ramos tradicionais
transforma-se no filtro através do qual se deve ler todo o e autônomos do Direito, como o civil, administrativo,
direito infraconstitucional. Este importante desenvolvi- penal, processual etc.
mento metodológico tem sido designado como constitucio- Ainda nesse ambiente, desenvolveu-se um conjunto de
idéias que foi identificado — inclusive por mim e pela
autora — como a nova interpretação constitucional', mar-
Maria Celina B. M. Tepedino, A caminho de um direito civil constitu-
cional, RDC 65:21, 1993 e Gustavo Tepedino, O Código Civil, os cada pela mudança de dois paradigmas: o do papel da
chamados microssistemas e a Constituição: premissas para urna refor- norma jurídica e o do papel do intérprete na realização do
ma legislativa. In: Gustavo Tepedino (org.), Problemas de direito civil- direito'. Foi no âmbito dessas novas formulações teóricas
constitucional, 2001.
4 Na Alemanha, a idéia da Constituição como ordem objetiva de
valores, que condiciona a leitura e interpretação de todos os ramos do 6 Sobre o tema, v. Riccardo Guastini, La constitucionalización dei
direito, foi fixada no julgamento do célebre caso Liith, pelo Tribunal ordenamiento jurídico: el caso italiano. In: Miguel Carbonell (org.),
Constitucional Federal alemão, que assentou: "Los derechos funda- Neoconstitucionalismo(s), 2003; e Luís Roberto Barroso, O novo direi-
mentales son ante todo derechos de defensa del ciudadano en contra to constitucional e a constitucionalização do direito. In: Temas de
dei Estado; sin embargo, en las disposiciones de derechos fundamenta- direito constitucional, t. III, 2005.
les de la Ley Fundamental se incorpora también un orden de valores 7 Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, O começo da histó-
objetivo, que como decisión constitucional fundamental es válida para ria. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no
todas las esferas dei derecho" (Jürgen Schwabe, Cincuenta anos de direito brasileiro. In: Luís Roberto Barroso, A nova interpretação cons-
jurisprudência dei Tribunal Constitucional Federal alemán, 2003, Sen- titucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas,
tencia 7, 198). No caso concreto, o tribunal considerou que a conduta 2003.
de um cidadão convocando ao boicote de determinado filme; dirigido 8 A interpretação jurídica tradicional desenvolveu-se sobre duas gran-
por cineasta de passado ligado ao nazismo, não violava os bons costu- des premissas: a primeira, quanto ao papel da norma, que seria o de
mes, por estar protegida pela liberdade de expressão. oferecer, no seu relato abstrato, a solução para os problemas jurídicos;
5 A idéia de abertura abriga dois conceitos: incompletude — a Cons- a segunda, quanto ao papel do juiz, que seria o de identificar a norma
tituição não tem a pretensão de disciplinar todos os temas e os que aplicável ao problema que lhe cabe resolver, revelando a solução nela
disciplina somente o faz instituindo os grandes princípios — e certa contida. Sua função seria uma função de conhecimento técnico, de
indetenninação de sentido, que permite a integração de suas normas formulação de juízos de fato. Com o tempo, as premissas ideológicas
pela atuação do legislador e do intérprete. V. Luís Roberto Barroso, sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram
Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional bra- de ser integralmente satisfatórias, quer quanto ao papel da norma, quer
sileiro. In: A nova interpretação constitucional, 2003. Sobre a distinção quanto ao papel do intérprete. De fato, quanto ao papel da norma, a
entre princípios e regras, v. infra e, especialmente, Ronald Dworkin, solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato
Taking rights seriously, 1997, e Robert Alexy, Teoria de los derechos abstrato da norma. Muitas vezes só é possível produzir a resposta
fundamentales, 1997. Para a idéia de abertura do sistema jurídico, v. constitucionalmente adequada à luz doproblema, dos fatos relevantes,
Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemático e conceito de sistema analisados topicamente; quanto ao papel do juiz, já não será apenas um
na ciência do direito, 1996. Para um tratamento sistemático destas papel de conhecimento técnico, voltado para revelar o sentido contido
questões, v. também J. J. Gomes Canotilho, Direito constitucional e na norma. O juiz torna-se co-participante do processo de criação do
teoria da Constituição, 2000, p. 1.121 es. Direito, ao lado do legislador, fazendo valorações próprias, atribuindo
que foram desenvolvidas ou sistematizadas categorias es- teórica. De fato, em nome da objetividade mínima do
pecíficas, que incluem o emprego da técnica legislativa das direito e da previsibilidade das condutas, impõe-se o de-
cláusulas abertas, a normatividade dos princípios, o reco- senvolvimento de parâmetros técnicos que permitam a
nhecimento da existência de colisões de normas constitu- controlabilidade das decisões, preservando o Estado de-
cionais, a necessidade do emprego da técnica da pondera- mocrático de direito de uma degeneração indesejável: a do
ção de valores e a teoria da argumentação como funda- voluntarismo judicial. Com pioneirismo e criatividade, este
mento de legitimação das decisões judiciais. O papel chave livro enfrenta o desafio trazido pela nova realidade da
da ponderação dentro desse novo modelo de racionalidade interpretação jurídica.
jurídica foi a motivação do estudo ora apresentado.
Por fim, todos estes elementos novos — pós-positivis-
mo, constitucionalização do direito, nova interpretação III. Algumas idéias centrais do trabalho
constitucional —, aliados a circunstâncias peculiares da
redemocratização no Brasil, levaram a um novo fenômeno: Na primeira parte de seu estudo, Ana Paula enuncia o
a judicialização da vida, a ampliação da interferência do propósito de sua tese: proceder a uma ordenação metodo-
Judiciário nas relações sociais em geral'. Isto tem sido lógica da ponderação jurídica, conceituada como a técnica
verdade não apenas em relação às grandes questões insti- de solução de conflitos normativos que envolvem valores
tucionais — e.g., a constitucionalidade das Reformas da ou opções políticas em tensão, insuperáveis pelas formas
Previdência e do Judiciário — ou afetas a direitos funda- hermenêuticas tradicionais. Na seqüência, escreve páginas
mentais — e.g., legitimidade da interrupção da gestação primorosas sobre a racionalidade e a justificação das deci-
de fetos inviáveis —, como também no que toca a temas sões judiciais, analisa as críticas e formulações alternativas
mais diretamente ligados à rotina da vida social, como o à ponderação e expõe o tratamento da matéria nos direitos
valor da mensalidade dos planos de saúde ou a majoração norte-americano e alemão. Como pressuposto desses no-
das tarifas telefônicas. vos desenvolvimentos, identifica a expansão do espaço
Pois bem: a abertura dos textos normativos, o exercício interpretativo e a ascensão política e institucional do Poder
de discricionariedade pelo intérprete e a expansão do papel Judiciário. Em suas palavras:
de juízes e tribunais criaram novas demandas de elaboração
"Nesse contexto, parte da sociedade (no Brasil e em
outros países), descrente do processo político normal,
sentido a cláusulas abertas e realizando escolhas. V. Luis Roberto Bar- alimenta a expectativa de que o Judiciário seja afinal
roso, Temas de direito constitucional, t. III, 2005, p. 515-16. um espaço onde possam desenvolver-se de maneira
9 Sobre este tema, v. Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Resende de mais lisa a discussão e a definição de políticas públicas.
Carvalho, Manuel Palácios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, A Esse movimento político acaba encontrando algum
judicialização da política e das relações sociais no Brasil, 1999; Mark
respaldo em disposições normativas bastante vagas,
Tushnet, Taking the constitution away from the cozias, 1999; Robert
Bork, Coercing virtue, 2003; e Ran Hirschl, Towards juristocracy, especialmente no nível constitucional, como visto aci-
2004. ma. A despeito do impacto que essa forma de visualizar
Na terceira e última parte da tese, Ana Paula de Barcellos
o Judiciário possa ter sobre o regime democrático, a desenvolve um conjunto de parâmetros preferenciais que
percepção desse fenômeno ajuda a entender o ambien- deverão orientar a atividade do intérprete. São eles presun-
te no qual a técnica da ponderação tem se desenvolvido ções de caráter relativo destinadas a reduzir a subjetividade
e aplicado". e ampliar a controlabilidade das decisões. Tais parâmetros
poderão ser gerais — aplicáveis a qualquer espécie de litígios
Na segunda pane do trabalho, a autora expõe um — ou particulares, que se ocupam de colisões entre dispo-
roteiro lógico e didático da ponderação, a ser percorrido sições específicas. Ao cuidar dos parâmetros gerais, assim
em três etapas, analiticamente desenvolvidas. Na primeira sintetizou a autora a sistematização que propôs:
etapa, cabe ao intérprete proceder à identificação dos
enunciados normativos em tensão. Na segunda etapa, cabe- "Ao longo do processo ponderativo o intérprete pode
lhe a identificação dos fatos relevantes e a apreciação da lançar mão de dois parâmetros gerais: (i) os enunciados
repercussão da incidência dos enunciados normativos so- com estrutura de regra (dentre os quais os núcleos dos
bre os fatos selecionados. Por fim, chega-se à terceira princípios que possam ser descritos dessa forma) têm
etapa, que é a fase decisória da ponderação. É bem de ver, preferência sobre aqueles com estrutura de princípios;
corno adverte o texto, que a técnica da ponderação em si e (ii) as normas que promovem diretamente os direitos
não oferece respostas para as questões de natureza material fundamentais dos indivíduos e a dignidade humana têm
que se colocam neste momento, mas a observância de preferência sobre aqueles que apenas indiretamente
determinados cuidados metodológicos ajudam na formu- contribuem para esse resultado.
lação da solução mais adequada. É como explica Ana Paula: (...) Embora o parâmetro geral seja o da preferência
das regras sobre os princípios, há duas situações nas
"Neste momento, o aplicador precisará de parâmetros quais as regras estarão envolvidas com a ponderação de
propriamente jurídicos para orientar suas escolhas que, certa forma: (i) quando a incidência de uma regra
no entanto, não são fornecidos pela técnica da ponde- produz tamanha injustiça que a torna incompatível com
ração em si. De toda sorte, antes mesmo desses parâ- as opções materiais da Constituição; e (ii) quando há
metros, três diretrizes devem ser consideradas pelo uma colisão insuperável .de regras".
intérprete: (i) qualquer decisão deve poder ser gene-
ralizada para casos equiparáveis (pretensão de univer- De minha parte, poderia prosseguir indefinidamente,
salidade), assim como a argumentação empreendida colhendo os incontáveis achados do texto. Mas seria uma
deve utilizar uma racionalidade comum a todos; (ii) pretensão e uma inconveniência pautar a leitura do livro
sempre que possível o intérprete deve produzir a con- de acordo com meus próprios olhos. Por isso mesmo, deixo
cordância prática dos enunciados em disputa; e (iii) a o caminho livre para que o leitof possa fazer as suas
decisão a ser produzida deve respeitar o núcleo dos escolhas e desfrutar, sem intermediários,' desse trabalho
direitos, ainda que um núcleo apenas consistente, e não memorável.
duro".
IV. Conclusão

O trabalho da professora Ana Paula de Barcellos é


motivo de orgulho e realização para o Programa de Pós-
graduação em Direito Público da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Nele se concentra o melhor do nosso
ideal: boa teoria constitucional, simplicidade e clareza na
forma e capacidade de promover uma interlocução cons-
trutiva entre a academia e o mundo real, entre teóricos e
operadores do direito. Na juventude de seus trinta anos,
Ana é uma jurista de primeira grandeza, que realiza com SUMÁRIO
maestria este desiderato.
Apenas uma última advertência. Não leia este livro
incidentalmente, como um fato casual da rotina dos estu-
dos jurídicos. Há risco de se desperdiçar uma grande INTRODUÇÃO
oportunidade. O trabalho que se segue é um marco na
compreensão das complexidades do direito em nosso tem- PARTE I
po e na busca de legitimidade, racionalidade e controlabi-
lidade para a interpretação judicial. Por isso mesmo, é I. LOCALIZANDO O TEMA DA PONDERAÇÃO 23
preciso percorrer as suas páginas com os sentidos em alerta 1.1. Ponderação, interpretação e antinomias 23
e o coração aberto, pronto para uma grande paixão. Há 1.2. Direito, racionalidade e justificação: algumas notas 39
risco de a vida não voltar a ser a mesma.
Rio de Janeiro, 22 de junho de 2005. II. EXAMINANDO AS CRÍTICAS À PONDERAÇÃO 49
Luís Roberto Barroso III. HÁ ALTERNATIVAS À PONDERAÇÃO? OS
Professor titular de direito constitucional da LIMITES IMANENTES, O CONCEPTUALISMO E A
Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ. HIERARQUIZAÇÃO 57
IV. ENFRENTANDO A PONDERAÇÃO: NOTAS
SOBRE AS EXPERIÊNCIAS NORTE-AMERICANA E
ALEMÃ 77
PARTE II

V. A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO: UMA PROPOSTA


EM TRÊS ETAPAS 91
V.1. Primeira etapa: identificação dos enunciados IX. PARÂMETRO GERAL 2: NORMAS QUE REALIZAM
normativos em tensão 92 DIRETAMENTE DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS
a) Interesses e enunciados normativos 96 INDIVÍDUOS TÊM PREFERÊNCIA SOBRE NORMAS
b) Normas e enunciados normativos 103 RELACIONADAS APENAS INDIRETAMENTE COM
c) Situações individuais e enunciados normativos 112 DIREITOS. 235
V.2. Segunda etapa: identificação dos fatos relevantes 115 IX.1. O momento e o objeto do parâmetro 236
a) Fatos relevantes 116 IX.2. Fundamentação: o direito interno e o
13) Repercussões dos fatos sobre os enunciados internacional e o procedimentalismo 245
normativos. 120
V.3. Terceira etapa: decisão 123 X. PARÂMETROS ESPECÍFICOS: ELEMENTOS PARA
a) Pretensão de universalidade 125 SUA CONSTRUÇÃO OU UM ROTEIRO PARA A
b) Busca da concordância prática 133 PONDERAÇÃO PREVENTIVA OU ABSTRATA 275
c) Construção do núcleo essencial dos direitos
fundamentais 139 CONCLUSÕES 295

VI. PONDERAÇÃO PREVENTIVA OU ABSTRATA E Referências bibliográficas 311


REAL OU CONCRETA 146

PARTE III

VII. ALGUMAS NOTAS SOBRE OS PARÂMETROS 159


Parâmetros preferenciais 159
VII.2. Parâmetros gerais e particulares 163

VIII. PARÂMETRO GERAL 1: REGRAS TÊM


PREFERÊNCIA SOBRE PRINCÍPIOS 165
VIII.1. Fundamentação 166
a) Revendo as distinções relevantes entre
princípios, sua estrutura e diferentes categorias, e
regras 166
b) Revendo as diferentes funções de princípios e
regras 185
VIII.2. É possível ponderar regras? 201
a) Modalidades de conflitos envolvendo regras 201
b) Solucionando os conflitos envolvendo regras:
eqüidade, imprevisão e invalidade de uma
incidência específica da regra 220
Introdução

O verbo ponderar e o substantivo ponderação não são


expressões privativas do chamado "mundo jurídico". O Di-
cionário Houaiss descreve ponderar como a ação de "atri-
buir pesos a diversas grandezas para calcular a média pon-
derada; examinar com atenção e minúcia; avaliar, apreciar
(p. as vantagens e as desvantagens); levar em consideração;
ter atenção sobre; sopesar" 1 . Neste sentido, toda decisão
humana minimamente racional envolve algum tipo de pon-
deração. O indivíduo avalia as vantagens e desvantagens de
casar ou permanecer solteiro, de adquirir uma casa ou um
apartamento, e, em função das conclusões a que chega,
toma suas decisões.
Na esfera pública, e em particular quando se cuida do
exercício do poder político, dá-se fenômeno similar. O ra-
ciocínio ponderativo, compreendido nesse sentido amplo,
será o principal instrumento lógico de trabalho do Legisla-
tivo. Cabe aos parlamentos, acima de tudo, avaliar vanta-
gens e desvantagens, "prós e contras", e decidir qual é a

1 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001, p. 2257.


melhor disciplina aplicável às diferentes matérias que lhes dos identificados inicialmente é aplicado e os demais são
cabe regular. O Executivo, embora vinculado às escolhas afastados ou que a incidência de um é restringida em pro-
do legislador na maior parte do tempo, também fará uso da veito dos outros. Já não se trata aqui, é bom notar, de ava-
ponderação nos seus espaços de competência própria e no liar, ponderar argumentos, razões ou o acervo probatório
âmbito de sua atuação discricionária. E o Judiciário ocupa- produzido; mas sim de avaliar, ponderar enunciados nor-
se exatamente de ponderar, compreendida a ponderação mativos válidos e em vigor, muitas vezes de estatura cons-
no sentido descrito acima, as provas produzidas (para defi- titucional. Vejam-se alguns exemplos.
nir quais fatos ocorreram) e as razões apresentadas pelas O art. 5° da Constituição de 1988, inciso XII, prevê ser
partes (para decidir a disposição aplicável ao caso e suas "inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
conseqüências)2 . Não é dessa espécie de ponderação, toda- telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo,
via, que se pretende tratar neste estudo, e sim de fenôme- no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma
no muito mais especifico. que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou
Se a ponderação no sentido genérico referido acima é instrução processual penal" e, no inciso LVI, considera
própria de toda decisão judicial — e, a rigor, de todo dis- "inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilí-
curso racional —, nos últimos anos, a jurisprudência brasi- citos". Apesar de tais regras, e antes de editada a lei referida
leira tem incorporado à sua prática uma forma de pondera- no inciso XII4, o Superior Tribunal de Justiça, em algumas
ção muito particular, que merece exame exclusivo. Na rea- decisões', autorizou a utilização de gravações de conversas
lidade, a seguinte situação tornou-se freqüente: o intérpre- telefônicas obtidas ilicitamente como prova no âmbito de
te, afirmando estar diante de um conflito entre enunciados processos criminais. O entendimento do STJ partia do
normativos válidos', considera necessário ponderá-los. O pressuposto de que as regras constitucionais dos incisos XII
resultado dessa operação, em geral, é que um dos enuncia- e LVI não seriam absolutas, exigindo temperamentos, de-
vendo-se ponderá-las com "valores maiores na construção
da sociedade", também expressos na Constituição.
2 Como se sabe, além dos argumentos das partes, o juiz pondera
(considerando a expressão no sentido referido no texto até aqui), Em 15.02.2000, o Superior Tribunal de Justiça decidiu
consciente ou inconscientemente, muitos outros elementos, dentre os hipótese envolvendo uma desapropriação indireta já transi-
quais, a sua própria pré-compreensão do tema e o impacto que a decisão tada em julgado'. A Fazenda do Estado de São Paulo havia
produzirá sobre a sociedade. Sobre o tema, v. LARENZ, Karl. sido vencida e acordara com os autores o parcelamento do
Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 393 e ss.; CAMARGO, débito. Tempos depois, já pagas algumas parcelas, apurou-
Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação, 2001; e
TORRE, Maximo La. Theories of Legal Argumentation and Concepts of
Law. An Approximation, Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, pp. 377 a 402.
4 A lei exigida pelo texto constitucional veio a ser a Lei n°9.296/1996.
3 Neste estudo, as expressões norma ou comando normativo, de um
lado, e, de outro, enunciado ou dispositivo normativo identificam 5 STJ, HC 3982/RJ, Rel. MM. Adhemar Maciel, DJU 26.02.1996
fenômenos diversos, como será exposto em tópico próprio adiante. Até (RSTJ 82/321) e HC 4138, Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU
27.05.1996.
que se trate do assunto, porém, os termos não serão empregados com
extremo rigor técnico a fim de facilitar a comunicação. 6 STJ, REsp 240712/SP, Rel. Min. José Delgado, DJU 21.08.2000.

2 3
se que a área supostamente apossada pelo Estado já perten- Submetida ao Plenário do STF, a decisão liminar não
cia a ele mesmo, não aos autores. Não dispondo mais da foi referendada. A posição firmada pela maioria pode ser
possibilidade de propor ação rescisória por falta de prazo, a resumida da seguinte forma: as sessões das CPIs são públi-
Fazenda paulista ajuizou ação declaratória de nulidade de cas e deve prevalecer na hipótese o direito à informação
ato jurídico cumulada com pedido de repetição de indé- (CF, arts. 50 , IX e 220), sendo que qualquer afronta à hon-
bito. ra ou à imagem pode ser reparada posteriormente, por
O debate acerca da concessão ou não de tutela anteci- meio de indenização. Os Ministros Cezar Peluso, Gilmar
pada, a fim de se interromperem os pagamentos das parce- Mendes e Joaquim Barbosa ficaram vencidos por conside-
las, chegou ao STJ, cuja 1' Turma, por maioria, concedeu a rarem, em primeiro lugar, que o direito à informação não
antecipação pretendida. O principal argumento utilizado foi afetado, já que a imprensa não estava impedida de
acompanhar a sessão, ficando vedado apenas o televisiona-
pelos votos vencedores foi o de que a coisa julgada e seu
mento. Em segundo lugar, e sobretudo tendo em conta o
fundamento, a segurança jurídica, não se podem sobrepor
descumprimento da liminar pela Comissão, a minoria en-
aos princípios da moralidade pública, da razoabilidade e da
tendeu que a proteção da honra e da imagem do impetrante
proporcionalidade, sendo indispensável ponderar todos es-
só seria eficaz se fosse preventiva, não bastando para isso
ses elementos constitucionais7 . posterior indenização'.
Ainda mais dois exemplos, agora da jurisprudência do Em outra ocasião, o STF examinou o conflito entre a
Supremo Tribunal Federal. Empresário supostamente en- liberdade de expressão (CF, art. 50, IV e IX) e a vedação
volvido em crimes de contrabando foi convocado para de- constitucional à prática do racismo, considerado crime ina-
por perante Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara fiançável e imprescritível (CF, art. 50, XLII). A hipótese
dos Deputados e requereu ao STF ordem para que a sessão era a seguinte. Um editor havia publicado livros "fazendo
da CPI na qual seu depoimento seria tomado não fosse apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias con-
televisionada. O fundamento do pedido foi a necessidade tra a comunidade judaica" e, processado criminalmente,
de proteção da imagem e da honra do empresário (CF, art. teve habeas corpus impetrado em seu favor perante o STF.
50, X). O Ministro Cezar Peluso, relator do Mandado de A Corte, por maioria, entendeu que a liberdade de expres-
Segurança, concedeu a liminar e proibiu o uso de câmeras são, a despeito de sua importância, não é absoluta, devendo
que possibilitassem a gravação de imagens do impetrante. observar os limites impostos pela própria Constituição,
Após a ciência da decisão judicial, porém, a CPI remarcou dentre os quais a condenação do racismo, sendo preponde-
a sessão para outro horário e autorizou o uso de câmeras. rantes na hipótese os princípios da dignidade humana e da
igualdade jurídica de todas as pessoas. Com esse funda-
mento, a Corte denegou o habeas corpus9.
7 Confiram-se comentários sobre o caso por seu próprio relator, o
Ministro José Delgado, no artigo DELGADO, José. "Efeitos da coisa
8 STF, MS 24832 MC/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, DJU 26.03.2004.
julgada e os princípios constitucionais". In: NASCIMENTO, Carlos
Valder do (coordenador). Coisa julgada inconstitucional, 2002. 9 STF, HC 82424/RS, Rel. MM. Maurício Corrêa, DJU 19.03.2004.

4 5
Uma observação superficial já revela por que motivo a lógicos, jurídicos e políticos ajudam a localizar historica-
ponderação empregada nos exemplos acima é fenômeno mente e a compreender o fenômeno da expansão da técni-
diverso da ponderação genérica identificada inicialmente. ca da ponderação pelos meios jurídicosn.
Aqui, os elementos ponderados são dispositivos normativos Do ponto de vista sociológico, duas das características
vigentes que, a rigor, em um Estado de direito, devem ser mais marcantes das sociedades contemporâneas nos últi-
aplicados uma vez que se verifique sua hipótese de incidên- mos cinqüenta anos são o aprofundamento da complexida-
cia, mas que, no caso, parecem estar em colisão a ponto de de das relações humanas em seus vários níveis e, em certa
se excluírem reciprocamente. Ademais, a ponderação sub- medida como uma decorrência desse primeiro fato, a cres-
mete esses enunciados a um tipo de exame cujo objetivo é, cente pluralidade existente dentro das sociedades12. As
de certo modo, verificar a conveniência de sua aplicação ao relações familiares admitem hoje, tanto nos vínculos entre
caso, a despeito de o juízo acerca de prós e contras já ter os adultos, como entre pais e seus filhos'', variações im-
sido feito pelo Legislador. Por fim, e os exemplos ilustram pensáveis décadas atrás, cada uma delas acompanhada de
esse ponto, a ponderação parece fornecer ao intérprete po- defensores e detratores. No âmbito de grupos sociais mais
deres extraordinários: ele é capaz de afastar a aplicação de abrangentes, e mesmo da sociedade internacional, temas
dispositivos válidos em benefício da aplicação de outros, complexos dividem as pessoas em diferentes grupos de
restringir o exercício de direitos fundamentais e até mes-
mo relativizar regras constitucionais. ii A localização histórica dos fenômenos sociais é indispensável para sua
Não se trata, portanto, de uma ponderação qualquer, compreensão adequada. Sobre o tema, v. ORTEGA Y GASSET, José.
Que é filosofia?, 1971, p. 11 e ss.; e SALDANHA, Nelson. Filosofia do
na qual vantagens e desvantagens são livremente avaliadas.
direito, 1998, p. 2 e ss..
Em sentido diverso, trata-se de uma ponderação cuja maté- 12 SUNSTEIN, Cass. Conflicting Values in Laia, Fordham Law Review
ria-prima principal são disposições normativas válidas e em n° 62, 1994, pp. 1661 e 1662: "The first claim is that we value thingS in
vigor e isso a torna extremamente particular. Na verdade, different ways; that is to say, we value things not only in terms of
há aqui um ponto interessante. Embora o direito sempre intensity, but in qualitatively distinct ways. It is not simply the case that
tenha cémvivido com a questão das antinomias, nunca se some things are valued more; it is also the case that some things are valued
falou tanto de colisões normativas e necessidade de ponde- differently from others. That is my first claim, about different modes of
valuation. The second claim is that human goods are not commensurable.
ração como nas últimas décadas'°. Alguns elementos socio- This is to say that there is no available metric along which we can align the
various goods that are important to us. (...) It might be more accurate to
say that economists and environmentalists value the environment in
10 A questão tem se tornado tão popular que corre o risco da different ways, with economists thinking that the environment is for
banalização, na medida em que autores e sobretudo decisões judiciais hum an exploitation and use, and environmentalists sometimes
empregam a ponderação sem qualquer conteúdo próprio ou cuidado challenging that assumption."
especifico. Nesse contexto, alguns autores começam a discutir a 13 São temas atuais, além da adoção, a inseminação artificial, a
necessidade de auto-contenção (self-restraint) do Judiciário. V. MELLO, manipulação genética, a doação de sêmen, a desvinculação entre
Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos fundamentais, 2004, p. paternidade biológica e paternidade jurídica e sócio-afetiva, dentre
203 e ss.. outros.

6 7
opinião, como é o caso do conflito entre interesse público teoria jurídica voltou-se então para os valores, reaproxi-
e direitos individuais, da violência, do terrorismo, do tráfi- mou-se da moral e tem procurado desenvolver formas e
co de drogas, dos direitos humanos, das intervenções inter- técnicas capazes de lidar com esses elementos ideais, mui-
tas vezes introduzidos no direito positivo sob a forma de
nacionais etc.
princípios16.
Para o estudioso, ou para o cidadão que tenha a preten-
são de estar bem informado, parece realmente que não há O segundo processo em curso na experiência jurídica
mais coisa alguma simples no mundo: já não é possível exa- liga-se à ampliação do espaço no qual a interpretação jurí-
minar com seriedade os problemas contemporâneos sob dica e o intérprete estão autorizados a transitar. É fácil
um único ponto de vista ou oferecer-lhes uma resposta sin- perceber que existe um vínculo entre essa ampliação e a
gela e direta, já que, com freqüência, eles envolvem valores reaproximação com os valores e a moral: tendo em conta
e interesses diversificados e conflitantes. Jornais e revistas sua abertura e abstração características, a aplicação de valo-
passaram a publicar matérias compostas de várias opiniões res a casos concretos, ainda que veiculados sob a forma de
sobre o mesmo tema, na tentativa de dar conta de sua mul- princípios, exigirá do intérprete um esforço considerável
tiplicidade e atrair leitores de todos os grupos". Nos regi- de integração. De toda sorte, é possível identificar no pró-
prio sistema jurídico causas imediatas para essa ampliação
mes democráticos, predominantes nas sociedades ociden-
tais nos últimos cinqüenta anos, essa pluralidade recebe do espaço próprio da interpretação jurídica, tanto no nível
espaço institucional de manifestação e desenvolvimento. constitucional, como na esfera infraconstitucionalu.
Do ponto de vista jurídico, é possível identificar dois
processos em curso, também no meio século precedente,
16 Para uma visão mais profunda do tema, v. BARROSO, Luis Roberto.
ambos interligados. O primeiro deles tem sido identificado
"Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional
como o movimento de retorno do direito aos valores 15. brasileiro (pós-modernidade, teoria critica e pós-positivismo)". In:
Após a Segunda Guerra Mundial, e uma vez que o signifi- BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova interpretação
cado da barbárie nazista pôde ser apreendido pelo pensa- constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações privadas,
mento jurídico, o positivismo exclusivamente formal e nor- 2003, pp. 1 a 49.
mativista, que já se encontrava em crise, deixou de ser con- 17 SANCHIS, Luis Prieto. "Neoconstitucionalismo y ponderación
siderado uma forma adequada de compreender o direito. A judicial". In: CARBONELL, Miguel (organizador).
Neoconstitucionalimo(s), 2003, pp. 131 e 132: "El constitucionalismo
está impulsando una nueva teoria dei Derecho, cuyos rasgos más
14 CANOTILHO, J. J. Gomes. A 'principialização' da jurisprudência sobresalientes cabria resumir en los siguientes cinco epígrafes: más
através da Constituição, Revista de Processo n° 98 (Estudos em principios que regias; más ponderación que subsunción; omnipresencia de
homenagem ao Ministro S álvio de Figueiredo Teixeira — Segunda parte), Ia Constitución en todas las áreas jurídicas y en todos los conflictos
2000, pp. 83 a 89. minimamente relevantes, en lugar de espacios exentos en favor de la
opción legislativa o reglamentaria; omnipotencia judicial en lugar de
15 NINO, Carlos Santiago. Etica y derechos humanos, 1989, p. 3 e ss.;
autonomia dei legislador ordinario; y, por último, coexistencia de una
ALEXY, Robert. Teoria de argumentação jurídica, 2001, p. 19 e ss.; e
constelación plural de valores, a veces tendencialmente contradictorios,
TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos humanos e a tributação —
en lugar de homogeneidad ideológica".
Imunidades e isonomia, 1995, p. 6 e ss..

8 9
Diversas Constituições contemporânea& e a brasileira especial — e também técnicas próprias — a fim de preser-
em particular, são generosas na referência a elementos va- var cada uma das disposições envolvidas, definir-lhes os
lorativos's de conteúdo bastante vago (como justiça social contornos e manter a unidade da Constituição''. No caso
e dignidade humana), cuja definição detalhada — a ser afe- brasileiro, une-se a isso a circunstância de a Constituição
rida pelo intérprete — pode variar em certa medida no de 1988 dispor sobre os temas mais variados, autorizando
tempo, no espaço e em função das circunstâncias do caso
concreto. Também constam do texto constitucional metas
políticas sob a forma de princípios, que em geral admitem Antonio Fayos. Derecho a la intimidad y medios de comunicación, 2000;
uma variedade de meios de realização' 9. e BARROSO, Luis Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e
Além disso, cartas compromissorias — como é o caso direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação
constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa,
da Constituição de 1988 — refletem, de forma nítida ou Revista de Direito Administrativo n° 235, 2004, pp. 1 a 36.
distorcida, sociedades plurais, em vários níveis. O mesmo Sobre esse tema, a Corte Européia de Direitos Humanos proferiu
texto constitucional consagra valores diferentes, opções e importante decisão recentemente declarando contrária ao art. 8° da
Convenção Européia de Direitos Humanos a orientação do Tribunal
interesses políticos diversos e direitos que, em vários de
Constitucional Federal alemão em matéria de proteção à privacidade de
seus desenvolvimentos, poderão se chocar reciprocamen- figuras públicas. A questão foi levada à Corte Européia pela princesa
te'''. Essa pluralidade exigirá do intérprete um esforço todo Caroline von Hannover, do Principado de Mônaco, após diversas
tentativas de impedir a publicação de fotos suas em atividades cotidianas
(e.g., fazendo compras ou praticando esportes). A Corte Européia
18 ALEXY, Robert. El concepto y la validez del derecho, 1994, p. 159. considerou que os critérios do Tribunal alemão não protegiam
19 ALEXY, Robert. "Derechos fundamentales y estado constitucional satisfatoriamente a privacidade e defendeu a necessidade de uma
democrático". In: CARBONELL, Miguel (organizador). ponderação orientada pelo seguinte critério: a publicação se justificaria na
Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 35 e ss.. medida em que trouxesse uma contribuição para o "debate de interesse
geral", para além da satisfação de uma mera curiosidade do público. Os
20 Um dos exemplos mais estudados desse conflito potencial é o que se
verifica entre liberdade de imprensa, liberdade de expressão e de eventos da vida cotidiana de uma pessoa pública, a principio, não
informação em oposição aos direitos à intimidade, à vida privada e à poderiam ser objeto de divulgação, ainda quando ocorridos em ambientes
honra. Há ampla bibliografia sobre o tema. Vejam-se, por todos, que não possam ser considerados como "reservados". Dois juizes da
GUERRA, Sidney Cesar Silva. A liberdade de imprensa e o direito à Corte, embora endossando o resultado do julgamento, discordaram do
critério fixado, retomando em parte o argumento do Tribunal alemão no
imagem, 1999; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de.
Direito de informação e liberdade de expressão, 1999; SOUZA, Edilsom sentido de que também há um interesse juridicamente tutelável ao
Pereira de. Colisão de direitos fundamentais. A honra, a intimidade, a
"entretenimento". O critério, para tais juizes, deveria ser a existência ou
vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e de informação, não de uma "expectativa legitima de privacidade", que não estaria
2000; CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. Honra, imagem) vida presente quando uma figura pública vai às compras, mas estaria quando
privada e intimidade, em colisão com outros direitos, 2002; MARTINEZ, pratica esportes em um ambiente aparentemente protegido de
observação externa. A íntegra da decisão pode ser obtida no sue da Corte
Miguel Angel Alegre. El derecho a la propia imagen, 1997; CALDAS,
Européia de Direitos Humanos (httn://www.echr.coe.int).
Pedro Frederico. Vida privada, liberdade de imprensa e dano moral,
1997; BARROSO, Porfirio e TAVALERA, Maria dei Mar Lopez. La 21 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição,
libertad de expresión ji sus limitaciones constitucionales, 1998; CARDO, 2003, p. 192 e ss..

10 11
um amplo controle de constitucionalidade sobre leis e atos bém as leis mais recentes têm empregado em seus textos
administrativos em geraln. expressões gerais — como, e.g., boa-fé e função social do
A ordem infraconstitucional, na medida em que regula- contrato24 —, de conteúdo fluido e sentido não inteiramen-
menta ou desenvolve disposições constitucionais, reproduz te determinado. Ao utilizar conceitos jurídicos indetermi-
o mesmo quadro descrito acima: previsões que tutelam nados e cláusulas gerais, o legislador acaba transferindo a
bens diversos e que, em determinado ponto, podem gerar delimitação do sentido e alcance dos enunciados normati-
situações de antinomian . Mas há também duas outras cau- vos para o intérprete'.
sas, originárias da própria ordem infraconstitucional, e, in-
dependentemente do juízo que se forme acerca delas, é
certo que elas contribuem igualmente para a ampliação do 24 Código Civil: "Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser
interpretaaos conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
papel da interpretação jurídica. (...) Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos
Em primeiro lugar, assim como a Constituição, tam- limites da função social do contrato.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na
conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade
22 Desde a promulgação da Constituição em 05.10.1988 até e boa-fé."
22.08.2004 foram distribuídas 3294 ações diretas de Código de Defesa do Consumidor: "Art. 4°. (...) III - harmonização
inconstitucionalidade, das quais já foram julgadas 2229, segundo a dos interesses dos participantes das relações de consumo e
Secretaria de Informática do STF (a informação consta do Banco compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de
Nacional de Dados do Poder Judiciário, desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os
htto://www.stf.gov.bribndpi/stf/ADIN.asp acesso em 28.08.2004). princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da
23 O mesmo acontece em outras ordens jurídicas, como a italiana, v. Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas
GUASTINI, Riccardo. "La sconstitucionalización ) del ordenamiento relações entre consumidores e fornecedores;
jurídico". In: CARBONELL, Miguel (organizador). (...) Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas
Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 58 e ss.. V. também DWORKIN, contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
Ronald. The Judge's New Role: Should Personal Convictions Count?, (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que
Journal of International Criminal Justice I, 2003, pp. 5 e 6: "The role of coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
moral judgment is pervasive and undeniable in administrative regulation, incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade."
on the other hand, because the standards of that task are themselves set 25 AARNIO, Aulis. Reason and Authority, 1997, pp. 166 e 167:
out in moral language — the language of convenience and necessity, or "Especially in a rapidly changing society, there is pressure to create norms
reasonableness, or proportionality, for example — and because it requires that are open in a way that makes it possible to adjust them to new
judges to choose among contested conceptions of economic and conditions at the application stage. (...) These norms, in the same way as
adrninistrative efficiency, and to fix an interaction and balance between weighing norms in general, transfer the focus of discretionary power in
efficiency and other moral values. The role of moral judgment is still the direction of the machinery of authorities applying the law. Especially
more pervasive and less deniable in constitutional adjudication, because in the sphere of public administration, some norms give only information
the pertinent constitutional standards are even more explicitly moral: about the goals of law leaving open or scantily specified the criteria of the
they declare rights of free expression, treatment as equals, and respect for application. (...) It seems that in the Welfare State the traditional
life and dignity, and sometimes make exceptions for constraints regulation of rights and duties is being displaced by weighing, goal and
'necessary in a democratic society', for example.". resource norms. At least in the public sector the development moves in

12 13
Em segundo lugar, e por razões que não cabe aqui apro- oferece parâmetros específicos, a validade da ação adminis-
fundar", os legislativos contemporâneos têm empregado trativa acaba por ser aferida em confronto com princípios
técnicas variadas de delegação de competências normativas gerais, constitucionais ou infraconstitucionais, como os da
ao Poder Executivo". Essa transferência, explícita ou im- razoabilidade, da eficiência, da moralidade e da economici-
plícita, amplia igualmente o espaço da interpretação jurídi- dade, dentre outros.
ca própria do Judiciário, já que aos juizes caberá, em qual- Por fim, há ainda um último elemento, agora de nature-
quer caso, exercitar o controle das ações administrativas", za política, que ajuda a compor o quadro aqui descrito. O
empregando os parâmetros disponíveis. Quando a lei não crescimento do espaço da interpretação jurídica tem sido
fomentado também por um processo de transferência da
discussão política para o Judiciário, em detrimento das ins-
the direction of goal and need orientation. But also in civil law, the same tâncias de representação política. Explica-se melhor.
tendencies are active, as is indicated by general clauses and conciliation A crise dos parlamentos e da legalidade é um fenômeno
rules. These lines of development will not, however, be further antigo, cuja origem é identificada pela doutrina ainda no
considered in the following presentation because the main emphasis will
be on interpretation. In them, and in them expressly, come out the século XIX". Ao longo do último século, esse quadro de
crucial questions of legal reasoning." crise não foi superado" e é possível afirmar que a relação
26 V. sobre o assunto, dentre outros, CLIVE, Clèmerson Merlin. A lei de confiança entre o povo e sua representação parlamentar
no estado contemporâneo, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência é bastante frágil. Ao mesmo tempo, no caso brasileiro, a
Política n° 21, 1997, pp. 124 a 138; e CLÈVE, Clèmerson Merlin.
Atividade legislativa do Poder Executivo, 2000. De forma geral, a
doutrina aponta algumas causas para essa transferência de poderes 29 Talvez o primeiro sintoma da crise tenha surgido após a
normativos do Legislativo para o Executivo, dentre outras: a universalização do voto masculino (e posterior extensão do direito a
complexidade e o caráter técnico de muitas matérias a serem outros grupos), quando restou claro que a lei poderia ser apenas o
disciplinadas, a necessidade de celeridade no processo decisório, a resultado de acordos entre os diferentes grupos parlamentares, e não
dificuldade de formação de consensos no âmbito do parlamento sobre a fruto de uma razão universal. V. sobre o tema SALDANHA, Nelson. O
regulação dos aspectos específicos das matérias etc. Estado moderno e a separação dos poderes, 1987, p. 104 e ss.; e CLÈVE,
27 Sobre a discussão da suposta "deslegalização", v. MOREIRA NETO, Clèmerson Merlin. "A teoria constitucional e o direito alternativo". M:
Diogo de Figueiredo. Direito regulatório, 2003; e ARAGÁ0, Alexandre Uma vida dedicada ao direito — Homenagem a Carlos Henrique de
Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo Carvalho, o editor dos juristas, 1995, pp. 34 e 35.
econômico, 2002. 30 Na verdade, ao longo do século XX a crise dos parlamentos e da
28 Embora o Executivo também seja um dos intérpretes da legalidade parece ter se agravado em função de diversos fatores: a
Constituição. V. HÃBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A experiência nazista e sua relação com um status de legalidade, os variados
sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a escândalos envolvendo parlamentos e parlamentares, que são cada vez
interpretação pluralista e 'procedimental' da Constituição, 1997. V. sobre melhor percebidos pelo público por conta da liberdade de imprensa, a
o tema, na experiência brasileira, BARROSO, Luís Roberto. Poder própria divulgação, pelos meios de comunicação, das manobras próprias
Executivo. Lei inconstitucional. Descumprimento, Revista de Direito do jogo político contemporâneo etc. V. FERRAJOLI, Luigi. "Pasado y
Administrativo n° 181/182, 1990, pp. 387 a 397; e BINENBOJM, futuro del Estado de derecho". In: CARBONELL, Miguel (organizador).
Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira, 2001, p. 203 e ss.. Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 20 e ss..

14 15
redemocratização recolocou o Judiciário na sua posição de valores e fazem uso intensivo de expressões gerais, cujo
poder político, dando-lhe cada vez maior visibilidade. sentido pode variar justamente em função de concepções
Nesse contexto, parte da sociedade (no Brasil e tam- valorativas ou ideológicas —, e (iii) a ascensão política do
bém em outros países), descrente do processo político nor- Judiciário como espaço de discussão alternativo àquele dos
mal, alimenta a expectativa de que o Judiciário seja afinal órgãos eleitos, tem-se a ampliação progressiva do espaço
um espaço onde possam desenvolver-se de maneira mais próprio da interpretação jurídica. Considerando ainda que
lisa a discussão e a definição de políticas públicas'. Esse cada intérprete dispõe de suas próprias convicções valora-
movimento político acaba encontrando algum respaldo em tivas e políticas, não é de surpreender que sejam diagnosti-
disposições normativas bastante vagas, especialmente no cados tantos conflitos normativos e que a ponderação seja,
nível constitucional, como visto acima32. A despeito do im- tão freqüentemente empregada.
pacto que essa forma de visualizar o Judiciário possa ter Descrito sumariamente o quadro sociológico, jurídico e
sobre o regime democrático, a percepção desse fenômeno político no qual se insere (e no qual pode ser compreendi-
ajuda a entender o ambiente no qual a técnica da pondera- do) o crescente uso da ponderação como técnica de supe-
ção tem se desenvolvido e aplicado. ração de conflitos normativos, volta-se ao ponto. Não é
Em resumo: associando-se (i) uma sociedade plural; (ii) difícil perceber que a ponderação — compreendida no sen-
suas Constituições e leis — que refletem a pluralidade de tido estrito aqui identificado — suscita uma série de ques-
tões jurídicas relacionadas sobretudo com a legitimidade e
a previsibilidade das decisões que a empregam, questões
31 É certo que essa expectativa em relação ao Judiciário, ao menos no essas que são tanto mais graves e urgentes quanto mais
Brasil, é própria de segmentos específicos da sociedade, que têm generalizado e indiscriminado se torna seu uso. É preciso,
informação e acesso ao Judiciário. Não se pode dizer que ela seja portanto, investigar o tema, e algumas perguntas podem
compartilhada pela maioria da população. ser suscitadas desde logo. O que é, afinal, a ponderação? O
•32 LA TORRE, Maximo. Theories of Legal Argumentation and Concepts que justifica sua utilização? Por que essa ferramenta dog-
of Law. An Approximation, Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, p. 381: "We
are seeing what has been called the 'juridification' of social life, or also, in mática é necessária (se é que o é de fato)? E se ela é indis-
H abermas's words, the 'colonization of the life-world', but this pensável, em que consiste, do ponto de vista metodológi-
over-production of laws and decrees, this instrumental and 'situationar co? Como ela funciona, quais são seus limites e que parâ-
use of law, does not do any good to the legislator's prestige. The mass metros devem orientar o intérprete que a utiliza? O estudo
production of laws necessarily escapes discussion of principies or
que segue pretende exatamente discutir essas questões e,
pondered public debate, obeying instead more corporative, not to say
clientelist, logic. The 'public reason' thus driven out of legislative com esse propósito, foi ordenado em três partes.
assemblies is often transferred to courtrooms, and democracy — in order O objetivo daprimeira pane do estudo é responder às
to escape the corrupt and corrupting logics of part clientelism and três perguntas iniciais: o que é a ponderação, o que justifica
technobureaucratic opacity — tenda to become, so to speak, 'judicial' sua utilização e por quais razões precisamos dela, afinal. No
(for a comparative perspective on this phenomenon, see Guarnieri and primeiro capítulo, vão-se identificar as circunstâncias que
Pederzoli 1997). It is today the judge that is put forward as the new
centre of the legal system, no longer the legislative power, like it or not." explicam a necessidade da ponderação, delinear o sentido

16 17
propriamente dito da técnica e distingui-la das técnicas A busca por respostas às perguntas subseqüentes — Em
hermenêuticas tradicionais. De forma simples, já se pode que consiste, do ponto de vista metodológico, a técnica da
adiantar que ponderação, no conceito adotado neste estu- ponderação? Como ela funciona, quais são seus limites e
do, corresponde à técnica de decisão jurídica empregada que parâmetros devem orientar o intérprete que a utiliza?
para solucionar conflitos normativos que envolvam valores — é o que move a segunda e a terceira partes do trabalho.
ou opções políticasB em tensão, insuperáveis pelas formas Na segunda parte, será apresentada uma proposta de or-
hermenêuticas tradicionais. denação metodológica da técnica da ponderação, em três
Nos capítulos segundo e terceiro serão examinadas as fases. Já que parece indispensável ter de empregá-la em
críticas à ponderação — que tratam sempre, com boa par- determinadas hipóteses, o propósito do estudo é organizar
cela de razão, de sua inconsistência metodológica e do pe- um percurso lógico, com etapas definidas e fundamenta-
rigo de arbítrio que seu uso enseja — e as técnicas alterna- das, que seja capaz de conferir racionalidade ao processo e
tivas capazes de solucionar, segundo parte da doutrina, os reduzir a arbitrariedade na sua utilização. É bem de ver,
mesmos problemas que a técnica da ponderação pretende porém, que, embora a consistência metodológica seja valio-
resolver com menor quantidade de inconvenientes. A con- sa, a ponderação continua a ser um mecanismo instrumen-
clusão a que se chega, porém, é a de que, a despeito das tal e vazio de conteúdo. Por isso, além da ordenação da
críticas, nenhuma das opções sugeridas pela doutrina subs- técnica, são necessários também parâmetros que condu-
titui satisfatoriamente a ponderação e nem supera as difi- zam o intérprete no momento decisório.
culdades metodológicas a ela imputadas. No capítulo qua- A terceira parte do estudo concentra-se na formulação
tro, ao fim desta primeira parte, se fará um breve registro de parâmetros capazes de orientar e balizar as decisões do
de como dois sistemas jurídicos — o norte-americano e o intérprete no emprego da ponderação. Serão propostos,
alemão — têm lidado com a ponderação e tentado superar em primeiro lugar, dois parâmetros seqüenciais e de natu-
suas limitações. reza geral: seqüenciais porque devem ser aplicados separa-
damente e na ordem em que são apresentados; e de natu-
reza geral porque tais parâmetros são potencialmente apli-
j3 Vale esclarecer que embora a referência feita a opções políticas ou
ideológicas ao longo do texto se aproxime, quanto ao conteúdo, da idéia cáveis a qualquer conflito normativo. De forma simplifica-
de policy de Dworkin, não se estará trabalhando com as concepções do da, os dois parâmetros podem ser enunciados nos seguintes
autor nesse particular. Como se sabe, Dworlcin distingue po/icy de termos: (i) as regras têm preferência sobre os princípios; e
principie — DWORKIN, Ronald. "Is Law a System of Rules?". In: (ii) as normas que realizam diretamente os direitos funda-
SUMMERS, Robert (organizador). Essays in Legal Philosophy, 1968, p. mentais dos indivíduos têm preferência sobre aquelas que
34 e ss. —, associando a primeira expressão a objetivos políticos,
econômicos ou sociais e, a segunda, a padrões valorativos ou morais estão relacionadas com esse fim apenas de forma indireta.
vinculados ao elemento justiça, extraindo dessa distinção algumas Por fim, já no último capítulo, serão propostos elemen-
conseqüências importantes. A Constituição brasileira de 1988, porém, tos a serem considerados na concepção de parâmetros es-
incorporou a seu texto, em geral sob a forma de princípios, tanto valores pecíficos, que devem ser construídos tendo em conta as
como opções políticas, de modo que os dois grupos de fenômenos são, no características de conflitos normativos em particular. Isso
Brasil, elementos do sistema jurídico constitucional.

18 19
porque, além dos parâmetros gerais, é necessário, para cada
conflito-tipo, o desenvolvimento de parâmetros próprios,
que possam conduzir o intérprete de maneira mais precisa.
De forma simples, o propósito geral do estudo pode ser
assim resumido: considerando que o emprego da técnica da
ponderação parece realmente inevitável em determinados
PARTE I
casos, como fazer para lhe conferir maior juridicidade (isto
é: vinculação à ordem jurídica) e racionalidade (a fim de
reduzir o arbítrio)? A proposta de uma ordenação metodo:
lógica para a técnica — operacional e acessível — e de pa-
râmetros capazes de nortear as decisões a serem tomadas
pretende alcançar exatamente esses objetivos".

34 O presente estudo tem a ambição de apresentar propostas


operacionais, por meio das quais seja possível ligar, de forma proveitosa, o
mundo da reflexão teórica e filosófica ao mundo da realização prática do
Direito. É certo, no entanto, que esses dois mundos vinculam-se a funções
diversas, como destaca ATIENZA, Manuel. Las razones dei derecho.
Sobre la justificación de Ias decisiones judiciales, Revista Isonomia n° 1,
2004, p. 64: "Mientras que en la ciencia y en la filosofia — sobre todo, en
la filosofia — las discusiones pueden proseguir indefinidamente, esto es,
el proceso de argumentación es un proceso abica°, en el sentido de que
no hay ninguna autoridad que tenga la última palabra, en el Derecho la
argumentación está, em diversos sentidos, limitada y, en particular,
existen instituciones — los órganos de última instancia — que ponen
punto y final ala discusión. El que las cosas sean así se debe, naturalmente,
a que Ias instituciones jurídicas — a diferencia de las científicas o
filosóficas — no tiene como su función central la de aumentar nuestro
conocimiento dei mundo, sino la de resolver, mejor o peor, conflictos
sociales; no persiguen basicamente una finalidad cognoscitiva, sino
práctica.". Por essa razão, algumas questões, discutidas em um nível mais
complexo e profundo pela filosofia constitucional e pelos autores que
investigam a teoria do discurso e da argumentação, serão aqui
propositadamente simplificadas, já que uma abordagem completa fugiria
aos propósitos do estudo. De todo modo, observações bibliográficas
específicas sobre os temas serão incluídas nas notas de rodapé.

20
I. Localizando o tema
da ponderação

1.1. Ponderação, interpretação e antinomias

Ponderação (também chamada, por influência da dou-


trina norte-americana, de balancing) será entendida neste
estudo como a técnica jurídica de solução de conflitos nor-
mativos que envolvem valores ou opções políticas em tensão,
insuperáveis pelas formas hermenêuticas tradicionais. Na
verdade, a simples questão do que é a ponderação exige um
exame mais aprofundado, tanto porque a idéia tem sido
empregada pela jurisprudência de forma generosa, e fre-
qüentemente desprovida de qualquer sentido preciso,
como porque outros conceitos, diversos do que se acaba de
apresentar, têm sido associados pela doutrina à expressão.
O conteúdo propriamente dito da técnica será objeto de
análise apenas mais adiante. Assim, ainda que de maneira
objetiva, e em proveito da clareza, é necessário identificar
as principais formas pelas quais a ponderação tem sido
compreendida ou explicada e justificar a opção que se aca-
ba de fazer.

23
É possível visualizar na doutrina e na prática jurídica Nesse sentido, e empregando a lógica de Alexy, uma
vez que os princípios funcionam como comandos de otimi-
brasileiras ao menos três maneiras diferentes de compreen-
zação, pretendendo realizar-se da forma mais ampla possí-
der a ponderação. Em primeiro lugar, a ponderação é des-
vel, a ponderação é o modo típico de sua aplicação. Por
crita por muitos autores como a forma de aplicação dos
meio da ponderação se vai sopesar a extensão de aplicação
princípios. Na verdade, foi assim que a ponderação ingres-
possível de cada princípio, considerando as possibilidades
sou inicialmente nas discussões jurídicas no Brasil. A con-
jurídicas (outros princípios contrapostos e eventualmente
cepção original de Ronald Dworkin — de que os princípios
regras) e físicas existentes". Na verdade, em vários escri-
operam em uma dimensão de peso, ao passo que as regras
tos recentes Alexy tem manifestado preocupação em deli-
obedecem a uma lógica de "tudo ou nada"" — e as
near o conteúdo da ponderação e a forma de sua utili-
formulações mais sofisticadas de Robert Alexy" sobre o zação".
tema continuam extremamente populares na doutrina bra-
sileira e internacional".
1988 — Interpretação e crítica, 1996, p. 92 e ss.; BARROSO, Luís
Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2000, p. 141 e ss.;
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional, 1997, p. 79
35 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, 1977, pp. 24 a 26: e ss.; GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos
"The difference between legal principies and legal mies is a logical fundamentais, 1999, p. 51 e ss.; ROTHENBURG, Walter Claudius.
distinction. Both sets of standards point to particular decisions about legal Princípios constitucionais, 1999; ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito de
obligation in particular circumstances, but they differ in the character of princípios constitucionais, 1999. Na doutrina estrangeira, confiram-se
the direction they give. Rules are applicable in an all-or-nothing fashion. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da
If the facts a rule stipulates are given, then either the nile is valid, in constituição, 1998, p. 1034 e ss.; BOBBIO, Norberto. Teoria do
which case the answer it supplies must be accepted, or it is not, in which ordenamento jurídico, 1997, pp. 158 e 159 e ss.; GARCIA DE
case it contributes nothing to the decision. (...) Of course, a mie may have ENTEARIA, Eduardo. La cons ti tución como norma y el tribunal
exceptions (...) However, an accurate statement of the mie would take constitucional, 1994, pp. 98 e 99 e ss.
this exception jato account, and any that did not would be incomplete.
38 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 86 e
(...) But this is not the way the sample principies in the quotations
ss..
operate. Even those which look most like mies do not set out legal
consequences that follow automatically when the conditions provided 39 ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de
are met. (...) This first difference between rules and principies entails direitos fundamentais no estado de direito democrático, Revista de Direito
another. Principies have a dimension that mies do not — the dimension Administrativo n° 217, 1999, p. 75: "Princípios e ponderações são dois
of weight or importance. When principies intersect (...), one who must lados do mesmo objeto. Um é do tipo teórico-normativo, o outro,
resolve the conflict has to take into account the relative weight of each." metodológico. Quem efetua ponderações no direito pressupõe que as
1997, p. 86 e normas, entre as quais é ponderado, têm a estrutura de princípios e quem
36 ALEXY, Robert. Teoria delas derechos fundamentales, classifica normas como princípios deve chegar a ponderações. A discussão
ss.; e ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de
Revista de Direito sobre a teoria dos princípios é, com isso, essencialmente, uma discussão
direitos fundamentais no estado de direito democrático,
sobre a ponderação.". Em estudo mais recente, porém, Alexy vai
Administrativo n° 217, 1999, p. 79 e ss.
identificar a ponderação com o terceiro elemento da proporcionalidade
37 V. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 1999, p. — a ponderação em sentido estrito —, conferindo, aparentemente, certa
243 e ss.; GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de
25
24
Uma segunda maneira de compreender a ponderação é discussões sobre a teoria da argumentação compreendem a
a que a visualiza, sem maiores preocupações dogmáticas, ponderação em sentido muito mais amplo, como elemento
como um modo de solucionar qualquer conflito normativo, próprio e indispensável ao discurso e à decisão racionais.
relacionado ou não com a aplicação de princípios. É nesse Ponderação, nesse sentido, é a atividade pela qual se ava-
sentido que ela tem sido empregada em muitas decisões liam não apenas enunciados normativos ou normas'', mas
judiciais, que parecem identificá-la como uma técnica ge- todas as razões e argumentos relevantes para o discurso,
nérica de solução de aparentes tensões normativas. A téc- ainda que de outra natureza (argumentos morais, políticos,
nica consistiria em balancear ou sopesar os elementos em econômicos etc.)42 . Nesse sentido, ao aplicar a idéia ao dis-
conflito para atingir a solução mais adequada"°. curso jurídico, a ponderação acaba por se confundir com a
Por fim, e em terceiro lugar, diversos autores ligados às atividade de interpretação jurídica como um todo'''. Para
esses autores, não há uma relação necessária entre a ponde-
ração e a situação específica de conflito entre disposições
autonomia à técnica (ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing normativas, já que toda decisão envolverá necessariamente
and Rationality, Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, pp. 131 a 140). Em outro a avaliação de razões e argumentos relevantes. Assim, inter-
trabalho, Aleicy propõe uma fórmula para a ponderação empregando a pretação sempre envolveria ponderação.
lógica aritmética (ALEXY, Robert. On Balancing and Subsumption. A
Structural Comparison, Ratio Juris, vol. 16, n°4, 2003, pp. 433 a 449).
41 Adiante se vai discutir a diferença entre esses dois fenômenos.
40 Vejam-se, exemplificativamente, os seguintes acórdãos: TRF 1'
Região, AGRPSL 2000.01.00.012735-8/MG, Rel. Juiz Tourinho Neto, 42 Como se processa essa avaliação de razões é, naturalmente, uma das
DJU 29.06.2000: "1. Em liminar, o juiz deve analisar, de maneira principais preocupações dos autores. Vejam-se, por todos, PECZENIK,
perfunctória, superficial, os pressupostos do fumus boni iuris e do Alelcsander. On Law and Reason, 1989; e ATIENZA, Manuel. As razões
periculum in mora, não devendo proceder, em princípio, a análise do do direito, 2002.
fundo da controvérsia. 2. Não pode a liminar coarctar a investigação de 43 Essa é aparentemente a posição de Humberto Ávila, v. ÁVILA,
fatos que deverão ser objeto da instrução. 3. Na ponderação dos valores Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 50: "Todas essas considerações
em conflito, há de prevalecer o que não cause grave lesão à ordem, à demonstram que a atividade de ponderação de razões não é privativa da
saúde, à segurança e à economia publicas."; e TRF 4 Região, ApMS aplicação dos princípios, mas é qualidade geral de qualquer aplicação de
77562/SC, Rel. Juiz Paulo Afonso Brum Vaz, DJU 05.06.2002: normas. Não é correto, pois, afirmar que os princípios, em contraposição
"Previdenciário. Benefício por invalidez decorrente de acidente do às regras, são carecedores de ponderação (abwãgungsbedürftig). A
trabalho. Restabelecimento. Mandado de segurança. Competência da ponderação diz respeito tanto aos princípios quanto às regras, na medida
justiça estadual. A despeito da regra inscrita no inciso VIII do art. 109 da em que qualquer norma possui um caráter provisório que poderá ser
Constituição Federal, é competente a Justiça Estadual para julgar ultrapassado por razões havidas como mais relevantes pelo aplicador
mandado de segurança que tenha por objeto a concessão ou revisão de diante do caso concreto." Concepção semelhante é a desenvolvida pOr
benefício previdenciário decorrente de acidente do trabalho. Se o PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 81: "All socially
legislador constitucional excluiu da competência federal a matéria established legal norms, expressed in statutes, precedents etc., have a
relacionada com acidente do trabalho, não se pode sobrepor a esse merely prima facie character. The step from prima facie legal rules to the
desígnio regra de natureza instrumental, ainda que tenha esta última all-things-considered legal (and moral) obligations, claims etc. involves
também sede na Carta Constitucional. Na ponderação dos interesses em evaluative interpretation, that is, weighing and balancing." (grifos no
conflito, deve prevalecer a substância sobre a forma." original); e HAGE, Jaap. C. Reasoning with Rides, 1997.

26 27
Não se adotou neste estudo qualquer dos três conceitos te, os elementos clássicos de interpretação", especialmen-
descritos acima para a ponderação, preferindo-se um quar- te o sistemático e o teleológico, também são meios herme-
to. A fundamentação analítica dessa escolha depende de nêuticos empregados para adequar o sentido do texto à sua
temas a serem desenvolvidos ao longo do texto, mas é pos- finalidade e evitar incongruências e até mesmo antinomias.
sível apresentar desde logo um conjunto de argumentos Por meio desses elementos, é possível chegar a interpreta-
preliminares que justificam essa decisão. Para fins didáti- ções extensivas ou restritivas, desenvolver raciocínios ana-
cos, será útil examinar, em primeiro lugar, por que a segun- lógicos, de tal forma que eventuais conflitos sejam supera-
da forma de compreender a ponderação identificada acima dos.
não é adequada. Em seguida, tentar-se-á demonstrar por Ou seja: o problema da colisão normativa (antinomia)
que tampouco foram adotadas as duas outras possibilida- não é novo e, muito antes que se cogitasse formalmente da
des descritas. técnica da ponderação, a hermenêutica jurídica já havia de-
O direito está muitíssimo acostumado aos conflitos senvolvido mecanismos variados para solucioná-lo. Uma
normativos. A hermenêutica jurídica sempre conviveu com primeira crítica à idéia de que ponderação vem a ser a téc-
o problema das antinomias e com as diversas técnicas con- nica empregada para a solução de qualquer conflito norma-
cebidas para superá-las. Os critérios temporal, hierárquico tivo consiste exatamente nisto: ou bem todas essas técnicas
e da especialidade continuam a ser de grande utilidade e tradicionais de interpretação se transformaram subitamen-
dão conta de boa parte dos problemas envolvendo conflitos te em ponderação ou a concepção descrita acerca desta
normativos, aplicando-se não apenas à ordem infraconsti- última é excessivamente abrangente.
tucional", mas também à constitucional". Em outra fren- A evidência de que a ponderação não se confunde com
as fórmulas hermenêuticas tradicionais para a solução de
antinomias coloca, porém, urna nova questão: em que a
44 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1997, p. 71 e ponderação se particulariza, comparada com os critérios da
SS.. especialidade, hierárquico ou temporal e com as demais
45 Como se sabe, as regras contidas no art. 100 da Constituição — técnicas convencionais de interpretação? A pergunta é fun-
disciplina geral dos precatórios — e no art. 33 do ADCT — que formula damental e tem na verdade duas respostas: há uma distin-
regra especial nessa mesma matéria — convivem apenas por conta da ção metodológica entre a ponderação e essas outras técni-
especialidade de uma em relação à outra. O mesmo se dá com o art. 15,
111 — regra geral quanto aos efeitos de condenação criminal sobre os
cas e há também uma distinção material entre os conflitos
direitos políticos — e o art. 55, VI e § 2° — que cria regra especial quando normativos de que elas se ocupam. Na verdade, a distinção
se trate de deputado federal ou senador. Emendas constitucionais material provoca, de certa forma, a metodológica. Explica-
revogam o texto original da Carta (quando isso seja possível) e conflitos se melhor.
entre as disposições antigas e as novas são resolvidos pelo critério
temporal. Por fim, se uma emenda pretende alterar alguma das chamadas
cláusulas pétreas, uma manifestação específica do critério hierárquico
impedirá a iniciativa, já que não se admite alteração tendendo a abolir o 46 Sobre os elementos clássicos de interpretação, v. BARROSO, Luís
que esteja contido em dispositivos que desfrutem desse status. Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 124 e ss..

28 29
-.7,11111Prr.

Todos os elementos de interpretação tradicionais refe- superar a antinomia, afastar a incidência de outras possibi-
ridos acima operam, em última análise, sob a lógica da sub- lidades normativas e isolar uma única premissa maior, para
sunção, que continua a ser a lógica ordinária de aplicação que a subsunção possa ter início.
silogística do direito. O raciocínio subsuntivo aplicado ao Do ponto de vista metodológico, porém, a ponderação
direito pode ser descrito simplificadamente nos seguintes é exatamente a alternativa à subsunção", quando não for
termos: em primeiro lugar, identifica-se uma premissa possível reduzir o conflito normativo à incidência de uma
maior, composta por um enunciado normativo ou por um
conjunto deles. A premissa maior incide sobre uma premis-
sa menor (o conjunto de fatos relevantes na hipótese), e princípios no direito brasileiro". In: BARROSO, Luís Roberto
desse encontro entre as premissas maior e menor produz- (organizador). A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos
fundamentais e relações privadas, 2003, pp. 327 a 379.
se uma conseqüência: a aplicação de uma norma específica
49 ALEXY, Robert. On Balancing and Subsumption. A Structural
ao caso, extraída ou construída a partir da premissa Comparison, Ratio Juris, vol. 16, n° 4, 2003, p. 434: "It is easy to see that
maior". As técnicas tradicionais de solução de antinomia e the application of the law is not exhausted by a deduction of this kind.
a aplicação dos elementos sistemático e teleológico, dentre There are two reasons for this. The first is that it is always possible that
outras fórmulas hermenêuticas", pretendem exatamente other norm, requiring another solution, is applicable. If this is the case,
the question of precedence arises. The answer to this question may
involve balancing, but it must not do so. Oftenmeta-rules like lex superior
47 Não cabe aqui aprofundar o tema, mas fica o registro de que o derogat legi inferiori, lex posterior derogat legi priori, or lex specialis
processo de subsunção jurídica está longe de ser simples e unívoco. A derogat legi generali are applicable. In order to arrive at a solution, a
seleção da premissa maior aplicável, a identificação dos fatos relevantes e second subsumption has to be performed under such a meta-rule. One
a definição da conseqüência que se deve extrair da premissa maior são might call this second subsumption 'meta-subsumption'. S o long as
questões que se interligam e podem envolver muitas complexidades, V. conflicts of norms are resolved by meta-subsumption, we remamn within
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, 1999, p. 303: "Na the realm of subsumption. As soon as we resort, however, to balancing to
realidade, porém, as coisas são bem mais complexas, implicando uma resolve the conflict, we shift over from subsumption at the first levei to
série de atos de caráter lógico e axiológico, a começar pela determinação balancing at the second levei." Isso não significa que o processo de
prévia da norma aplicável à espécie, dentre as várias normas possíveis, o ponderação não empregue em determinados momentos o raciocínio
que desde logo exige uma referência preliminar ao elemento fático. (...) subsuntivo, como destaca SANCH1S, Luis Prieto.
Como se vê, a norma não fica antes, nem o fato vem depois no raciocínio "Neoconstitucionalismo y ponderación judicial". In: CARBONELL,
do juiz, pois este não raro vai da norma ao fato e vice-versa, cotejando-os Miguel (organizador). Neoconstitucionalimo(s), 2003, p. 145: "Pero si
e aferindo-os repetidas vezes até formar a sua convicção jurídica, raiz de antes de ponderar es preciso de alguna manera subsumir, mostrar que el
sua decisão. (...) Donde podemos concluir que o ato de subordinação ou caso individual que examinamos forma parte dei universo de casos en el
subsunção do fato à norma não é um ato reflexo e passivo, mas antes um que resultan relevantes dos principios en pugna, despirás de ponderar creo
ato de participação criadora do juiz, com a sua sensibilidade e tato, sua que aparece de nuevo la exigencia de subsunción. Y ello es así porque,
intuição e prudência, operando a norma como substrato condicionador de como se verá, la ponderación se endereza a la formulación de una regia, de
suas indagações teóricas e técnicas." una norma en la que, reuniendo en cuenta las circunstancias dei caso, se
48 Sobre elementos específicos de interpretação constitucional (afora a elimina o posterga uno de los principios para ceder el paso a otro que,
ponderação), v. BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. superada la antinomia, opera como una regia y, por tanto, como la premisa
"O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos normativa de una subsunción." (grifos no original).

30 31
única premissa maior. Isso é o que ocorre quando há diver- da ordem infraconstitucional não poderá ser resolvida por
sas premissas maiores igualmente válidas e vigentes, de uma mera subsunção, já que várias disposições constitucio-
mesma hierarquia e que indicam soluções diversas e con- nais devem funcionar como parâmetro para esse controle e
traditórias. Nesse contexto, a subsunção não tem elemen- cada uma delas parece indicar uma conclusão diversa acer-
tos para produzir uma conclusão que seja capaz de conside- ca da validade do dispositivo legal. Pois berri: a ponderação
rar todos os elementos normativos pertinentes: sua lógica pretende ser exatamente a técnica que conseguirá, a partir
de funcionamento tentará isolar uma única premissa maior de uma lógica diversa da subsuntiva, decidir esses conflitos
para o casos°. considerando todas as premissas maiores pertinentes.
Isso é o que se passa, e.g., quando várias disposições Essa, portanto, é a primeira distinção entre a pondera-
constitucionais originárias incidem sobre uma mesma hipó- ção e as técnicas tradicionais de solução de antinomias:
tese, indicando soluções diversas: todas foram editadas ao estas estão ligadas à subsunção, ao passo que a ponderação
mesmo momento, dispõem da mesma hierarquia e na é uma alternativa a ela.
maior parte dos casos inexiste qualquer relação de genera- A segunda distinção, como referido, relaciona-se com a
lidade/especialidade entre elas. Ademais, não é possível natureza dos conflitos normativos afinal superados pelas
simplesmente escolher uma disposição constitucional em técnicas tradicionais e daqueles que persistem e exigem o
detrimento das demais: o princípio da unidade, pelo qual emprego da ponderação. Embora essa forma de sistemati-
todas as disposições constitucionais têm mesma hierarquia zar os conflitos normativos em dois grupos não seja rigorosa
e devem ser interpretadas de maneira harmônica, não ad- e, possivelmente, não se aplique a todos os casos, ela ajuda
mite essa soluçãom. a compreender parte importante do fenômeno examinado.
Situação semelhante ocorre com muitos enunciados in- As antinomias com as quais a hermenêutica tem lidado
fraconstitucionais que, refletindo os conflitos internos da tradicionalmente não envolvem um conflito axiológico im-
Constituição, encontram suporte lógico e axiológico em portante ou uma disputa entre opções políticas, isto é, não
algumas disposições constitucionais, mas parecem afrontar se cuida de uma oposição de elementos igualmente rele-
outras. Também aqui, a verificação da constitucionalidade vantes para a ordem jurídica. Trata-se, em geral, apenas de
um conflito lógico entre enunciados ou ainda de um texto
que veiculou de forma não completamente satisfatória o
50 TORRE, Maxim° La. Theories of Legal Argumentation and Concepts que se pretendia. Os conhecidos conflitos aparentes entre
of Law. An Approximation, Ratio Juris, vol. 14, n° 4, 2002, p. 380: "But
the decisive problem that explains why the syllogistic model is
os arts. 100 do corpo permanente da Carta de 1988 e o 33
(theoretically) in crisis is that even where a clear provision is available, do ADCT, bem como entre ao arts. 15, III, e 55, VI, § 2°,
appropriate to the case under consideration, and the factual elements ambos solucionados pelo critério da especialidade, exem-
have been adequately classified and tested, it is not always possible to plificam o ponto.
reach a single correct answer." Nesse contexto, não há propriamente um conflito en-
51 Esse é o entendimento consolidado no Brasil. Veja-se, por todos, tre valores ou entre opções políticas fundamentais. No má-
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição,
2003, p. 196 e ss.
ximo, é possível visualizar uma resistência às interpreta-

32 33
ções menos literais, já que, ao se afastarem do sentido mais Qual o fundamento para decidir entre eles, então? O crité-
evidente do texto, elas podem representar um risco para a rio teleológico tem pouca utilidade, já 'que não é possível
segurança jurídica e a previsibilidade. Essa tensão, entre- apurar uma única finalidade com clareza. Os demais ele-
tanto, é própria de toda e qualquer interpretação da lingua- mentos, como o lógico e o sistemático, igualmente enfren-
gem e dentro de certos limites não revela um conflito valo- tam problemas: o mesmo texto e o mesmo sistema forne-
rativo autônomo. Em situações específicas, por outro lado, cem elementos que podem sustentar diferentes conclu-
essa tensão pode dar origem a uma colisão aberta de valo- sões. Diante de hipóteses assim, a subsunção é insuficiente
res, como se verá mais adiante. e a ponderação parece ser a única forma de superar o con-
Diversamente, os conflitos que não podem ser supera- flito e chegar a uma decisão.
dos pelas técnicas tradicionais refletem em geral um con- A distinção material entre os conflitos reforça ainda
fronto entre valores ou opções políticas decorrentes da mais a inadequação da idéia que visualiza a ponderação
própria Constituição como um todo e dos princípios por como uma técnica genérica para solução de qualquer con-
ela previstos em particular". Conflitos entre liberdade de flito normativo. Não apenas a afirmação é imprecisa, como,
expressão e direito à honra e à intimidade, entre proprieda- pior que isso, banaliza o uso da ponderação, cujo emprego
de e sua função social, entre proteção do meio ambiente e deve ser reservado apenas para as hipóteses de insuficiên-
direito à moradia, dentre muitos outros, revelam tensões cia da subsunção, que continua a ser a forma ordinária de
aplicação dos enunciados normativos.
entre elementos consagrados pelo próprio constituinte.
Cabe agora examinar o primeiro conceito acerca da
Ora, além de as técnicas tradicionais de solução de an- ponderação exposto acima: o que a identifica como a forma
tinomias não serem capazes de resolver essa espécie de de aplicação dos princípios. Essa concepção não parece to-
conflito, também os elementos clássicos de interpretação talmente adequada por algumas razões. De fato, a maioria
— que, ao delinearem o sentido dos elementos normativos absoluta dos conflitos normativos que exige ponderação
em tensão, poderiam superar o impasse — têm aplicação envolve princípios, já que boa parte deles ocupa-se exata-
limitada. É fácil entender a razão. Como se acaba de regis- mente de veicular valores ou opções e fins políticos. Na
trar, a definição do próprio sentido e alcance dos enuncia- verdade, a incidência simultânea do conceito de pondera-
dos normativos nesses casos depende de escolhas entre va- ção proposto neste estudo — técnica jurídica de solução de
lores ou opções políticas em confronto, todos refletidos de conflitos normativos que envolvem valores ou opções políti-
forma mais ou menos intensa no sistema constitucional. cas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas tra-
Ocorre que, em geral, os critérios para essas escolhas não dicionais — e daquele que visualiza a ponderação como
podem ser extraídos facilmente do texto ou do sistema. forma de aplicação dos princípios certamente produzirá
amplas áreas de superposição. Há, porém, duas dificulda-
des que não recomendam a utilização dessa última idéia.
52 PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 19: "A 'hard' Em primeiro lugar, os conflitos normativos não resolvi-
case, on the other hand, 'presents a moral dilemma, or at least a difficult
moral determination' (Morawetz, 1980, 90)."
dos pela subsunção podem, ainda que em caráter excepcio-

34 35
nal, envolver regras". A ponderação, nesses casos, não usar apenas um elemento desse universo: a ponderação
pode ser reduzida a uma forma de aplicar princípios; trata- propriamente dita de enunciados e normas jurídicas.
se na verdade de uma técnica de decisão autônoma que, Por esta razão, sob uma perspectiva estritamente jurídi-
embora muitas vezes envolva princípios, não se vincula a ca e operacional, não parece muito útil trabalhar com uma
eles de maneira exclusivas'. Além disso, como se verá noção tão ampla de ponderação, dentro da qual o problema
adiante, há princípios que não funcionam completa ou ne- da ponderação normativa — especialmente grave para a
cessariamente sob a lógica da ponderação (seja porque dis- prática jurídica — ficaria diluído. É certo que o direito
põem de núcleo com natureza de regra, seja porque têm sempre envolve ponderação no sentido comum do termo:
estrutura e funcionamento diversos). O ponto será retoma- o legislador considera vantagens e desvantagens envolvidas
do adiante. em determinada questão e decide por um caminho. Nesse
Por fim, resta expor as razões pelas quais tampouco se sentido, é perfeitamente possível afirmar que em toda de-
adotou a terceira forma identificada acima de entender a cisão judicial há alguma ponderação: ao juiz são apresenta-
ponderação: aquela que a descreve como elemento ineren- das razões contrastantes, ambas postulando primazia, e
te e indistinto da atividade de interpretação e argumenta- cabe a ele decidir por uma delas ou por uma solução inter-
mediária, na medida em que isso seja possível. Isto é: o
ção jurídicas, já que todo o discurso racional, em última
julgador deverá "levar em conta", "considerar" as diferen-
análise, depende da lógica ponderativa, por meio da qual
tes razões das partes antes de decidir. A ponderação nor-
toda sorte de argumentos, inclusive os jurídicos, pode ser
mativa propriamente dita, porém, apresenta características
avaliada.
particulares, tem importância específica para a dogmática
A investigação do discurso racional em geral, e da argu- jurídica e merece, por isso, um estudo próprio.
mentação jurídica em particular, é da maior relevância para Ademais, como se aprofundará a seguir, por conta da
o direito contemporâneo, e a discussão sobre a ponderação singularidade das antinomias que lhe cabe solucionar, a
normativa em especial — sendo esta a que se ocupa direta- ponderação normativa acaba por conferir ao intérprete po-
mente de elementos normativos — é apenas uma parcela deres especialmente amplos. A afirmação genérica de que
de um objeto de estudo muito mais amplo. Compreender toda interpretação envolve uma ponderação (quando a ri-
a ponderação neste sentido amplíssimo exigiria um exame gor o termo ponderação estaria sendo usado em sentido
aprofundado da teoria do discurso e da argumentação, mas amplo, e não para designar uma técnica específica de solu-
não é esse o propósito deste estudo. Aqui se pretende ana- ção de conflitos normativos) poderia autorizar o operador
jurídico a lançar mão desses poderes em qualquer exercício
da atividade interpretativa, ainda que não estivessem pre-
53 O tema será examinado adiante, no Capítulo VIII.2. sentes as circunstâncias que os justificam".
54 Nesse sentido, RODRIGUEZ DE SANTIAGO, José Maria. La
ponderación de bienes e intereses en el derecho administrativo, 2000, p. 9;
e ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 35: "Com efeito, a 55 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da
ponderação não é método privativo de aplicação dos princípios." Constituição, 1998, pp. 1161 e 1162: "Em muitas propostas

36 37
A despeito das críticas apresentadas, a verdade é que é 1.2. Direito, racionalidade e justificação: algumas notas
possível denominar e classificar os fenômenos jurídicos
como se prefira, em função da utilidade e da clareza visua- O tópico anterior teve por fim identificar o objeto prin-
lizadas em uma ou outra fórmula. O importante realmente cipal de investigação deste estudo: a ponderação. Além das
é que essas fórmulas sejam capazes de comunicar os con- notas já feitas, e antes de prosseguir, parece importante
teúdos pretendidos aos diferentes usuários dessas conven- também justificar os objetivos do estudo. Por que, afinal, é
ções. Pois bem: considerando os dois objetivos centrais necessário ordenar metodologicamente a técnica da ponde-
deste estudo — (i) propor uma ordenação que confira ração e formular parâmetros que orientem e limitem o seu
emprego pelo intérprete? Embora a resposta a essa pergun-
maior juridicidade e racionalidade à ponderação enquanto
ta pareça bastante óbvia e quase intuitiva, há algumas
técnica para solução de conflitos normativos e (ii) propor observações importantes a fazer sobre o ponto.
parâmetros capazes de orientar o emprego dessa técnica Na verdade, e como já se mencionou, o objeto deste
—, a noção de ponderação inicialmente adotada parece sa- trabalho insere-se em uma discussão muito mais ampla,
tisfatória. Desse modo, para os fins deste estudo, e à guisa que envolve o tema da racionalidade e da justificação do
de conclusão deste tópico, a ponderação será compreendi- direito e das decisões jurídicas, sobretudo as judiciais56. O
da e identificada como urna técnica jurídica de solução de tema é cada vez mais relevante no Brasil, pelo menos por
conflitos normativos que envolvem valores ou opções polí- duas razões. Em primeiro lugar, os sistemas jurídicos con-
ticas em tensão, insuperáveis pelas formas hermenêuticas temporâneos, e em particular o brasileiro, conferem ao in-
tradicionais. térprete um espaço de atuação e criação cada vez mais am-
plo. Retomando o que se registrou na introdução, a utiliza-
ção intensiva pelos enunciados constitucionais e legais de
princípios e conceitos abertos ou indeterminados, dentre
outros mecanismos, transfere ao Judiciário contemporâneo
metodológicas a ponderação é apenas um elemento do procedimento da um amplo poder na definição do que é, afinal, o direito.
interpretação/aplicação de normas conducente à atribuição de um Sob pena de serem acusadas de puramente arbitrárias e
significado normativo e à elaboração de uma norma de decisão. Aqui o ilegítimas em um Estado democrático de direito57, as esco-
balancing process vai recortar-se em termos autônomos para dar relevo à
idéia de que no momento de ponderação está em causa não tanto atribuir
um significado normativo ao texto da norma, mas sim equilibrar e ordenar 56 Os temas da teoria da argumentação serão abordados apenas quando
bens conflituantes (ou, pelo menos, em relação de tensão) num isso seja necessário (e à medida que seja necessário) aos propósitos do
determinado caso. Neste sentido, o balanceamento de bens situa-se a estudo. Como já referido, o objetivo do estudo é apresentar uma proposta
jusante da interpretação. A actividade interpretativa começa por uma operacional para a técnica da ponderação e seria impossível atingir essa
reconstrução e qualificação dos interesses ou bens conflituantes meta se o estudo pretendesse aprofundar as complexas questões da teoria
procurando, em seguida atribuir um sentido aos textos normativos e da argumentação.
aplicar. Por sua vez a ponderação visa elaborar critérios de ordenação 57 Para uma discussão mais profunda sobre o conceito de estado
para, em face dos dados normativos e factuais, obter a solução justa para democrático de direito, v. SILVA, José Afonso da. O Estado democrático
o conflito de bens." de direito, Jurisprudência Mineira n°101, 1988, p. 1 e ss..

38 39
lhas do intérprete nesse ambiente demandam justifica- Além dessas razões gerais, a necessidade de racionalida-
tivas". de e justificação torna-se ainda mais acentuada quando se
Por outro lado, e em segundo lugar, o processo de rede- trate de decisão que emprega a técnica da ponderação.
mocratização do País, nos últimos vinte anos, a reorganiza- Como exposto no tópico anterior, a técnica se destina a
ção da sociedade civil e a liberdade de imprensa passaram a solucionar antinomias que, na verdade, refletem conflitos
submeter o Judiciário à crítica a que estão sujeitos todos os muito mais complexos, envolvendo valores e diferentes op-
poderes estatais. Obviamente, a necessidade de o agente ções políticas. Neste contexto, as decisões jurídicas não são
público demonstrar a legitimidade de seus atos cresce à tomadas com base em uma subsunção simples ou facilmen-
medida que haja mais controle". te perceptível, já que os critérios utilizados para definir a
solução em cada caso não estão no texto jurídico. Sua legi-
timidade, portanto, não decorre de forma evidente de
58 LA TORRE, Maximo. Theories of Legal Argumentation and Concepts enunciados normativos. Em suma: com mais razão que a
of Law. An Approximation, Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, p. 382: "It is existente relativamente a todas as decisões judiciais, a legi-
today the judge that is put forward as the new centre of the legal system,
no longer the legislative power, like it or not. And in the judge's view timidade daquelas que se valem da técnica da ponderação
central importance inevitably attaches to the procedure by which the depende fortemente de sua racionalidade e capacidade de
decision is arrived at. Here, the law is not enough, other criteria of choice justificação60 . Esses dois elementos — racionalidade e jus-
have to be resorted to."; e AARNIO, Aulis. Lo racional como razonable, tificação — exigem um breve comentário.
1991, p. 29: "Corno se ha mencionado, el decisor ya no puede apoyarse
en una mera autoridad formal. En una sociedad moderna, la gente exige
no solo decisiones dotadas de autoridad sino que pide razones. Esto vale
también para la administración de justicia. La responsabilidad dei juez se doutrinário-acadêmica e o quotidiano do juiz e do advogado. Ademais,
ha convertido cada vez más en la responsabilidad de justificar sus nos últimos anos tem-se freqüentemente sustentado uma fiscalização
decisiones. La base para el uso dei poder por parte dei juez reside en la maior da atividade do Judiciário, cogitando-se por vezes o controle
aceptabilidad de sus decisiones y no en la posición formal de poder que externo deste poder. Trata-se de um debate difícil, complexo e delicado.
pueda tener. En este sentido, la responsabilidad de ofrecer justificación (...) Entretanto, pode-se apontar urna outra forma — diferente daquela
es, especificamente, una responsabilidad de maximizar el control público do controle externo — de procurar garantir mecanismos de fiscalização da
de la decisión. Así pues, la presentación de la justificación es siempre sociedade e da comunidade dos operadores do Direito em relação ao
también un medio para asegurar, sobre una base racional, la existencia de Judiciário. Tal se daria, basicamente, a partir de uma outra perspectiva,
la certeza jurídica en la sociedad." situada numa dimensão metodológica, através de um exame mais apurado
59 MAIA, Antônio Cavalcanti. A importância da dimensão da fundamentação das decisões, à luz de todas essas cogitações de
argumentativa à compreensão da práxis jurídica contemporânea, Revista natureza teórica abertas pela démarche tópica. Neste quadro atual, onde
Trimestral de Direito Público n° 8, 2001, pp. 280 e 281: "Eis que a os magistrados dispõem de uma área maior ainda de liberdade do que a
reconstitucionalização implicou nítido alargamento nas funções dos juízes tradicionalmente garantida em nossa .história jurídica, impõe-se uma
e uma maior participação do Judiciário nos problemas gerais da vida atenção maior à questão concernente as justificativas pelas quais os juizes
brasileira. Deste modo, cabe à comunidade dos profissionais do Direito chegam às decisões que dirimem as lides a eles submetidas."
uma reflexão mais profunda acerca destas questões, tendo em vista que a 60 PECZENIK, Aleksander. On Lato and Reason, 1989, p. 31: "Why
'nova retórica' oferece novas possibilidades de reflexões no mundo do should value judgments, based on weighing and balancing of various
Direito e postula uma integração maior entre a produção considerations, play such a great role in legal reasoning, particularly in

40 41
De forma simples, é possível dizer que a racionalidade mentação62, em especial nas hipóteses em que existam vá-
na esfera das decisões jurídicas está ligada a dois elemen- rias conexões possíveis — e diferentes — com o sistema
tos: (i) a capacidade de demonstrar conexão com o sistema jurídico63. Explica-se melhor.
jurídico61 e (ii) a racionalidade propriamente dita da argu- De forma esquemática, em um Estado de direito, repu-
blicano e democrático, no qual se adota como pressuposto
a igualdade de todos, a imperatividade do ordenamento
jurídico decorre de contar, em última análise, com o respal-
legal interpretation? The answer is based on the fact that the
interpretation and application of law is to some extent rational and, for do de uma decisão majoritária, representada pela lei e/ou
that reason, promotes legal certainty in material sense, that is, the optimal pela Constituição. Isto é: apenas uma decisão tomada em
compromise between predictability of legal decisions and their bases majoritárias, com a participação direta ou indireta
acceptability in view of other moral considerations." (grifos no original); das pessoas, pode ser considerada legitimamente obrigató-
e AARNIO, Aulis. La tesis de la única respuesta correcta y el principio ria e capaz de desencadear os mecanismos de coerção do
regulativo dei razonamiento jurídico, Revista Doxa n° 8, 1990, p. 25 e ss..
Sobre a especial necessidade de racionalidade e justificação da jurisdição Estado. Nesse mesmo sentido, e deixando de lado outras
constitucional, v. VILLALÓN, Pedro Cruz. "Legitimidade da justiça considerações, a legitimidade da atuação judicial decorre.
constitucional e princípio da maioria". In: Legitimidade e legitimação da igualmente de sua vinculação a decisões majoritárias.
justiça constitucional — Colóquio no 10 0 aniversário do Tribunal Superou-se há muito, é certo, a ficção de que o juiz
Constitucional, 1995, p. 88; GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. La seria um agente neutro de execução de subsunções lógicas,
constitución como norma y el tribunal constitucional, 1983, pp. 234 a 236:
"Es precisamente esa calificación estrictamente judicial, aplicada a una
materia tan trascendental y tan sensible para el cuerpo político y social, la
que exige de manera particular a las sentencias constitucionales 62 PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, pp. 188 e 189.
intensificar la exigencia común de la motivación de todo fallo judicial, la O autor registra que, além da coerência com o sistema jurídico (o que
de presentarse como principie, justificada de una manera detallada y envolve inclusive a criação de parâmetros), é preciso que também o
explícita en principios que trasciendan la apreciación singular dei caso, processo de argumentação e decisão seja racional e coerente. Salvo por
principios que aqui han de ser precisamente los expresados en la algumas observações pontuais, este estudo ocupa-se apenas da coerência
Constitucion o deducibles de los mismos con claridad. (...) Se trata, en sistemática e não da argumentativa.
definitiva, en la expresiva dicotomia dei libro de Howard Bali, de 63 O que qualifica uma argumentação ou decisão jurídicas como
presentar ai pueblo las decisiones constitucionales con un producto de la racionais? Esta é uma das questões mais importantes e complexas da
artesanía jurídica, a partir de los principios constitucionales, y no como teoria da argumentação. Alelcsander Peczenik, por exemplo, visualiza na
ukases, como decisiones de poder que solo podrían apoyarse en las racionalidade três exigências principais. PECZENIK, Aleksander. On
inclinaciones personales de los jueces constitucionales, inclinaciones Law and Reason, 1989, p. 119: "I have also put forward three different
irrelevantes para el pueblo y que carecen de cualquier legitimidad para demanda of rationality, that is, the demand that the conclusion is logically
erigirse em motivos últimos de dichas decisiones."; e TAVARES, André and linguistically valid (L-rationality), follows from a highly coherent set
Ramos. Tribunal e jurisdição constitucional, 1998, p. 40 e ss.. of statements (S-rationality), and would not be refuted in a perfect
61 Essa vinculação pode assumir variadas formas, admitindo discourse (D-rationality).". Veja-se também TEIXEIRA, João Paulo
modalidades mais ou menos diretas. A existência de disposições Aliam. Crise moderna e racionalidade argumentativa no direito: o modelo
implícitas, construídas a partir do sistema, e de princípios gerais do direito de Aulis Aarnio, Revista de Informação Legislativa n° 154, 2002, pp. 213
não é uma novidade. a 227.

42 43
não lhe cabendo qualquer papel criativo ou inovador. Se tões como as seguintes: Por que determinados enunciados
essa crença já era ilusória no século XIX e na primeira me- estão sendo considerados e outros não? Por que uma deter-
tade do século XX, que se dirá nos dias de hoje, tendo em minada solução deve ser adotada e não outra, igualmente
conta a abertura dos sistemas jurídicos contemporâneos? A respaldada por fundamento normativo?
visualização mais precisa do real papel do aplicador do di- A justificação, por sua vez, está associada à necessidade
reito, no entanto, não deve conduzir o debate ao outro ex- de explicitar as razões pelas quais uma decisão foi tomada
tremo. Continua a ser vedado ao juiz, em um Estado demo- dentre outras que seriam possíveis. Na verdade, cuida-se
crático de direito, inovar na ordem jurídica sem fundamen- de transformar os diferentes processos lógicos internos do
to majoritário, sob pena de usurpar a competência própria aplicador, que o conduziram a uma determinada conclusão,
dos demais poderes estatais. em linguagem compreensível para a audiência". Há aqui
Nesse sentido, portanto, a vinculação da decisão judi- um ponto importante que é muitas vezes negligenciado.
cial ao sistema jurídico em vigor é um primeiro elemento Em um Estado republicano, no qual — repita-se — todos
de racionalidade; ao demonstrar essa vinculação de forma são iguais, ninguém tem o direito de exercer poder político
consistente64 , a decisão judicial se beneficia da presumida por seus méritos pessoais, excepcional capacidade ou sabe-
racionalidade do sistema jurídico e, sobretudo, da contida doria. Todo aquele que exerce poder político o faz na qua-
em seu elemento central: a Constituição". lidade de agente delegado da coletividade e deve a ela
Muitas vezes, porém, o próprio sistema fornece funda- satisfações por seus atos". Esse raciocínio, bastante singelo
mentos para diferentes decisões, e técnicas interpretativas
diversas podem conduzir a resultados incompatíveis. Isto
é: nem sempre o sistema indicará uma solução única e in- 66 É freqüente que o termo justificação seja compreendido como
disputada e, nessas circunstâncias, não bastará demonstrar englobando não apenas a obrigação de apresentar a motivação das
decisões, mas também de fornecer uma motivação consistente, racional e
alguma conexão com o sistema jurídico: é necessário de- jurídica. Apenas para que fosse mais fácil visualizar os dois momentos —
monstrar a racionalidade propriamente dita da conexão es- a apresentação da justificativa e o juízo acerca de seu conteúdo — é que
colhida. Será necessário responder racionalmente a ques- se fez a distinção no texto, de modo que justificação acabou por ser
associada apenas à prestação de contas por parte do intérprete.
67 BARROSO, Luis Roberto. "Promoção de magistrado por
64 PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 177: "A legal merecimento e recusa de promoção por antigüidade. Dever de voto
justification which neither explicitly nor implicitly refers to a system is an aberto e motivado". In: PELLEGRINA, Maria Aparecida e SILVA, Jane
ad-hoc justification. Neither universal nor general, it would not fulfill G ranzoto Torres da (organizadoras). Constitucionalismo social — Estudos
elementary demands of justice (MacCormick 1984, 243). Justice em homenagem ao Ministro Marco Aurélio Mendes de Faria Mello, 2003,
requires that legal justification is embedded in a fairly coherent system." pp. 194 e 195: "Assinale-se que em um Estado democrático de direito,
(grifos no original). todo poder é representativo, no sentido de que é exercido em nome do
65 É claro que sob uma perspectiva filosófica ou sob a ótica da teoria do povo e deve visar à promoção do bem comum. O fato de os agentes
discurso é possível questionar a racionalidade do sistema jurídico e da públicos investidos de função judicial não serem escolhidos por meio de
própria Constituição. Essa discussão, porém, está fora do escopo deste sufrágio popular não infirma a premissa estabelecida. Juízes não são
estudo. eleitos por uma opção do constituinte, que reservou parcela do poder

44 45
do ponto de vista da teoria democrática, também se aplica (número reduzido de juízes, grande quantidade de deman-
ao Judiciário. O juiz exerce poder político ao desempenhar das repetidas etc."), e igualmente as diversas propostas
uma das atividades próprias do Estado: a jurisdição. E, por- hoje discutidas para tentar superar esses obstáculos. O que
tanto, um agente delegado da sociedade, a quem deve con- importa destacar aqui é que o dever de motivar não decorre
tas de sua atuação. Note-se que a decisão judicial não é apenas de uma regra formal contida no texto constitucional
mero conselho: ela poderá ser imposta pela força ao jurisdi- (art. 93, IX) ou de uma exigência do direito de defesa das
cionado, se necessário, em uma manifestação típica do po- partes. Ele está vinculado à própria necessidade republica-
der de império estatal. Parece evidente que o cidadão tem na de justificação das decisões do Poder Público. Quando o
o direito de saber por que um seu agente delegado decidiu juiz emprega a técnica da ponderação, essa necessidade é
em determinado sentido e não em outro". potencializada: se há uma variedade de soluções possíveis
Não se ignora o sem-número de obstáculos enfrentados nesses casos, é preciso demonstrar o motivo de se escolher
pelo juiz para cumprir o dever de motivar adequadamente uma delas em detrimento das demaism.

69 Sobre esse tema, acaba de ser divulgado pelo Ministério da Justiça


político para ser exercida com base em critérios técnicos, sem submissão
interessante estudo estatístico denominado Diagnóstico do Poder
aos mecanismos majoritários. Aliás, o Judiciário desempenha, muitas
Judiciário, Ministério da Justiça, Brasil, 2004. De acordo com o
vezes, uma função contra-majoritária, invalidando atos dos outros
levantamento, o país tem 7,7 juízes por 10.000 habitantes e no ano de
Poderes e protegendo os direitos fundamentais contra o abuso das 2003 foram distribuídos 17,3 milhões de processos ao Judiciário
maiorias políticas. Mas o constituinte não dispensou os órgãos judiciais de
brasileiro. Os problemas estruturais do Judiciário brasileiro não
um conjunto importante de controles próprios do regime democrático".
constituem propriamente uma novidade. Há alguns anos são feitas
V. também PECZENIK, Alelcsander. On Law and Reason, 1989, p. 41: pesquisas sobre o tema, ainda que não tão abrangentes, como observa
"Thus, democracy demands a legal decision making which harmonizes
BONAVIDES, Paulo. Do pais constitucional ao país neocolonial, 2001, p.
respect for both the wording of the law and its preparatory materiais and,
80 e ss.
on the other hand, moral rights and values, including freedom and
equality. 1t also demands that the decisions are justified as clearly as 70 Examinando a mesma questão sob uma perspectiva diversa e muito
possible." interessante, v. DWORKIN, Ronald. The Judge's New Role: Should
Personal Convictions Cot ou?, Joumal of Intemational Criminal Justice I,
68 AARNIO, Aulis. Reason and Authority, 1997, p. 193: "This is, thus, 2003, p. 11: "The new role played by judges — wielding power in service
due to the fact that one of the most important properties of a mature
of conscience — was once played by priests and then later by politicians.
democracy is openness. It makes the externai control of the
(...) Priests ruled by divination from the occult (...) Democratic
decision-making activity possible. This holds true also as to the
politicians now rule, not by the instinctive wisdom and fairness
adjudication. The independence of the courts of justice does not mean
celebrated in the old parliamentary model, but by representation, which
that they are completely outside of the democratic control. The division
means by compromises, trade-offs and political deals that do not even
of power guarantees the independence of the courts only in relation to
aim at coherence. Neither priests nor politicians have a responsibility of
the other power centres, especially to the executive power. On the other
justification in principie. (...) But that responsibility for articulation is the
hand, the courts of justice are a part of society and of its democratic
nerve of adjudication. Judges are supposed to do nothing that they cannot
order. Also the courts must thus, in an open society, be under a societal
justify in principie, and to appeal Only to principies that they thereby
control used by people. The only means of this control is the demand that
undertake to respect in other contexts as well. (...) Government by
the courts really argue for their decisions.".
47
46
Em suma: em um Estado de direito, republicano e de-
mocrático, as decisões judiciais devem vincular-se ao siste-
ma jurídico da forma mais racional e consistente possível, e
o processo de escolhas que conduz a essa vinculação deve
ser explicitamente demonstrado. Aprimorar a consistência
metodológica da técnica da ponderação e construir pai-à--
metros jurídicos capazes de orientar seu emprego são es-
forços dogmáticos que podem contribuir, em primeiro lu-
gar, para que a vinculação ao sistema das decisões que em-
pregam essa técnica seja juridicamente mais consistente e II. Examinando as críticas
mais racional. Em segundo lugar, e aqui apenas de forma
indireta, a ordenação objetiva e clara das etapas a serem à ponderação
percorridas pelo intérprete no uso da ponderação poderá
facilitar a demonstração pública do processo decisório no
momento da motivação.
Antes de apresentar uma proposta de ordenação para a
técnica da ponderação, anunciada nos tópicos anteriores, é
preciso enfrentar um questionamento relevante. Nos últi-
mos anos, autores têm formulado críticas contundentes à
propriedade da ponderação, à sua utilidade e até mesmo à
sua necessidade como ferramenta da hermenêutica jurídi-
ca. O exame dessas críticas (objeto deste capítulo) e das
opções à ponderação concebidas pela doutrina (objeto do
próximo capítulo) não atende apenas a uma necessidade de
organização do estudo acadêmico. Na verdade, a despeito
de se concluir ao final que a ponderação continua sendo
adjudication is newly appealing for a different reason as well: it seems indispensável em diversas hipóteses, o exame das críticas
better suited that the alternatives to the cultural and ethical pluralism auxilia na identificação de inconsistências da técnica e no
that is so marked in modern political communities and associations. (...) esforço para aprimorá-la. Como se verá, a proposta de or-
The church as Caesar is no longer an option: we are too divided about denação exposta no capítulo V absorve e procura superar
religion, and too united in our conviction that religion and State should be
separate, to permit that. We lcnow that politicians aim mainly at their
várias das objeções formuladas contra ,a ponderação, bem
next electoral success, and while it is sensible to give officials who have como assimila idéias lançadas pelos autores que defendem
that prime ambition the task of benefiting the majority, it seems less a substituição da técnica por outras opções hermenêuticas.
sensible to ask them to be the majority's conscience as well." Volte-se então ao ponto.
48 49
Ao longo das últimas décadas, muitas críticas têm sido tros racionais para a ponderação e inexiste um padrão de
formuladas à ponderação. E, embora dirigida de forma ge- medida homogêneo e externo aos bens em conflito capaz
ral à ponderação como técnica de decisão jurídica em am- de pesar de forma consistente a importância de cada um
bientes de conflitos normativos, a crítica se torna especial- deles". A ausência de parâmetros impede até mesmo que
mente incisiva em duas situações: quando a ponderação se verifique se uma ponderação levada a cabo é ou não
envolve direitos fundamentais previstos constitucional- correta".
mente e quando se trata da modalidade chamada pelos nor- b) Por conta da inconsistência metodológica, a ponde-
te-americanos de ad hoc balancingn ração admite um excessivo subjetivismo na interpretação
De forma simples, o ad hoc balancing descreve a pon- jurídica e, portanto, enseja arbitrariedade e voluntarismo.
deração levada a cabo pelo juiz no caso concreto, livremen- c) A ponderação arruína as conquistas próprias do Esta-
te, isto é, independentemente de qualquer parâmetro ou do de direito, em especial a contenção do arbítrio por meio
standard anterior e abstrato ao qual o aplicador esteja vin- da legalidade (enunciados gerais e abstratos) e a segurança
culado. Adiante se voltará a tratar mais detidamente desse jurídica daí decorrente, transmudando o Estado de direito
fenômeno. Por motivos bastante lógicos, o tema se torna em um "Estado de ponderação'.
ainda mais controvertido quando a ponderação envolve di-
reitos fundamentais. Em muitos países, tais direitos têm
72 SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación
status constitucional e, em outros, até constituem cláusu- constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los
las pétreas, de sorte que nem mesmo o constituinte deriva- conflictos de derechos, 2000, p. 31: "Como explica alguna doctrina, no es
do pode restringi-los (no caso brasileiro, como se sabe, não posible contrapesar dos bienes sin establecer un tertium comparationis, es
podem ser aprovadas emendas tendentes a abolir tais direi- decir, sin sefialar un principio, un parámetro con respecto ai c-ual se pueda
tos — art. 60, § 4°, IV). Mesmo nos Estados em que tais determinar cuál pesa más." Nesse mesmo sentido, v. ALEINIKOFF, T.
Alexander. Constitutional Lato in the Age of Balancing, Yale Law Journal
disposições não são qualificadas como cláusulas pétreas, a n°96, 1987, p. 943 e ss..
possibilidade de se restringirem por meio de decisões judi- 73 ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and Rationality,
ciais direitos assegurados constitucionalmente desperta al- Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 134 e ss.; HABERMAS, Jurgen. Direito
guma perplexidade. e democracia entre facticidade e validade, vol. I, 2003, p. 241 e ss.; e
Nesse contexto, é possível sistematizar as principais CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democratica,
críticas à ponderação nas seguintes proposições: 2004, p. 135 e ss..
74 TORRES, Ricardo Lobo. "A legitimação dos Direitos Humanos e os
a) A ponderação seria uma técnica inconsistente do
Princípios da Ponderação e da Razoabilidade". /n: TORRES, Ricardo
ponto de vista metodológico. As noções de balanceamento Lobo (organizador), Legitimação dos Direitos Humanos, 2002, p. 421 e
ou sopesamento são vagas e não veiculam uma idéia clara ss.; e NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
sobre o conteúdo da técnica. Além disso, não há parâme- expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, p. 640: "O recurso à
ponderação de bens no Direito Público e, designadamente, no domínio
que aqui nos ocupa exclusivamente, o das restrições aos direitos
71 Veja-se, por todos, ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Law fundamentais, generalizou-se, nos últimos cinqüenta anos, de uma forma
in the Age of Balancing, Yale Law Journal n° 96, 1987, p. 964 e ss.. tão avassaladora que pôde ser designada, criticamente, numa

50 51
d) A lógica da ponderação transforma a aplicação do ta, que represente os diferentes segmentos da sociedade
direito em um novo processo político, no qual vantagens e (em particular quando se adote o sistema eleitoral propor-
desvantagens serão livremente (re) avaliadas por órgãos que cional), mas apenas da opinião pessoal de um juiz ou de um
não têm legitimidade para exercer esse ofício, em franca grupo de juizes sobre o assunto. Ou seja: os dispositivos
violação ao princípio da separação de poderes. constitucionais sobre direitos fundamentais acabam por va-
e) Quando envolve a Constituição, a ponderação acaba ler menos que um enunciado normativo qualquer.
por aniquilar a conquista da normatividade de suas disposi- É preciso reconhecer que a crítica resumida acima é em
ções, já que dilui a certeza e a previsibilidade que deveriam boa parte procedente. Não há como negar, considerando o
caracterizá-las, especialmente quando se trate de cláusulas estado atual da dogmática sobre o assunto, que, de fato, a
pétreas. A ponderação submete tais disposições ao jogo
ponderação é metodologicamente inconsistente, enseja ex-
próprio da política e à imprevisibilidade, ameaçando sobre-
cessiva subjetividade e não dispõe de mecanismos que pre-
tudo os direitos fundamentais".
vinam o arbítrio.
f) Na maior parte dos casos, o juiz manifestará as
Por outro lado, parte da crítica resumida acima seria
convicções comuns à maioria da população acerca dos dife-
rentes temas constitucionais. Historicamente, porém, os aplicável, ainda que em menor intensidade, à interpretação
direitos fundamentais têm previsão constitucional justa- jurídica como um todo", especialmente nas hipóteses em
mente para estarem a salvo dos humores das maiorias. Se que o intérprete está diante de princípios que veiculem
tais direitos puderem ser livremente submetidos à ponde- valores ou opções políticas, ou ainda diante de conceitos
ração, na prática eles estarão sendo lançados às maiorias
novamente. E nem se tratará de uma maioria política, elei-
76 DWORKIN, Ronald. The Judge's New Role: Should Personal
Convictions Count?, Journal of International Criminal Justice I, 2003, p.
caracterização que revela a controvérsia que acompanha esse processo, 5: "I know that many non-lawyers (and even some law professors, lawyers
como determinando uma substituição do Estado de Direito pelo Estado and judges) think that law is wholly independent of morality, and that
da ponderação (LEISNER). Impossibilidade de colher da Constituição judges who appeal to moral principies or ideais to support their decisions
parâmetros materiais susceptíveis de balizar objectivamente o recurso ao are trespassing on the roles of priests, statesmen and moralizers, and
método, subjectivismo, intuicionismo e arbitrariedade, transferência violating their responsibilities to decide cases according to what the law
ilegítima de poderes do legislativo para o juiz com substituição da reserva is, not what it should be. That positivist canon was never defensible —
de lei pela reserva de sentença, dissolução dos controlos típicos de Estado nor, perhaps, would any of us here defend it. it was not true even when
de Direito, corrosão da força normativa da Constituição, nivelação e the highest courts of modern democracies were occupied almost entirely
indiferenciação dos direitos fundamentais, tirania dos valores e fórmula with enforcing codes or statutes or applying the precedent decisions of
vazia, de tudo a ponderação de bens no domínio dos direitos the common law to new situations. The strict positivistic sources of law
fundamentais tem sido, e com argumentos de peso, acusada." had fuzzy boundaries and left gaps: these had to be sharpened or filled in
75 ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and Rationality, with interpretation, and interpretation requires judges to decide which
Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 134: "Habermas's first objection is that way of continuing the story that the legislature or other judges have begun
balancing approach deprives constitutional rights or their normative is the most satisfactory ali things considered. That is a judgment that is
power." moral at its core."

52 53
vagos que exijam determinação. Nessa espécie de ambien- ferença reside nas conseqüências extraídas desse quadro
te normativo, a subsunção, ainda que possível, está longe pelos diferentes autores.
de ser objetiva ou rigorosamente previsível, franqueando Para muitos, a despeito de todos os inconvenientes, os
ao intérprete amplo espaço para avaliações e escolhas". conflitos normativos que envolvem valores e/ou diferentes
Em qualquer caso, não são apenas os autores contrários opções político-ideológicas de fato existem, é preciso solu-
ao uso da ponderação como uma técnica válida de solução cioná-los e não há outra maneira de fazê-lo a não ser por
de conflitos normativos que se ocupam de criticá-la; tam- meio da ponderação. E já que a necessidade de empregar a
bém aqueles que a consideram um instrumento útil para os ponderação é inexorável, cabe tentar aprimorar a técnica
fins a que se destina apontam problemas similares78. A di- com o objetivo de resolver as imprecisões que fundamen-
tam as críticas79. Esse na verdade é o propósito central des-
te estudo. A tentativa de ordenar a estrutura da técnica da
77 A posição de Kelsen sobre a questão é bastante conhecida, v, ponderação, exposta na segunda parte do estudo, destina-
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 1998, p. 390: "Se por
'interpretação' se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do
se exatamente a lhe conferir maior consistência metodoló-
objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente gica. A elaboração de parâmetros, objeto da terceira parte,
pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, é um dos instrumentos para reduzir a subjetividade do in-
conseqüentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro térprete, preservar o conteúdo próprio dos elementos nor-
desta moldura existem. Sendo assim, a interpretação de uma lei não deve
necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única
mativos envolvidos, sobretudo os constitucionais, e assegu-
correta, mas possivelmente a várias soluções que — na medida em que rar maior previsibilidade ao processo.
apenas sejam aferidas pela lei a aplicar — têm igual valor, se bem que Para outros autores, diversamente, as dificuldades en-
apenas urna delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do volvendo a ponderação são de tal ordem que a técnica deve
Direito."
78 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 722: "Cabe, nessa 79 SANCHIS, Luis Prieto. "Neoconstitucionalismo y ponderación
altura, perguntar, com LARENZ, se a ponderação é verdadeiramente um judicial". In: CARBONELL, Miguel (organizador).
método ou apenas a confissão da sua impossibilidade com a remissão do Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 152: "Las críticas de subjetivismo no
problema para o parecer subjectivo de um juiz que decide, não de acordo
pueden ser eliminadas, pero tal vez si matizadas."; SCACCIA, Gino. 11
com ordens de valores inexistentes ou inoperativas, mas segundo pautas
bilanciamento degli interessi come tecnica di controllo costituzionale,
que ele próprio estabelece. Segundo a perspectiva que defendemos, só há
Giurisprudenza constituzionale, vol. VI, 1998, p. 3998: "Nella dottrina
a ganhar no reconhecimento frontal dessa debilidade. A saída para ela não italiana, di giomo in giorno pià sensibile all'esigenza di delimitare gli spazi
reside nas propostas dos modelos que atrás criticamos e que, como vimos, di discrezionalitá delle operazioni di bilanciamento e di ridurre una
não constituem alternativas plausíveis à ponderação de bens, mas em creatività talora incompatibile con il carattere giurisdizionale dell'attività
estratégias razoáveis e praticáveis — porque conscientes dos seus limites espletata dalla Corte (...)."; e CISME, Clèmerson Merlin e FREIRE,
— de racionalização dos procedimentos de ponderação de bens, de Alexandre Reis Siqueira. "Algumas notas sobre colisão de direito
redução do intuicionismo que lhe é inerente. Como diz Ossenbühl, não ha fundamentais". In: GRAU, Eros Roberto e CUNHA, Sérgio Sérvulo da
que lamentar as debilidades de um procedimento que é inevitável, mas (organizadores). Estudos de direito constitucional em homenagem a José
antes que procurar racionalizar progressivamente a sua utilização." Afonso da Silva, 2003, p. 241 e ss..

54 55
ser descartadas°. Parece também razoável investigar o terna
sob esse ponto de vista, antes de se chegar a uma conclusão.
Se a ponderação é tão indesejável, se suscita tantas dificul-
dades e perigos, por que usá-la? A ponderação é realmente
necessária? Os conflitos normativos que ela pretende solu-
cionar não poderiam ser superados de outra forma, que
oferecesse menor quantidade de contra-indicações? Mais
que isso: esses conflitos são reais efetivamente? O próximo
tópico cuida justamente de examinár a viabilidade das al-
ternativas à técnica da ponderação que têm sido formula- III. Há alternativas à ponderação?
das pela doutrina. Os limites imanentes, o conceptualismo
e a hierarquização

Em continuidade às críticas formuladas à ponderação, e


80 Essa é a conclusão de ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional como decorrência delas, vários autores têm procurado de-
Laut in the Age of Balancing, Yale Law Journal ri° 96, 1987, pp. 992 e senvolver alternativas a essa técnica. Algumas das diferen-
1005: "If each constitutional provision, every constitutional value, is tes soluções propostas podem ser agrupadas, de forma sim-
understood simply as an invitation for a discussion of good social policy,
it means little to talk of constitutional theory. Ultimately, the notion of
plificada'', em duas grandes categorias: (i) os que negam —
constitutional supremacy hangs in the balance. (...) In sum, balancing is total ou parcialmente — a realidade dos conflitos normati-
not inevitable. To balance the interests is not simply to be candid about vos que solicitam o emprego da ponderação e, por conse-
how our minds -- and legal analysis must work. It is to adopt a qüência, afastam a própria necessidade da técnica; e (ii) os
particular theory of interpretation that requires justification. Balancing que reconhecem a realidade dos conflitos e procuram ofe-
has turned us away from the Constitution, supplying 'reasonable'
policymalcing in lieu of theoretical investigations of rights, principles and
recer uma técnica alternativa. Na primeira categoria, dois
structures. Constitutional law may not represent the search for truth or conjuntos de idéias podem ser indicados desde logo: as di-
beauty, moral salvation or divine inspiration. But it is crucial for this
political society to have a distinct way of thinking and talking about
fundamental background principies of govemment — one that both 81 É bem de ver que cada autor apresenta propostas e observações
connects up with, and pushes beyond past understandings. particulares que o distinguem dos demais. Não há uma preocupação de
Constitutional law will have trouble helping to define the arena of politics refletir na exposição essas variedades com precisão. O objetivo aqui é
if it is seen simply as an act of ordinary politics. This is not to suggest that apurar os elementos essenciais comuns aos diferentes autores, de modo a
constitutional law is not intensely political, rather that there is real value proporcionar uma visão sistemática, ainda que em certa medida
in seeing it as a different sort of politics." simplificadora.

56 57
O raciocínio descrito acima, porém, embora aparente-
ferentes teorias sobre os limites imanentes e o conceptua-
mente lógico, acabava por gerar problemas insustentáveis
lismo. Na segunda, encontra-se a proposta de hierarquiza-
ção dos elementos normativos em conflito. de interpretação e aplicação constitucional. As exigências
A idéia de limites imanentes" foi desencadeada de ma- da vida social — preocupações urbanísticas, sanitárias, am-
neira particular (embora não exclusiva) a partir da seguinte bientais, dentre outras — impõem sempre alguma espécie
concepção sobre o sistema constitucional dos direitos fun- de restrição ao exercício de direitos individuais. No mesmo
damentais. Ao dispor sobre determinados direitos, algumas sentido, a convivência com outros direitos também previs-
constituições autorizam o legislador a regulamentar seu tos na Constituição não admite uma interpretação absolu-
exercício e definir seus contornos; em outros casos não há tizadora de cada um deles. Mas o que fazer com a diferença
cláusula semelhante e o direito é aparentemente formula- de redação das normas constitucionais ou com a própria
do em termos absolutos. A questão que se coloca nesse cláusula que veda a restrição de direitos não autorizada
contexto é bastante simples: que conseqüência atribuir a expressamente pela Carta? Ignorá-la?
essa diferença de redação? A conclusão aparentemente A idéia de limites imanentes de certa forma contorna o
mais lógica é a de que, quanto a esse segundo grupo de problema que se acaba de apontar". Por ela se sustenta que
direitos, a Constituição teria vedado a possibilidade de cada direito apresenta limites lógicos, imanentes, oriundos
restrições (tanto pelo legislador quanto, com muito mais da própria estrutura e natureza do direito e, portanto, da
razão, pelo aplicador do direito). A Constituição portugue- própria disposição que o prevê". Os limites já estão conti-
sa, como se sabe, refere de forma explícita em seu texto dos no próprio direito, portanto não se cuida de uma restri-
que a restrição a direitos não é admitida fora das hipóteses ção imposta a partir do exterior". No conhecido exemplo
previstas pelo texto constitucional".

84 Tratando da experiência portuguesa, v. NOVAIS, Jorge Reis. As


82 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
Constituição portuguesa de 1976, 1998; CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição, 2003, p. 185 e ss., 307 e ss., e 528 e ss.. Esse raciocínio
Direito constitucional e teoria da Constituição, 1998, p. 1199 e ss.; e também foi empregado pelo Tribunal Constitucional italiano, como
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal descreve ZAGREBELSKY, Gustavo. "El Tribunal Constitucional
da Alemanha, 1998, p. 250 e ss.. No Brasil, v. STEINMETZ, Wilson italiano". In: Tribunales constitucionales europeos y derechos
Antônio. Colisão de direitos fundamentais e principio da fundamentales, 1984, p. 413 e ss..
proporcionalidade, 2001, p. 15 e ss.. 85 Alguns autores sublinham que os limites imanentes decorrem da
83 Essa é a redação do art. 18, n° 2 da Carta Portuguesa: "A lei só pode compreensão de cada direito em conjunto com elementos implícitos no
restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente sistema jurídico, como a cláusula de comunidade, a prevenção do
previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário exercício abusivo, o respeito à lei moral e a outros direitos, etc. V.
para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e
protegidos:. Em linha semelhante, veja-se a Constituição Argentina, princípio da proporcionalidade, 2001, p. 45 e ss..
1854 (com as alterações de 1994), art. 28: "Los principios, garantias y 86 A chamada teoria institucional dos direitos fundamentais parte de
derechos reconocidos en los anteriores artículos, no podrán ser alterados pressupostos semelhantes. V. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos
por las leyes que reglamenten su ejercicio.".
59
58
do Professor Vieira de Andrade, a liberdade de expressão Em verdade, a doutrina não apresenta um método es-
artística não autoriza um pintor a armar seu cavalete no pecífico para determinar esses limites; sua percepção é
meio de uma via expressa para lá permanecer pintando: considerada quase intuitiva e está relacionada com a evi-
essa pretensão seria bloqueada por um limite imanente, dência desses limites para o senso comum. Note-se, ainda,
lógico, contido no próprio direito87. que toda a discussão sobre os limites imanentes repercute
apenas sobre conflitos ou colisões envolvendo enunciados
direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, que afetem direitos fundamentais, e não sobre todo e qual-
2003, pp. 310 a 312: "Já para a teoria institucional dos direitos quer conflito normativo.
fundamentais, que inspira a nova concepção alternativa de limites dos
Os autores se dividem quanto às conseqüências a ex-
direitos fundamentais, não haveria mais lugar para uma compreensão de
liberdade como esfera ou reserva natural a defender da intervenção do trair da construção dos limites imanentes. Para alguns, to-
Estado, no quadro da concepção liberal de separação Estado/sociedade dos os aparentes conflitos envolvendo direitos fundamen-
(...) Hoje, a liberdade só tem sentido enquanto liberdade na sociedade, tais inexistem de fato. Os limites imanentes de cada um
enquanto liberdade normativamente conformada e ordenada; (...) Os
limites não são elementos 'externos' legitimadores de intervenções
ablativas no conteúdo dos direitos fundamentais, mas sim concretizações
direitos ou valores, por vezes expressos através de deveres fundamentais.
da sua substância jurídica, fronteiras do seu âmbito de garantia
É que se trata de algo mais ou de algo menos do que isso. É o próprio
constitucional, reveladas a partir 'de dentro' do direito, ou seja, 'limites
imanentes' aos direitos fundamentais cuja eventual positivação, na preceito constitucional que não protege essas formas de exercício do
direito fundamental, é a própria Constituição que, ao enunciar os direitos,
qualidade de elementos negativos da sua previsão normativa, tem um
exclui da respectiva esfera normativa esse tipo de situações. E a diferença
caracter meramente declarativo."
é importante, como veremos melhor, já que, se entendermos que não há
87 VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na conflito, a solução do problema não tem que levar em conta o direito
Constituição portuguesa de 1976, 1998, pp. 216 e 217: "No entanto, há invocado, porque ele não existe naquela situação. Pelo contrário, havendo
'limites imanentes' dos direitos fundamentais que s6 são determináveis conflito, tal significaria a existência de um direito em face de outros
por interpretação, pelo facto de estarem apenas implícitos no direitos ou de outros valores (deveres) e a solução nunca poderia sacrificar
ordenamento constitucional. Se é fácil saber qual o bem que está totalmente o direito invocado, a não ser que se partisse do
protegido, já é muitas vezes difícil determinar-lhe os contornos, reconhecimento de uma ordenação hierárquica dos bens
sobretudo quando o seu exercício se faça de modos atípicos ou em constitucionalmente protegidos, sacrificando-se então o menos valioso.
circunstâncias especiais, afectando, de uma maneira ou de outra, valores Só que um critério de hierarquia não é sustentável e acabaria, de qualquer
ou direitos também constitucionalmente protegidos. Estes casos são modo, por suscitar uma série de problemas sem solução racional.
muitas vezes acriticamente considerados como de conflitos entre direitos Preferimos, por isso, considerar a existência de limites imanentes
e valores constitucionais ou como colisões de direitos. Importa, todavia, implícitos nos direitos fundamentais, sempre que não seja pensável que a
distinguir nesta matéria situações que não podem ter o mesmo Constituição, ao proteger especificamente um certo bem através da
tratamento jurídico. Por exemplo, poder-se-á invocar a liberdade religiosa concessão e garantia de um direito, possa estar a dar cobertura a
para efectuar sacrifícios humanos ou para casar mais de uma vez? Ou determinadas situações ou formas do seu exercício, sempre que, pelo
invocar a liberdade artística para legitimar a morte de um actor no palco, contrário deva concluir-se que a Constituição as exclui sem condições
para pintar no meio da rua, ou para furtar o material necessário à execução nem reservas. A idéia de limites imanentes não é nova e tem sido
de uma obra de arte? (...) Nestes, como em muitos outros casos, não se
largamente utilizada na doutrina e jurisprudência alemãs." (grifos no
deve falar propriamente de um conflito entre o direito invocado e outros original)

60
61
dos direitos impedem O confronto. Na verdade, por conta imanentes e, nesse particular, o único meio de saná-los se-
dos limites imanentes, a abrangência de cada direito é me- ria realmente a ponderação90. O importante aqui é que,
nor do que se supõe inicialmente, portanto não chega a para tais autores, o recurso à ponderação ficará restrito a
haver conflito algum. Não havendo conflito, não há neces- um número significativamente menor de situações, já que
sidade de técnica para solucioná-lo e, destarte, a pondera- boa parte dos conflitos normativos seria resolvida pela ma-
ção é desnecessária. Caberia ao intérprete apenas declarar nipulação do conceito de limites imanentes.
esses limites pré-existentes, a fim de delinear o espaço do Uma segunda alternativa que tem sido concebida para
direito". substituir a técnica da ponderação pode ser denominada de
Para outros autores, diversamente, os limites imanen- conceptualismo. Seus resultados práticos são semelhantes
tes superam de fato um conjunto importante de conflitos aos obtidos por aqueles que sustentam que todo e qualquer
que são apenas aparentes". Essas supostas antinomias não conflito normativo envolvendo direitos é na verdade um
existem na realidade, pois a colisão ocorreria entre falso conflito, já que a questão pode ser solucionada com a
manifestações hipotéticas dos direitos que se encontram identificação dos limites imanentes. Outra semelhança
fora de seus limites imanentes. Este segundo conjunto de com os limites imanentes é que também o conceptualismo
autores admite, contudo, que podem persistir conflitos en- se ocupa basicamente dos conflitos envolvendo direitos
volvendo direitos mesmo depois de considerados os limites fundamentais. A estrutura dessa opção, porém, é bastante
diversa.
Os defensores do que se convencionou denominar con-
88 Para uma apresentação geral sobre o tema, v. NOVAIS, Jorge Reis.
As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas 90 Quanto aos resultados obtidos, a identificação dos limites imanentes
pela Constituição, 2003, p. 185 e ss. e 363 e ss.. de cada direito (na modalidade que admite a necessidade de ponderação)
89 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na se aproxima da idéia de definitional balancing dos norte-americanos e
Constituição portuguesa de 1976, 1998, p. 214: "Esse conflito não se igualmente do esforço para a construção de parâmetros específicos objeto
apresenta sempre da mesma maneira e, assume, visto da perspectiva do do último capítulo deste estudo. V. CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito
direito limitado, formas diferentes, que convém separar. Umas vezes, a constitucional e teoria da Constituição, 1998, p. 1164: "delimitar o
'limitação' do direito atinge o seu próprio âmbito de protecção âmbito de proteção de uma norma constitucional, estabelecendo uma
constitucional, de tal maneira que exclui em termos absolutos certas espécie de linha de demarcação entre o que entra nesse âmbito e o que
formas ou modos do seu exercício — fala-se então de limites imanentes. fica de fora. É o que a doutrina americana designa por definitional
Outras vezes, a limitação resulta dos compromissos naturais entre valores balancing e que no esquema metódico atrás referido corresponde ao
constitucionais que concorrem directamente em determinados tipos de recorte do chamado 'âmbito normativo'. A linha de definitional balancing
situações e que, nessas circunstâncias, reciprocamente se limitam — é seguida pela jurisprudência americana para precisar a esfera de proteção
estamos perante as colisões de direitos ou conflitos em sentido estrito. da norma e excluir certas dimensões. (...) Como se vê, o definitional
Noutros casos, ainda, a limitação resulta de uma intervenção normativa balancing não é, em rigor, um modelo de ponderação, pois localiza-se
dos poderes públicos para salvaguarda de valores constitucionais — esta ainda no procedimento interpretativo destinado a determinar o âmbito de
intervenção é reservada ao poder legislativo e, por isso, põe-se aqui o proteção de normas garantidoras de direitos e bens constitucionais.
problema das leis restritivas de direitos fundamentais." Define, por via geral e abstracta, os 'campos normativos'."

62 63
ceptualismo negam a existência de conflitos envolvendo os vem ser compreendidos não como vetores em oposição,
direitos fundamentais. Para eles, a difundida idéia de que mas de forma integrada, cada qual ocupando um espaço e
os direitos podem colidir entre si e/ou com disposições desempenhando um papel na construção do bem-estar do
constitucionais que consagram bens coletivos ou fins públi- homem dentro da sociedade. De acordo com essa concep-
cos tem origem em um pressuposto filosófico equivocado, ção, cada direito corresponde a um conceito jurídico asso-
de origem liberal e individualista, que compreende os di- ciado a determinados fins e fruto de uma história. Com-
reitos como poderes individuais ilimitados e desvinculados preendidos dessa forma, os direitos fundamentais e as exi-
de qualquer função ou propósito9'. gências coletivas se completam e formam uma unidade ló-
Esse pressuposto filosófico liberal acaba por ter uma gica, não havendo espaço para conflito".
conseqüência hermenêutica que estimula a multiplicação A conseqüência hermenêutica dessa forma de ver o
dos conflitos: os direitos deixam de ser compreendidos problema é a seguinte: o texto normativo apenas procura
como conceitos, isto é, como noções com sentido próprio, captar o conceito de cada direito, mas não se confunde com
construídas historicamente e associadas a determinado ele. Isto é: o texto que prevê o direito e suas possibilidades
fim, para serem identificados com o texto do enunciado lingüísticas não se confunde com o direito em si. A delimi-
normativo e todas as suas possibilidades lingüísticas. As- tação do conceito de cada direito deverá ter em conta os
sim, equivocadamente, passou a ser considerada direito elementos referidos acima — função social e histórica do
toda e qualquer manifestação humana que, do ponto de direito e seus fins lógicos —, além da própria necessidade
vista lingüístico, pudesse agasalhar-se sob a descrição con- de convivência com os demais direitos. Uma vez delinea-
tida no texto normativo, ainda que não guardasse qualquer dos os conceitos dos diferentes direitos, não haverá confli-
relação lógica com os fins daquele direito. Esse conjunto de
equívocos acabou por conferir o status de direito funda-
mental a situações que simplesmente não poderiam ser 92 SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación
constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los
classificadas dessa maneira; e, com a multiplicação desses
conflictos de derechos, 2000, pp. 40 e 41: "Como se ha expuesto más
pseudo direitos, surge o problema dos conflitos. Mantendo arriba, el conflicto o la colisión entre las normas relativas a derechos
o exemplo do pintor na via expressa, para o conceptualis- fundamentales — tomadas como enunciados lingüísticos — resulta
mo, a iniciativa do pintor nada tem a ver com o direito de prácticamente inevitable. Por outra parte, si los derechos son la expresión
expressão artística, podendo ser descrita como um pseudo de la regra de coexistencia entre los individuos y sus pretensiones, los
direito; e se não há direito, tampouco há conflito. conflictos entre ellos no sólo son evitables sino que, en rigor, son
imposibles. Por tanto, la primeira pauta hermeneutica para resolver los
Para os conceptualistas, os direitos fundamentais de- conflictos será distinguir entre derechos fundamentales y normas de
derecho fundamental, y buscar la armonización en el nível de los
derechos, no de las meras normas. Dicho de outro modo, se tratará de
91 SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación superar — en los casos de conflicto — la interpretación literal de las
constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los normas iusfundamentales, dando entrada a los derechos por via de una
conflictos de derechos, 2000; e CIANCIARDO, Juan. El conflictivismo en interpretación dirigida al fundamento de la norma, concretamente de una
los derechos fundamentales, 2000. interpretación teleolágica y sistemática."

64 65
tos entre eles ou entre eles e exigências associadas a algum A hierarquização tem como fundamento último as cor-
interesse coletivo. Dito de outra forma, o problema dos rentes filosóficas para as quais é possível escalonar os valo-
conflitos deixa de existir — e também assim a necessidade res em função de sua importância essencial". Como os
da técnica da ponderação — na medida em que se estabe- enunciados constitucionais, sobretudo os princípios, estão
leça com razoável precisão o conceito de cada um dos direi- direta ou indiretamente associados a valores, a um escalo-
tos e se deixe de considerá-los como o conjunto de todos os namento de valores poderia corresponder um escalona-
fenômenos que possam ser enquadrados lingüística e se- mento de disposições constitucionais".
manticamente sob o enunciado contido no texto constitu-
cional.
As teorias dos limites imanentes e do conceptualismo, 2000, p. 8 e ss.; e EKMEKDJAN, Miguel Angel. "El valor dignidad y la
teoria dei orden jerarquico de los derechos individuales". /72: BIDART
como mencionado inicialmente, questionam a própria exis-
CAMPOS, German J. e DOMINGUEZ, Andres Gil. Los valores em la
tência do conflito normativo e, por isso, em maior ou me- Constitucion argentina, 19991 pp. 9 a 36. Para uma exposição sobre o
nor grau, acabam por negar a necessidade da técnica da tema, v. SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación
ponderação. Ao lado dessas duas concepções, porém, há constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los
uma terceira que igualmente rejeita o emprego da pondera- conflictos de derechos, 2000, pp. 7 e 109 e ss.; e CIANCIARDO, Juan. El
conflictivismo en los derechos fundamentales, 2000, p. 107 e ss..
ção, mas por motivos inteiramente diversos: trata-se da
94 Sobre a hierarquia de valores na concepção de Max Scheler, The
hierarquização.
Cambridge Dictionary of Philosophy, 1998 (verbete: Max Scheler), faz o
Para os defensores da hierarquização, os conflitos nor- seguinte registro (p. 714): "The core of Scheler's phenomenological
mativos existem e são inexoráveis. Nada obstante, a forma method is bis conception of the objectivity of essences, which, though
de resolvê-los não deve ser a ponderação. A proposta dessa contained in experience, are a priori and independent of the lcnower. For
corrente de pensamento será a construção de uma tabela Scheler, values are such objective, though non-Platonic, essences. Their
objectivity is intuitively accessible in immediate experience and feelings,
hierárquica ou de importância entre os enunciados norma- as when we experience beauty in music and do not merely hear certain
tivos — inclusive e especialmente os constitucionais. As- sounds. Scheler distinguished between valuations or value perspectives
sim, diante do conflito, o intérprete disporá de um elemen- on the one hand, which are historically relative and variable, and values on
to objetivo para decidir, fornecido pelas diferentes posi- the other, which are independent and invariant. There are four such
ções dos enunciados em disputa na escala hierárquica. As values, the hierarchical organization of which could be both immediately
intuited and established by various public criteria like duration and
disposições normativas mais bem situadas nessa escala de- independence: pleasure, vitality, spirit and religion." Veja-se também
veriam preponderar sobre as que ocupam posições menos FRANCA, Pe. Leonel. Noções de história da filosofia, 1987, p. 249 e ss..
graduadas". 95 Esse escalonamento dependerá naturalmente de avaliações de
natureza valorativa. SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La
interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una
93 EKMEKDJIAN, Miguel Angel. De nuevo sobre el orden jerárquico de alternativa a los conflictos de derechos, 2000, pp. 7 e 8: "Por outra parte,
los derechos civiles, El Derecho n°114, p. 945 e ss., 1985 apud SERNA, las diferentes jerarquizaciones propuestas suelen depender de criterios y
Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los baremos que, aunque gozan de cierta justificabilidad en términos
derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos, constitucionales, se encuentran fuertemente marcados por

66 67
Concluída a breve exposição sobre essas alternativas à res que os da técnica da ponderação97. Não é difícil de-
ponderação, cabe fazer uma análise, ainda que rápida, so- monstrar essa conclusão.
bre o exposto. Seria realmente desejável que a hermenêu- A teoria dos limites imanentes não propõe qualquer
tica jurídica, em seu arsenal de técnicas, pudesse prescindir método pelo qual seja possível apurar o que se encontra
da ponderação, considerando os efeitos colaterais e riscos a dentro desses limites e o que está fora deles. Como fixar,
ela associados. A verdade, porém, a despeito das formula- em cada caso, as coordenadas por onde deve passar a linha
ções descritas acima, é que isso não parece possível". A de fronteira entre esses dois espaços? É evidente que, se
afirmação de que os conflitos valorativos são fictícios não é todos os envolvidos estiverem de acordo acerca dos limites
consistente e as opções metodológicas apresentadas pelos de um determinado direito, a ponderação não será necessá-
críticos da ponderação apresentam problemas ainda maio- ria ou qualquer outra técnica sofisticada, simplesmente
porque não haverá conflito e sequer será preciso discutir a
questão.
Mas e se o tema for controvertido? Por qual fundamen-
condicionamientos ideológicos. Para la visión más extendida, la cláusula to uma posição acerca dos limites imanentes — a que de-
dei interés general o el estándar de lo necesario en una sociedad fende, por exemplo, um sentido mais amplo para o direito
democrática determinan, por ejemplo, la supremacia de la libertad de
prensa, convirtiéndola en una libertad 'preferida', 'estratégica' e — deve prevalecer em detrimento da outra?" Na verdade,
'institucional'. Otros, desde una consideración de los derechos por independentemente da forma pela qual se queira denomi-
referencia a su mayor o menor cercania con el núcleo de la personalidad, nar o processo de decisão na hipótese, o intérprete não
considerarán prevalentes el honor o la vida privada frente a la
información, que estaria más lejos de la persona, pues se situaria, ai menos
a simple vista, en su vida de relación. A similares consecuencias se podria
llegar ai enfrentar otros derechos, como la libertad de cátedra y el derecho 97 Para uma critica de cunho filosófico sobre as diferentes formas de
de los titulares de los centros educativos, o el de los padres a elegir la lidar com os conflitos (reais ou aparentes) de direitos, v. MORELLI,
educación de los hijos.". A despeito da crítica formulada pelos autores, Mariano G. Los llamados "conflictos de derechos". El cálculo de bienes
dentro de certos limites, o emprego de critérios materiais na utilitarista y la critica de John Finnis, Revista Telemática de Filosofia dei
interpretação constitucional não constitui um problema metodológico, Derecho n°7, 2004.
especialmente tendo em conta que as Constituições contemporâneas 98 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
formulam explicitamente opções valorativas. O ponto será retomado expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, p. 320: "Com efeito,
mais adiante. V. sobre o tema SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. sempre que num contexto argumentativo se invoca a existência de limites
"Fundamentação e normatividade dos direitos fundamentais: uma imanentes a um direito fundamental a decorrência prática naturalmente
reconstrução teórica à luz do principio democrático" In: MELLO, Celso inevitável é a da consequente legitimação da acção restritiva do poder
de Albuquerque e TORRES, Ricardo Lobo (organizadores). Arquivos de público. Porém, esse resultado — baseado exclusivamente na afirmação
Direitos Humanos, vol. 4, 2002, pp. 17 a 61. da existência imperativa de limites imanentes — é dificilmente acessível
96 CANOTILHO, J. J. Gomes. A principialização da jurisprudência ao crivo da análise critica, já que, ao contrário do que acontecia no modelo
através da Constituição', Revista de Processo n° 98, 1999, pp. 83 a 89; e da teoria externa, se 'esconde' o jogo de interesses opostos em disputa e
NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não das correspondentes razões e contra-razões que, na realidade,
expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, pp. 357 e 695 e ss.. determinaram a decisão

68 69
escapará de empregar um raciocínio ponderativo99. E, as- Talvez a principal distinção aqui decorra da circunstân-
sim, aos problemas associados à ponderação agrega-se um cia de os conceptualistas trabalharem a idéia de conceito de
novo, que é o fato de encobrir-se a ocorrência de uma pon- direito tanto quanto possível em abstrato, em tese, e não
deração. Este é um ponto importante. Se o processo inter- perante um caso concreto. Mas, como se verá adiante, a
ponderação também pode e deve desenvolver-se em abs-
pretativo corresponde a uma simples declaração de limites
trato ou preventivamente. Em suma: tanto a idéia de limi-
imanentes e pré-existentes do direito, o intérprete sente-
tes imanentes quanto a do conceptualismo não oferecem
se livre do ônus argumentativo que acompanha a pondera- uma metodologia alternativa para solução dos conflitos
ção. Há mais espaço para o arbítrio e para o abuso. normativos que envolvem valores e opções políticas, e sua
O mesmo se pode dizer acerca do conceptualismo. Na negação dos conflitos não é, afinal, consistente. Embora
forma descrita pelos autores que tratam do tema, o proces- empregando outras denominações, essas teorias acabam
so de delimitação ou construção do conceito do direito por exigir o emprego da ponderação em maior ou menor
identifica-se, na prática, com o emprego da própria técnica medida.
da ponderação. Valem aqui as mesmas questões postas para Por fim, o que dizer da hierarquização? Essa proposta
as teorias dos limites imanentes: como será construído o enfrenta obstáculos ainda maiores que as anteriores. Con-
conceito do direito? Por que ele terá tais ou quais contor- siderando o axioma da unidade da Constituição, simples-
nos, será mais ou menos abrangente? Afinal, o conceito de mente não é possível estabelecer uma hierarquia em abs-
cada direito não está pronto e acabado, à disposição do trato entre as disposições constitucionais de tal forma que,
intérprete; ele precisará ser construído por meio de algum
processo que deverá levar em conta, além de seus fins lógi-
cos e das exigências sociais, os demais direitos que com ele alternativa a los conflictos de derechos, 2000, pp. 53 e 57: "El modo de
determinar cuándo se está ante un ejercicio lícito de ciertas libertades
disputam espaçom°. Qual a diferença essencial do que se concretas es conjugar su finalidad con la perspectiva aportada por la visión
acaba de descrever para a lógica da ponderação? coexistencial, esto es, por los bienes jurídicos básicos afectables
eventualmente por el ejercicio de esta libertad. (...) El contenido total de
un derecho, su determinación completa, implica la especificación de ai
99 ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de menos los siguientes elementos: quién es su titular; quién debe respetar o
direitos fundamentais no estado de direito democrático, Revista de Direito dar efecto ai derecho de aquél; cuál es el contenido de la obligación,
Administrativo n° 217, 1999, p. 76; e NOVAIS, Jorge Reis. As restrições describiendo no solo sus actos específicos, sino también el tiempo y otras
aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela circunstancias y condiciones para su aplicación; cuáles son las condiciones
Constituição, 2003, p. 173: "Porém, na medida em que qualquer en las que el titular pierde su derecho, incluyendo aquéllas — si las
restrição pode ser teoreticamente configurável como limite imanente hubiera — bajo las cuales puede renunciar a las obligaciones relevantes;
(...), os limites aos limites ficariam, na prática, sem objecto de aplicação qué facultades y poderes ostenta el titular en caso de incumplimiento dei
ou, pelo menos, a exigência da sua aplicação seria manipulável de forma deber; y, sobre todo, quê libertades disfruta el titular que demanda el
totalmente arbitraria." derecho, incluyendo una especificación de sus fronteras, como es el caso
100 O processo de definição do conceito do direito é descrito nos de la determinación de sus deberes, especialmente el deber de no
seguintes termos por SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interferencia con las libertades de otros titulares de ese derecho ode otros
interpretación constitucional de los derechos fundamentales. Una derechos reconocidos."

70 71
perante o conflito, a melhor posicionada na escala devesse Como registrado acima, a idéia de hierarquizar rigida-
preponderar. Na verdade, esse óbice reflete um problema mente as disposições normativas, sobretudo as constitucio-
filosófico mais complexo: qual será o fundamento axiológi- nais, a fim de obter-se um critério de solução objetivo e
co apto a justificar a hierarquização das disposições consti- pronto diante dos conflitos não é compatível com a ordem
tucionais, sobretudo quando se trate dos direitos funda- constitucional. Nada obstante, é cada vez mais comum na
mentais? Há ainda uma outra dificuldade: como a hierar- doutrina a referência a uma diferenciação axiológica entre
quização poderá lidar com diferentes manifestações de um os enunciados constitucionais Na mesma linha, fala-se
mesmo direito? Embora a simplicidade da fórmula possa também de uma espécie de hierarquização funcional: não
ser sedutora, ela não é compatível com a realidade jurídica há dúvida, por exemplo, de que os direitos fundamentais e
nem com a realidade social, que exige a convivência, tão os princípios contidos nos artigos iniciais da Carta de 1988
harmônica quanto possível, de valores diversos, e não a eli- são axiologicamente mais relevantes que as regras, e.g., de
minação de uns em prol de outros'''. natureza orçamentária. A própria Constituição de 1988
A despeito da crítica que se acaba de fazer, e embora as identifica uma categoria de preceitos fundamentais, ao criar
opções à ponderação apresentadas pela doutrina não pare- a argüição de descumprimento de preceito fundamental
çam oferecer qualquer alternativa consistente para a solu- (art. 102, § 10103)
ção de conflitos normativos envolvendo valores e opções Ora, as constituições contemporâneas em geral, e a bra-
políticas, algumas questões suscitadas por seus defensores sileira em particular, consagram o homem, sua dignidade e
merecem ser consideradas. Na verdade, mais que isso, es-
seu bem-estar como centro do sistema jurídico. Se é assim,
ses questionamentos podem contribuir de forma relevante
é perfeitamente possível conceber uma preferência — de
para aprimorar a própria técnica da ponderação. caráter prima facie — para as disposições constitucionais
diretamente relacionadas com esses fins constitucionais,
101 SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación em contraste com outras que apenas indiretamente contri-
constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los buam para a dignidade humana. Nesse sentido, ainda que
confnetos de derechos, 2000, p. 26: "Una jerarquia cerrada implica no não se trate de hierarquia, a preferência atribuída às nor-
tomar en serio todos los derechos, porque alguns siempre quedarán
diferidos en las controversias judiciales ante la presencia de otros de rango
superior. (...) Además, la jerarquización de los derechos no tiene en
102 V. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da
cuenta la complejidad de este tipo de problemas y la multiplicidad de Constituição, 2003, p. 203; e TAVARES, André Ramos. "Elementos para
excepciones y matices que ofrece la vida practica."; SCACCIA, Gino. II
uma teoria geral dos princípios na perspectiva constitucional". In: LEITE,
bilanciamento degli interessi come tecnica di controllo costituzionale,
George Salomão (organizador). Dos princípios constitucionais.
G iurisprudenza constituzionale, vol. VI, 1998, p. 3962 e ss.; e
Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição,
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e 2003, pp. 27 e 28.
princípio da proporcionalidade, 2001, p. 120: "Inaceitável,
juridicamente, é uma hierarquia de valores. Parece impossível 103 CF/88: "Art. 102 (...) § 1° A argüição de descumprimento de
fundamentar, jurídico-constitucionalmente, uma tábua de valores. preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo
Qualquer hierarquia é uma construção fundada meramente em Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.". O dispositivo foi
preferências políticas, ideológicas, pessoais, de grupos etc." regulamentado pela Lei n°9.882/1999.

72 73
mas que diretamente produzem o bem-estar das pessoas e
te: quanto mais a doutrina precisar os contornos de cada
protegem seus direitos poderá ser um parâmetro de orien-
direito, isoladamente considerado e na convivência com
tação para o intérprete no emprego da ponderação'". O outros, menor será a necessidade da chamada ponderação
terna será retomado adiante. ad hoc (aquela levada a cabo pelo juiz no caso concreto,
Das idéias conceptualistas é possível extrair ao menos sem vinculação a qualquer parâmetro). Quanto maior a
uma contribuição particularmente valiosa que pode ser in- quantidade de parâmetros delimitando o sentido e o alcan-
corporada para aprimorar a técnica da ponderação. O con- ce de cada enunciado normativo, menor será a discriciona-
ceito de cada direito, como já se registrou, não é um ele-
riedade e subjetividade envolvidas na ponderação'''. Mais
mento pronto, ao qual se possa recorrer para solucionar adiante se voltará ao assunto.
conflitos, ainda que aparentes. Na verdade, a construção
do conceito já é o resultado final, obtido após a solução do
problema. Por quais meios, no entanto, se terá chegado a
essa solução? Se a disputa envolver valores em oposição, ou
opções político-ideológicas conflitantes, não há como al-
cançar esse resultado sem ponderação, mesmo que se quei-
ra chamar a técnica de outro nome. Não obstante a crítica,
o conceptualismo projeta luz sobre uma questão importan-

104 Na verdade, embora uma hierarquia rígida seja inviável, um sistema


de preferências entre os enunciados é não apenas possível, .como
desejável. V. ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y
razán práctica, Revista Doxa n°3, 1988, pp. 149 a 150: "Los problemas
de una jerarquia de los valores juridicamente relevantes se han discutido
con frecuencia. Se ha mostrado asi que no es posible un orden que
conduzca en cada caso precisamente a un resultado — a tal orden habría
que llamarlo 'orden estricto'. Un orden estricto solamente seria posible si
el peso de los valores o de los principios y sus intensidades de realización
fueran expresables en una escala numérica, de manera calculable. El
programa de semejante orden cardinal fracasa ante los problemas de una 105 Das teorias dos limites imanentes também é possível extrair algumas
medición dei peso y de la intensidad de realización de los principios
idéias para o aprimoramento da técnica da ponderação. A principal delas
jurídicos o de los valores jurídicos, que sea más que una ilustración de un provavelmente se relaciona com a percepção de que há, realmente, uma
resultado ya encontrado. El fracaso de los ordenes estrictos no significa sin quantidade importante de pseudo conflitos, que não configuram colisão
embargo que sean imposibles teorias de los principios que sean más que normativa alguma. A dificuldade é que essa observação apenas terá
un catálogo de topoi. Lo que es posible en un orden débil que consista de utilidade prática na hipótese de todos os agentes envolvidos estarem de
tres elementos: 1) un sistema de condiciones de prioridad, 2) un sistema acordo sobre o ponto; caso contrário, apenas ao fim do processo
de estructuras de ponderación y 3) un sistema de prioridades prima interpretativo, e eventualmente após o emprego da ponderação, será
facie.". O tema será retomado adiante. possível chegar a essa conclusão.

74 75
IV. Enfrentando a ponderação:
Notas sobre as experiências
norte-americana e alemã

Registrados os traços gerais das principais propostas al-


ternativas à ponderação, desenvolvidas basicamente na Eu-
ropa e na América Latina, cabe agora fazer um rápido regis-
tro sobre como o tema é tratado nas experiências norte-
americana e alemã, nas quais, a despeito das objeções, a
ponderação tem sido incorporada à prática judiciáriaws. O
propósito deste tópico não é prover informação sobre a
história da ponderação nesses países, mas sim identificar,
ainda que de forma esquemática, como essas experiências
têm lidado com suas limitações e fragilidades.
Na experiência norte-americana, as críticas à pondera-
ção levaram em geral a movimentos de reforma da própria

106 Especialmente pelos órgãos de cúpula dos respectivos sistemas


judiciários. Para uma visão geral sobre o tema, v. SERNA, Pedro e
TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos
fundamentales. Una alternativa a los conflictos de dere chos, 2000, p. 11 e
ss..

77
e jurisprudencial no sentido de aperfeiçoá-la do ponto de
técnicam7 . Na Alemanha, a despeito de desenvolvimentos vista metodológicoi°s. É bem de ver que os meios emprega-
teóricos que procuram substituir a ponderação por outras dos por norte-americanos e alemães na tentativa de apri-
técnicas de decisão, há também amplo esforço doutrinário morar a ponderação são bastante diversos e, por isso mes-
mo, acabam sendo complementares.
A percepção da ponderação como técnica ou método
107 ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Law in the Age of para lidar com conflitos normativos envolvendo valores ou
Balancing, Yale Law Journal n°96, 1987, pp. 964 a 966: "Over the past opções políticas pode ser localizada nos Estados Unidos ao
few decades, with little justification or scrutiny, balancing has come of longo das décadas de 30 e 40 do Século >0<, mas foi sobre-
age. Every sitting Justice on the Supreme Court has relied on balancing,
and Justices Blackmun, Brennan, Marshall, Powell, and White frequently tudo na década de 50 que o tema passou a ser mais ampla-
adopt a balancing approach. As a result, balancing now dominates major mente debatido, tendo em conta um contexto bastante es-
areas of constitutional law. In Fourth Amendment cases, the Court has pecífico109 . Nesse período, como se sabe, o Judiciário nor-
balanced in determining the scope of the Fourth Amendment, the te-americano foi confrontado por diferentes leis e atos que
definition of a search, the reasonableness of a search, the reasonableness
restringiam liberdades individuais consagradas pela Consti-
of a seizure, the meaning of probable cause, the levei of suspicion
required to support stops and detentions, the scope of the exclusionary tuição por conta de necessidades relacionadas com a segu-
rule, the necessity of obtaining a warrant, and the legality of pretrial rança nacional e o combate ao comunismo.
detention of juveniles. Balancing has been a vehicle primarily for Considerando a fórmula ampla com que os direitos fo-
weakening earlier categorical doctrines restricting governmental power to ram consagrados no Bill of Rights, as restrições só seriam
search and seize. Occasionally, however, the balance worIcs against the
government. Whichever way the balance tips, the role of balancing in the
válidas se se admitisse a ponderação dos direitos em ques-
law of search and seizure is clear. As the Court has stated and restated, tão com outros bens considerados valiosos. É fácil perceber
'the balancing of competing interests' [is] 'the key principie of the Fourth que, nesse primeiro momento, o debate em torno da pon-
Amendment.'. Balancing has also become the central metaphor for deração/balancing assumiu um contorno evidentemente
procedural due process analysis. The rise of balancing here is closely político. Aqueles que consideravam válidas as restrições às
linked with the recognition of new forms of property protected by the
liberdades individuais abraçaram o balancing como uma
due process clause. The importance of "entitlements" such as welfare
benefits and government employment seemed to demand procedural técnica pertinente de interpretação dos direitos, argumen-
protections against their deprivation, but the ever-increasing size of the tando que o exercício dos direitos poderia ser condiciona-
welfare state made imposition of procedures a costly enterprise. do em função de interesses gerais, como a segurança nacio-
Balancing provided a flexible strategy that took account of both interests.
By 1976, the Court hadsettled on the now familiar three-pronged test of
Mathews v. Eldridge. Justice S tone introduced balancing to the dormant
108 ALEXY, Robert. Constitutiona/ Rights, Balancing and Rationality,
commerce clause cases. Since the 1970s, the Court has increasingly
Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 134 e ss.; e NOVAIS, Jorge Reis. As
relied on a balancing test to decide whether state regulations impose an
restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
'undue burden' on interstate commerce. The classic formulation is
Constituição, 2003, p. 678 e ss..
Justice Stewart's in Pike v. Bruce Church, Inc. (...) Balancing, of course,
has had a long affair with the First Amendment."; e NOVAIS, Jorge Reis. 109 ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Law in the Age of
As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas Balancing, Yale Law Journal n°96, 1987, pp. 943 a 1005.
pela Constituição, 2003, p. 644 e ss. e 897 e ss..
79
78
nal. Aqueles que rejeitavam as restrições defendiam, nesse nica da ponderação, de categorias, parâmetros, testes dog-
contexto, o absolutismo das cláusulas do Bill of Rights. maticamente sustentáveis e aplicáveis de forma geral e abs-
Na prática judicial, acabou prevalecendo o uso do trata a fim de reduzir a subjetividade do processom
balancing que, nesse ponto, assumiu os contornos do que No mais das vezes, a doutrina e a jurisprudência norte-
se passou a denominar de ad hoc balancing"°. Como já americanas tratam do assunto casuisticamente, procurando
referido, o ad hoc balancing identifica as situações nas construir parâmetros específicos para os diferentes confli-
quais o juiz, diante de um caso concreto, pondera livremen- tos'''. O exemplo mais expressivo desse esforço é o amplo
te os elementos em disputa, sem qualquer parâmetro pré- material existente sobre as várias hipóteses de tensão que
vio, objetivo e público que o oriente, guiado mais pelo seu envolvem a liberdade de expressão (consagrada pela Pri-
bom senso do que por qualquer outro elemento. meira Emendam). Há diferentes standards conforme a
Com o passar do tempo, superada a intensa disputa
política dos primeiros debates, os defensores originais do
111 S CHAUER, Frederick. Principies, Institutions and the First
absolutismo retraíram-se, de certa forma, e passaram a re- Amendment, Harvard Law Review, vol. 112, n° 1, 1998, pp. 84 a 120; e
conhecer que uma concepção absoluta dos direitos funda- ALEINIKOFF, T. Alexander. Constitutional Law in the Age of Balancing,
mentais seria insustentável na sociedade contemporânea. Yale Law Journal n° 96, 1987, p. 948: "Commentators have occasionally
Por outro lado, há amplo consenso na doutrina norte-ame- distinguished balancing that establishes a substantive constitutional
ricana de que o ad hoc balancing, ao ensejar excessiva sub- principie of general application (labeled 'definitional' balancing by
Professor Nimmer) from balancing that itself is the constitutional
jetividade e discricionariedade, é altamente indesejável e principie (so-called 'ad hoc balancing). New York v. Ferber is an example
deve ser tanto quanto possível evitado. A síntese dessas of definitional balancing. Ferber's holding, that the distribution of child
duas posições tem sido o desenvolvimento, associado à téc- pornography is not protected by the First Amendment, may be appliedin
subsequent cases Without additional balancing. Ad hoc balancing is
illustrated by the Court's approach in procedural due process cases.
110 Em Car/son v. Landon, 342 U.S. 524 (1952), a Suprema Corte Under Mathews v. Eldridge, the process that the Constitution requires is
norte-americana decidiu que o Attorney General poderia manter preso determined by balancing the governmental and private interests at stake
até a decisão sobre a deportação, sem direito à fiança, estrangeiro que in the particular case." V. também NISHIGAI, Makato. Comment: From
fosse membro do Partido Comunista dos Estados Unidos, quando Categorizing to Balancing Liberty Interests in Constitutional
houvesse indício de risco para a segurança nacional por conta da liberação Iurisprudence: An Emerging Sliding-Scale Test in the Seventh Circuit and
por fiança, embora não houvesse dispositivo constitucional que Public School Uniform Policies, Wisconsin Law Review 2001, pp. 1583 a
respaldasse essa competência. Embora a decisão desrespeitasse a cláusula 1617.
do devido processo legal (quinta emenda), entendeu-se que essa garantia 112 Vale registrar que da experiência norte-americana não se extraem
deveria ser ponderada com a proteção da segurança nacional. Em exclusivamente parâmetros para conflitos específicos. A jurisprudência
Barenblatt v. United States, 360 U.S. 109 (1959), a Corte considerou construiu, por exemplo, standards gerais vedando que leis ou atos
constitucional a legislação que conferia ao Comitê de Atividades Não restritivos de direitos empreguem expressões excessivamente vagas ou
Americanas do Parlamento plenos poderes para investigar atividades abrangentes (vagueness ou broadness).
comunistas no país, o que incluía a possibilidade de interrogar professores 113 Texto da Primeira Emenda: "Congress shall make no law respecting
universitários acerca de sua participação em grupos comunistas, sob pena an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or
de prisão. abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people

80
81
manifestação dessa liberdade esteja relacionada a objetivos por conta da ameaça que esse recurso hermenêutico pode-
políticos, culturais ou comerciais (propaganda comercial); ria representar em matéria de restrições a direitos funda-
conforme as restrições envolvam o conteúdo da mensagem mentais'''. Esse quadro foi especialmente agravado uma
ou apenas o modo, tempo e/ou lugar como ela será divulga- vez que também na Alemanha desenvolveu-se a discussão,
da; dentre outras variações' 14 . já referida, sobre a possibilidade ou não de restringirem-se
Na Alemanha, as discussões sobre a ponderação, a par- direitos (pela via legislativa ou jurisprudencial) formulados
tir da Constituição de 1948, desenvolveram-se em um con- de maneira aparentemente absoluta pelo constituinte (isto
texto político totalmente distinto do norte-americano e re- é, sem qualquer cláusula autorizativa de restrição), em
ceberam o influxo de idéias as mais diversas'". Seria im- oposição àqueles outros direitos que contêm uma reserva
possível descrever aqui com um mínimo de precisão esse de regulamentação atribuída pela Constituição ao legis-
complexo debate, travado sobretudo nas décadas de 50 a lador.
70' I'. Para os fins deste capítulo, basta destacar algumas Uma técnica concebida inicialmente como alternativa à
práticas já consolidadas pelo Tribunal Constitucional ale- ponderação foi a chamada concordância prática'''. Por
mão1 7. meio dela se buscaria uma otimização dos bens em conflito
Também na Alemanha, a possibilidade de o juiz proce- sem privar qualquer deles de sua garantia jurídico-constitu-
der ao ad hoc balancing suscitou inúmeras críticas (muitas cional. A doutrina registra que o principal instrumento me-
das quais resumidas nos tópicos anteriores), não só por for- todológico da concordância prática era (e é) a idéia de pro-
ça da inconsistência metodológica da técnica, mas também porcionalidade, analiticamente desenvolvida em suas três
fases (adequação, necessidade e proporcionalidade em sen-
tido estrito) pela doutrina alemã e já amplamente incorpo-
peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of
rada pela doutrina e prática judicial brasileiraslw.
grievances."
114 SCHAUER, Frederick. Principies, Institutions and the First
Antendment, Harvard Law Review, vol. 112, n° 1, 1998, pp. 84 a 120;
SUNSTEIN, Cass. Pornography and the First Emendment, Duke Law 118 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional
Journal, 1986, pp. 589 a 627; e PORTO, Brian L. The Constitution and democrática, 2004, p. 157 e ss..
Political Patronage: Supreme Court Jurisprudence and the Balancing of 119 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República
First Amendment Freedoms, Pace Law Review n° 13, 1993, pp. 87 a 139. Federal da Alemanha, 1998, p. 65 e ss..
115 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não 120 ,BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição,
expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, p. 678 e ss.. 2003, p. 213; ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 104 e
116 V. sobre o tema, TORRES, Ricardo Lobo. "A legitimação dos ss.; ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a
direitos humanos e os princípios da ponderação e da razoabilidade". In: redefinição do dever de proporcionalidade, Revista de Direito
TORRES, Ricardo Lobo (organizador). Legitimação dos direitos Administrativo n°215, pp. 151 a 179; SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O
humanos, 2002, p. 421 e ss.. proporcional e o razoável, Revista dos Tribunais n°798, 2002, pp. 23 a 50;
117 RUPP, Hans G. "El Tribunal Constitucional Federal alemán". In: e GUERRA FILHO, Willis Santiago. "Sobre o princípio da
Tribunales constitucionales europeosy derechos fundamental es, 1984, pp. proporcionalidade". In: LEITE, George Salomão (organizador). Dos
319 a 412. princípios constitucionais. Considerações em torno das normas

82 83
A concordância prática foi concebida inicialmente ponderação incorporou-se definitivamente ao arsenal her-
como uma técnica alternativa à ponderação, pois se imagi- menêutico do Tribunal Constitucional alemão123 . Ao longo
nava que a ponderação levaria sempre à preeminência de do tempo, a jurisprudência do Tribunal elaborou diversas
um bem constitucional sobre o outro, ao passo que a con- diretrizes sobre a matéria, especialmente quando se trate
cordância prática procurava harmonizá-los. A fórmula de de conflitos entre direitos fundamentais e metas públicas
solucionar conflitos pela qual um elemento normativo pre- ou bens coletivos. Algumas dessas diretrizes podem ser re-
valecia em detrimento dos demais, àquela altura identifica- sumidas nos seguintes termos: (i) quanto maior for a inten-
da com a própria ponderação, era objeto de acirrada crítica, sidade da restrição, mais significativos devem ser os valores
especialmente tendo em conta a necessidade de manter-se comunitários que a justificam; (ii) quanto maior for o peso
a unidade da Constituição. Com o tempo, e considerando e a premência de realização do interesse comunitário que
a prática do Tribunal Constitucional, a concordância práti- justifica a restrição, mais intensa ela poderá ser; e (iii)
ca acabou por ser incorporada à ponderação como um seu quanto mais diretamente forem afetadas manifestações
ideal, e com ela os testes relacionados com a proporciona- elementares da liberdade individual, mais exigentes devem
lidade. Isto é: a ponderação deve, sempre que possível, ser as razões comunitárias que fundamentam a restrição124.
buscar a concordância prática'".
De toda sorte, e como registra Robert Alexy, a partir de
1958 (sobretudo após o julgamento do caso Lüth'"), a filme ajuizou demanda contra Lüth e o Tribunal estadual de Hamburgo
julgou o pedido procedente, considerando a conduta de Lüth ilícita, com
fundamento em disposição do Código Civil sobre bons costumes, e
principiológicas da Constituição, 2003, pp. 237 a 253. Mais adiante será condenando-o a interrompenhar a campanha pelo boicote, sob pena de
examinada a relação entre a concordância prática e a proporcionalidade. prisão ou multa. O Tribunal Constitucional, entretanto, reformou a
121 Nada obstante, essa oposição entre os conceitos continua a ser decisão da Corte estadual (Sentença 7, 198, de 1958). O Tribunal
Constitucional entendeu que a legislação infraconstitucional deve ser
defendida por alguns autores, como se percebe da observação de SERNA,
Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los interpretada à luz do direito fundamental à liberdade de opinião e, que no
derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos, caso, a liberdade constitucional de opinião protegia a conduta de Erich
Lüth. Para maiores detalhes, v. SCHWABE, Jürgen, Cincuenta arios de
2000, p. 34: "Es interesante observar — por lo que se dirá en el siguiente
jurisprudencia dei Tribunal Constitucional Federal Alemán, 2003, p. 132
capitulo — que este 'principio de la concordancia práctica' es
e ss..
denominado por Scheuner 'principio interpretativo de la 'armonización',
y por Lerche 'equilibrio de máximo respecto en ambas direcciones'. 123 ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and Rationality,
Desafortunadamente, el Tribunal Constitucional Federal alemán recurre Ratio Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 134: "From a methodological point of
a tal principio solo cuando a través de la ponderación de bienes no ha view, the concept of balancing is the central concept in the adjudication
logrado establecer una jerarquia entre los bienes en conflicto, invirtiendo of the Federal Constitutional Court, which has developed further the line
asi el orden que debiera ser más razonable desde su propia perspectiva." first set out in the Lüth decision."
122 O caso decidido pelo Tribunal Constitucional pode ser resumido, 124 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
simplificadamente, nos seguintes termos. No fim da década de 40, Erich expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 692 e ss.; e
Lüth havia defendido publicamente o boicote geral a determinado filme ALEXY, Robert. Constitutional Rights, Balancing and Rationality, Raio
produzido por cineasta que servira ao regime nazista. A produtora do Juris, vol. 16, n° 2, 2003, p. 131 e ss..

84 85
Também decorre da jurisprudência do Tribunal a cons-
trução que visualiza no texto constitucional uma ordem combinações delas podem ser especialmente úteis para a
escalonada de valores, conformada pelos direitos funda- experiência brasileira.
mentais, de modo que da própria Constituição se podem Em resumo desta primeira parte, é possível registrar o
extrair relações de preferência condicionada ou prima facie que se segue. A ponderação é uma técnica de solução de
entre seus enunciados. Mais recentemente, a doutrina ale- determinados conflitos normativos, a saber, aqueles que
mã, e Robert Alexy em particular, tem procurado desen- envolvem colisões de valores ou de opções político-ideoló-
volver uma fórmula esquemática para ordenar a ponde- gicas. Essa técnica, embora venha se tornando cada vez
ração, a fim de conferir-lhe mais racionalidade e objetivida- mais popular, sofre hoje com a inconsistência metodológi-
de'25. ca, com a excessiva subjetividade e com a banalização do
Da rápida narrativa que se acaba de fazer, é interessan- discurso constitucional, dentre outras críticas.
te observar um ponto. Diferentemente dos Estados Uni- Essas críticas são em boa parte pertinentes e devem ser
dos, onde a ponderação foi sendo ordenada, sobretudo por enfrentadas, mesmo porque as alternativas à técnica não
meio da elaboração casuística de standards materiais (isto parecem consistentes e não superam as dificuldades impu-
é: relativos ao conteúdo específico das disposições em ten- tadas à ponderação, apenas modificando a nomenclatura
são e por isso mesmo aplicáveis a conflitos particulares), na aplicável. As experiências norte-americana e alemã têm
Alemanha, o esforço doutrinário e as próprias formulações procurado aperfeiçoar a técnica através de mecanismos di-
do Tribunal Constitucional se concentram na criação de ferentes e é possível inspirar-se na experiência internacio-
parâmetros lógicos de caráter geral, cujo objetivo é organi- nal para conceber fórmulas adequadas à realidade nacio-
na, 126.
zar e controlar o raciocínio jurídico levado a cabo quando se O objetivo da próxima parte do estudo é exatamente
emprega a ponderação. propor uma ordenação para a técnica da ponderação que
São mecanismos diferentes cujo propósito, em última possa superar, ainda que parcialmente, as críticas descritas
análise, é semelhante: reduzir a discricionariedade do in- acima.
térprete, conferindo maior racionalidade e previsibilidade
ao processo ponderativo. E essas duas formas de conferir à
ponderação maior previsibilidade e racionalidade — isto é:
standards materiais associados a conflitos específicos e
126 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
construídos a partir da observação da casuística e parâme- expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, p. 643: "Assim,
tros gerais de natureza argumentativa e lógica — ou enquanto que na Europa, particularmente sob influência da experiência
alemã, a síntese do processo de racionalização e dessubjectivização do
recurso à ponderação de bens gira em torno da sua integração e aplicação
125 ALEXY, Robert., On Balancing and Subsumption. A Structural concreta nos quadros do princípio da proporcionalidade em sentido lato,
Comparison, Ratio Juris, vol. 16, n°4, 2003, p. 433 e ss.. No artigo, Alexy nos Estados Unidos da América, sem se desconhecer, como se verá, este
procura organizar uma fórmula para a ponderação empregando noções de instituto, a síntese opera-se, sobretudo, na standardização dos
aritmética. procedimentos de controlo e na cristalização tendencial dos seus
resultados em regras de aplicação geral e abstracta."
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V. A técnica da ponderação:
Uma proposta em três etapas

O objetivo deste capítulo é propor um modelo de orde-


nação da técnica da ponderação pelo qual seja possível
identificar com maior clareza as etapas que o intérprete
deve percorrer ao empregá-la. Trata-se, ao mesmo tempo,
de um roteiro para o próprio intérprete e de uma forma de
controlar com mais facilidade suas conclusões.
A proposta concebe a aplicação da ponderação como
um processo composto de três etapas sucessivas'", que

127 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, propôs igualmente


uma ponderação em três etapas que identifica da seguinte forma (fls. 79
e ss.): (i) a preparação da ponderação (análise o mais exaustiva possível de
todos os elementos e argumentos pertinentes); (ii) a realização da
ponderação (fundamentar a relação estabelecida entre os elementos
objeto de sopesamento); e (iii) reconstrução da ponderação (formulação
de regras de relação com pretensão de validade para além do caso). V.
também BARROSO, Luís Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. "O
começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos
princípios no direito brasileiro". In: BARROSO, Luís Roberto
(organizador). A nova interpretação constitucional. Ponderação, direitos
fundamentais e relações privadas, 2003, pp. 327 a 379.

91
podem ser identificadas, muito resumidamente, nos se- a ponderação se desenvolva sem maiores distorçõ es129. É
guintes termos. Na primeira delas, caberá ao intérpret e fácil perceber que, se um dispositivo — relevante para o
identificar todos os enunciados normativos que aparente- caso — for ignorado pelo intérprete, os elementos que su-
mente se encontram em conflito ou tensão e agrupá-los em gerem uma solução contrária à que a disposição ignorada
função da solução normativa que sugerem para o caso con- indicaria assumirão um peso artificialmente maior ao longo
creto. A segunda etapa ocupa-se de apurar os aspectos de da arg-umentaçãom.
fato relevantes e sua repercussão sobre as diferentes solu-
ções indicadas pelos grupos formados na etapa anterior. A 129 ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e realização de
terceira fase é o momento de decisão: qual das soluções direitos fundamentais no estado de direito democrático, Revista de Direito
deverá prevalecer? E por quê? Qual a intensidade da restri- Administrativo n° 217, 1999, p. 69: "Exatamente para compreender
ção a ser imposta às soluções preteridas, tendo em conta, adequadamente colisões complexas, porém, é necessário identificar
claramente os elementos fundamentais dos quais elas são compostas.", e
tanto quanto possível, a produção da concordância prática ÁVILA, Humberto, Teoria dos princípios, 2003, pp. 87 e 88: "Nessa fase
de todos os elementos normativos em jogo? Cada etapa devem ser analisados todos os elementos e argumentos, o mais
exige algumas considerações específicas. exaustivamente possível. É comum proceder-se a uma ponderação sem
indicar, de antemão, o que, precisamente, está sendo objeto de
sopesamento. Isso, evidentemente, viola o postulado científico da
explicitude das premissas, bem como o princípio jurídico da
V. 1. Primeira etapa: identificação dos enunciados fundamentação das decisões, ínsito ao conceito de Estado de Direito.".
normativos em tensão 130 Um exemplo curioso desse desequilíbrio se deu no julgamento do
habeas corpus 73662/MG, decidido pela 20 Turma do Supremo Tribunal
Parece natural que a primeira etapa da ponderação Federal. Tratava-se de definir se a presunção de violência, referida no art.
consista exatamente em identificar os enunciados normati- 213 c/c o art. 224, a, do Código Penal, que qualifica como estupro a
relação sexual mantida com menor de 14 anos, era absoluta ou relativa. O
vos aparentemente em conflito; afinal, esta é a circunstân- voto do Ministro Marco Aurélio, relator do processo, acompanhado pela
cia que justifica o recurso à técnica da ponderação'". A maioria, considerou que a presunção era relativa, fundado principalmente
identificação de todos os elementos normativos que devem nas circunstâncias fáticas do caso, mas também por conta do art. 226 da
ser levados em conta em determinado caso é vital para que Constituição, que trata da proteção à família. O argumento era o de que
o acusado de estupro no caso, após os eventos que deram origem à ação
penal, havia constituído família e sua condenação desagregaria esse grupo
social que a Constituição pretendia proteger. A minoria sequer examinou
128 Na verdade, não basta o conflito aparente entre os enunciados. Como esse elemento normativo, fundando-se em outro enunciado
se registrou na primeira parte deste estudo, só será necessário empregar a constitucional: o art. 227, § 4°, no qual se impõe ao legislador o dever de
ponderação se o conflito não puder ser superado pelas técnicas punir severamente a exploração sexual de crianças e adolescentes. O
tradicionais de solução de antinomias, por envolver uma disputa grave argumento da minoria era o de que compreender a presunção do art. 224,
entre valores ou opções políticas. Assim, após a identificação preliminar a, do Código Penal como relativa violaria o dispositivo constitucional em
dos enunciados em tensão, será o caso de verificar se o conflito não pode questão, já que bastaria a vítima — com freqüência coagida pelo agressor
ser solucionado por qualquer das técnicas tradicionais. Apenas se isso não — afirmar que não houve violência para descaracterizar o crime. O art.
for possível é que o processo de ponderação terá continuidade. 227, § 4°, da Constituição, porém, sequer foi examinado pelo voto do

92 93
O processo se desenvolve de forma semelhante no caso Não há nesses processos um contraditório propriamen-
de disposições infraconstitucionais cuja validade esteja em te dito, a despeito do papel reservado à Advocacia Geral da
disputa por força da incidência de enunciados constitucio- União de defender a disposição impugnada no caso da
nais diversos, que aparentemente indicam conclusões con- ADIn'34. Nesse contexto, a figura do amicus curiae, intro-
traditórias'''. Todos os elementos devem ser identificados duzida no Brasil pelo art. 70, § 2°, da Lei n° 9868/1999',
— os que postulam a constitucionalidade do dispositivo e poderá ser um instrumento capaz de fazer chegar ao Supre-
os que sugerem sua inconstitucionalidade — para que se mo Tribunal Federal percepções diversas acerca da maté-
possa passar à segunda fase'". ria, das quais talvez o autor da ação, o Advogado Geral da
Note-se um ponto importante. Em processos subjetivos, União, o Ministério Público e os próprios Ministros não
em que há lide, pretensão e resistência, é razoável supor que cogitasseml". Os setores da sociedade diretamente inte-
cada parte tentará levar ao juiz todos os argumentos normati-
vos imagináveis capazes de sustentar sua posição jurídica.
Por conta do esforço das partes, o órgão competente terá
eventuais tensões normativas serão examinadas em tese. Sobre o tema, v.
melhores condições de visualizar o quadro completo de inci-
SANCHÍS, Luis Prieto.."Neoconstitucionalismo y ponderación judicial".
dências normativas para iniciar a ponderação. O mesmo não /n: CARBONELL, Miguel (organizador). Neoconstitucionalimo(s), 2003,
ocorre nos processos objetivos de controle de constituciona- p. 155 e ss.. Nada obstante, embora tais processos sejam descritos como
lidade, como é o caso da ação direta de inconstitucionalidade objetivos, pelo fato de neles se discutir a compatibilidade em abstrato de
(ADIn) e da ação declaratória de constitucionalidade enunciado normativo com a Constituição, e não pretensões individuais,
(ADECON) e, de certa forma, também da argüição de des- não há como ignorar que a decisão a ser tomada acerca da validade do
cumprimento de preceito fundamental (ADPF)'". enunciado terá sempre repercussão na esfera dos interesses subjetivos. V.
BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira,
2001, p. 137 e ss..
134 Note-se, ademais, que o Supremo Tribunal Federal tem dispensado
Ministro Relator. (STF, HC 73662/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU o Advogado Geral da União de proceder à defesa do dispositivo
20.09.1996). impugnado, quando já houver entendimento do STF no sentido da sua
131 As cláusulas constitucionais que tratam do devido processo legal e do inconstitucionalidade. V. STF, ADIn 2687/PA, Rel. MM. Nelson Jobim,
direito de defesa, e.g., fornecerão suporte para um dispositivo legal que DJU 06.06.2003; ADIn 1616/PE, Rel. Min. Maurício Correa, DJU
restrinja a possibilidade de concessão de providências liminares em 24.08.2001; e ADIn 2101/MS, Rel. MM. Maurício Correa, DJU
processos judiciais. A garantia constitucional da inafastabilidade do 05.10.2001.
controle judicial, no entanto, poderá indicar em sentido oposto. O tema 135 O STF tem considerado aplicável, por analogia, a figura do amicus
foi enfrentado pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn n° 223, que será curiae também no processo de argüição de descumprimento de preceito
examinada adiante, no capitulo VIII. fundamental. STF, ADPF 54/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, decisão
132 HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997, p. 86 e ss.. Embora o liminar, DJU 02.08.2004.
autor compreenda a ponderação em sentido muito mais amplo e diverso 136 A partir do segundo semestre de 2003,0 Supremo Tribunal Federal,
do que o proposto neste estudo, seu raciocínio pode ser aplicado aqui com em oposição a sua tendência inicial restritiva, ampliou as possibilidades de
proveito, apenas procedendo-se a algumas adaptações. participação do amicus curiae, admitindo não só que ele (ou eles)
133 O espaço para ponderação e a necessidade de emprego da técnica apresente memoriais, como também que sustente oralmente suas razões,
poderão ser mais limitados em processos abstratos e objetivos, nos quais a juízo da Corte. Vejam-se, entre outros, os seguintes acórdãos que

94 95
ressados nas questões discutidas muitas vezes são capazes resses e, de forma geral, a justiça ou injustiça de suas pre-
de demonstrar incidências normativas que, em tese, talvez tensões. Não obstante isso, quando se vai iniciar a primeira
não fossem tão facilmente perceptíveisl". Seja no processo fase da ponderação, interesses genericamente considerados
subjetivo, seja no objetivo — e neste de forma especial, só podem ser levados em conta se puderem ser reconduzi-
tendo em conta os efeitos erga omnes e vinculantes de suas dos a enunciados normativos explícitos ou implícitos. Um
decisões —, o importante é que todos os enunciados nor- interesse que não encontre fundamento no sistema jurídico
mativos pertinentes sejam identificados nesse primeiro não deverá ser considerado'" e, em qualquer caso, nesta
momento da ponderação, ou ao menos que se tente produ- primeira fase, o que estará sendo examinado é o enunciado
zir o quadro mais completo possível desses elementos nor- normativo no qual o interesse encontrou respaldo lógico, e
mativos. Há ainda três observações a fazer sobre essa pri- não o interesse propriamente dito. Explica-se melhor.
meira etapa do processo. A ponderação, como já se mencionou, é uma técnica de
decisão jurídicam . Se o intérprete a quem cabe decidir
a) Interesses e enunciados normativos considerar, ao lado de elementos normativos pertinentes, e
no mesmo nível destes, interesses não qualificados pelos
Quando o intérprete é confrontado com um impasse
jurídico, é freqüente que os interesses em oposição sejam
percebidos de forma mais clara que os próprios enunciados 138 Esse fundamento normativo não significa necessariamente um
normativos envolvidos. Em outras palavras, é comum que a dispositivo explícito, já que, como se sabe, o sistema jurídico é aberto. V.
primeira coisa a captar a atenção de quem esteja examinan- CLEVE, Clèmerson Merlin e FREIRE, Alexandre Reis Siqueira.
"Algumas notas sobre colisão de direitos fundamentais". In: GRAU, Eros
do o caso sejam as conveniências dos envolvidos, seus inte- Roberto e CUNHA, Sérgio Sérvulo da (organizadores). Estudos de direito
constitucional em homenagem a José Afonso da Silva, 2003, p. 233: "Os
conflitos entre direitos fundamentais e bens jurídicos de estatura
trataram da admissão do amicus curiae no STF: ADIn 1104/DF, Rel. constitucional ocorrem quando o exercício de direito fundamental
Min. Gilmar Mendes, DJU 29.10.2003; e ADIn 2540/RJ, Rel. Min. ocasiona prejuízo a um bem protegido pela Constituição. Nesta hipótese
Celso de Mello, DJU 08.08.2002. não se trata de qualquer valor, interesse, exigência, imperativo da
137 MORSE, Allison. Good Science, Bad Law: a "Multiple Balancing" comunidade, mas sim de um bem jurídico. Bens jurídicos relevantes são
Aproach to Adjudication, South Dakota Law Review n°46, 2000/2001, aqueles que a Constituição elegeu como dignos de especial
pp. 410 e 411: "This article advocates a "multiple balancing" framework reconhecimento e proteção."
in which the Court takes into consideration multiple sources of 139 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República
information. (...) The more information of which the Court must take Federal da Alemanha, 1998, p. 66: "De todo, é inadmissível dar primazia
notice, the more it will be forced to provide explicit reasoning why it a 'bens comunitários superiores' constitucionalmente não protegidos —
relies on some information and not on other information. (...) In order to que se deixam sustentar discricionalmente — e, com isso, não só
get the Court's biases out in the open, 'multiple balancing' calls for the simplesmente ludibriar a unidade da Constituição, mas também a
Justices to follow an explicit process of adjudication. Additionally, Constituição. Na medida em que as valorações de uma ponderação de
'multiple balancing' allows the input of other voices from different bens são determinadas 'somente no plano constitucional', um princípio
disciplines to submit amicus briefs, in order that the Justices take in de ponderação de bens, assim entendido, aproxima-se do princípio da
account perspectives of other values." concordância prática." (grifos no original).
96
97
órgãos competentes como juridicamente relevantes e dig- cam uma solução contrária ao reconhecimento do direito à
nos de proteção, isto é, se se admite o ingresso de meros compensação141, mas o mero interesse de aumentar a arre-
interesses no processo, a ponderação acaba por se transfor- cadação não pode ser considerado nesta primeira fase da
mar em uma avaliação puramente política. É próprio da ponderaçãoi".
lógica política considerar todas as vantagens e desvantagens Imagine-se ainda, como outro exemplo, que os vizinhos
de uma determinada decisão; não é isso, porém, que cabe de um edifício em construção — regularmente licenciado
fazer na ponderação de que se cuida aqui. Embora a estru- — preferissem que nada fosse edificado no lote em ques-
tura do raciocínio seja semelhante, na ponderação jurídica tão, para preservar a tranqüilidade atual da área. O simples
deverão ser considerados apenas os elementos normativos interesse ou desejo, porém, não é um elemento normativo.
em conflitol". Equiparar disposições normativas e interes- Há algum fundamento jurídico capaz de respaldar esse in-
ses não juridicizados é uma forma ilegítima de refazer o teresse? O advogado do grupo talvez pudesse cogitar, na
ofício do legislador. Alguns exemplos ajudam a esclarecer o esfera constitucional, dos princípios que consagram os di-
ponto. reitos difusos ao meio ambiente ecologicamente equilibra-
Suponha-se que um juiz esteja examinando um feito no do e à sadia qualidade de vida, previstos no art. 225 da
qual se discute a não-cumulatividade do IPI ou do ICMS, Constituição.
prevista nos arts. 153, § 30, II, e 155, § 2°, I, da Constitui- Assim, um hipotético conflito entre, de um lado, as
ção Federal. Contra a pretensão do particular de ver reco- disposições normativas que regulam o direito de construir
nhecida a não-cumulatividade e o direito à compensação e a autorização para edificar na cidade e, de outro, o desejo
tributária, a Fazenda federal ou estadual argumenta que, no dos vizinhos de não verem coisa alguma construída no local
caso, a não-cumulatividade produzirá uma queda impor- deve ser descrito, nessa primeira fase do processo pondera-
tante de arrecadação. É fácil perceber que o interesse gené- tivo, como um conflito entre as disposições normativas que
rico da Fazenda de incrementar a arrecadação não o trans- tutelam o direito de construir e concedem a autorização
forma, por si só, em um elemento jurídico capaz de valida- para edificar na cidade e os princípios constitucionais que
mente se contrapor aos enunciados constitucionais referi- tratam do meio ambiente e da qualidade de vida, inscritos
dos em um hipotético processo de ponderação. A Fazenda no capuz- do art. 225 da Carta. Não se trata, note-se, de um
poderá demonstrar que outros elementos normativos indi-

141 Como já referido, a simples existência de antinomias aparentes ou de


140 HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997, p. 90: "Practically this
means that if we are engaged in a legal discussion and we collect mies to pretensões resistidas não transforma a disputa em uma hipótese na qual a
base reasons on, these mies must be legally valid. Legal conclusions must ponderação deverá ser empregada; as técnicas hermenêuticas tradicionais
be based on legal reaons, which in their tum must be based on legal mies solucionam a maioria dos casos. O objetivo do exemplo é apenas destacar
(or legal principies, or legal goals etc.)." O autor considera (p. 92 e ss.) a diferença entre interesses e enunciados normativos,
que além dos enunciados legais propriamente ditos, há regras sociais 142 As repercussões fáticas do acolhimento da pretensão do particular
(social mies) que são reconhecidas e empregadas pela comunidade como poderão ser examinadas na segunda fase da ponderação, como se verá
legal rides e, nesse caso, também elas devem ser consideradas. adiante.

98 99
conflito entre os enunciados que consagram o direito de histórico ou cultural, um determinado sistema jurídico não
construir e um suposto "direito à não construção do pré- apresenta essas características, antes de se discutir a pon-
dio", pois não existe disposição normativa alguma atribuin- deração será necessário travar um debate acerca da legiti-
do esse direito aos vizinhos do empreendimento. Se esse midade desse sistema' 45, mas não é disso que se cuida aqui.
direito vier a existir, no caso, ele terá sido construído, a Em segundo lugar, associando-se a moderna hermenêu-
partir do dispositivo mencionado, após o processo de inter- tica a sistemas jurídicos como os que se acaba de descrever,
pretação e, se necessário, de ponderação143. O ponto será ter-se-á tantas modalidades de vínculos entre uma preten-
aprofundado no tópico seguinte. Nesse momento, tudo são e o sistema quantas a argumentação e a lógica jurídicas
que existe a favor dos vizinhos são os princípios do art. 225 forem capazes de construir, desde a subsunção mais sim-
e são eles os elementos normativos a serem identificados. ples, até os raciocínios mais sofisticados. Ou seja: interes-
Cabe aqui uma observação importante. O que se acaba ses, bens, valores ou qualquer outra espécie de argumento
de registrar não significa que a ponderação deva orientar-se poderão, sim, ingressar na primeira etapa da ponderação,
por uma lógica positivista normativista ou que interesses, uma vez que possam ser descritos juridicamente e encon-
bens e valores devam ser eliminados do processo pondera- trem suporte em algum elemento do sistema. É certo que
tivo. E isso por um conjunto de razões. Em primeiro lugar, não basta a indicação ritualística de um enunciado norma-
a questão sequer se coloca uma vez que se mantenha o tivo qualquer para que se encontre satisfeita a exigência. A
debate sobre a ponderação dentro do seu contexto históri- consistência do vínculo entre a pretensão e o ordenamento
co. Os sistemas jurídicos nos quais essa discussão se desen- jurídico será submetida a controle argumentativo ao longo
volve — de que é exemplo o brasileiro — são sistemas da ponderação, sobretudo tendo-se em conta que preten-
abertos, compostos de princípios e regras, explícitos e im- sões opostas podem justificar-se a partir do mesmo sis-
plícitos, que incorporam opções valorativas e professam tema.
compromisso com a dignidade humana, com os direitos Na verdade, o uso exclusivo de enunciados normativos
fundamentais, com a igualdade de todos e com a democra- na ponderação tem por objetivo preservar o espaço de de-
ciai". Ou seja: na verdade, os elementos valorativos inte- terminação democrática e a legitimidade da própria opera-
gram o próprio sistema, e todas as questões discutidas nes- ção ponderativa, na medida em que se exige, desde o início,
se estudo pressupõem esse quadro. Se, em outro ambiente que as diferentes pretensões demonstrem sua vinculação

143 Supondo evidentemente, para simplificar o exemplo, que o único


enunciado normativo capaz de oferecer fundamento à pretensão dos . 145 A discussão acerca da legitimidade do conteúdo de um determinado
vizinhos seja a disposição constitucional referida. sistema jurídico pode envolver parâmetros morais extraídos de consensos
144 Aliás, como mencionado na introdução, uma das causas jurídicas substantivos (apurados historicamente ou de alguma outra forma) ou
pode valer-se de concepções procedimentais acerca da forma mais
imediatas da multiplicação de conflitos normativos que exigem a
adequada de ordenação da sociedade. O tema é próprio da filosofia do
ponderação é justamente a ampla introdução de elementos valorativos no
Estado e do Direito.
sistema, e sobretudo na Constituição.

100 101
com o sistema juridico146. Os interesses que não puderem li) Normas e enunciados normativos
demonstrar alguma conexão com a ordem jurídica não se-
rão admitidos na discussão147. Desse modo, tenta-se redu- A segunda observação, ainda sobre esta primeira etapa,
zir a fragilidade apontada pela crítica quando afirma que a envolve uma definição mais precisa do que seja o elemento
ponderação seria um meio de politizar as decisões jurídicas normativo que estará sendo identificado aqui. Trata-se na
e invadir, arbitrária e ilegitimamente, a esfera reservada aos verdade de fazer uma distinção da maior importância entre
órgãos majoritários. Também a crítica de que a ponderação dois fenômenos diversos, ainda que interligados: o enuncia-
não contaria com um parâmetro de comparação externo do normativo e a norma.
aos elementos em conflito perde consistência, já que o sis- A distinção que há entre enunciado normativo e norma
tema jurídico vigente, e o constitucional em particular, for- não é nova'49, mas recentemente tem sido sublinhada pela
necem esse parâmetro'". doutrina150. De forma geral, o enunciado normativo corres-

146 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica, 2001, p. 212: "A indeed, comes into being immediately, once the common point of view is
questão sobre o que distingue a argumentação jurídica da argumentação given up. This would, for example, be the case if one interpreter of the
geral pratica é um dos problemas centrais da teoria do discurso jurídico. constitution were to say to the other that from bis point of view the one
Um ponto pode ser estabelecido mesmo neste estágio: a argumentação thing is valid, and from that of the other the opposite, so that each is right
jurídica é caracterizada por seu relacionamento com a lei válida; contudo, from his point of view, and neither of them can be wrong or even
isso precisa ser determinado. Isso esclarece uma das mais importantes criticized, because a common point of view from which anything couldbe
diferenças entre a argumentação jurídica e a argumentação prática geral. proven as wrong neither exists nor could exist. Discourse which is more
No contexto da discussão jurídica nem todas as questões estão abertas ao than empty rhetoric, that is, rational discourse about the right or correct
debate. Essa discussão ocorre com certas limitações." solution, would then be impossible. Now, the opposite is valid, too. If
147 AARNIO, Aulis. Reason and Authority, 1997, p. 192: "This means rational discourse about what is correct on the basis of the Constitution is
that one has to be able to justify every interpretation by referring to the possible, then a common point of view is possible. It becomes real as soon
formal law (statute; legal rule), but it must, in addition to this, fulfil the as rational discourse begins which is oriented to the regulative idea of
set standards of valuation. Only thus can the expectation of legal what is correct on the basis of the constitution. Whoever wants to
certainty be fulfilled to its maximum, and therefore legal certainty seems undermine the possibiliity of evaluations by appeal to the impossibility of
always to be, partially, a substantive notion." a common point of view must then be prepared to claim that rational
148 ALEXY, Robert. On Balancing and Subsumption. A Structural discourse about evaluations in the framework of constitutional
Comparison, Ratio Juris, vol. 16, n° 4, 2003, p. 442: "The question is not interpretation is impossible."
the direct comparability of some entities, but the comparability of their 149 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 270 e ss..
importance for the constitution, which of course indirectly leads to their 150 MOI I FR, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional,
comparability. The concept of importance for the constitution contains Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Edição especial
two elements which suffice to bring about commensurability. The first is comemorativa dos 50 anos da Lei Fundamental da República Federal da
a common point of view: the point of view of the constitution. It is, Alemanha, 1999, p. 45 e ss.; GUASTINI, Riccardo. Distinguendo. Studi
naturally, possible to have a dispute about what is valid from this point of di Teoria e Metateoria dei Diritto, 1996, pp. 82 e 83; e GRAU, Eros
view. Indeed, this occurs regularly. It is, however, always a dispute about Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito,
what is correct on the basis of the constitution. Incommensurability, 2002, p. 17: "O que em verdade se interpreta são os textos normativos;

102 103
ponde ao conjunto de frases, isto é, aos signos lingüísticos gamento, não está obrigado a prestar esclarecimentos ou
que compõem o dispositivo legal ou constitucional e des- fornecer informações que lhe possam ser desfavoráveis. Ele
crevem uma formulação jurídica deontológica, geral e abs- terá direito ao silêncio e o exercício desse direito não pode-
trata, contida na Constituição ou na lei, ou extraída do rá ser usado contra ele para reforçar sua incriminação'".
sistema. Quando se trate de disposições constitucionais ou Interessantemente, em função de outras circunstâncias
legais, o enunciado normativo corresponde ao texto, mas é concretas que foram se repetindo no mundo dos fatos,
perfeitamente possível haver enunciados implícitos ou que doutrina e jurisprudência desenvolveram outra norma a
decorram do sistema como um todo'''. partir desse mesmo enunciado normativo: os indivíduos
A norma, diversamente, corresponde ao comando es- convocados para prestar esclarecimentos perante Comis-
pecífico que dará solução a um caso concreto. De forma sões Parlamentares de Inquérito (CPIs) — embora não se-
geral, ela encontra seu fundamento principal em um ou jam, a rigor, acusados de coisa alguma e muito menos este-
mais de um enunciado normativo, ainda que seja perfeita- jam presos — podem socorrer-se do direito constitucional
mente possível haver normas extraídas do sistema como ao silêncio e deixar de prestar informações que considerem
um todol". Um exemplo ajuda a compreender o ponto. prejudiciais a seus interesses154. Na verdade, entende-se
O art. 50, inciso LXIII, da Constituição de 1988 regis-
tra que "o preso será informado de seus direitos, entre os 153 STF, HC 80949/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU
quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assis- 14.12.2001: "O privilégio contra a auto-incriminação — nemo tenetur se
tência da família e de advogado". Este é o enunciado nor- detegere —, erigido em garantia fundamental pela Constituição — além
mativo. A norma que mais evidentemente se extrai desse da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186
C.Pr.Pen. — importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juizo, ao
enunciado produz-se nas seguintes circunstâncias, já roti- dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da
neiramente conhecidas: um indivíduo, preso e levado a jul- advertência — e da sua documentação formal — faz ilícita a prova que,
contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal
e, com mais razão, em 'conversa informal' gravada, clandestinamente ou
da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se não."
identificam. A norma é a interpretação do texto normativo. (...) O 154 STF, HC 79812/SP, Rel. MM Celso de Mello, DJU 16.02.2001: "O
conjunto dos textos — disposições, enunciados — é apenas ordenamento privilégio contra a auto-incriminação — que é plenamente invocável
em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, um perante as Comissões Parlamentares de Inquérito — traduz direito
conjunto de normas potenciais [Zagrebelsky]." público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de
151 A identificação dos enunciados implícitos ou daqueles que decorrem testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante
do sistema exige, por natural, um esforço interpretativo prévio. Antes de órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.
sua introdução formal no sistema jurídico, isso era o que se passava, por — O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os
exemplo, com a razoabilidade, a boa-fé e a vedação do enriquecimento órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição
sem causa. à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa
fundamental. Precedentes. O direito ao silêncio — enquanto poder
152 Sobre o tema, v. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p.
jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativamente a perguntas cujas
13.

104 105
que o enunciado contido no art. 501 LXIII reflete um enun- urna interpretação ou, eventualmente, de uma ponde-
ciado mais geral, que vem a ser o que protege os indivíduos ração'".
da auto-incriminação. A despeito do que se acaba de observar, não é possível
É fácil perceber que as duas normas referidas acima — ignorar que o termo norma tem sido usado indistintamente
a que diz respeito aos presos e a que envolve depoentes em para significar ora o enunciado normativo, ora a norma pro-
CPIs — são distintas como conseqüência da incidência de priamente dita, e que será provavelmente inútil lutar con-
um mesmo enunciado sobre diferentes ambientes fáticos. tra um uso lingüístico tão enraizado. Mais do que as pala-
Ou seja: o mesmo enunciado poderá desencadear o surgi- vras, porém, a distinção é importante porque terá conse-
mento de normas diversas, em função das diferentes cir- qüências práticas e não apenas teóricas. No que diz respei-
cunstâncias de fato sobre as quais incidal". A norma cor- to ao terna deste tópico, a conseqüência mais relevante é a
responderá afinal ao comando, extraído ou construído a seguinte: para o fim de verificar quais são os elementos
partir de enunciado(s), para incidir sobre determinada cir- normativos em tensão, o que deverá ser identificado nessa
cunstância de fato156 . Quanto à estrutura, portanto, a nor- primeira fase da ponderação são os enunciados normativos,
ma será uma regra que corresponde ao resultado final de e não as normas. A observação parece óbvia e de fato o é: se
a ponderação é uma técnica pela qual se vai decidir qual a
respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) — impede, solução do caso — ou seja, qual a norma que se deve extrair
quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal do conjunto de diferentes enunciados que incidem na hipó-
específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou
pelas autoridades do Estado. — Ninguém pode ser tratado como culpado, tese —, não se pode, evidentemente, iniciar o processo a
qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido partir do fim.
atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória É certo que o tema envolve um outro aspecto. Embora
transitada em julgado. O princípio constitucional da não-culpabilidade, enunciado normativo e norma sejam fenômenos distintos,
em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede eles interagem ao longo de todo o processo ponderativo e
o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao
indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido antes mesmo de seu início formal. Como já se referiu, a
condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário. ponderação será empregada quando se esteja diante de um
Precedentes." conflito normativo que envolva valores ou opções políticas
155 É possível cogitar de situações nas quais o mesmo enunciado pode ser e que não tenha sido solucionado pelas técnicas hermenêu-
apresentado por partes em conflito, cada qual pretendendo extrair dele ticas tradicionais. Há, portanto, um momento preliminar
uma norma que atenda a seus interesses. Os argumentos suscitados nos no qual o intérprete, tendo em conta as circunstâncias fáti-
debates envolvendo aborto opõem em geral, dentre outros elementos, a
dignidade da gestante e do feto. O mesmo princípio da legalidade (CF, cas da hipótese e sua compreensão da realidade e do Direi-
art. 5°, II) pode ser empregado na argumentação da Administração e dos
particulares em sentidos diversos e para justificar pretensões
eventualmente colidentes. 157 ALEXY, Robert. On the Structure of Legal Principies Ratio Juris, vol.
156 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação e 13, n°3, 2000, p. 297 e ss.; e HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997,
aplicação do direito, 2002, p. 19. p. 96.

106 107
toi58, visualiza um conflito dessa natureza entre as normas Feita a digressão, e retornando ao ponto, repita-se ain-
que imagina ou intui decorrerem do sistema jurídico159. da uma vez: são os enunciados normativos em tese aplicá-
Ora, a primeira etapa da ponderação é justamente um veis à hipótese que devem ser indicados nesta fase, seja
momento de reflexão acerca desse impulso inicial, na qual qual for sua estrutura (regra ou princípio). Ou seja: se o
se procurará identificar se há de fato enunciados normati- enunciado que se considera aplicável é um princípio geral
vos no sistema jurídico fundamentando as normas que se (como a dignidade humana ou o princípio democrático), é
imaginou estarem em conflito e, por conseqüência, se há ele que deverá figurar nessa fase. No exemplo do empreen-
efetivamente um conflito normativo. Essa primeira etapa dimento imobiliário descrito no tópico anterior, são os
serve também para que se verifique se todos os enunciados princípios gerais que protegem o meio ambiente ecologica-
pertinentes estão sendo considerados e se eles justificam a mente equilibrado e a sadia qualidade de vida que deverão
existência de outras normas, capazes inclusive de superar o ser indicados nesta primeira fase.
conflito visualizado inicialmente. Com efeito, após esse es- Esse cuidado é importante a fim de evitar-se um desvio
forço inicial é perfeitamente possível concluir — e quiçá que não é incomum na argumentação jurídica. O intérpre-
essa será a hipótese mais freqüente — que não há afinal um te, desejando — conscientemente ou não — fazer prevale-
conflito normativo ou que ele pode ser superado por meios cer uma determinada solução, procede da seguinte forma
hermenêuticos convencionais, sendo desnecessário percor- nessa primeira etapa. Para fundamentar a solução que lhe é
rer as etapas seguintes da ponderação. Como se vê, há aqui cara, ele indica uma norma construída de forma isolada a
um movimento de ir e vir entre enunciado e normas possí- partir de apenas um ou alguns dos enunciados relevantes,
veis160, como a rigor é próprio da interpretação em geraP61. sem submetê-los, dessa forma, ao confronto com os demais
enunciados pertinentes; para justificar a solução oposta,
158 Embora não caiba aprofundar o tema aqui, a interpretação não é um
porém, o intérprete apresenta os enunciados no seu nível
fenômeno externo ao objeto interpretado ou neutro em relação a ele. De de generalidade próprio. Por esse mecanismo, um (ou al-
certa forma, a interpretação participa da própria constituição desse guns) dos enunciados "corre por fora" e se apresenta na
objeto. Sobre o tema, v. PASQUALINL Alexandre. Hermenêutica e primeira fase do processo como uma disposição muito mais
sistema jurídico, 1999, p. 15 e ss.; e CAMARGO, Margarida Maria concreta do que de fato é, e eventualmente com uma estru-
Lacombe. Hermenêutica e argumentação, 2001.
tura diversa da sua original: em vez de princípio, ele passa a
159 Como se verá ao longo do estudo, a ponderação pode se desenvolver
figurar como urna regra, desequilibrando a ponderação.
também em abstrato ou preventivamente, isto é, fora de um caso
concreto. Mesmo nesses casos, porém, sempre haverá circunstâncias O exemplo a seguir, embora um tanto curioso, ajuda a
fáticas a considerar, fruto da observação de casos pretéritos ou da
imaginação dos teóricos.
160 O que inclui também, necessariamente, uma apreciação preliminar fato à norma não é um ato reflexo e passivo, mas antes um ato de
dos fatos, embora seu exame ordenado só vá ocorrer na segunda fase da participação criadora do juiz, com a sua sensibilidade e tato, sua intuição
ponderação. e prudência, operando a depois no raciocínio do juiz, pois este não raro vai
161 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, 1999, p. 303: da norma ao fato e vice-versa, cotejando norma como substrato
"Donde podemos concluir que o ato de subordinação ou subsunção do condicionador de suas indagações teóricas e técnicas."

108 109
esclarecer a questão. Suponha-se que uma senhora de 66 O importante a destacar aqui é que o intérprete, ao
anos more em uma casa na frente da qual há um amplo e identificar os enunciados normativos em conflito na pri-
belo jardim. Infelizmente, a senhora já não tem condições meira fase da ponderação, deve ter a cautela de não intro-
de pagar o jardineiro, o jardim começa a deteriorar-se e ela duzir normas obtidas com base em apenas alguns enuncia-
decide exigir judicialmente que o Poder Público custeie a dos de forma isolada, à margem do processo de ponderação
manutenção da área. Os fundamentos da demanda são o e antes que ele possa se desenvolver. É certo que muitas
dever estatal de amparar as pessoas idosas e defender o seu
bem estar (Constituição Federal, art. 230) e o fato de que
a visão do jardim bem cuidado tornou-se indispensável para em discussão deve ser identificado. V. TRIBE, Laurence H. e DORF,
Michael C.. Leveis of General ity in the Definition of Rights, University of
a sua qualidade de vida (art. 225), para sua saúde psíquica Chicago Law Review n° 57, 1990, p. 1065: "Bowers v Hardwick
e emocional (art. 196) e, afinal, para sua dignidade (art. I°, illustrates the centrality of the leveis of generality question. Writing for
III). Evidentemente, é possível cogitar de um conjunto the majority, Justice White contended that 'the issue presented is
grande de outros enunciados, constitucionais e infraconsti- whether the Federal Constitution confers a fundamental right upon
tucionais, que se opõe à pretensão da senhora, mas não há homosexuals to engage in sodomy'.. In dissent, Justice Blacicmun argued
that the case was no more about 'a fundamental right to engage in
necessidade de discorrer sobre esse ponto. homosexual sodomy' than Stanley v Georgia, 394 US 557 (1969), was
Se, porém, na primeira fase de um hipotético processo about a fundamental right to watch obscene movies, or Katz v United
de ponderação, em vez dos princípios contidos nos referi- States, 389 US 347 (1967), was about a fundamental right to place
dos arts. 1°, III, 196, 225 e 230 da Constituição, já se interstate bets from a telephone booth. Rather, this case is about 'the
concluir que deles decorre um direito a ter o jardim manti- most comprehensive of rights and the right most valued by civilized men',
namely, 'the right to be let alone'. Justice Blackmun may have overstated
do pelo Poder Público, haverá uma distorção no processo. the point, since Katz involved a type of 'privacy' that 'does make the
Em vez de se confrontarem com os princípios que consti- claimant's substantive conduct irrelevant; at issue [in a case like Katz] is
tuem o vínculo da pretensão da senhora com a ordem jurí- the government's manner of discovering the conduct'. But he overstated
dica, os enunciados que venham a se opor a essa pretensão it only a little, because the Court need not have regarded Hardwick as a
terão de disputar primazia com um direito específico, case about 'homosexual sodomy' at ali. The state statute at issue drew no
distinction between homosexual and heterosexual intimacies. The
construído com base nos enunciados suscitados apenas pela majority and the dissenters in Hardwick argue over how abstractly to
autora. Toda a operação hermenêutica para saber se o con- describe the right at issue. The majority describes the right narrowly, the
junto de enunciados alegados pela autora autoriza que se dissent broadly. These alternative descriptions evidently reflect the fact
fale de um direito a ter o jardim mantido pelo Poder Públi- that the majority and dissent have reached different conclusions as to
co terá sido subtraída do processo. Do ponto de vista estru- whether Hardwick's behavior is constitutionally protected. As such, we
might view them as shorthand for the holding and the dissent. Yet the
tural também haverá uma distorção: em vez de princípios, characterizations are the starting points for the analysis. Because the
a pretensão autoral terá agora uma regra a seu favor'". majority and dissent ask different questions, it is not surprising that they
give different answers. The majority's question answers itself. Describing
a claimed right in very specific terms — here, as a 'right to engage in
162 Interessante problema, semelhante ao descrito no texto, é discutido homosexual sodomy' — disconnects it from previously established
nos Estados Unidos acerca da forma mais ou menos geral como um direito rights."

110 111
vezes o aplicador, intuitivamente, já sabe a que resultado resses coletivos pretendem restringir direitos indivi-
chegará ao fim da ponderação e haverá a tendência de ante- duais'". É freqüente que nessas hipóteses o intérprete seja
cipá-lol". Ora, o propósito de ordenar e explicitar as eta- tentado a visualizar o problema normativo como uma opo-
pas do raciocínio ponderativo é precisamente submeter a sição entre o interesse de um indivíduo e o interesse da
"intuição" a controles de juridicidade e racionalidade. Se o coletividade como um todo. A formulação do conflito nes-
resultado intuitivo for afinal juridicamente consistente e ses termos, como é fácil perceber, gera um equívoco lógico
racional, ele resistirá a esses controles e será possível che- que poderá produzir uma distorção inicial do processo pon-
gar à mesma conclusão — agora fundamentadamente — derativo em favor da solução que privilegia os interesses da
após todo o percurso. coletividade.
O equívoco lógico pode ser descrito da seguinte manei-
c) Situações individuais e enunciados normativos ra. Ao imaginar que o conflito se opera entre a pretensão
individual e o enunciado que consagra um bem coletivo, o
Sobre essa primeira fase do processo ponderativo, há intérprete estará contrapondo uma norma — o direito do
uma última observação a fazer, que se relaciona à anterior. indivíduo — e um enunciado normativo. O desequilíbrio
Como já se repetiu várias vezes, devem ser selecionados decorre de a contraposição se dar entre fenômenos diver-
nesta primeira fase apenas os enunciados normativos. Man- sos, já que o direito do indivíduo está fundado também em
ter-se fiel a essa premissa é particularmente importante um enunciado normativo geral, que consagra determinada
quando o caso concreto no qual o conflito se manifesta posição jurídica não apenas para o benefício de um indiví-
confronta situações individuais e algum tipo de política de duo em particular, mas para o benefício de todos que este-
interesse geral. jam em situação equivalente.
Assim, quando um particular questiona a incidência de
Os exemplos mais freqüentes dessa espécie de conflito
determinada "lei de ordem pública" sobre sua posição jurí-
ocorrem quando as chamadas leis de ordem pública pare-
dica, alegando violação a direito adquirido, o conflito que
cem chocar-se com atos jurídicos perfeitos ou direitos ad-
quiridos'64, ou ainda quando leis ou atos fundados em inte-
retroactividade das leis civis, 1909, p. 67: "O que convém ao applicador
de uma nova lei de ordem pública ou de direito público, é verificar se, nas
163 Curiosamente, o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal relações jurídicas já existentes, há ou não direitos adquiridos. No caso
Federal, não se limita a reconhecer o fato, chegando a recomendar ao affirmativo, a lei não deve retroagir, porque a simples invocação de um
magistrado essa postura, nos seguintes termos, que reproduz em alguns de motivo de ordem publica não basta para justificar a offensa ao direito
seus votos: "Ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais adquirido, cuja inviolabilidade, no dizer de Gabba, é também um forte
justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após, motivo de interesse publico."
cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensável apoio, 165 Robert Alexy formula uma preferência abstrata dos direitos
formalizá-la." (e.g., RE 111787/GO, DJU 13.09.1991, RTJ 136/1292). individuais sobre os interesses coletivos. V. ALEXY, Robert. Derechos,
164 Sobre o conflito entre o direito adquirido e a incidência das razonamiento jurídico e discurso racional, Revista Isonomia n° 1, p. 44 e
chamadas leis de ordem pública, v. PORCHAT, Reynaldo. Da ss., 1994. A esse ponto se voltará no capítulo 1X.

112 113
pode se estabelecer não é entre a pretensão individual e o suma: os enunciados normativos devem ser todos aprecia-
enunciado de ordem pública, mas sim entre a disposição dos no mesmo nível de abstração, não se confundindo com
constitucional que protege o direito adquirido contra a in- a(s) norma(s) que cada um deles pode justificar.
cidência da lei nova — e que certamente também pode ser Ainda nesta primeira fase, após a identificação dos
descrita como de ordem pública'66 — e o enunciado legal enunciados pertinentes, é conveniente ordená-los em gru-
em questão. Quando se visualiza o conflito equivocada- pos de sentido, em função das direções que indiquem para
mente como posição individual versus enunciado de ordem a solução do caso concreto". Essa operação não envolverá,
pública, isso poderá conduzir o intérprete à conclusão em geral, maiores complexidades e com essas observações
apressada — e a rigor imprecisal" — de que o direito indi- já se pode avançar para a segunda fase da ponderação.
vidual deve ceder em benefício do interesse público'''. Em

166 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, V.2. Segunda etapa: identificação dos fatos relevantes
2003, p. 47 e ss..
167 A moderna doutrina de direito público brasileira tem questionado e Na segunda fase cabe examinar as circunstâncias con-
reformulado o tradicional princípio da supremacia do interesse público, cretas do caso e suas repercussões sobre os elementos nor-
tendo em conta a centralidade do indivíduo e dos direitos fundamentais
no sistema jurídico, especialmente após a Carta de 1988. ÁVILA,
Humberto Bergman. Repensando o princípio da supremacia do interesse
público sobre o particular, Revista Trimestral de Direito Público n° 24, emerging pattern of Supreme Court decisions. Time and again, the Court
1998, p. 159; e OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do authorizes the activist state to assault fundamental constitutional rights in
interesse público sobre o privado no direito administrativo brasileiro?, ways that evade the narrowing judicial focus. This asymmetry would be
Revista dos Tribunais n°770) 1999, p. 53. troubling enough if it were 'only' a matter of legal method. it is a single
168 Essa assimetria entre, de um lado, pretensões de interesse público e, Constitution we are interpreting — both when it speaks about powers
de outro, pretensões individuais pode ocorrer não apenas nos termos and when it speaks about rights. Nobody who takes interpretation
descritos no texto, mas também em conseqüência de como se interpreta seriously should feel free to split the text in two, and approach the
cada um dos enunciados. O tema é recorrente na experiência fragments in radically different ways — unless he is prepared to tell us
norte-americana. V., por todos, ACKERMAN, Bruce. Exchange; Levels of why."; e EASTERBROOK, Frank. H.. Exchange; Levels of Generality in
Generality in Constitucional Interpretation: Liberating Abstraction, Constitutional Interpretation: Abstraction and Authority, University of
University of Chicago Law Review n°59, 1992, p. 318: "The statism of Chicago Law Review n°59, 1992, pp. 349 a 380.
the new Republican court expresses itself in a fundamental asymmetry in 169 Embora seja comum a polarização dos elementos, formando dois
its attitude toward legal abstraction. In interpreting the power-granting grupos, nada impede que haja mais de dois, cada qual apontando para uma
side of the Constitution, today's Court exhibits no hesitation about the direção diversa. É possível imaginar, por exemplo, hipóteses em que
liberating power of abstraction. It shows no serious inclination to question diferentes enunciados constitucionais relativos à ordem econômica
the New Deal transformation of a federal government with limited possam entrar em tensão, como, por exemplo, o que prevê o tratamento
powers into a national government with plenary powers at home and favorecido para empresas brasileiras de pequeno porte (art. 170, IX), o
abroad. Instead, the Court saves ali its doubts about abstract thought for que comanda que a lei apóie e estimule o cooperativismo (art. 174, §§ 2°
the rights-granting side of the Constitution. This asymmetry — abstract a 4°) e o que autoriza a exploração direta pelo Estado de atividades
powers, but particular rights — shows the authoritarian bias in the econômicas (art. 173).

114 115
inativos, daí se dizer que a ponderação depende substan- to pelo qual se consideram relevantes determinados fatos é
cialmente do caso concreto e de suas particularidades' 7°. a existência de disposições normativas que autorizam essa
Há algumas observações a fazer sobre a questão. conclusãom. É certo que haverá hipóteses nas quais o in-
A frase "examinar as circunstâncias concretas do caso e térprete identificará um elemento de fato como relevante
suas repercussões sobre os elementos normativos" descre- por conta dos dois fundamentos. Alguns exemplos ajudam
ve, na verdade, uma operação composta de no mínimo duas a ilustrar a hipótese.
partes. Em primeiro lugar, o intérprete terá que destacar, Com fundamento apenas no senso comum, e conside-
dentre todas as circunstâncias de fato que caracterizam a rando a realidade brasileira, a cor dos cabelos do indivíduo
hipótese, aquelas que considera relevantes. E o primeiro será irrelevante para a decisão acerca da maior ou menor
problema que se coloca é saber o que atribui relevância a proteção de sua vida privada, quando este bem esteja em
um aspecto de fato. Em segundo lugar, e as duas questões confronto, e.g., com a liberdade de imprensa. Já mesclando
estão interligadas, os fatos relevantes terão influência sobre o senso comum com fundamentos jurídicos, a solução des-
o peso ou a importância a ser reconhecida aos enunciados se mesmo conflito normativo será certamente influenciada
identificados na fase anterior e às normas por eles propug- pelo fato de a pessoa envolvida ser, e.g., titular de um man-
nadas. Essa repercussão dos fatos sobre os enunciados tam- dato eletivo, de modo que este será agora um aspecto de
bém merece uma breve nota. fato relevante. As disposições normativas que tratam da
democracia, da obrigação de prestar contas por parte dos
a) Fatos relevantes
agentes políticos e do princípio da publicidade qualificarão
a circunstância como relevante nessa espécie de conflito.
O que leva uma determinada circunstância fática a ser
considerada relevante no sentido aqui referido? Essa dis- Entretanto, nem sempre o processo de apurar a rele-
cussão pode muitas vezes transitar pelo óbvio ou, ao con- vância dos fatos será simples assim, tanto quando se trate
trário, suscitar graves disputas. Nesse contexto, será útil do senso comum, como quando se cuide de relevância por
observar que há em geral dois fundamentos que justificam qualificação jurídica. Famosa decisão de tribunal estadual
a relevância atribuída aos elementos de fato. O primeiro considerou que determinada atriz, cuja foto, na qual posava
deles é dado pelo senso comum de uma sociedade, forma- nua, foi publicada por jornal popular sem autorização espe-
do a partir de sua história e cultura. Dessa forma, um de- cífica, não tinha direito à indenização por dano moral —
terminado aspecto fático é considerado relevante se a ex- embora fizesse jus à reparação pela violação do direito à
periência social assim o considera. Um segundo fundamen- imagem —, pois se tratava de moça especialmente bonita e
o evento não lhe teria causado sofrimento algum. Na per-
cepção do órgão julgador, haveria dano moral apenas se se
170 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica, 2001, p. 227;
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição
Federal, 2000; e DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico, 1996
(os três primeiros capítulos). 171 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 280 e ss..

116 117
tratasse de moça feia que fosse retratada nessas condi- A qualificação de fatos a partir de elementos jurídicos
ções'''. O fato identificado como relevante no caso foi a também poderá ensejar alguma discussão. A Constituição
beleza (ou a falta dela) da moça. Posteriormente, a juris- afirma que, salvo na hipótese de segredo de justiça, os atos
prudência evoluiu em sentido diverso, considerando que a processuais são públicos' 74. Isso significa que questões dis-
beleza ou não da pessoa que tem sua imagem exposta não é cutidas no âmbito de processos judiciais podem ser livre-
relevante para o fim de configurar-se o dano moral ou a mente divulgadas pela imprensa? Esse tem sido o entendi-
violação do direito à honra. O que será considerado humi- mento no Brasil'", ao menos na maior parte dos casos, mas
lhante ou vexatório para cada indivíduo dependerá de no- não foi essa a tese vitoriosa no caso Lebach, julgado em
vas avaliações que levem em conta as circunstâncias do caso 1973, pelo Tribunal Constitucional alemão'". Seria impos-
concreto173 .

174 CF: "Art. 5° - (...) LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos


172 TJRJ, Embargos Infringentes n°250/99 Rel. Des. Wilson Marques, atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o
DORJ 04.10.1999: "Só mulher feia pode se sentir humilhada, exigirem".
constrangida, vexada em ver seu corpo desnudo estampado em jornais ou 175 STF, RE 208685/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, DJU 22.08.2003:
em revistas. As bonitas, não. Fosse a autora uma mulher feia, gorda, cheia "Direito à informação (CF, art. 220). Dano moral. A simples reprodução,
de estrias, de celulite, de culote e de pelancas, a publicação de sua pela imprensa, de acusação de mau uso de verbas públicas, prática de
fotografia desnuda — ou quase — em jornal de grande circulação, nepotismo e tráfico de influência, objeto de representação devidamente
certamente lhe acarretaria um grande vexame, muita humilhação, formulada perante o TST por federação de sindicatos, não constitui abuso
constrangimento enorme, sofrimento sem conta, a justificar — aí sim — de direito. Dano moral indevido. RE conhecido e provido." No mesmo
o seu pedido de indenização de dano moral, a lhe servir de lenitivo para o sentido, v. STF, AO 770/AM, Rel. Min. limar Galvão, DJU 09.05.2003.
mal sofrido." 176 Em linhas gerais, tratava-se de decidir se um canal de televisão
173 Ao votar no julgamento do Recurso Especial que reformou o acórdão poderia exibir documentário sobre um homicídio que havia abalado a
do TJRJ acima referido, a Min. Nancy Andrighi fez o seguinte registro: "A opinião pública alemã alguns anos antes, conhecido como "o assassinato
amplitude de que se utilizou o legislador no art. 50, inc. X da CF/88 de soldados de Lebach". A questão foi suscitada por um dos condenados,
deixou claro que a expressão 'moral', que qualifica o substantivo dano, então em fase final de cumprimento de pena, sob o fundamento de que a
não se restringe aquilo que é digno ou virtuoso de acordo com as regras da veiculação do programa atingiria a sua honra e, sobretudo, configuraria
consciência social. E possível a concretização do dano moral sério obstáculo ao seu processo de ressocialização. A primeira instância e
independentemente da conotação média de moral, posto que a honra o tribunal revisor negaram o pedido de liminar formulado pelo autor, que
subjetiva tem termômetro próprio inerente a cada indivíduo. (...) Por pretendia obstar a exibição. O fundamento adotado foi o de que o
isso, a sábia doutrina concebeu uma divisão no conceito de envolvimento no fato delituoso o tornara um personagem da história
honorabilidade: honra objetiva, a opinião social, moral, profissional, alemã recente, o que conferia à divulgação do episódio interesse público
religiosa que os outros têm sobre aquele indivíduo, e honra subjetiva, a inegável, prevalente inclusive sobre a legítima pretensão de
opinião que o indivíduo tem de si próprio. (...) A norma jurídica protetora ressocialização. Diante disso, o autor interpôs recurso constitucional
da honra alcança as dores internas." (STJ, REsp 270730/RJ, Rel. Min. (Verfassungsbeschwerde) perante o Tribunal Constitucional, alegando,
Nacy Andrighi, DJU 07.05.2001). Vejam-se, ainda, STJ, REsp em síntese, violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, que
230268/SP, Rel. MM Antônio de Pádua Ribeiro, DJU 18.06.2001 e STJ, abrigaria em seu conteúdo o direito à reinserção social. Após proceder à
REsp 448604/RJ, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJU 25.02.2004. oitiva de representantes do canal de televisão interessado, da comunidade

118 119
sível, por óbvio, examinar aqui a relevância das inúmeras buem propriamente um peso maior ou menor a determina-
circunstâncias de fato que podem ocorrer nos diferentes da solução; diversamente, elas são responsáveis por infor-
conflitos envolvendo valores ou opções políticas e nem é mar o grau de restrição que a escolha de cada uma das
esse o propósito deste estudo. É bem de ver que um dos soluções possíveis pode impor sobre as demais naquele
objetivos que se pretende alcançar com a construção de caso concreto. Essa informação será da maior utilidade para
parâmetros específicos, sobre o que se tratará na terceira o intérprete: se a realização prática de uma das soluções
parte deste trabalho, é exatamente tabular os elementos de importar uma restrição insignificante ao que as derhais pos-
fato relevantes que com maior freqüência estão presentes tulam, os enunciados normativos correspondentes a essa
nos diferentes tipos de conflito dessa natureza. O exame da primeira solução terão um peso reforçado no caso concre-
jurisprudência será especialmente útil nesse particular. to. O chamado caso "Glória Trevi", decidido pelo Supre-
mo Tribunal Federal, ilustra essa espécie de situação.
b) Repercussões dos fatos sobre os enunciados norma- A cantora Glória Trevi, ao descobrir-se grávida na pri-
tivos são, acusou de estupro os policiais que trabalhavam na car-
ceragem. Quando do nascimento da criança, os acusados
Há ainda duas observações a fazer sobre esta segunda apresentaram seus padrões de bNA e solicitaram que fosse
fase da ponderação. A experiência indica que as circunstân- realizado o exame na Criança, de modo que a veracidade
cias de fato podem repercutir de duas formas distintas so- das acusações formuladas pela mãe pudesse ser submetida
bre as soluções indicadas pelos grupos de elementos nor- à prova. A questão acabou sendo decidida pelo STF, que, a
mativos identificados ao fim da primeira fase, descrita aci- despeito da oposição da mãe, deferiu o pedido. A decisão
ma. Em primeiro lugar, os fatos podem atribuir um peso do Supremo Tribunal Federal levou em conta especialmen-
maior ou menor a alguma delas. Assim, em um confronto te a possibilidade de realizar o exame com o material da
entre as duas soluções — publicar ou não matéria jornalís- placenta, o que não importaria qualquer restrição impor-
tica sobre a rede de amigos de um deputado federal —, o tante à integridade física da mãe ou da criançal".
fato de se tratar de matéria envolvendo um deputado fede- Note-se que o dado fático em questão — a circunstân-
ral atribuiria maior peso, nesse caso, ao grupo de enuncia- cia de ser possível realizar o exame de DNA a partir de
dos normativos que sugere a publicação da matéria. material da placenta — não confere maior importância à
Há outras circunstâncias de fato, porém, que não atri- honra dos policiais. Ele simplesmente revela que o atendi-
mento dessa peetensão no caso não causa qualquer restri-
ção relevante ao outro elemento em disputa, a saber: a in-
editorial alemã, de especialistas nos diversos ramos do conhecimento tegridade física da mãe e, sobretudo, da criança. Por outro
pertinentes, do Governo Federal e do Estado da Federação onde o lado, a adoção de uma norma que vedasse a realização do
condenado haveria de se reintegrar, o Tribunal reformou o entendimento
dos juizos anteriores, concedendo a liminar para impedir a veiculação do
programa, caso houvesse menção expressa ao interessado. 177 STF, RCL 2040/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, DJU 27.06.2003.

120 1, 121
teste impediria a comprovação da falsidade da acusação, corresponde a uma norma possível, isto é, a uma possibili-
meio pelo qual se poderia restaurar a honra e o bom nome dade normativa a ser extraída do conjunto de enunciados
dos acusados. pertinentes no caso. Esses dados de fato permitirão ao in-
A última observação importante sobre esta segunda térprete apurar se existe alguma possibilidade fática de
fase do processo ponderativo guarda relação com o que se atender a todas as soluções em um nível ótimo e, em qual-
acaba de registrar acerca do grau de restrição que a adoção quer caso, servirão de importante subsídio para a última
de cada uma das soluções apuradas na Primeira fase impõe etapa da ponderação, como se verá adiante, especialmente
às demais. Muito freqüentemente haverá diferentes meios para a realização, quando viável, da concordância prática.
físicos de realizar, com mais ou menos intensidade, cada
um dos conjuntos normativos em conflito. E cada uma des-
sas diferentes possibilidades produzirá um equilíbrio dife- V.3. Terceira etapa: decisão
renciado entre os enunciados em tensão. Explica-se melhor
com um exemplo. Identificados todos os elementos pertinentes — nor-
Imagine-se que um indivíduo qualquer, portador de mativos e fáticos — chega-se afinal à fase de decisão. É
epilepsia, estivesse assistindo a uma sessão do plenário do nesta etapa que se estará examinando conjuntamente os
Senado Federal e sofresse uma grave crise, necessitando de diferentes grupos de enunciados, a repercussão dos fatos
cuidados médicos. A imprensa pretende divulgar o ocorri- sobre eles e as diferentes normas que podem ser construí-
do e o indivíduo deseja impedir a divulgação, alegando a das, tudo a fim de apurar os pesos que devem ser atribuídos
proteção de sua intimidade. Na realidade, não existem ape- aos diversos elementos em disputa'". Diante da distribui-
nas as opções de divulgar e não divulgar o ocorrido. Dentro ção de pesos — e esse o diferencial da ponderação — será
da solução que autoriza a divulgação, há diversas possibili-
dades: (i) a história pode ser descrita sem referência ao
nome da pessoa e sem imagens que possam identificá-la, 178 Lembre-se, como já se referiu, que as três fases propostas para o
(ii) a história pode referir o nome do indivíduo, mas sem a processo ponderativo não são estanques ou incomunicáveis. Acontece
utilização de imagens, e (iii) por fim, a empresa de comu- aqui, como em toda atividade hermenêutica, o movimento de ir e vir (o
nicação pode contar a história referindo o nome do envol- circulo hermenêutico) entre as diferentes premissas, fáticas e normativas,
e as possíveis conclusões, até que se chegue à solução final. Em todo caso,
vido e ilustrando com imagens. a necessidade de fundamentação posterior impõe a ordenação do
Nesta segunda fase, e sempre que isso seja possível, o raciocínio. V. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1969, p.
intérprete deverá cogitar de todas as possibilidades fáticas 371 e ss.; GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação e
por meio das quais as diferentes soluções indicadas pelos aplicação do direito, 2002, p. 31; CLÈVE, Clèmerson Merlin e FREIRE,
Alexandre Reis Siqueira. "Algumas notas sobre colisão de direitos
grupos normativos da primeira fase podem ser realizadas,
fundamentais". In: GRAU, Eros Roberto e CUNHA, Sérgio Sérvulo da
desde a que atende mais amplamente às suas pretensões, (organizadores). Estudos de direito constitucional em homenagem a José
até a que as restringe de forma importante, na linha exem- Afonso da Silva, 2003, p. 234 e ss.; e CAMARGO, Margarida Maria
plificada acima. Cada uma dessas soluções, na verdade, Lacombe. Hermenêutica e argumentação, 2001, p. 50 e ss..

122 123
o momento de definir se é possível conciliar os diferentes dos parâmetros propriamente jurídicos, é possível anotar
elementos normativos ou se algum deles deve preponderar três diretrizes gerais que não só podem como devem orien-
e, afinal, qual a norma que dará solução ao caso. tar a atividade do intérprete nesse momento decisório.
A despeito da formulação quase singela, esta é sem dú- Em primeiro lugar, o intérprete deve estar comprome-
vida a fase mais complexa de toda a operação. Na verdade, tido com a capacidade de universalização tanto dos funda-
as questões que se colocam aqui são várias. Que peso deve mentos empregados no processo, como da decisão propria-
ser atribuído a cada elemento normativo? Por que uns rece- mente dita. Em segundo lugar, e como já referido, os esfor-
berão um peso maior que outros? Por qual razão uma solu- ços do aplicador nesta fase devem ter por meta a concor-
dância prática dos enunciados normativos em conflito. Por
ção indicada por determinados elementos normativos deve
fim, uma terceira questão que não pode ser negligenciada
prevalecer sobre outra? A técnica da ponderação não ofere-
nesta fase, quando ela envolva direitos fundamentais, diz
ce respostas definitivas para essas perguntas'". Em si mes- respeito ao núcleo dos direitos e o limite que ele representa
ma, a ponderação é apenas uma técnica instrumental, vazia à ponderação. Explica-se melhor cada um desses elemen-
de conteúdo. E bem de ver que essa limitação não retira o tos.
valor de aprimorar-se a técnica da ponderação propriamen-
te dita. A organização do raciocínio ponderativo facilita o a) Pretensão de universalidade
processo decisório, torna visíveis os elementos que partici-
pam desse processo e, por isso mesmo, permite o controle Para que o discurso em geral, e o discurso jurídico em
da decisão em melhores condições. particular, possa ser considerado minimamente racional,
Ou seja: as etapas de exame já descritas são úteis para ele deve atender a um conjunto bastante amplo de exigên-
conduzir o raciocínio e ordenar a argumentação, mas a ver- cias lógicas'80. Não se vai cuidar aqui desse tema, como já
dade é que elas não fornecem parâmetros para fundamen- sublinhado, mesmo porque ele demandaria um estudo ex-
tar uma escolha diante dos elementos em colisão. A cons- clusivo. Entretanto, dentre essas exigências, uma se desta-
trução de parâmetros que auxiliem o intérprete nesse pon- ca de forma particular e merece algumas notas: trata-se
to é absolutamente necessária: esse é o objeto da terceira justamente da pretensão de universalidade'".
parte deste estudo. Porém, antes de ingressar na discussão
180 V. sobre o tema ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica,
2001; PECZENIK, Alelcsander. On Law and Reason, 1989; e MA1A,
179 ALEXY, Robert. On Balancing and Subsumption. A Structural Antônio Cavalcanti e SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. "Os princípios
Comparison, Ratio Juris, vol. 16, n° 4, 2003, pp. 439 e 448: "Of course, de direito e as perspectivas de Perelman, Dworkin e Alexy". In:
such judgments presuppose standards that are not themselves to be PEIXINHO, Manoel Messias. Os princípios da Constituição de 1988,
found in the Law of Balancing. (...) Neither the Subsumption Formula 2001, pp. 57 a99.
nor the Weight Formula contributes anything directly to the justification 181 Como já se registrou antes, o objetivo deste estudo não é expor as
of the content of these premisses. To this extent both are completely diferentes questões debatidas pelos teóricos da argumentação, mas
formal. But this cannot diminish the value of identifying the lcind and the apresentar uma proposta operacional de organização da técnica da
form of the premisses which are necessary in order to justify the result." ponderação e de parâmetros que possam servir-lhe de balizamento. Por

124 125
Com a expressão pretensão de universalidade quer-se magistrado, não pode valer-se de argumentos ou razões que
significar, na verdade, duas necessidades distintas: uma re- apenas façam sentido para um grupo, e não para a totalida-
lacionada com a argumentação jurídica propriamente dita e de das pessoas'".
outra com a decisão final do intérprete. Em primeiro lugar, Imagine-se um exemplo: uma nova seita mística susten-
espera-se do intérprete jurídico que ele empregue uma ar- ta que as pedras e minérios não devem ser retirados de seus
gumentação universal, assim entendida aquela aceitável de locais de origem na natureza, sob pena de todo o universo
forma geral dentro da sociedade e do sistema jurídico no desintegrar-se. Imagine-se, ainda, que uma companhia mi-
qual ela está inserida e racionalmente compreensível por neradora ingressa em juízo disputando o direito de explora-
todos'82. Vale dizer: o aplicador do direito, sobretudo o ção de uma mina de cobre com outra empresa. Por eviden-
te, o juiz não poderá adotar validamente, como um dos
fundamentos de sua decisão, qualquer que seja ela, a con-
essa razão, apenas a exigência da universalidade será abordada de forma cepção mística acerca dos minérios descrita acima. Por essa
específica.
mesma razão, um magistrado ateu não pode fundamentar
182 A exigência pode ser associada ao conceito geral de razão pública de
John Rawls. É bem de ver que ao tratar da razão pública o autor
suas decisões a partir de sua própria concepção materialista
desenvolve diversas outras discussões, afora a mencionada no texto. Para do universo, assim como um religioso não pode impor aos
os fins deste estudo, basta registrar que, embora a propriedade do uso da jurisdicionados sua crença como razão de decidir. Em
razão pública em outras relações dentro da sociedade possa ser discutida,
apenas essa espécie de razão deve ser admitida na fundamentação das
decisões judiciais. RAWLS, John. Liberalismo político, 1992, pp. 204, meios apropriados para que todos possam desenvolver suas liberdades e
205 e 207: "No todas las razones son razones públicas, pues existen las oportunidades básicas. V. RAWLS, John. Liberalismo político, 1992, p.
razones no públicas de las Iglesias, universidades y de otras muchas 213 e ss.. Sobre o conceito correlato de espaço público e suas diferentes
asociaciones en la sociedad civil. (...) La razón pública es característica de concepções, v. TORRES, Ricardo Lobo. O espaço público e os intérpretes
un pueblo democrática: es la razón de sus ciudadanos, de aquellos que da Constituição, Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do
comparten la calidad de ciudadanía en pie de igualdad. (...) Outra Rio de Janeiro n°50, 1997, pp. 92 a 110.
característica de la razón pública es que sus limites no se aplican a nuestras 183 Essa preocupação é manifestada por vários autores. Para Perelman, a
deliberaciones y reflexiones personales sobre lãs cuestiones políticas, o ai racionalidade e objetividade do discurso dependem de os argumentos
razonamiento acerca de ellas por miembros de asociaciones tales como Ias serem aceitáveis e convincentes para a audiência que, no caso do jurista,
Iglesias y las universidades, todo lo cual forma parte importante dei já não é a audiência universal própria da filosofia, mas aquela vinculada a
trasfondo cultural. Está claro que en esto pueden desempenar un papel uma comunidade social específica (PERELMAN, Logique jurídique.
apropiado las consideraciones religiosas, filosóficas y morales de muchas Nouvelle rhétorique, 1976). Na mesma linha, PECZENIK, Alelcsander.
clases. Pero el ideal de la razón pública se aplica a los ciudadanos cuando On Law and Reason, 1989, p. 189: "What matters for rationality is not
empreenden la defensa política de algún asunto en el foro público. (...) Se actual consensus but acceptability within the relevant group of people,
aplica también, de manera especial, ai Poder Judicial y, sobre todo, a la that is, 'audience', colleag-ues, peers, etc. These persons accept p or at
Suprema Corte, en una democracia constitucional donde existe la least agree that p is acceptable according to the standards they accept; p
revisión judicial en todas las instancias.". Para Rawls, tendo em conta sua is acceptable to a person."; CAMARGO, Margarida Maria Lacombe.
teoria da justiça, o espaço da razão pública esta relacionado Hermenêutica e argumentação, 2001, p. 220 e ss.; e TORRE, Maximo La.
principalmente com o reconhecimento de determinados direitos e Theories of LegalArgumentation and Concepts of Law. AnApproximation,
liberdades aos indivíduos em caráter prioritário e com a existência de Ratio Juris, vol. 14, n° 4, 2002, p. 384 e ss..

126 127
suma: as pessoas têm ampla liberdade de convicção e práti- A exigência de universalidade será mais sensível quan-
ca religiosa e filosófica — o que é, afinal, um precioso bem do se trate de selecionar fatos, apreciar sua relevância e
protegido por praticamente todas as Constituições con- escolher os enunciados normativos em cada hipótese. A
temporâneas ocidentais' —, mas razões exclusivas de gru- seleção inicial dos enunciados pertinentes e dos fatos que
pos sociais parciais não podem fundamentar decisões que devem ser considerados são operações preliminares de di-
devem justificar-se no espaço público'''. fícil controle, determinadas, no mais das vezes, pela forma
Essa exigência será mais facilmente atendida quando o como o intérprete compreende a própria realidade, que
intérprete esteja lidando com argumentos predominante-
pode variar em função de sua pré-compreensão do tema".
mente jurídicos, derivados de enunciados normativos. E
A atribuição de relevância aos fatos, como já se viu, poderá
isso por duas razões. Em primeiro lugar, porque se presume
que o conteúdo dos enunciados compartilhe de uma racio- depender de avaliações não apenas jurídicas, mas também
nalidade comum a todos". E, em segundo lugar, porque o — e principalmente — culturais, e por isso mesmo há o
argumento em si da imperatividade própria aos dispositivos risco de opiniões pessoais não justificáveis publicamente
,Y jurídicos é um elemento da racionalidade geral em um Es- dominarem o processo. Sobretudo nesses momentos, por-
tado de direito, especialmente em se tratando de um siste- tanto, o raciocínio desenvolvido pelo intérprete deve utili-
ma romano-germânico. Dito de outra forma, as pessoas es- zar categorias comuns a todos e, nesse sentido, ser univer-
tão de acordo com a regra geral de que os enunciados nor- sal, de modo a ser compreendido racionalmente por todos
mativos são obrigatórios, e vinculantes e, por isso, devem dentro de um determinado sistema jurídico".
ser obedecidos.
187 V. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação e
aplicação do direito, 2002, p. 27: "Como a interpretação abrange também
184 Razões próprias dos diferentes grupos religiosos ou filosóficos serão os fatos, o intérprete os reconforma, de modo que podemos dizer que o
levadas em conta quando se trate exatamente de proteger a liberdade de direito institui a sua própria realidade. Dai a importância do relato dos
crença e convicção. A rigor, porém, o fundamento de qualquer decisão fatos (= narrativa dos fatos a serem considerados pelo intérprete) para a
nesse sentido será a própria liberdade de crença e convicção em si, e não interpretação. Pois é certo que os fatos não são, fora de seu relato (isto é,
o conteúdo de cada crença em particular. E a liberdade de crença e fora do relato a que correspondem), o que são. O que desejo afirmar é a
convicção é por certo um elemento comum à racionalidade geral, ao fragilidade do compromisso entre o relato e seu objeto, entre o relato e o
menos nas democracias ocidentais. Veja-se sobre o tema SOUZA NETO, relatado. Esse compromisso é, antes de mais nada, comprometido em
Cláudio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa, 2004 razão (1) de jamais descrevermos a realidade; o que descrevemos é o
(ainda mimeografada). nosso modo de ver a realidade. Além de não descrevermos a realidade,
185 É evidente que, como em todas as demais circunstâncias, o raciocínio porém o nosso modo de ver a realidade, (2a) essa mesma realidade
do intérprete será influenciado por suas concepções filosóficas, determina o nosso pensamento e, (2b) ao descrevermos a realidade, nossa
ideológicas e religiosas. O controle do discurso, porém, é o meio descrição da realidade será determinada (i) pela nossa pré-compreensão
disponível de obter-se a neutralidade possível. dela (= da realidade) e (ii) pelo lugar que ocupamos ao descrever a
186 É certo que nos sistemas que admitem o controle de realidade (= nosso lugar no mundo e lugar desde o qual pensamos)."
constitucionaliclade das leis e atos do Poder Público essa presunção é 188 Isso não significa que todos deverão concordar com o intérprete, já
relativa. que outros argumentos igualmente universais podem ser relevantes e

128 129
O segundo sentido da pretensão de universalidade en- metida ao teste da universalização: é possível e adequado
volve a decisão formulada pelo intérprete e pode ser des- aplicar a decisão a que se chegou a todos os casos similares?
crita de forma simples. A solução a que chega o intérprete Essa exigência decorre naturalmente do dever de isono-
deve poder ser generalizada para todas as outras situações mia aplicado à prestação da jurisdição', pelo qual todos
semelhantes ou equiparáveis'" e, para isso, deve ser sub- aqueles que se encontrem em situação equivalente devem
receber a mesma resposta do Poder Judiciário'''. Além dis-

conduzir a conclusões diversas. Veja-se sobre o tema AARNIO, Aulis. La


tesis de la única respuesta correcta y el principio regulativo dei confliggenti sull'altro (como accadrebbe invece se si adottasse ii criterio
razonamiento jurídico, Revista Doxa n° 8, 1990, pp. 23 a 38. Embora o 'lex specialis'); ogni soluzione dei conflitto vale solo per il caso concreto,
autor reconheça que muitas vezes é impossível apurar uma resposta única e resta pertanto imprevedibile la soluzione deito stesso conflitto in casi
correta, ele propõe a seguinte diretriz para a argumentação jurídica (p. futuri.' A posição de Guastini parece decorrer da importância essencial
37): "En• la decisión de un caso difícil se debe tratar de alcanzar una atribuída pelo autor às características de cada caso concreto para a solução
solución tal y una justificación tal que la mayoría de los miembros da ponderação. Embora essas características sejam realmente da maior
racionalmente pensantes de la comunidad jurídica pueda aceptar esa importância, isso não significa (e seria•irreal afirmá-lo) que inexistam
solución y esa justificación.". casos equiparáveis ou semelhantes, aos quais, por um imperativo de
isonomia, deva-se aplicar a mesma solução. Para uma crítica à posição de
189 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica, 2001, pp. 186,
Guastini, v. MORESO, José Juan. "Conflictos entre principios
187 e 197: "As regras que definem o discurso prático racional são de CARBONELL, Miguel (organizador).
constitucionales". In:
diferentes tipos. (...) A validade do primeiro grupo de regras é urna
Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 100 e ss..
condição prévia da possibilidade de toda comunicação lingüística que dá
origem a qualquer questão sobre a verdade ou a correção: (1.1) Nenhum 190 Sobre o tema, vejam-se, dentre muitos outros: DANTAS, San Tiago.
orador pode se contradizer. (1.2) Todo orador apenas pode afirmar aquilo "Igualdade perante a lei e due process of law". In: Problemas de direito
em que crê. (1.3) Todo orador que aplique um predicado F a um objeto público, 1953; FAGUNDES, M. Seabra. O principio constitucional da
tem de estar preparado para aplicar F a todo outro objeto que seja igualdade perante a lei e o Poder Legislativo, Revista dos Tribunais n° 235,
semelhante a a em todos os aspectos importantes. (1.4) Diferentes 1995, p. 3; MELLO, Celso Antdnio Bandeira de. Conteúdo jurídico do
oradores não podem usar a mesma expressão com diferentes significados. princípio da igualdade, 1993; BARROSO, Luís Roberto. "A igualdade
(...) Quem fizer uma afirmação normativa que pressuponha uma regra perante a lei". In: Temas atuais do direito brasileiro, 1987 e, do mesmo
com certas conseqüências para a satisfação dos interesses de outras autor, Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 230 e ss.;
pessoas deve ser capaz de aceitar essas conseqüências, mesmo na situação CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O princípio da isonomia e a
hipotética em que esteja na situação dessas pessoas."; e PECZENIK, igualdade da mulher no direito constitucional, 1983. A construção do
Aleksander. On Lato and Reason, 1989, p. 191 e ss.. Em sentido diverso, sentido da cláusula constitucional equality under the lato é um dos mais
GUASTINI, Riccardo. Distinguendo. Studi de teoria e metateoria dei recorrentes temas do direito constitucional norte-americano. Vejam-se,
diria°, 1996, p. 145: "L'operazione di bilanciamento dei principi si fonda por todos, TRIBE, Laurence. American Constitutitional Lato, 1988, e
dunque su una peculiare interpretazione dei principi di cui si trattta, NOWAK, ROTUNDA e YOUNG, Constitutional Lato, 1986. Entre os
noncué su un soggettivo giudizio di valore (un giudizio in termini di autores portugueses, v. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito
'giustizia') dei giudice. Cosi facendo, ii giudice sovrappone una constitucional e teoria da Constituição, 1998, p. 1160 e ss..
valutazione sua propria alia valutazione dell'autorità normativa (in questo 191 STF, Mandado de Injunção n° 58, Rel. MM Celso de Mello, Revista
caso, l'autorità costituente). Inoltre, ii conflitto non è risoltostabilmente, de Direito Administrativo n° 183, p. 143: "Esse princípio [o da isonomia]
una volta per tutte, facendo senz'altro prevalere uno dei chie principi — cuja observância vincula, incondicionalmente, todas as manifestações

130 131
so, assim como se passa com a ampliação de uma imagem b) Busca da concordância prática
qualquer, ao se formular como regra geral a solução apura-
da para um determinado caso, será mais fácil visualiza r O objetivo final do processo de ponderação será sempre
eventuais distorções ou vícios nela contidos'". alcançar a concordância prática dos enunciados em tensão,
Vale dizer: além de empregar argumentos que possam isto é, sua harmonização recíproca de modo que nenhum de-
194.
transitar livremente no espaço público, e que façam senti- les tenha sua incidência totalmente excluída na hipótese
Para isso, a concordância prática, na qualidade de diretriz
do para todos os indivíduos independentemente de suas
metodológica, pode valer-se de todo o arsenal hermenêutico
convicções individuais, a decisão proposta ao fim da ponde-
disponível: os elementos clássicos de interpretação, a eqüi-
ração deve poder ser validamente universalizada para os dade, a proporcionalidade''', as técnicas modernas de inter-
demais casos equiparáveis193. Embora essas diretrizes lógi-
cas não forneçam ao intérprete critérios materiais para
orientar suas decisões, elas funcionam como controles nes- 194 A concordância prática é, por certo, uma das exigências da coerência
no processo de justificação jurídica. Sobre a noção de coerência, v.
sa fase decisória. PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 158 e ss.. Sobre
a concordância prática propriamente: HESSE, Konrad. Elementos de
direito constitucional da República Federal da Alemanha, 1998, pp. 66 e
67: "Em conexão estreita com isso está o princípio da concordância
prática; bens jurídicos protegidos jurídico-constitucionalmente devem,
do Poder Público — deve ser considerado, em sua precípua função de na resolução do problema, ser coordenados um ao outro de tal modo que
obstar discriminações e de extinguir privilégios (RDA, 55/114), sob cada um deles ganhe realidade. Onde nascem colisões não deve, em
duplo aspecto: a) o da igualdade na lei; b) o da igualdade perante a lei. A 'ponderação de bens' precipitada ou até 'ponderação de valor abstrata,
igualdade na lei — que opera uma fase de generalidade puramente um ser realizado à custa do outro. Antes, o principio da unidade da
abstrata — constitui exigência destinada ao legislador que, no processo de Constituição põe a tarefa de uma otimização: a ambos os bens devem ser
sua formação, nela não poderá incluir fatores de discriminação, traçados limites, para que ambos possam chegar a eficácia ótima. Os
responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante a lei, traçamentos dos limites devem, por conseguinte, no respectivo caso
contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos concreto ser proporcionais; eles não devem ir mais além do que é
demais poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão necessário para produzir a concordância de ambos os bens jurídicos."
subordiná-la a critérios que ensejem tratamento seletivo ou (grifo no original). O conceito de integridade, desenvolvido por Dworkin,
discriminatório". pode ser visualizado como uma espécie de coerência máxima:
192 V. ATIENZA, Manuel. Las razones dei derecho. Sobre la justificación DWORKIN, Ronald. O império do direito, 1999, p. 294: "O direito como
de las decisiones judiciales, Revista Isonomia n°1, 2004, p. 51 e ss.. integridade, então, exige que um juiz ponha à prova sua interpretação de
qualquer parte da vasta rede de estruturas e decisões políticas de sua
193 PECZENIK, Aleksanàer. The Basis of Legal Justification, 1983, p.
comunidade, perguntando-se se ela poderia fazer parte de uma teoria
63: "Whenever one reinterprets or ranks norms which are prima facie
colliding with each other, one should do so in a manner which one can coerente que justificasse essa rede como um todo."
repeatedly use when confronted with similar collisions between other 195 Note-se que embora concordância prática e proporcionalidade não
norms. One requires especially strong reasons to justify a reinterpretation se confundam (como registra ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios,
or a priority order applied ad hoc that is, only in the case under 2003, pp. 88 e 89 e 104 a 116), os três testes da proporcionalidade
consideration." (grifos no original) (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) podem

132 133
pretação constitucionall% etc. A questão, porém, nem sem- de elementos resulta freqüentemente em um conflito par-
pre é simples e merece alguns comentários. cial, isto é, que não confronta de forma radical os enuncia-
Como descrito no início deste estudo, os conflitos no r- dos a ponto de a realização de um importar a não incidência
mativos que exigem ponderação são aqueles que reflete m do outro'". Explica-se melhor.
tensões entre valores e/ou opções político-ideológicas e, Os princípios, e a questão será examinada mais detida-
muito freqüentemente, os enunciados envolvidos nessas mente adiante, descrevem em gerétIrn conjunto de efeitos
disputas têm a estrutura de princípios'". Essa conjugação que pretendem ver realizados net.ditugdo dos fatos, sendo
que cada um deles pode justificar con dto diversas. Nesse
contexto, em um caso concreto, a disputa etilkis enunciados
ser úteis eventualmente na operação de tentar obter a concordância que apresentem a estrutura de princípios dificihnente coni 77,,
prática. Com efeito, ao verificar se uma norma possível é capaz de atender fronta todos esses efeitos e condutas ao mesmo tei-srliao.í /7
aos efeitos pretendidos pelos diferentes enunciados em disputa, faz-se
um juízo de adequação. A eliminação de uma solução em favor de outra
mais comum é que ocorram oposições parciais entre det
.5.,
o
pelo fato de a primeira restringir excessiva e desnecessariamente algum
minados efeitos ou condutas, de modo que a colisão afeta,
dos enunciados envolve de forma evidente uma avaliação acerca da na prática, apenas algumas manifestações de sentido dos
necessidade das providências. A proporcionalidade em sentido estrito, a enunciados199 . E para visualizar os aspectos realmente afe-
rigor, permeia não apenas esta terceira etapa da ponderação, mas toda ela,
já que o propósito aqui é exatamente racionalizar o processo de atribuição
de pesos aos diferentes elementos em conflito. 198 Um exemplo simples ilustra o ponto. Alegando que o rodízio de
196 Sobre algumas técnicas próprias da interpretação constitucional, v. veículos, imposto por lei estadual paulista, violava a liberdade de
MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional, 1998; do mesmo locomoção, um indivíduo impetrou mandado de segurança pretendendo
autor, Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, 1998; e ver reconhecido o direito de circular livremente com seu veiculo. A
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, ordem foi concedida em primeiro grau, mas o Tribunal de Justiça
2003. denegou a segurança sustentando, dentre outros fundamentos, que "o
197 Quando um aparente conflito normativo envolve valores em um 'rodízio' não acarreta a violação ao direito de locomoção, considerando
nível mais abstrato há ainda a questão filosófica de delinear o sentido de que o impetrante pode cumprir seus compromissos utilizando-se de
tais valores. O ponto é sublinhado por Ronald Dworkin ao tratar do transporte coletivo, de táxis e mesmo de outro veículo, nos dias do
conflito entre liberdade e igualdade. Para o autor, é possível conciliar impedimento." (TJSP, AC 0378855/1-00, Rel. Des. Ribeiro Machado, j.
esses dois valores uma vez que se tenha uma adequada compreensão 18.08.1998)
deles. V. DWORKIN, Ronald. Do Values Conflict? A Hedgehog's 199 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
Approach, Arizona Law Review n°43, 2001, pp. 255 e 256: "We need expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, pp. 129 e 130: "Com
philosophical analysis to tell us what liberty and equality really are, not idêntico sentido, é necessário, também, distinguir entre o direito
what they are widely supposed to be. (...) Liberty and equality are not principal — aquele que a interpretação permite concluir ser o sentido
natural kinds, like gold and dogs, but values, and we cannot understand a primário de garantia visado pela norma de direito fundamental,
value unless we understand why it is important that we respect or seek independentemente da possibilidade da sua perspectivação estilizada em
out that value, unless we understand what is good about it. (...) We have cada uma das faculdades ou pretensões nele contidas — e os direitos
established something important: so far as the famous and celebrated instrumentais, ou seja, os direitos que se destinam a proteger, concretizar,
conflict between liberty and equality depends on adopting the flat tornar possível ou a garantir um exercício optimizado ou adequado do
conceptions of these two virtues, it is a fake conflict." direito principal, a afastar os perigos ou ameaças que sobre ele impendem

134 135
mente será possível, no mundo real, conceber uma fórmula
tados pelo conflito é necessário apurar as possibilidades de
realização do efeito pretendido pelos diversos grupos de que restrinja igualmente todos os enunciados em disputa,
enunciados normativos e o grau de restrição que cada uma mesmo porque inexiste um instrumento de medida capaz
dessas possibilidades impõe sobre os diferentes enunciados de verificar se há ou não "igualdade" de restrição em rela-
envolvidos (como já se havia afirmado ao tratar da segunda ção a todos os elementos normativos. Em segundo lugar, e
fase da ponderação). mais importante, alguns elementos normativos poderão ter
É certo que apenas conceber essas diferentes possibili- maior relevância em abstrato ou em concreto do que ou-
dades não soluciona o problema; cada uma delas produzirá tros, e sua restrição, mesmo que pequena, seria ainda assim
um grau de restrição diferenciado sobre os elementos em inaceitável.
disputa e de qualquer modo será preciso decidir qual delas Retome-se o exemplo descrito no tópico anterior do
deve ser escolhida. De toda sorte, a idéia de concordância rapaz epiléptico que sofre uma crise no plenário do Senado
prática já oferece uma diretriz geral para essa escolha, que Federal. A imprensa pretende divulgar o ocorrido e surge o
pode ser enunciada nos seguintes termos: o intérprete deve conflito entre a intimidade e a liberdade de informação e
escolher a solução que produz o melhor equilíbrio, impon- de imprensa. Cogitou-se, àquela altura, de várias possibili-
do a menor quantidade de restrição à maior parte de ele- dades de solução do conflito: (i) a proibição de divulgação
mentos normativos em discussão. da história; (ii) a divulgação da história sem menção ao
Embora a diretriz que se acaba de enunciar seja útil em nome do rapaz ou uso de qualquer imagem que pudesse
muitos casos, ela enfrenta duas limitações principais que identificá-lo; (iii) a divulgação contendo apenas a informa-
não devem ser desconsideradas. Em primeiro lugar, dificil- ção do nome da pessoa; e (iv) a divulgação com nome e
imagens. Aparentemente, as soluções que produzem o me-
lhor equilíbrio de restrições são as duas intermediárias, isto
ou a reconstruir a situação anterior a uma lesão verificada no seu âmbito
de protecção ou, na impossibilidade dessa reconstrução, a compensar o
é, aquela que autoriza que a história seja contada sem a
titular por danos sofridos. (...) Logo, na norma constitucional do art. 24° exposição do nome ou da imagem do rapaz ou apenas com
('a vida humana é inviolável'), se, para além dos deveres jurídicos a referência ao nome.
objectivos que dela resultam para o Estado, considerarmos que há Imagine-se agora o mesmo conflito em tese — intimi-
também um 'direito à vida', então, o direito principal será o direito de
cada um a ter uma vida. Este direito principal é integrado por um dade versus liberdade de informação e de imprensa — mas
conjunto de faculdades ou pretensões como, por exemplo, a de não ver a em outra circunstância. Trata-se de Ministro de Estado que
sua vida afectada, a de não ser privado da própria vida, 'a ter' uma vida em é encontrado inconsciente e alcoolizado em uma calçada e
condições mínimas de dignidade, a, eventualmente, dispor da própria precisa ser internado. As mesmas possibilidades de solução
vida. Qualquer uma destas pretensões ou direitos especiais encontra-se,
relativamente ao direito principal, numa relação de especialidade, de
descritas acima se apresentam aqui, mas parece evidente
concretização ou de conformação, pelo que podemos dizer constituírem, que impedir o meio de comunicação de identificar a pessoa
cada um deles, elementos integrantes do próprio direito principal, mas em questão nesse caso — embora se trate igualmente de
que, simultaneamente, podem ser considerados autonomamente como intimidade — terá um peso totalmente diverso. As circuns-
direitos fundamentais."
137
136
tâncias do caso, qualificadas por outros fatores jurídicos, cia em nenhuma medida de um enunciado válido e perti-
atribuem maior relevância a alguns dos elementos em ten- nente em determinado caso, não afastado por qualquer das
são. E há ainda hipóteses em que os enunciados em conflito exceções admitidas pela ordem jurídica, constitui uma
poderão ter uma relevância diferenciada, mesmo conside- quebra de sistema e deve, tanto quanto possível, ser evita-
rados em abstrato: ainda que se pudesse medir uniforme- da. De toda sorte, quando se tratar de um resultado inevi-
mente a restrição a diferentes enunciados normativos, res- tável, o processo de ponderação continuará a ser uma ferra-
tringir a integridade física de um indivíduo é por certo di- menta importante de ordenação e fundamentação da esco-
ferente de restringir o princípio federativo'''. lha entre as soluções propugnadas pelos enunciados confli-
A observação que se acaba de fazer presta-se a demons- tantes.
trar que a diretriz geral puramente lógica da concordância
prática — pela qual a decisão deve recair sobre a solução c) Construção do núcleo essencial dos direitos funda-
que produza a menor restrição possível sobre a maior parte mentais
dos elementos em conflito — não pode ser aplicada isola-
damente, mas precisa ser combinada com parâmetros que Ainda nesta fase de decisão, uma última diretriz a ser
apresentem fundamento normativowl, tema da terceira observada pelo intérprete diz respeito ao núcleo ou conteú-
parte deste estudo. do essencial dos direitos fundamentais. Como se sabe, a
Há ainda uma última nota a fazer sobre essa questão. A idéia de núcleo ou conteúdo essencial foi introduzida em
despeito do que se acaba de afirmar acerca da concordância várias constituições contemporâneas como uma forma de
prática, é necessário reconhecer que haverá hipóteses em proteger os direitos contra a ação do legislador e também,
que, depois de percorridas as etapas anteriores da pondera- de certa forma, do aplicador do direito203. Mesmo onde não
ção, simplesmente não será possível obter qualquer harmo-
nização dos elementos em disputa: um afastará totalmente
o outro e será preciso escolher entre eles'". A não incidên- de las decisiones judiciales, Revista Isonomia n°1, 2004, p. 67 e 68. Como
se verá adiante, isso acontece mais freqüentemente com regras.
203 Constituição Alemã, art. 19: "1. Quando, segundo esta Lei
200 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Fundamental, um direito fundamental for restringido por lei ou em
Constituição portuguesa de 1976, 1998, pp. 222 e 223: "o principio da virtude de lei, essa lei será aplicada de maneira geral e não apenas para um
concordância prática não prescreve propriamente a realização óptima de caso particular. Além disso, a lei deverá especificar o direito fundamental
cada um dos valores em jogo, em termos matemáticos. É apenas um afetado e o artigo que o prevê. 2. Em hipótese nenhuma um direito
método e um processo de legitimação das soluções que impõe a fundamental poderá ser afetado em sua essência. 3. Os direitos
ponderação de todos os valores constitucionais aplicáveis. (...) O princípio fundamentais se aplicarão igualmente as pessoas jurídicas nacionais, na
da concordância prática executa-se, portanto, através de um critério de medida em que a natureza desses direitos o permitir. (...)"
proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito." Constituição Portuguesa, art. 18: "3. As leis restritivas de direitos,
201 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República liberdades e garantias têm de revestir caracter geral e abstracto e não
Federal da Alemanha, 1998, p. 67. podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do
202 V. ATIENZA, Manuel. I os razones dei derecho. Sobre la justificación conteúdo essencial dos preceitos constitucionais."

138 139
há uma previsão formal nesse sentido, como no Brasil, en- Paralelamente a essa garantia ao núcleo, admite-se cor-
tende-se que os direitos fundamentais não podem ser res- rentemente na prática jurídica que os direitos possam so-
tringidos (pelo legislador ou pelo juiz) a ponto de se torna- frer conformações205 (mesmo porque o sentido e os contor-
rem invólucros vazios de conteúdo, sobretudo em sistemas nos precisos dos direitos não decorrem automaticamente
onde desfrutem do status de cláusulas pétreas204 . do texto que os preveo e até mesmo algum grau de restri-
6)

ção, tendo em conta conflitos específicos envolvendo direi-


Constituição Espanhola, art. 53: "1. Los derechos y libertades
tos entre si ou direitos e enunciados que consagram fins
reconocidos en el Capítulo segundo dei presente Titulo vinculan a todos coletivos207 . Da conjugação desses dois elementos tem-se a
los poderes públicos. Sólo por ley, que en todo caso deberá respetar su seguinte conclusão: não se pode admitir que conformações
contenido esencial, podrá regularse el ejercicio de tales derechos y ou restrições possam chegar a esvaziar o sentido essencial
libertades que se tutelarán de acuerdo con lo previsto en el artículo 161, dos direitos, que, afinal, formam o conjunto normativo de
I , a)." maior fundamentalidade, tanto axiológica, quanto norma-
Declaração de Direitos da África do Sul (Bill of Rights), art. 36: "(1)
The rights in the Bill of Rights may be limited only in terms of law of tiva, nos sistemas jurídicos contemporâneos. Nesse senti-
general application to the extent that the limitation is reasonable and do, o núcleo deve funcionar como um limite último de
justifiable in an open and democratic society based on human dignity, sentido, invulnerável, que sempre deverá ser respeitado.
equality and freedom, talcing into account all relevant factors, including
the nature of the right; the importance of the purpose of the limitation;
the nature and extent of the limitation; the relation between the 205 Ainda que com fundamento em argumentações variadas, como já se
limitation and its purpose; and less restrictive means to achieve the referiu ao tratar das teorias sobre os limites imanentes e o
purpose. (2) Except as provided in subsection (1) or in any other conceptualismo. Para parte dos autores que tratam do assunto, ao
provision of the Constitution, no law may limit any right entrenched in regulamentar o exercício do direito o legislador poderá explicitar limites
the Bill of Rights." imanentes, independentemente de expressa previsão constitucional. V.
Constituição do Timor Leste, art. 24: "1. A restrição dos direitos, sobre o assunto STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos
liberdades e garantias só pode fazer-se por lei, para salvaguardar outros fundamentais e principio da proporcionalidade, 2001 ) p. 60 e ss.;
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e nos casos NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
expressamente previstos na Constituição. 2. As leis restritivas dos expressamente autorizadas pela Constituição, 2003; e SERNA, Pedro e
direitos, liberdades e garantias têm, necessariamente, carácter geral e TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos
abstracto, não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo fundamentales — Una alternativa a los conflictos de derechos, 2000.
essencial dos dispositivos constitucionais e não podem ter efeito 206 Como já advertiam, com parcela de razão, os conceptualistas, para
retroactivo." quem o conceito do direito não se confunde com o texto que o prevê, mas
Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, art. 52: "1: depende de uma elaboração teórica que leve em conta, dentre outros
'Any limitation on the exercise of the rights and freedoms recognised by elementos, a formação histórica do direito, seus fins, os demais elementos
this Charter must be provided for by law and respect the essence of those do sistema jurídico etc. Veja-se mais sobre esse assunto-no Capítulo III.
rights and freedoms. Subject to the principie of proportionality, 207 Como já se expôs no Capítulo III, será bastante difícil distinguir,
limitations mar be made only if they are necessary and genuinely meet antes do fim do processo herinenêutico, o que é conformação e o que é
objectives of general interest recognised by the Union or the need to restrição, embora alguns autores considerem a distinção relevante. V.
protect the rights and freedoms of others." ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na
204 Como é o caso da Constituição brasileira de 1988, art. 60, § 4°, IV. Constituição portuguesa de 1976, 1998, p. 230 e ss..

140 141
Essa, portanto, é a terceira diretriz a ser observada pelo pectivamente, teorias do núcleo duro e teorias do núcleo
intérprete: a decisão que vier a ser apurada no processo de flexível.
ponderação não poderá violar o núcleo dos direitos funda- As teorias absolutas ou do núcleo duro sustentam duas
mentais. Ou, em outras palavras, as prerrogativas contidas concepções principais acerca do conteúdo essencial dos di-
no núcleo ou consideradas essenciais ao direito devem ser, reitos, ambas intimamente relacionadas. Para essas teorias,
em qualquer caso, respeitada08. Mas a questão realmente o núcleo de cada direito corresponde a um conteúdo nor-
importante aqui é a seguinte: o que é, afinal, o núcleo de mativo que não pode sofrer restrição ou ser relativizado em
cada direito fundamental? Onde encontrar a descrição des- nenhuma circunstância e, por isso mesmo, esse conteúdo
sas prerrogativas essenciais e desses contornos? deve ser delimitado em abstrato para cada direito. De acor-
Não cabe aqui examinar as diferentes discussões teóri- do com essa concepção, portanto, antes mesmo de iniciar
cas que o tema tem suscitado na doutrina estrangeira e um processo de ponderação, o intérprete já saberá que
nacional. Basta identificar uma distinção corrente entre prerrogativas dos direitos envolvidos não podem ser res-
dois grupos de concepções sobre o assunto209: as teorias tringidas, de modo que há um limite objetivo e pré-estabe-
absolutas e as teorias relativas, denominadas também, res- lecido para sua atuação. Os críticos apontam duas grandes
objeções a essa forma de conceber o núcleo dos direitos.
Em primeiro lugar, afirmam que esse núcleo abstrato não
208 Trabalha-se aqui com a idéia de núcleo como garantia da dimensão existe pronto em lugar algum, de modo que é uma ficção
subjetiva dos direitos, isto é, como uma proteção do indivíduo na imaginar que o intérprete tem como conhecê-lo antecipa-
qualidade de titular desses direitos, e não como mecanismo de damente. Ademais, a idéia do núcleo duro acabaria por
preservação do enunciado objetivo e abstrato, pelo qual seu papel seria
apenas o de proteger o enunciado de modificações em sua redação. Sobre
desvalorizar os elementos do direito localizados fora do nú-
esta distinção, v. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e cleo.
teoria da Constituição, 1998, p. 430 e ss.; e ANDRADE, José Carlos As chamadas teorias relativas, por sua vez, sustentam
Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, que o conteúdo essencial de um direito só pode ser visuali-
1998, p. 230 e ss..
zado diante do caso concreto e que, portanto, apenas de-
209 É certo que cada autor, dentro dos grupos identificados, apresenta
sua concepção particular do tema, mas não há necessidade de abordar pois da ponderação será possível identificar o que é afinal o
aqui as especificidades das diferentes teorias. V. sobre o tema GAVARA núcleo. Não se pode falar, assim, de um conteúdo abstrato
DE CARA, Juan Carlos. Derechos fundamentales y desarrollo legislativo. que não possa sofrer restrições; esse conteúdo será identi-
La garantia dei contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley ficado caso a caso, em função das circunstâncias da hipóte-
Fundamental de Bonn, 1994; LOPES, Ana Maria D'Ávila. Os direitos
fundamentais como limites ao poder de legislar, 2001; BARROS, Suzana
se examinada. A crítica central às teorias relativas ou do
de Toledo. O principio da proporcionalidade e o controle de núcleo flexível é a de que elas destroem a proteção dos
constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, 1996; e direitos que a idéia de núcleo deveria assegurar, na medida
MELO, Sandro Nahmias. A garantia do conteúdo essencial dos direitos em que ela acaba por se confundir e ser dissolvida na pró-
fundamentais, Revista de Direito Constitucional e Internacional n° 43. pria noção de ponderação. Se o conteúdo essencial deveria
pp. 82 a97, 2003.

142 143
funcionar como um limite à ponderação, como ele poderá como se o sentido dos conceitos jurídicos não variasse em
ser um resultado dela? função da compreensão histórica dos fenômenos sociais.
Diante do quadro que se acaba de descrever, permane- O que se acaba de registrar, porém, não significa que a
ce a questão: qual diretriz deve ser seguida afinal pelo in- impossibilidade de se atingir o ideal das teorias absolutas
térprete na fase decisória da ponderação? De acordo com condene o intérprete e os jurisdicionados às teorias flexí-
as teorias relativas, não haverá diretriz alguma, já que ape- veis ou relativas. E perfeitamente possível e desejável, por
nas após a ponderação é que se descobrirá o núcleo dos meio da reflexão abstrata e/ou do estudo e tabulação dos
direitos fundamentais. Do ponto de vista operacional, essas precedentes judiciais, que a doutrina se ocupe de construir
teorias reduzem a pouco mais que nada o conceito de nú- os sentidos próprios de cada direito, propondo parâmetros
cleo de direito ou conteúdo essencial, uma vez que ele já ou standards específicos capazes de identificar o que deve
não serve de qualquer tipo de balizamento ou limite para o ser considerado como prerrogativa essencial de cada direi-
intérprete no momento decisório. to, o que pode sofrer restrição, em que circunstâncias isso
As teorias absolutas, por sua vez, fornecem uma dire- pode acontecer, dentre outros elementos necessários para
triz teoricamente consistente, mas a verdade é que não a compreensão mais precisa dos direitos211. Esse esforço
existe pronto, à disposição do aplicador, um manual com a hermenêutico contínuo não produzirá um núcleo duro nem
descrição do núcleo de cada direito fundamental. Mais que permanente ou não-histórico, mas fornecerá um núcleo su-
isso, parece realmente impossível (e mesmo inconvenien- ficientemente consistente para funcionar como limite à
te) que se possa delinear esse núcleo de forma absoluta — atuação do intérprete e proteger em alguma medida os di-
"dura" — e permanente, como se fosse humanamente viá- reitos fundamentais de ações arbitrárias e abusivas. O pró-
vel formular um juízo "ali things considered"210, capaz de
antever e considerar todos os elementos relevantes, ou
211 Em decisão proferida em junho de 1995 a Corte Constitucional da
República Sul Africana (The State v. T. Makwanyane and M. Mchunu —
Case n° CCT/3/94) considerou a pena de morte incompatível com a
210 PECZENIK, Alelcsander. On Law and Reason, 1989, pp. 76 e 77: "A dignidade humana e especialmente com o direito à não submissão a penas
practical statement is definitive only if by uttering it one declares that one desumanas e cruéis (a Constituição Sul Africana definitiva entrou em
no longer is prepared to pay attention to reasons which justify the vigor apenas em 07.02.97, mas desde 27.04.94 vigia uma Constituição
contrary conclusion. Our culture demands that definitive moral Interina). Na ausência de um conjunto próprio de decisões capaz de servir
statements are all-things-considered moral statements. In order to state de parâmetro, uma vez que o Tribunal Constitucional fora instalado
this demand more precisely, one needs the following distinction. A apenas no fim de 1994, a Corte valeu-se do que identificou como
practical statement has the all-things-considered quality sensu stricto if "jurisprudência comparada dos direitos fundamentais", empregando para
and only if it has support of considerations regarding (a) ali morally isso os critérios construídos pela jurisprudência do Canadá dos Estados
relevant circumstances, that is, ali facts relevara in practical reasoning Unidos, da Alemanha, da índia e da Corte Européia dos Direitos
about ethics, utilitarian moralily, moral principies, rights and duties, Humanos sobre o assunto. V. HOFFMAN, Florian. Jurisdição, processo e
virtues, justice etc., and (b) ali criteria of coherent reasoning. No human argumentação na Corte Constitucional da África do Sul no caso
being has resources sufficient to formulate all-things-considered paradigma (Leading case) The State v. T. Makwanyane and M. Mchunu
statements sensu stricto." (grifos no original) (1995) [Proibição da pena de morte] , 1999.

144 145
ximo capítulo e o último retomam o tema da construção de ponderativo acontecendo em um outro ambiente. Na ver-
standards específicos para os diversos enunciados normati- dade, mais que possível, é desejável que a ponderação se
vos, sobretudo para aqueles que prevêem direitos, incluin- desenvolva também antes do surgimento do caso concreto.
do a delimitação de seu núcleo essencial. Na medida em que a ponderação vai sendo forjada em abs-
Em suma: após identificar os enunciados normativos trato ou preventivamente, por meio da discussão de casos
em tensão e as diferentes normas que eles podem justificar hipotéticos ou passados, o juiz terá balizas pré-fixadas
(primeira fase) e selecionar os aspectos fáticos relevantes quando se defrontar com casos reais. Esse conjunto de
(segunda fase), o intérprete chega à etapa decisória da pon- idéias conduz à formulação de dois momentos para a pon-
deração. Neste momento, o aplicador precisará de parâme- deração ou de duas modalidades de processo ponderativo,
tros propriamente jurídicos para orientar suas escolhas que podem ser denominadas ponderação preventiva ou
que, no entanto, não são fornecidos pela técnica da ponde- abstrata e ponderação real ou concreta. Explica-se melhor.
ração em si. De toda sorte, antes mesmo desses parâme- A imagem que em geral está associada à idéia de ponde-
tros, três diretrizes devem ser consideradas pelo intérpre- ração no meio jurídico é a do magistrado posto diante de
te: (i) qualquer decisão deve poder ser generalizada para um complexo caso concreto para o qual não há solução
casos equiparáveis (pretensão de universalidade), assim pronta no ordenamento ou, pior que isso, para o qual o
como a argumentação empreendida deve utilizar uma ra- ordenamento sinaliza com soluções contraditórias diante
cionalidade comum a todos; (ii) sempre que possível o in- das quais caberá a ele decidir o que fazer: ninguém pode
térprete deve produzir a concordância prática dos enuncia- ajudá-lo e não há a quem recorrer.
dos em disputa; e (iii) a decisão a ser produzida deve res- O cenário que se acaba de descrever corresponde, sem
peitar o núcleo dos direitos, ainda que um núcleo apenas dúvida, a um momento da técnica da ponderação, mas ape-
consistente, e não duro. nas a um, ou a uma das formas possíveis de sua manifesta-
ção. Tanto assim que é possível imaginar uma outra cena.
Um grupo de acadêmicos se encontra para debater a tensão
VI. Ponderação preventiva ou abstrata e real ou potencial que existe entre, e.g., a liberdade de reunião e
concreta manifestação pública212 , de um lado, e bens coletivos rela-
cionados com a tranqüilidade, a saúde e a livre circulação
Os tópicos anteriores foram ocupados com o exame de das demais pessoas, de outro. No encontro, diversos ques-
algumas críticas à ponderação e com a proposta de uma tionamentos podem ser formulados na tentativa de demar-
ordenação para o uso dessa técnica. Antes de prosseguir, car o conteúdo específico de cada enunciado e as fronteiras
contudo, é importante fazer um registro. Como já se obser- de convivência entre eles. A liberdade de reunião e mani-
vou, tanto críticos como defensores da técnica discutem o festação pública exige que essas reuniões possam ser feitas
tema tendo em mente a chamada ponderação ad hoc, isto em qualquer local da cidade (inclusive, e.g., próximo a hos-
é, aquela feita pelo juiz diante de um caso concreto que ele
deverá decidir. E possível, no entanto, visualizar o processo 212 Consagrada, no Brasil, no art. 5°, XVI, da Constituição.

146 147
pitais)? A autoridade pública pode definir que as O exercício descrito acima é também uma forma de
manifestações públicas sejam feitas apenas em determina- ponderação; apenas se trata de uma ponderação em abstra-
dos locais? A autoridade pública pode exigir que o evento to ou preventiva. Na verdade, muitos conflitos normativos
se realize em local amplo e onde haja fácil transporte, mas de natureza constitucional podem ser antecipados com o
longe das regiões centrais da cidade? As manifestações pú- auxílio de situações hipotéticas: livre iniciativa versus pro-
blicas podem realizar-se em qualquer horário? A autorida- teção do consumidor e proteção do meio ambiente; liber-
de pública pode impor horários específicos para sua realiza- dade de informação e de imprensa versus intimidade, hon-
ção? A natureza da manifestação — se se trata de uma ma- ra e vida privada, dentre muitos outros. Da mesma forma,
nifestação de natureza política, artística, comercial ou de a observação e a contínua experiência com a interpretação
qualquer outro tipo — terá alguma influência no nível e aplicação desses dispositivos produz uma espécie de ban-
maior ou menor de restrição que se poderá admitir sobre a co de dados formado por situações típicas e elementos de
liberdade em questão? fato relevantes, em função dos quais é possível, mesmo em
O debate acadêmico pode ser enriquecido se às ques- tese, isto é, independentemente de um caso concreto espe-
tões descritas acima forem agregadas informações acerca cífico, proceder a um raciocínio de natureza ponderativa
dos pronunciamentos jurisprudenciais na matéria. O Su- para propor parâmetros. Um exemplo ajuda a esclarecer a
premo Tribunal Federal, e.g., no julgamento da ADIn no idéia.
1969-4/DF (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 05.05.2004) sus-
pendeu, em sede cautelar, decreto autônomo que proibia a 30.09.1960 (Presidente da Corte o Mia Nelson Hungria), considerou
utilização de carros ou aparelhagem de som em manifesta- válido ato de Secretaria de Segurança estadual que fixou locais onde
ções realizadas em determinadas áreas do Distrito Federal poderiam se realizar comícios eleitorais, uma vez que a finalidade do ato
(Praça dos Três Poderes, Esplanada dos Ministérios e Praça seria a preservação do interesse público com a manutenção das condições
de trânsito da cidade. O mesmo TSE, na Resolução n° 14526/1994,
do Buriti). O voto do Relator, embora admitindo que o definiu que a realização de comícios não está restrita ao horário de
direito de manifestação não tem viés absoluto, considerou propaganda eleitoral disciplinado pelo Código Eleitoral, devendo os
que a restrição pretendida esvaziaria a garantia constitucio- partidos e coligações observarem apenas a designação dos locais
nal, afetando a manifestação do pensamento e as conquis- adequados e a comunicação às autoridades policiais com no mínimo 24
tas democráticas. O Plenário do Tribunal discutiu ampla- horas de antecedência, nos termos da Lei n° 1207/1950. Autoridades de
trânsito portuguesas determinaram a manifestante, que obstruía o
mente questões como limitações geográficas, uso ou não de trânsito em determinada ponte da cidade comum veículo, que retirasse o
aparelhos de amplificação de som, controle prévio ou ape- veículo do local, mas não foram obedecidos. O Tribunal de Relação de
nas repressivo de abusos, a cargo de autoridades públicas, Lisboa entendeu que houve crime de desobediência na hipótese, alegando
dentre outros aspectos'''. que, embora previstas na Constituição, as liberdades de manifestação e
reunião não podem colidir com outros direitos fundamentais dos
cidadãos, dentre os quais o de livre circulação (número do documento
213 Há outras decisões sobre o assunto na jurisprudência brasileira e RL199610160007333, Rel. Diniz Alves, j. 16.10.1996). O Tribunal
estrangeira que podem enriquecer ainda mais o debate. Seguem alguns Constitucional da Espanha também já examinou hipóteses semelhantes
exemplos. O Tribunal Superior Eleitoral, em decisão proferida em (STC 59/1990 e 66/1995).

148 149
Suponha-se o conflito entre liberdade de informação e ao aplicador pela ponderação em abstrato acabam por
de imprensa versus intimidade, honra e vida privada. É pos- transformar muitos conflitos normativos, que seriam casos
sível examinar alguns elementos freqüentement e encon- difíceis, em fáceis, simplesmente porque já há um modelo
trados nesse ambiente e formular questões diversas: (i) de solução que lhes é aplicável. Nem sempre, todavia, os
quem se encontra em local público está em sua esfera pes- parâmetros concebidos em abstrato serão capazes de solu-
soal de intimidade? (ii) Atos considerados criminosos per- cionar adequadamente um conflito normativo concreto. É
tencem à esfera de privacidade ou podem/devem ser de- perfeitamente possível imaginar situações em relação às
nunciados à opinião pública? (iii) A informação verdadeira quais modelos elaborados em abstrato não se adaptam, seja
e obtida de forma licita pode ser proibida? (iv) A proteção porque nenhuma das formulações em tese existentes é per-
à vida privada de titulares de cargos eletivos e artistas é tinente, seja porque detalhes fáticos que se apresentam
menor que a assegurada a cidadãos comuns? agora como importantes não foram cogitados antes, seja
A partir das respostas sugeridas a essas questões, pode- por outra razão qualquer que não se é capaz de antecipar'''.
se então propor um conjunto de soluções ponderativas pré- Nesses casos, para além da aplicação dos parâmetros,
fabricadas, e.g.: se a informação é verdadeira, foi obtida de será necessária uma ponderação específica, particular para
forma licita, envolve a prática de crime e o indivíduo é aquela hipótesem: um modelo de alta costura, cosido sob
titular de mandato eletivo, não se poderá impedir a divul-
gação dos fatos invocando proteção à intimidade'''. Como relevancia de dos principios en conflicto para regular prima facie un cierto
é fácil perceber, esses modelos de solução foram construí- caso y la construcción de una regia para regular en definitiva ese caso;
dos por meio de uma ponderação feita em abstrato ou pre- regia que, por cierto, merced ai precedente, puede generalizarse y
ventivamente e servem de parâmetros para o aplicador no terminar por hacer innecesaria la ponderación en los casos centrales o
momento em que este se debruçar sobre casos concretos. reiterados."; e SCACCIA, Gino. II bilanciamento degli interessi coMe
tecnica di controlo costituzionale, Giurisprudenza constituzionale, vol.
Note-se, porém, um ponto importante. Uma vez que as VI, 1998, p. 3966 e ss..
circunstâncias fáticas imaginadas pela doutrina se reprodu- 216 A verdade é que, algumas vezes, a complexidade de determinados
zam no caso real, ou se repitam hipóteses já verificadas conflitos concretos exigirá um exame particular. V. BUCHANAN, G.
anteriormente, o juiz terá à sua disposição modelos de so- Sidney. Accommodation of Religion in the Public Schools: a Plea for
lução pré-prontosm. Na verdade, os subsídios oferecidos Careful Balancing of Competing Constitutional Values, University of
California Law Review, vol. 28, 1981, p. 1047: "Finally, as applied in the
public school setting, a 'weighing of values' approach better enables
214 Sobre o tema, v. BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade courts to disentangle 'the complexity of strands' in the accommodation
de expressão e direitos da personalidade. Critérios de ponderação. inquiry, thereby avoiding, in this area of constitutional law, 'the perils
Interpretação constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de that are latent in 'a jurisprudence' of absolutes."
Imprensa, Revista de Direito Administrativo n° 235, 2004, pp. 1 a 36. 217 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e
215 SANCHIS, Luis Prieto. "Neoconstitucionalismo y ponderación princípio da proporcionalidade, 2001, p. 143: "Esses pressupostos
judicial". In: CARBONELL, Miguel (organizador). indicam que a ponderação de bens deve ser uma ponderação concreta de
Neoconstitucionalimo(s), 2003, pp. 145 e 146: "La ponderación se bens. A norma de decisão não resulta de uma ponderação abstrata de
configura, pues, como un paso intermedio entre /a declaraci6n de bens, consistente na comparação dos direitos ou bens com base em uma

150 151
medida, e não um modelo prêt-a-porter. Trata-se do que já são levadas a cabo a partir de informações padronizadas
se identificou aqui como ponderação em concreto ou real. que em um caso real poderão se apresentar de maneira
Não será mais o caso de uma simples ponderação ad hoc, na diversa, cabendo ao aplicador proceder aos ajustes necessá-
qual o juiz conta apenas com o seu próprio bom senso para rios n 8 ,
solucionar o conflito; ao contrário, haverá um conjunto im- Basta retomar um exemplo já descrito para perceber a
portante de standards públicos a sua disposição e, mais que relevância das circunstâncias do caso para a ponderação.
isso, caberá a ele justificar de forma específica por que os Imagine-se um esforço doutrinário para construir, em abs-
standards existentes não são adequados para aquele caso trato, parâmetros capazes de balizar conflitos que se verifi-
concreto ou merecem algum tipo de adaptação. quem entre o direito à integridade física e o direito à honra.
Aqui será útil resgatar a distinção entre norma e enun- A primeira dificuldade, facilmente percebida, reside na
ciado normativo, observada na primeira parte do estudo. circunstância de esse tipo de conflito não ser freqüente e,
Na verdade, a distinção ajuda a compreender a convivência portanto, inexistirem casos típicos nos quais ele possa ser
da ponderação em abstrato ou preventiva com a desenvol- observado. De toda sorte, é possível cogitar de uma hipóte-
vida diante dos casos concretos. Em primeiro lugar, ainda se: um indivíduo pretende agredir fisicamente outro pelo
no âmbito da ponderação em abstrato, é relevante perceber fato de este haver ofendido sua honra de forma que julga
que a norma aplicável a um caso paradigmático ou a uma grave. Em um exame preliminar, parece evidente que o
situação-tipo constitui fenômeno diverso do enunciado direito à integridade física deverá prevalecer sobre a forma
normativo em si. Por outro lado, já considerando a ponde- (agressão física) por meio da qual o ofendido pretende ob-
ração em concreto ou real, se as normas concebidas em tese ter a reparação pelo ataque sofrido. No caso Glória Trevi,
pela doutrina e pela jurisprudência a partir dos enunciados referido acima, porém, a solução foi exatamente a inversa.
existentes e/ou do sistema como um todo não forem capa- Como registrado, no caso Glória Trevi, o próprio Su-
zes de solucionar o conflito verificado no caso concreto, premo Tribunal Federal destacou que as circunstâncias
este, com suas sutilezas e particularidades, vai fornecer ao particulares do caso — interferência diminuta na integrida-
aplicador subsídios para uma nova "regulagem" do processo de física da mãe e do menor (o material orgânico foi retira-
ponderativo e, conseqüentemente, para a construção da do da placenta) e a repercussão das acusações perpetradas
norma adequada a ele. Lembre-se que na ponderação em pela mãe aos servidores públicos — tiveram papel decisivo
abstrato a atribuição de pesos e todas as demais avaliações no peso atribuído a cada uma das disposições constitucio-
nais em confronto. Diante de outras circunstâncias, e.g., se
a acusação de estupro tivesse sido conhecida por pequeno
hierarquia ou em uma escala prévia. Contudo, isso não impede que o
operador do Direito, previamente à aplicação da ponderação concreta de
bens, possa fazer uma ponderação abstrata apenas com finalidades 218 PECZENIK, Aleksander. On Law and Reasan, 1989, p. 251: "The
heurísticas, como por exemplo, para verificar se há uma colisão real all-things-considered law is an idealisation. In practice, nobody can
(autêntica) ou se há uma carga argumentativa a favor de um dos direitos consider ali things. But the more the interpreted law approximates the
em colisão." all-things-considered law, the better the interpretation."

152 153
grupo de pessoas ou se fosse necessário efetivamente co- partir das conclusões dessa ponderação preventiva, é possí-
lher material orgânico do recém nascido, talvez a decisão vel formular parâmetros específicos para orientação do
do STF — isto é, a norma própria ao caso concreto -- fosse aplicador quando ele esteja diante dos casos concretos.
diferente. Evidentemente, o aplicador estará livre para refazer a
ponderação, considerando agora os elementos da hipótese
Uma vez que se proceda a uma ponderação em concre-
real, toda vez que esses parâmetros não se mostrarem per-
to, a solução adotada no caso poderá aprimorar o modelo
feitamente adequados. De toda sorte, caberá ao intérprete
geral formulado pela ponderação em abstrato. Isto é, o mo-
o ônus argumentativo de demonstrar por que o caso por ele
delo geral poderá incorporar os novos dados fáticos que se
examinado é substancialmente distinto das situações-tipo
verificaram no caso concreto, assim como a solução a que
empregadas na ponderação preventiva. Isto é: o juiz deverá
se chegou em função deles, de tal modo que, caso eles se mostrar por que os parâmetros por ela sugeridos — cuja
reproduzam em situação análoga, não será mais necessário legitimidade decorre de haverem sido concebidos e discu-
recorrer à ponderação no caso concreto: a ponderação em tidos publicamente e de serem aceitos racionalmente de
abstrato já será capaz de fornecer o modelo adequado. Por forma geral — não devem ser aplicados à hipótese. O obje-
natural, para que a ponderação em concreto possa alimen- tivo deste tópico era apenas identificar o fenômeno da pon-
tar a ponderação em abstrato de informações é preciso que deração preventiva ou abstrata, destacar suas potencialida-
as soluções adotadas em cada caso possam ser universaliza- des e distingui-lo da ponderação real ou concreta. O tema
das'''. O tema da pretensão de universalidade das decisões específico dos parâmetros é objeto dos próximos capítulos.
já foi examinado no tópico anterior.
Em suma: há, na realidade, dois níveis possíveis de aná-
hse quando se trata de ponderação. É possível, primeira-
mente, percorrer em abstrato ou preventivamente todas as
etapas do processo descrito no capítulo anterior, isto é,
considerar apenas situações-tipo de conflito (imaginadas
e/ou colhidas da experiência) tanto no que diz respeito aos
enunciados envolvidos, como no que toca aos aspectos de
fato. Tudo isso sem que se esteja diante de um caso real. A

219 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não


expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 945: "O modelo
da ponderação de bens, quando os resultados obtidos não se orientarem à
formulação de regras generalizáveis ou a metodologia não for estruturada
segundo standards de controlo constringentes, é totalmente imprevisível
(...) e acentua o subjectivismo e discricionaridade do exercício da justiça
constitucional."
155
154
PARTE III

Nos tópicos anteriores procurou-se conferir melhor or-


dem metodológica à ponderação na qualidade de técnica
hermenêutica. Por isso se tratou das etapas que o intérpre-
te deve percorrer, dos cuidados a tomar e dos elementos a
considerar. Nada obstante isso, e como também já se refe-
riu, a ponderação continua a ser uma técnica vazia de senti-
do material, apenas um instrumento de organização do
pensamento e do processo decisório, o que, embora seja
importante e irti1220, não é suficiente. O objetivo desta ter-
ceira parte do estudo é formular parâmetros juridicamente

220 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica, 2001, p. 224:


"No entanto, a exigência de justificação interna não é vã. No curso da
justificação interna se torna claro quais premissas têm de ser
externamente justificadas. Pressuposições que caso contrário
permaneceriam ocultas têm de ser explicitamente formuladas. Isso
aumenta a possibilidade de reconhecer erros e de criticá-los. Finalmente,
articular regras universais facilita a consistência da tomada de decisão e,
assim, contribui para a justiça e a segurança jurídica."

157
fundamentados que, associados à técnica propriamente
dita, poderão orientar o intérprete em seu ofício'. Antes
de apresentar esses parâmetros, é preciso fazer duas
observações preliminares, expostas nos itens que seguem.

VII. Algumas notas sobre


os parâmetros

VII.!. Parâmetros preferenciais

Antes de propor qualquer espécie de parâmetro para a


ponderação, cabe responder a uma pergunta relevante.
Considerando a importância que os elementos do caso con-
creto têm para a ponderação, e tendo em conta que muitas
vezes as particularidades de cada caso é que vão determinar
sua solução, é possível e/ou útil estabelecer afinal algum
parâmetro? A resposta, já se adianta, é afirmativa, por um
conjunto de razões.
A relação extremamente próxima que há entre a pon-
deração e o caso concreto concentra, ao mesmo tempo, a
221 TORRE, Maximo La. Theories of Legal Argumentation and Concepts força e a fragilidade dessa técnica de decisão jurídica. E sua
of Law. An Approximation, Ratio Juris, vol. 14, n°4, 2002, p. 380: "But força porque, como referido, fornece ao intérprete um ins-
practical reason, the reason that justifies value judgements ar deontic
statements, does not precisely coincide with theoretical reason. This is trumento poderoso, capaz de resolver casos para os quais
because experiential data and logical operations are not enough to supply não há solução pré-fabricada no ordenamento. Por outro
us with indications of preference and guides to action. There is a need for lado, como também já se examinou nos capítulos iniciais,
a further type of premise, for criteria ar normative principies.; e ÁV1LA, não parece compatível com a idéia de Estado de direito ou
Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 86: "E preciso estruturar a com a opção por uma Constituição rígida autorizar que boa
ponderação com a inserção de critérios."
159
158
parte da interpretação e aplicação das disposições constitu- sam ser aplicados à moda da subsunção clássica pelo intér-
cionais (incluindo os direitos fundamentais) seja definida prete ao caso, até por conta da natureza das hipóteses que
em função de juízos exclusivamente pessoais (bem ou mal exigem o emprego da ponderação. Quando um parâmetro
intencionados), puramente casuísticos e que, muitas vezes, normativo formulado em tese puder ser aplicado objetiva-
serão contraditórios entre si. mente, de forma generalizada e sem maiores dificuldades,
Com efeito, se o constituinte originário, para retirar
já não se estará diante de um conflito normativo insuperá-
determinadas matérias do alcance das disputas políticas
vel e a ponderação em abstrato terá sido capaz de resolver
(matérias que idealmente correspondem a um consenso
social básico), impediu que o constituinte derivado pudes- a dificuldade. Mas nem sempre será assim. Repete-se, en-
se aprovar emendas "tendentes a abolir" as cláusulas pé- tão, a pergunta inicial deste tópico: é possível e útil, ainda
treas, dentre as quais os direitos e garantias individuais
neste ponto, construir parâmetros? A resposta continua a
(CF, art. 60, § 4°, IV), conferir ao intérprete o poder de ser afirmativa e as observações que seguem ajudam a escla-
restringir e até mesmo afastar a aplicação de disposições recer o porquê.
constitucionais não parece coerente com o sistema consti- Os modelos que se passa a discutir não pretendem fun-
tucional. Aliás, não há razão alguma para supor que o intér- cionar como elementos rígidos e imutáveis, mas como pre-
prete — e aqui em especial o judicial —, diferentemente ferências ou parâmetros preferenciais'''. Ao modo das
dos demais órgãos do Estado, não tenderia a utilizar pode-
res tão amplos de forma abusiva ou arbitrária222.
Nesse passo, se a ponderação é inevitávelm, por conta 224 PECZENIK, Aleksander. On Lauf and Reason, 1989, p. 80: "One
da complexidade da sociedade contemporânea, da estrutu- may assume that individual situations may be classified into moral Pines.
All situations belonging to such a type are weighed in the same way. We
ra estatal e da própria Constituição, isso não condena os can then say generallv that in the situation of the tvoe Sithe value VI
cidadãos a dependerem cegamente de cada intérprete e de fulfilled to the extent ei precedes the value v2 fulfilled the extent e2; etc.
suas concepções pessoais. Parâmetros — e aqui se estará Under this assumption, a general mie os a general value-statement can
tratando de parâmetros que possam ser juridicamente fun- have a ceteris-oaribus all-things-considered character, in the following
sense: if circumstances remam n unchanged, that is, nothing new and
damentados — não só podem como devem ser buscados
morally relevant happens, then one always ought to follow the mie. Or, if
para balizar e controlar a interpretação jurídica, de modo a ali morally relevant circumstances remam unchanged, then an object of a
assegurar, ao menos, a aplicação isonômica do direito. certain type is good etc." (grifos no original); e ALEXY, Robert. On the
Por outro lado, nem sempre será possível apresentar Structure of Legal Principies, Ratio Juris, vol. 13, n° 3, 2000, p. 297: "The
parâmetros inteiramente objetivos ou definitivos, que pos- collision law expresses the fact that the priority relations between the
principies of a system are not absolute but only conditional or relative.
The task of optimizing is to determine correct conditional priority
222 O axioma da ciência política, pelo qual se registra que o detentor de relations. The fact that a determination of a conditional priority relation
um poder sem controle ou limites tenderá a empregá-lo abusivamente, in accordance with the collision law is always the determinations of a mie
formed on the occasion of the case demonstrates that the respective
continua válido.
leveis of principies and mies are by no means unconnected. To solve a
223 Sobre o ponto, v. os capítulos II e III. case by weighing is to decide by means of a mie that is substantiated by
160
161
presunções, tais parâmetros devem ser observados regular- VII.2. Parâmetros gerais e particulares
mente pelo intérprete. Entretanto, este não estará radical-
mente impedido de afastá-los em um caso concreto, por Afora o caráter preferencial, referido acima, os parâme-
razões"' extremamente particulares que sejam capazes de tros podem ser classificados em dois grupos distintos, e
ilidir a presunção contida nos parâmetros. Nessas circuns- essa é a segunda observação a fazer sobre o tema antes de
tâncias, que muitas vezes veiculam até mesmo situações se dar início ao estudo dos parâmetros propriamente ditos.
inevitáveis de ruptura do sistema, como se verá adiante, o Com efeito, é possível distinguir parâmetros de natureza
intérprete carregará o ônus especialmente reforçado da geral, aplicáveis a qualquer espécie de conflito ou ao menos
motivação. Caberá a ele demonstrar, de forma analítica, o úteis na maioria absoluta deles, e outros de natureza parti-
porquê de se estar afastando de tais parâmetros. cular, que se ocupam de colisões entre disposições especí-
ficas, aos quais inclusive já se fez menção. Explica-se me-
A despeito de seu caráter preferencial e não absoluto, a
lhor.
utilidade desses parâmetros parece evidente: juntamente Nos tópicos anteriores utilizaram-se vários exemplos
com elementos de verificação da racionalidade do discurso envolvendo conflitos normativos específicos (e.g., liberda-
jurídico226, eles são os únicos instrumentos capazes de con- de de imprensa e de informação versus intimidade, vida
trolar em alguma medida as possibilidades quase ilimitadas privada e honra; integridade física versus direito à honra
que a ponderação oferece. O fato de não ser possível ou etc.). De fato, um dos importantes trabalhos da dogmática
adequado formular parâmetros absolutos e inderrogáveis constitucional é exatamente esse: formular parâmetros
não deve impedir a construção e o emprego daqueles que fundamentados que permitam delinear os limites de cada
sejam possíveis e que, na maior parte dos casos, funciona- um dos enunciados constitucionais, especialmente nas
rão apropriadamente. situações em que, com maior freqüência (ou mais previsi-
velmente), eles entrem em confronto uns com os outros. O
estudo em abstrato desses conflitos, como descrito no Ca-
giving priority to the preceding principie. In this respect, principies are pítulo VI, e os parâmetros que venham a ser propostos em
necessarily reasons for rules.".. decorrência dele proporcionarão maior segurança e unifor-
225 Sobre a idéia de "razões", v. HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, midade à interpretação constitucional. Cuida-se aqui, por-
1997, p. 20 e ss.. tanto, de parâmetros particulares, que se relacionam com
226 Alguns desses elementos já foram expostos no texto, corno a conflitos entre enunciados normativos específicos. O últi-
necessidade de os argumentos utilizados serem compartilháveis pela mo capítulo deste estudo voltará a tratar deles.
razão pública e a pretensão de universalidade. A teoria da argumentação
se ocupa do tema especificamente. Sobre o tema, no Brasil, v. MAIA,
Entretanto, ao lado desses parâmetros particulares é
Antônio Carlos Cavalcanti. "Notas sobre direito, argumentação e possível também formular parâmetros gerais. Os parâme-
democracia". In: CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (organizadora). tros gerais decorrem de construções da metodologia jurídi-
1988-1998: uma década de Constituição, 1999; e SOUZA NETO, ca, estão fundados no sistema como um todo e não se ligam
Cláudio Pereira de. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade a qualquer circunstância de fato específica: eles servem de
prática, 2002.

162 163
referência a ser usada pelo aplicador diante de qualquer
conflito.
Nos próximos tópicos se estará discutindo exatament e
a proposta de dois parâmetros gerais, que podem ser des-
critos da seguinte forma: (i) em uma situação de pondera-
ção, regras (constitucionais e infraconstitucionais) devem
ter preferência sobre princípios; e (ii) as normas que atri-
buem ou promovem diretamente direitos fundamentais
dos indivíduos devem ter preferência sobre as que com elas
por acaso se choquem e se liguem à realização desses direi- VIII. Parâmetro geral I:
tos apenas de forma indireta. Em seguida, vai-se igualmen-
te propor um conjunto de elementos capazes de orientar a
Regras têm preferência
construção de parâmetros para conflitos normativos espe- sobre princípios
cíficos (na nomenclatura aqui adotada, parâmetros particu-
lares). A ordem em que os temas são apresentados não é
aleatória: como se verá, os parâmetros particulares que ve-
nham a ser construídos deverão levar em conta os parâme-
tros gerais na seqüência descrita.
O primeiro parâmetro proposto pode ser descrito nos
seguintes termos: diante de uma situação que exija o
emprego da ponderação, as regras (constitucionais e infra-
constitucionais) têm preferência sobre os princípios
(constitucionais e infraconstitucionais). Isso significa, de
forma simples, que diante de um conflito insuperável
pelos métodos tradicionais de interpretação (aqui já in-
cluída a utilização dos princípios de interpretação especi-
ficamente constitucionais e também da interpretação das
regras orientada pelos princípios, dentre outras técnicas
da moderna :hermenêutica constitucional), o princípio
deve ceder, e não a regra, já que esta, como padrão geral,
não deve ser ponderada. Lembre-se que regras e princí-
pios são categorias de enunciados normativos, de modo
que é de enunciados que se está cuidando quando se trata
deste primeiro parâmetro.

164 1.55
O parâmetro que se acaba de propor pode parecer em distinção entre princípios e regras228. Não é preciso descre-
desarmonia com tudo o que recentemente se tem como ver aqui todas as discussões teóricas envolvendo o tema"'
conhecimento assentado acerca dos princípios: sua ascen- e nem seria útil reproduzir os vários critérios que têm sido
dência axiológica em relação às regras e sua centralidade no empregados para extremar as duas espécies de enunciados
sistema'. Como se verá, no entanto, o parâmetro que in- normativos") . Bastam, para os fins aqui pretendidos, dois
dica a preferência das regras sobre os princípios em situa- registros: um sobre a distinção geral entre princípios e re-
ções de conflito não está em desacordo com qualquer des-
ses pressupostos da moderna teoria dos princípios. Muito
ao revés: os fundamentos desse parâmetro preferencial de- 228 Na verdade, embora o tema seja hoje recorrente, a juridicidade dos
princípios é uma conquista recente, mais ainda dos princípios
correm, na verdade, tanto de algumas distinções relevantes constitucionais. V. sobre o tema, SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das
entre princípios e regras, que já se tornaram correntes na normas constitucionais, 1998; e BONAVIDES, Paulo. Curso de direito
doutrina brasileira e estrangeira, quanto dos próprios con- constitucional, 1999, p. 228 e ss..
ceitos de Constituição e democracia. Ainda que de forma 229 Sobre o tema, vejam-se, dentre muitos, BONAV1DES, Paulo. Curso
objetiva, os próximos tópicos cuidam de revisitar essas no- de direito constitucional, 1999, p. 243 e ss.; GRAU, Eros Roberto. A
ordem econômica na Constituição de 1988 — Interpretação e crítica,
ções. 1996, p. 92 e ss.; GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a
interpretação e aplicação do direito, 2002, p. 122 e ss.; BARROSO, Luís
Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 141 e ss.;
VIII]. Fundamentação BARROSO, Luís Roberto. "Fundamentos teóricos e filosóficos do novo
direito constitucional brasileiro (pós-modernidade, teoria crítica e
pós-positivismo)". In: BARROSO, Luís Roberto (organizador). A nova
a) Revendo as distinções relevantes entre princípios, interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações
sua estrutura e diferentes categorias, e regras. privadas, 2003, p. 27 e ss.; COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação
constitucional, 1997, p. 79 e ss.; e ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceito
de princípios constitucionais, 1999. Na doutrina estrangeira, confiram-se
Muito se tem escrito, no Brasil e no exterior, acerca da CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da
Constituição, 1998, p. 1034 e ss.; ALEXY, Robert. Teoria de los derechos
fundamentales, 1997, p. 83 e ss.; e DWORKIN, Ronald. Taking Rights
227 Talvez o registro mais famoso sobre o tema seja o de MELLO, Celso Seriously, 1977, p. 95 e ss..
Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo, 1986, p. 230: 230 VIGO, Rodolfo L.. Los principias jurídicos — perspectiva
"Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, jurisprudencial, 2000, pp. 9 a 20. O autor apresenta um interessante
verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre panorama dos critérios distintivos entre princípios e regras já propostos
diferentes normas (...) Violar um princípio é muito mais grave do que pela doutrina. Pode-se encontrar um apanhado desses critérios também
transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não em BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios
apenas a um especifico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p.
comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, 40 e ss.. Confira-se também, para uma visão crítica de alguns desses
conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência critérios, SANCHIS, Luis Prieto. Sobre principios y normas. Problemas
contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais." dei razonamiento juridico, 1992.

166 167
gras e outro sobre a estrutura própria de parte dos princí- sam, sendo que essa diferença pode ser descrita de modos
pios constitucionais"i. variados. Uma forma bastante simples de apresentar a ques-
Para além de outros critérios distintivos, há algum tão é a seguinte: as regras descrevem comportamentos, sem
consenso acerca do fato de que princípios e regras são se ocupar diretamente dos fins que as condutas descritas pro-
categorias de enunciados"' que têm estrutura diver- curam realizar. Os princípios, ao contrário, estabelecem es-
tados ideais, objetivos a serem alcançados, sem explicita-
231 A razão pela qual se faz referência a apenas "parte dos princípios
constitucionais" é explicitada na nota n° 240.
232 Em sentido diverso, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, compreende a ponderação em sentido amplo, como inerente a toda
p. 26: "Enfim, é justamente porque as normas são construídas pelo interpretação, e não no sentido estrito discutido neste estudo.
intérprete a partir dos dispositivos que não se pode chegar à conclusão de Como se verá na seqüência do texto, não se sustenta aqui que o "tudo
que este ou aquele dispositivo contém uma regra ou um princípio. Essa ou nada" seja um traço identificador das regras e, nesse ponto, a crítica de
qualificação normativa depende de conexões axiológicas que não estão Humberto Ávila é inteiramente procedente. Entretanto, se a classificação
incorporadas ao texto nem a ele pertencem, mas são, antes, construídas principio ou regra é um produto final da interpretação, já não há utilidade
pelo próprio intérprete.". Para o autor, p. 56: "A distinção entre em empregá-la; o objetivo da distinção indicado pelo próprio autor na
categorias normativas, especialmente entre princípios e regras, tem duas transcrição acima — antecipar as características da espécie normativa e
finalidades principais. Em primeiro lugar, visa a antecipar características facilitar o processo de interpretação — parece pressupor, como aqui se
das espécies normativas de modo que o intérprete ou o aplicador possa ter sustenta, que a qualidade de princípio ou regra é própria dos enunciados
facilitado seu processo de interpretação e aplicação do Direito. Em normativos e não o resultado final da interpretação (tendo em conta a
conseqüência disso, a referida distinção busca, em segundo lugar, aliviar, distinção feita neste estudo entre enunciado e norma). Além disso, o
estruturando-o, o ônus de argumentação do aplicador do Direito, na objetivo final da interpretação não é qualificar os diferentes enunciados
medida em que a uma qualificação das espécies normativas permite examinados e sim apurar a norma adequada — cuja estrutura é
minorar — eliminar, jamais — a necessidade de fundamentação, pelo tipicamente a de uma regra, como já se viu — para o caso concreto.
menos indicando o que deve ser justificado. (...) Uma análise mais atenta Quanto ao tema da ponderação de regras, ele será examinado de forma
das referidas distinções entre princípios e regras demonstra que os específica mais adiante.
critérios utilizados pela doutrina muitas vezes manipulam, para a 233 Essa é a concepção forte da distinção entre princípios e regras que se
interpretação abstrata das normas, elementos que só podem ser avaliados tornou majoritária no Brasil. Há autores, porém, que sustentam haver
no plano concreto de aplicação das normas. Ao fazê-lo, elegem critérios apenas uma distinção fraca entre eles, isto é, regras e princípios teriam a
abstratos de distinção que, no entanto, podem não ser — e com mesma estrutura básica, e a diferença estaria apenas na intensidade maior
freqüência não o são — confirmados pela aplicação concreta. Com isso, a ou menor de algumas características. É o caso, entre outros, de
classificação, em vez de aliviar o ônus de argumentação do aplicador do SANCHIS, Luis Prieto. Sobre principios y normas. Problemas dei
Direito, elimina-o." (grifos no original) Ao registrar que só é possível falar razonamiento juridico, 1992, p. 132: "(...) los Ilamados principios no son
de princípio ou regra ao fim da interpretação, o autor parece querer nada sustancialmente distintos a las normas, caracterizándose
desvincular-se do critério de aplicação "tudo ou nada", identificado por simplemente por la posesión de ciertos rasgos (generalidad,
parte da doutrina como um elemento distintivo das regras. E isso para fundamentalidad, etc.) que no se configuran a la manera de todo o nada,
concluir (p. 45) que "as regras também podem ter seu conteúdo sino que se pueden tener, y que de hecho se tienen, en determinada
preliminar de sentido superado por razões contrárias, mediante um medida. Consiguientemente, y desde uma perspectiva positivista, la
processo de ponderação de razões.", exigindo para isso apenas um ônus existencia de los principios plantea los mismos problemas que la
argumentativo maior. Lembre-se, como já referido, que o autor existencia de las normas.".

168 169
rem necessariamente as ações que devem ser praticadas associado a outros) pretende produzir efeitos sobre a reali-
para a obtenção desses fins234. dade. Esses efeitos podem ser relativamente simples —
Embora a descrição acima seja suficiente para explicar impedir que menores de 18 anos trabalhem à noite — ou
boa parte da realidade, há momentos em que ela exigirá complexos — assegurar que a Administração Pública trate
complementação. Por vezes, e.g., além de descrever uma os particulares de forma isonômica. Essa complexidade,
conduta de forma específica, uma mesma regra pode justi- como é fácil perceber, pode decorrer das próprias caracte-
ficar a exigibilidade de outras obrigações. Por conta da ge- rísticas do efeito e/ou da diversidade de circunstâncias de
neralidade de sua formulação e dos diferentes ambientes fato sobre as quais o enunciado incidirá. Seja como for, o
sobre os quais incidem, as regras podem dar origem a dife- efeito pretendido pelo enunciado é o primeiro elemento
rentes normas e, por conseqüência, ensejar condutas diver- importante a ser considerado. O segundo dado fundamen-
sas. O exemplo já referido acerca do direito ao silêncio tal envolve as condutas necessárias para realização desses
conferido ao preso (CF, art. 5', LXIII) ilustra o ponto. efeitos e que podem ser exigidas. Cada conduta que se
Trata-se de regra a partir da qual, além da norma mais identifique como necessária e exigível relativamente a um
evidente, relacionada ao preso, desenvolveu-se uma outra, efeito descreve o conteúdo de uma norma construída a
que conferiu aos depoentes em Comissões Parlamentares partir do enunciado em questão. Feito o esclarecimento
de Inquérito o direito ao silêncio diante das perguntas dos inicial, volta-se ao ponto.
parlamentares. Também quanto aos princípios, a mera afir- As regras são enunciados que estabelecem desde logo
mação de que eles indicam fins sem definição das condutas os efeitos que pretendem produzir no mundo dos fatos,
nem sempre será o bastante. Há hipóteses em que ao me- efeitos determinados e específicos'''. Dependendo da
nos algumas ações necessárias para atingir o fim proposto complexidade do efeito pretendido, a regra pode deman-
podem ser definidas desde logo, ao passo que os fins descri- dar uma única conduta (muitas vezes descrita de forma
tos no enunciado podem apresentar-se determinados ou direta no próprio enunciado), que não sofrerá alteração im-
relativamente indeterminados. portante em decorrência dos diferentes ambientes de fato
Uma outra forma de descrever a distinção entre princí- sobre os quais incidirá, ou condutas diversas, que variam
pios e regras"' depende da compreensão prévia de dois em função dos fatos subjacentes, ainda que o efeito preten-
elementos"'. Todo enunciado normativo (isoladamente ou dido seja sempre o mesmo.
Exemplos ajudam a esclarecer o que se afirma. A regra
que proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos
234 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 56 e ss..
235 Esse mesmo tema foi abordado de forma mais analítica em regras predominantemente a partir de suas características estruturais,
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios embora se recorra, em determinado ponto, a elementos materiais. A
constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, questão será exposta com mais detalhes no texto.
embora no presente estudo novos elementos tenham sido agregados à 237 É importante não confundir a indeterminação dos efeitos com a
discussão. indeterminação de conceitos empregados na descrição da hipótese fática
236 A distinção proposta na seqüência procura diferenciar princípios e utilizada por muitas regras. A esse ponto se voltará adiante.

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menores de dezoito anos pretende produzir um efeito es- o efeito pretendido pela regra encontra-se definido e as
pecífico: nenhum menor de dezoito anos poderá realizar diversas condutas referidas decorrem logicamente dele.
trabalhos noturnos, perigosos ou insalubres, mesmo que Este é um aspecto importante. As complexidades que a
ainda seja necessária uma definição técnica sobre o que é regra enfrenta no percurso entre o enunciado e sua aplica-
perigoso ou insalubre. A conduta óbvia que dela decorre é ção concreta — isto é, entre o efeito determinado descrito
a de que nenhum empregador pode contratar um menor no enunciado e as normas (condutas) necessárias para sua
nessas condições. Situação similar ocorre com a regra que realização — decorrem da natural dificuldade que o direito
afirma que aos sindicatos caberá a defesa, judicial ou extra- em geral enfrenta para disciplinar os fenômenos sociais e
judicial, dos direitos e interesses coletivos ou individuais da são, a rigor, inelimináveis. Para produzir efeitos mais com-
categoria. O efeito pretendido pela regra é o de que o sin- plexos sobre a realidade é necessário impor um conjunto
dicato possa participar de uma demanda judicial, adminis- variado de condutas. Além disso, é impossível prever todas
trativa, ou de qualquer outra natureza, em nome da catego- as circunstâncias de fato que estarão recebendo a incidên-
ria. Nada além disso. Aqui a regra já impõe várias condutas: cia da regra, de modo que, também por conta disso, condu-
o juiz ou o administrador terá de reconhecer a legitimidade tas diferentes poderão ser apuradas a partir de um mesmo
do sindicato. O mesmo se diga da parte contrária na dispu- enunciado normativo.
ta que, caso vencida, estará obrigada a reconhecer o benefí- Esses elementos — efeitos e condutas/normas — e as
cio obtido pelo sindicato relativamente a todos os seus fi- relações entre eles se apresentam de forma diversa quando
liados. se trata de princípios. Como descrito acima, as regras
Já a regra contida no art. 37, XXI, da Constituição, pela enunciam desde logo efeitos determinados e o caminho
qual se impõe que a contratação de obras, serviços, com- que os liga às condutas por eles exigidas pode ser mais ou
pras e alienações com a Administração Pública seja prece- menos longo, mas em todo caso trata-se de um único cami-
dida de licitação, poderá dar a origem a normas e, a foniori, nho. Os princípios, todavia, funcionam diversamente. Para
a condutas bastante diversas. O efeito pretendido aqui é facilitar a exposição sobre os princípios, e tendo em conta
determinado, embora muito mais complexo que nos dois razões estruturais, é possível agrupá-los em duas catego-
exemplos anteriores, recebendo ademais o influxo de ou- rias.
tras regras e princípios. Com fundamento nessa regra, O primeiro grupo congrega os princípios que descre-
como se sabe, a Administração está obrigada, (i) antes de vem efeitos relativamente indeterminados, cujo conteúdo,
qualquer coisa, a licitar, salvo nas hipóteses excluídas por em geral, é a promoção de fins ideais, valores ou metas
lei; (ii) a impor aos interessados apenas as exigências neces- políticas. E essa indeterminação, ainda que relativa, decor-
sárias ao fim por ela pretendido com a licitação; (iii) a não re de a compreensão integral do princípio depender de
adotar cláusulas discriminatórias, de modo que a maior concepções valorativas, filosóficas, morais e/ou de opções
quantidade de interessados possa participar do certame, ideológicas.
etc. O segundo grupo também pretende produzir efeitos
De toda forma, a despeito dessa variedade de condutas, associados a metas valorativas ou políticas, assim como

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acontece com o primeiro, mas os fins aqui descritos são seja dignidade humana, influenciadas por posições religio-
determinados, o que aparentemente os aproximaria das re- sas, filosóficas, políticas, etc. Muito provavelmente, haverá
gras. A dificuldade, porém, é que a identificação das con- opiniões diversas sobre os efeitos da dignidade neste ponto.
dutas necessárias e exigíveis para a realização dos efeitos O mesmo se pode dizer, e.g., do princípio da livre ini-
desses princípios não depende apenas da complexidade do ciativa. Certamente, um dos efeitos que tal enunciado nor-
próprio efeito e/ou da variedade de circunstâncias fáticas mativo pretende produzir é impedir a apropriação estatal
sobre as quais ele incide, como nas regras. Por conta da de todos os meios de produção. Mas teria ele também o
natureza do efeito pretendido, não se trata apenas de em- condão de impedir a existência de monopólios estatais? E
preender um raciocínio lógico-jurídico para apurar as con- empresas públicas explorando atividades econômicas? E o
dutas exigíveis; cuida-se, diversamente, de escolher entre controle de preços por parte do Poder Público? Também
diferentes condutas possíveis a partir de distintas posições nesse particular não há unanimidade. O efeito pretendido
políticas, ideológicas e valorativasm. Se há um caminho não é totalmente definido e sua definição depende de
que liga o efeito às condutas no caso das regras, há uma avaliações que não são propriamente jurídicas.
variedade de caminhos que podem ligar o efeito do princí- Fenômeno semelhante se passa quando, embora o efei-
pio a diferentes condutas, sendo que o critério que vai de- to pretendido pelo princípio sobre o mundo dos fatos seja
finir qual dos caminhos escolher não é exclusivamente jurí- perfeitamente definido, há uma multiplicidade de condu-
dico ou lógico. tas em tese possíveis e adequadas para atingi-lo, sem que a
Alguns exemplos ajudam a esclarecer o que se acaba de Constituição tenha optado por qualquer uma delas239. O
expor. Tome-se, em primeiro lugar, o princípio da dignida- enunciado constitucional que determina à ordem econômi-
de da pessoa humana: que efeitos ele pretende produzir? O ca a busca do pleno emprego apresenta um exemplo dessa
que ele significa? Ora, que as pessoas tenham uma vida característica. Não há propriamente indeterminação no
digna. Sem maiores dificuldades, é possível concluir que que toca aos efeitos pretendidos pelo dispositivo: seu claro
matar indiscriminadamente as pessoas viola a dignidade e, propósito é que todos tenham emprego. É essa alteração
portanto, impedir tal espécie de ação e assegurar a vida é que ele deseja produzir no mundo dos fatos. Porém, esse
um dos efeitos pretendidos por esse princípio. Mas que se resultado pode, em tese, ser alcançado de várias manei-
dirá da pena de morte, da eutanásia e do aborto, para ficar ras240 .
apenas no aspecto 'vida' da dignidade? Muitas vezes os de-
fensores e detratores de algumas dessas políticas fundam- 239 Essa é a fórmula usada, em geral, para descrever as chamadas normas
se, em última análise, em concepções diferentes do que programáticas que, nada obstante, estruturalmente consideradas, nada
mais são do que espécies de princípios.
240 ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a
238 Os dois grupos não são estanques evidentemente. Princípios cujos redefinição do dever de proporcionalidade, Revista da Pós-Graduação da
efeitos são relativamente indeterminados também podem depender de Faculdade de Direito da USP vol. 1, 1999, p. 43: "Essas considerações
decisões políticas ou valorativas para a definição das condutas necessárias levam à seguinte conclusão: tanto as normas de conduta [regras] quanto
à realização de seus efeitos (ainda que a parte determinada deles). aquelas que estabelecem fins [princípios] possuem a conduta como

174 175
Uns dirão que a melhor forma de atingi-lo é a abertura que se passa com algumas regras. Em relação a elas, a varie-
de frentes de trabalho pelo Estado; outros, que é o incenti- dade de condutas exigíveis decorre da necessidade, própria
vo a pequenas e médias empresas; outros, que é o aparelha- do direito em geral, de ajuste entre o efeito previsto no
mento da infra-estrutura, que atrairá as empresas que, por enunciado e a complexidade das situações de fato que ele
sua vez, gerarão empregos. Outros ainda dirão que o Estado pretende regular ou sobre as quais vai incidir242.
deve investir em turismo. Ainda que o fim seja bastante Registradas as diferenças fundamentais entre princí-
preciso, o fato é que há meios variados para alcançá-lo em pios e regras, cabe um último registro acerca da indetermi-
função das diferentes opções político-ideológicas que po- nação que, a rigor, caracteriza as duas categorias de princí-
dem ser adotadas. O mesmo raciocínio se pode aplicar,
e.g., em relação aos enunciados que propugnam a redução
da desigualdade regional, a erradicação da pobreza, o in- da moralidade, da eficiência, da impessoalidade e da isonomia (em
sentido formal). O efeito que esses enunciados pretendem produzir não
centivo estatal à pesquisa e tecnologia etc. O dispositivo depende de novas decisões valorativas ou políticas e a indeterminaçáo que
não escolhe o meio. os caracteriza decorre na realidade da multiplicidade de situações sobre as
Os dois grupos de princípios que se acaba de descrever quais o enunciado vai incidir. Nesse ponto, aliás, é preciso reconhecer
têm sua indefinição — no primeiro caso, indefinição de que, embora a distinção forte entre princípios e regras seja extremamente
efeitos, e, no segundo, das condutas — associada a disputas útil na maioria dos casos, há hipóteses em que os fenômenos se
aproximam de tal forma que as discussões sobre o tema têm pouca valia.
entre valores diversos, concepções morais e filosóficas e/ou Anotam esse ponto, V. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos
diferentes opções político-ideológicas, sendo que, repita- fundamentais não expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, pp.
se, a escolha entre esses elementos não decorre de um juízo 344 e 345 e 350 e ss.; AARNIO, Aulis. Reason and Authority, 1997, p.
puramente jurídico"' . Esse quadro é bastante diverso do 174 e ss.; SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación
constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los
conflictos de derechos, 2000, p. 59; e CIANCIARDO, Juan. Principios y
objeto. A única diferença é o grau de determinação quanto à conduta regias: una aproximación desde los criterios de distinción, Boletín
devida: nas normas finalísticas, a conduta devida é aquela adequada à Mexicano de Derecho Comparado, nueva serie, afio >0=1, n° 108,
realização dos fins; nas normas de conduta, há previsão direta da conduta 2003, pp. 891 a 906.
devida, sem ligação direta com fins." (grifo no original) Artigo também 242 Como se pode perceber, a distinção entre princípios e regras
publicado na Revista de Direito Administrativo n°215, 1999, pp. 151 a apresentada no texto conjuga um critério estrutural (a determinação dos
179. efeitos e/ou a multiplicidade de meios para atingi-los) com um critério
241 A distinção descrita no texto entre princípios e regras é forte, isto é, material: a circunstância de a determinação dos efeitos e/ou dos meios
decorre de uma diferença essencial entre eles e não apenas de grau ou para atingi-los depender ou não de decisões de natureza política,
intensidade relativamente a características comuns aos dois tipos de ideológica ou valorativa. Em estudo anterior (A eficácia jurídica dos
enunciados. Nada obstante, é possível agrupar em uma terceira categoria princípios constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana,
enunciados que a doutrina em geral identifica como princípios mas que, 2002) desenvolvemos apenas o critério estrutural que, no entanto, parece
na verdade, apresentam estrutura muito mais próxima das regras e delas agora insuficiente. Nesse sentido, portanto, procedente a crítica
se diferenciam por conta da intensidade de determinadas características. formulada por SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e regras: mitos e
Trata-se daqueles princípios que pretendem impor determinadas equívocos acerca de uma distinção, Revista latino-Americana de Estudos
qualidades ou virtudes a atos jurídicos, como, e.g., os chamados princípios Constitucionais n° 1, 2003, p. 623 e ss..

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pios referidas acima. Ao longo do texto, e até aqui, falou-se pas (chão, mesas e bancadas), ao passo que o interior dos
sempre de efeitos relativamente (e não completamente) in- eletrodomésticos (fogão, geladeira e microondas) não so-
determinados, e o mesmo acontece com as condutas243 . E freu qualquer intervenção. Insatisfeito, o empregador pas-
isso porque, a despeito de todas as indeterminações, é pos- sa a entregar ao empregado uma lista de atividades especi-
sível afirmar, com freqüência, que certos efeitos estão con- ficas a serem desempenhadas ao longo do dia, na qual inclui
tidos de forma inexorável na descrição do princípio, até por a limpeza interna dos três eletrodomésticos referidos, ob-
força de uma imposição lingüística, já que toda expressão tendo, assim, o resultado desejado.
haverá de ter um sentido mínimo. Esse conjunto de efeitos Na primeira situação descrita, como é fácil perceber, o
forma um núcleo essencial de sentido do princípio, com empregador veiculou sua ordem por meio de um princípio,
natureza de regra, uma vez que se trata agora de um con- ao passo que, no segundo caso, utilizou-se de regras especi-
junto de efeitos determinados. Igualmente, muitas vezes ficas. É interessante notar que as percepções dos dois indi-
será possível afirmar que certas condutas são absolutamen- víduos acerca do que se pretendia com a ordem e das con-
te indispensáveis para a realização do fim indicado pelo dutas necessárias para atingir esse fim (a limpeza da cozi-
princípio. nha) eram diversas, embora apresentassem um núcleo co-
Observe-se urna questão importante. Quando se afirma mum (a limpeza das superfícies).
que é possível identificar um núcleo com natureza de regra Dito de forma direta, as duas categorias de princípios
nos princípios (seja de efeitos determinados, seja de con- podem ter sua estrutura descrita como dois círculos con-
dutas indispensáveis à realização de efeitos), já não se está cêntricos. O círculo interior corresponderá — quanto ao
primeiro grupo de princípios — a um núcleo de efeitos que
trabalhando no plano dos enunciados normativos originais.
acabam tornando-se determinados por decorrerem de for-
Esse núcleo — e, a fortiori, essas regras — é apurado após
ma inafastável do seu sentido e, conseqüentemente, adqui-
um processo de interpretação e, se necessário, de pondera-
rem a natureza de regra. Isto é: cuida-se de um conjunto
ção abstrata ou preventiva244.
mínimo de efeitos determinados (e a partir deles as condu-
Um último exemplo: um empregado doméstico recebe
tas necessárias e exigíveis deverão ser construídas) conti-
de seu empregador a ordem de limpar a cozinha de uma
dos no princípio. Ainda que haja disputa sobre a existência
residência ao longo de um determinado dia. Ao fim do dia,
de outros efeitos a partir desse núcleo, a idéia é a de que
o empregador verifica que apenas as superfícies foram lim-
quanto a estes haverá consenso. O espaço intermediário
entre o círculo interno e o externo (a coroa circular) será o
espaço de expansão do principio reservado à deliberação
243 A partir deste momento a distinção entre as duas categorias de
princípios já não terá maior relevância. democrática; esta é que definirá o sentido, dentre os vários
244 Sobre o tema da ponderação abstrata ou preventiva, veja-se o possíveis em uma sociedade pluralista, a ser atribuído ao
Capítulo VI. Sobre o núcleo do princípio da dignidade humana princípio a partir de seu núcleo.
relativamente a prestações materiais v. BARCELLOS, Ana Paula de. A O mesmo pode ocorrer com a segunda categoria de
eficácia jurídica dos princípios constitucionais — O principio da princípios. Embora a definição das condutas necessárias
dignidade da pessoa humana, 2002.

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para realizar o efeito normativo dependa de avaliações po- dução de efeitos determinados, de maneira que a não veri-
líticas, em muitos casos será possível identificar condutas ficação desses efeitos importa violação das mesmas. Trata-
básicas indispensáveis para a realização do efeito indicado se em geral de estruturas subsuntivas que, em um Estado
pelo princípio, independentemente de colorações ideológi- de direito, devem ser observadas. Não é preciso alongar-se
cas. Desse modo, a imagem de dois círculos concêntricos neste ponto.
também aqui pode ser empregada de forma útil: o círculo A situação não será tão rígida quando se trate de princí-
interior ocupado por condutas mínimas, elementares, e pios, e em particular da área não nuclear deles. Como se
exigíveis e o exterior a ser preenchido pela deliberação de- viu, a partir de seu núcleo, os princípios vão admitir uma
mocrática245. A estrutura que se acaba de descrever revela realização mais ou menos ampla, dependendo da concep-
um dado da maior importância, descrito a seguir. Os prin- ção valorativa ou política que venha a prevalecer na defini-
cípios em questão operam na realidade de duas formas dis-
ção do seu sentido e das condutas que se considerem ne-
tintas: relativamente ao seu núcleo, funcionam como regras
cessárias e exigíveis para realizá-lo. Se é assim, parece evi-
e, apenas em relação a sua área não nuclear, funcionam
dente que diante de um conflito aparentemente insuperá-
como princípios propriamente ditos.
Feita essa longa exposição sobre as diferenças entre re- vel entre uma regra (aqui incluindo-se o núcleo dos princí-
gras e princípios e sobre a estrutura destes últimos, cabe pios aos quais se possa atribuir natureza de regra) e a área
perguntar: qual a relação entre o que se acaba de descrever não nuclear de um princípio246 a regra deverá ter prefe-
e a ponderação, sobretudo tendo em conta o parâmetro da rência.
preferência das regras, anunciado logo de início? A questão Nesse mesmo sentido, como já se tornou corrente, é a
não é complexa. Como visto, as regras determinam a pro- conclusão de Ronald Dworkin e Robert A1exy247, ainda que
a distinção entre princípios e regras por eles proposta não
seja exatamente a que se acaba de descrever. Na concepção
245 A identificação do núcleo será em geral mais fácil — aqui já migrando
para um exame do conteúdo dos enunciados — quando se trate de desses autores, as regras têm estrutura biunívoca, aplican-
princípios que consagram direitos. Princípios que estabelecem metas ou do-se de acordo com o modelo do "tudo ou nada"248. Isto é,
fins públicos de natureza geral sofrem muito maior influência de
concepções políticas diversas que os direitos, cuja existência lógica
independe, em geral, do Direito. V. NOVAIS, Jorge Reis. As restrições
aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela 246 Na verdade, como se verá adiante, o conflito se dará entre a regra e
uma norma construída pelo intérprete a partir da área não nuclear do
Constituição, 2003, pp. 162 e 163. Em qualquer caso, o ideal é que os
efeitos e condutas identificados no núcleo dos princípios possam ser princípio.
exigidos diretamente, como acontece com a maior parte das regras, uma 247 Para uma visão crítica da distinção elaborada por Alexy entre
vez que a estrutura normativa será equivalente (eficácia positiva ou princípios e regras v. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p.
simétrica). Nada obstante, a questão da eficácia jurídica dos princípios 35 e ss..
envolve outros desdobramentos que não podem ser aprofundados aqui. 248 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, 1977, pp. 24 a 26:
Sobre o tema, v. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos "The difference between legal principies and legal rules is a logical
princípios constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, distinction. Both sets of standards point to particular decisions about legal
2002. obligation in particular circumstances, but they differ in the character of

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dado seu substrato fático típico, as regras só admitem duas senvolvendo esse critério de distinção, Alexy chama as re-
espécies de situação: ou são válidas é incidem ou não inci- gras de comandos de definição e os princípios, de coman-
dem por inválidas249. Juridicamente, uma regra vale ou não dos de otimização251 . Por isso mesmo, na hipótese de coli-
vale. Não se admitem gradações. são, as regras terão preferência sobre os .princípios252.
Ao contrário das regras, os princípios determinam que Seja como for, a repercussão para o processo pondera-
algo seja realizado na maior medida possível, admitindo tivo de tudo o que se acaba de descrever é simples: tendo-
uma aplicação mais ou menos ampla de acordo com as pos- se em conta a estrutura dos enunciados normativos, as re-
sibilidades físicas e jurídicas existentes. Esses limites jurí- gras não são concebidas para serem ponderadas, pois a pon-
dicos, que podem restringir a otimização de um princípio, deração significará no mais das vezes sua não aplicação, a
são (i) regras que o excepcionam em algum ponto e (ii) negativa de sua vigência. Em geral, não é possível aplicar
outros princípios opostos que procuram igualmente maxi- mais ou menos uma regram; ou seus efeitos determinados
mizar-se, daí a necessidade eventual de ponderá-los"°. De_ verificam-se ou não. Com os princípios, tudo é diferente

the direction they give. Rules are applicable in an ai!-or-nothing fashion.


If the facts a rule stipulates are given, then either the mie is valid, in ponderados. Los derechos que se basan en principios son derechos prima
which case the answer it supplies must be accepted, or it is not, in which facie.". Confira-se sobre o tema: SCHOLLER, Heinrich. O principio da
case it contributes nothing to the decision. (...) Of course, a mie may have proporcionalidade no direito constitucional e administrativo da
exceptions (...) However, an accurate statement of the mie would take Alemanha, Revista Interesse Público n° 2, 1999, p. 93 e ss.,
this exception into account, and any that did not would be incomplete. SARMENTO, Daniel. "Os princípios constitucionais e a ponderação de
(...) But this is not the way the sample principies in the quotations bens". In: TORRES, Ricardo Lobo (organizador). Teoria dos direitos
operate. Even those which look most like rules do not set out legal fundamentais, 1999, p. 35 e ss..
consequences that follow automatically when the conditions provided 251 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 86.
are met. (...) This first difference between mies and principies entails Boa parte da doutrina brasileira tem trabalhado com esse critério
another. Principies have a dimension that mies do not — the dimension distintivo. V. STUMM, Raquel Denize. Principio da proporcionalidade
of weight or importance. When principies intersect (...), one who must no direito constitucional brasileiro, 1995, p. 42; e PIMENTA, Patilo
resolve the conflict has to take into account the relative weight of each." Roberto Lyrio. Eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais
249 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, 1997, p. 88. programáticas, 1999, p. 121 e ss.
V. também BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da 252 Em sentido diverso, GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a
Constituição, 2003. interpretação e aplicação do direito, 2002, p. 174 e ss., pois na concepção
250 ALEXY, Robert. Derechos, razonamiento jurídico e discurso do autor não há antinomia entre princípios e regras, mas apenas entre
racional, Revista Isonomia n° 1, 1994, p. 41: "Los derechos que se basan princípios.
en regias son derechos definitivos. Los principios son normas de un tipo 253 A afirmação não deve ser compreendida de forma rígida, já que
completamente distinto. Estos ordenan optimizar. Como tales, son também as regras estão submetidas à interpretação e, muitas vezes, será
normas que ordenan que algo debe hacerse en la mayor medida fáctica y possível fixar um sentido mais ou menos amplo para a regra, e até mesmo
juridicamente posible. Las posibilidades jurídicas, además de depender evitar colisões com outros enunciados, por meio de técnicas
de regias, están esencial mente determinadas por otros principios hermenêuticas convencionais. O ponto será retomado nos tópicos
opuestos, hecho que implica que los principios pueden y deben ser seguintes.

182 183
(lembrando sempre que, ao se falar de princípios, é preciso b) Revendo as diferentes funções de princípios e regras
distinguir seu núcleo, que na verdade tem natureza de re-
gra, e sua área não nuclear, que tem natureza de princípio A diferença estrutural de princípios e regras descrita no
propriamente dito). O princípio pode ser, como referido tópico anterior não serve apenas de deleite para os teóricos
por Alexy, não só mais ou menos intensamente adimplido, e nem constitui mero capricho do legislador, que poderá
mas também adimplido de formas variadas. Admite-se escolher, em cada caso, uma fórmula ou outra (regra ou
aqui, logicamente, compressões recíprocas, nos termos da princípio) para veicular suas intenções. Há funções e pro-
ponderação254. pósitos substanciais associados a essas diferentes estrutu-
Esse é, portanto, o fundamento lógico para o primeiro ras; na realidade, funções gerais do sistema jurídico como
parâmetro preferencial proposto para a ponderação o de um todo e funções particulares, próprias da ordem consti-
que as regras têm preferência sobre os princípios255, já que tucional256.
a estrutura daquelas não é adequada, logicamente, para so- Há amplo consenso de que a ordem jurídica é uma fun-
frer ponderações. A preferência das regras na hipótese de- ção de dois valores principais interdependentes: de um
corre também de outro fundamento, intimamente relacio- lado, a segurança, a previsibilidade e a estabilidade das rela-
nado com este primeiro, mas de natureza substancial. Ele ções sociais e, de outro, a justiça25'. Ambos contribuem
será o tema do próximo tópico. direta ou indiretamente para o bem-estar humano, para a
proteção e promoção de sua dignidade e para a criação de
condições que permitam o seu pleno desenvolvimento.
Um sistema que supervaloriza a segurança pode tornar-se
254 Como a distinção entre regras e princípios, para Alexy, encontra-se iníquo e desconectar-se das legítimas expectativas de justi-
na sua forma de aplicação, ao defrontar-se com o problema da colisão de
ça. Por outro lado, uma ordem jurídica que despreza a se-
direitos fundamentais o autor sustenta que apenas uma teoria que
visualize os direitos fundamentais como princípios é capaz de gurança acaba por instituir um ambiente de imprevisão e
solucioná-lo. V. ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e incerteza que dificulta as relações sociais e o desenvolvi-
realização de direitos fundamentais no estado de direito democrático, mento pessoal dos indivíduos. Não há novidade neste -par-
Revista de Direito Administrativo n° 217, 1999, p. 79: "A teoria dos
princípios é capaz não só de estruturar racionalmente a solução de colisões
ticular.
de direitos fundamentais. Ela tem ainda uma outra qualidade que, para os Além disso, quanto maior for a possibilidade, autoriza-
problemas teórico-constitucionais que devem aqui ser considerados, é de
grande significado. Ela possibilita um meio-termo entre vinculação e
flexibilidade. A teoria das regras conhece somente a alternativa: validez 256 Vale observar que, no caso da atividade legislativa, a opção entre
ou não-validez.". Uma distinção estrutural entre as espécies normativas princípio ou regra pode estar relacionada também com a maior ou menor
(regra e princípio) e também a percepção de suas diferentes funções não concretização que se pretende atribuir a algum dispositivo constitucional.
admitem a simplicidade da solução de Alexy. Nesse ponto, uma disciplina infraconstitucional insuficiente pode
255 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não inclusive ser objeto de controle de constitucionalide por omissão parcial.
expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 332 e ss.. 257 LARENZ, Karl. Derecho justo, 1985, p. 42 e ss.

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da pelo sistema, de realizar justiça no caso concreto, maior pios são espécies normativas que se ligam de modo mais
liberdade será conferida ao aplicador, crescendo na mesma direto à idéia de justiça ou, ao menos, são instrumentos
proporção o risco de arbítrio e a ameaça para a isonomia, já mais capazes de produzir justiça no caso concreto.
que mais facilmente se produzirão julgamentos desiguais Assim, como esquema geral, é possível dizer que a es-
para casos idênticos. Por outro lado, negar ao intérprete trutura das regras facilita a realização do valor segurança,
qualquer espaço de adaptação ao caso pode inviabilizar sua ao passo que os princípios oferecem melhores condições
atuação, em especial diante de realidades intensamente para que a justiça possa ser alcançada. Esse modelo é natu-
mutáveis como as contemporâneas, em que é simplesmen- ralmente simplificador, já que há princípios que propug-
te impossível regular as novas questões no mesmo ritmo nam exatamente, dentre outros, o valor segurança — como
em que elas surgem e são levadas ao Judiciário. Em suma: a o princípio da legalidade—, da mesma forma que inúmeras
harmonia de um sistema jurídico reside no equilíbrio efi- regras são, na verdade, a cristalização de soluções requeri-
ciente entre segurança e justiça. das por exigências de justiça. Tudo isso, porém, não afasta
Princípios e regras desempenham cada qual um papel a utilidade do modelo para esclarecer uma parcela da reali-
diferenciado, porém da maior importância para manter dade.
esse equilíbrio. Com efeito, é possível identificar uma rela- Ora, se as regras respondem pela segurança e os princí-
ção, no âmbito do sistema romano-germânico ocidental, pios pela justiça, conclui-se que, quanto mais regras houver
entre a segurança, a estabilidade e a previsibilidade e as no sistema, mais seguro, isto é, mais previsível, mais estável
regras jurídicas. Isso porque, na medida em que veiculam ele será; porém, mais dificilmente ele será capaz de adap-
efeitos determinados, pretendidos pelo legislador de forma tar-se a situações novas. Por outro lado, quanto mais prin-
específica, as regras contribuem para a maior previsibilida- cípios existirem, maior será o seu grau de flexibilidade e
de do sistema jurídico258. sua capacidade de acomodar e solucionar situações impre-
A justiça, por sua vez, depende em geral de disposições vistas. No mesmo passo, porém, também crescerão a inse-
mais flexíveis, à maneira dos princípios, que permitam uma gurança, em decorrência da imprevisibilidade das soluções
adaptação mais livre às infinitas possibilidades do caso con- aventadas, e a falta de uniformidade de tais soluções, com
creto e que sejam capazes de conferir ao intérprete liberda- prejuízos evidentes para a isonomia. Repete-se, portanto, o
de de adaptar o sentido geral do efeito pretendido, muitas que parece bastante óbvio: uma quantidade equilibrada e
vezes impreciso e indeterminado, às peculiaridades da hi- apropriada de princípios e regras produzirá um sistema ju-
pótese examinada'''. Nesse contexto, portanto, os princí- rídico ideal, no qual haverá segurança e justiça suficientes.
Naturalmente, o equilíbrio do sistema jurídico não de-
pende apenas da existência adequada de princípios e re-
258 Nos sistemas de common law, ao lado das hoje cada vez mais gras; é preciso também que eles funcionem e sejam mani-
freqüentes leis positivas, muitas das quais empregando regras. a pulados pelos operadores jurídicos dentro de suas caracte-
estabilidade e a segurança decorrem também da regra do precedente rísticas próprias. Isto significa, portanto, que, como padrão
judicial. geral, as regras não foram concebidas para serem pondera-
259 Inclusive contribuindo para a interpretação das próprias regras.
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186
das. Com efeito, a ponderação corriqueira de regras fragili- condições para o desenvolvimento do pluralismo político,
zaria a própria estrutura do Estado de direito; pouco vale- de modo que o povo, em cada momento histórico, possa
riam as decisões do Poder Legislativo se cada aplicação de fazer as escolhas que entender por bem2€1 .
um enunciado normativo se transformasse em um novo Esse equilíbrio — consenso mínimo versus pluralismo
processo legislativo, no qual o aplicador passasse a avaliar,
político — guarda uma relação muito próxima com a estru-
novamente, todas as conveniências e interesses envolvidos
tura de princípios e regras observada acima. As regras cons-
na questão, bem como todos os princípios pertinentes26°
titucionais — aí incluído, lembre-se, o núcleo dos princí-
para, ao fim, definir o comportamento desejável. A situa-
ção oposta se coloca quando não se reconhece aos princí- pios — respondem em geral pelas decisões associadas
àquele consenso mínimo262 . Através delas, o poder consti-
pios capacidade de produzir qualquer efeito, o que acarreta
acentuado desequilíbrio em detrimento dos elementos de tuinte procura estabelecer desde logo condutas determina-
justiça. Afora essa relação geral entre princípios e justiça e das, específicas. Os princípios, diversamente, estabelecem
entre regras e estabilidade/segurança, comum a todo o sis- fins gerais a serem alcançados que, para além de seu nú-
tema jurídico, é possível visualizar outra relação de nature- cleo, poderão ser preenchidos de sentido e delineados sob
za substancial, mais específica, própria do ambiente consti- formas diversas em função das diferentes concepções do
tucional. intérprete.
Uma Constituição rígida e democrática procura reali- Em uma democracia, é natural que apenas um sentido
zar ao menos dois propósitos gerais: (i) estabelecer deter- mínimo de determinado princípio seja definido constitu-
minados consensos mínimos e colocá-los a salvo (ou prote- cionalmente — e, portanto, seja oponível a qualquer grupo
gê-los) das deliberações majoritárias; e (ii) preservar as que venha a exercer o poder político —; o restante da ex-
tensão possível do princípio deverá ser preenchido pela de-
liberação majoritária, em função da convicção das maiorias
260 HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997, pp. 170 e 171: "Rules em cada momento político: e nesse ponto ter-se-á, em es-
of law are often the result of a legislative decision making process, in pecial, as regras infraconstitucionais. Isto é: esse espaço de
which a number of reasons, based on policies, goals, values, interests,
principies etc. are weighed to achieve a balanced result. In many of the expansão do princípio fica reservado, pela Carta, à defini-
cases to which these rules of law can be applied, the underlying goals, ção pelos meios próprios da deliberação democrática em
principies etc. would also be relevant for the legal consequences of the um ambiente de pluralismo político. Em suma: caberá ao
case, had their application not been excluded by the applicability of the Legislativo e ao Executivo, no exercício de suas competên-
legal rule. The reasons generated by the rule replace the reasons
generated by the goals and principies that underlie that mie. The role of
the goals and principies was confined to their influence on the drafting of 261 MELLO, Cláudio Ari. Democracia constitucional e direitos
the mie. That is why I called the reasons, generated by a tule, replacing fundamentais, 2004.
reasons. Similarly, the legal mie can be said to replace its underlying goals 262 Fica a ressalva de que em Constituições compromissorias e
and principies. (...) This means that if a mie replaces a principie, the
elaboradas em um ambiente sujeito a pressões corporativas não é
applicability of the mie to a case excludes the application of the principie
incomum encontrarem-se regras que em nada se relacionam com a idéia
to this case." de consenso mínimo exposta no texto.

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189
cias constitucionais, formularem as opções que darão con- ses efeitos ou, ainda, que o Legislativo e/ou o Executivo
teúdo aos princípios para além de seu núcleo"'. estejam livres para formular quaisquer opções sob o pre-
O reflexo do que se acaba de expor sobre o estudo da texto de estarem disciplinando a área não nuclear de um
ponderação reforça o parâmetro proposto inicialmente: as princípio constitucional. Como se sabe, aos princípios, em
regras (constitucionais e infraconstitucionais) devem ter toda a sua extensão, se reconhecem as modalidades de efi-
preferência sobre os princípios. Isto é: em uma situação de cácia interpretativa, negativa e, quando seja o caso, vedati-
conflito inevitável, a regra deve ser preservada e o princípio va do retrocesso264. Também não está afastado o conheci-
comprimido, e não o oposto.
Ao se afastar uma regra sob o fundamento de que ela se 264 Por eficácia negativa se designa a possibilidade de exigir que atos e
oporia a alguma conduta derivada da área não nuclear de decisões contrárias aos efeitos pretendidos pelo princípio (isto é: que se
encontrem fora do campo de atuação legítimo traçado por ele) sejam
um princípio, incorre-se em um conjunto de distorções.
considerados inválidos. A vedação do retrocesso é uma aplicação
Em primeiro lugar, caso se trate de uma regra infraconsti- especifica da eficácia negativa às hipóteses em que a revogação das
tucional, o intérprete estará conferindo à sua concepção disposições que regulamentam o exercício de direitos fundamentais
pessoal acerca do melhor desenvolvimento do princípio torna-os inaplicáveis, configurando uma ação inconstitucional. Com
maior importância do que à concepção majoritária, apurada fundamento na eficácia interpretativa, por sua vez, é possível exigir que,
dentre as interpretações possíveis dos enunciados, o Judiciário adote
pelos Órgãos legitimados para tanto. A situação é ainda mais aquela que melhor contribui para a realização dos princípios. V. sobre o
grave se a regra envolvida consta da Constituição. Nesse tema geral da eficácia jurídica dos princípios, MIRANDA, Jorge. Manual
caso, o intérprete estará afastando a incidência de uma re- de direito constitucional, vol. 11, 1990, p. 220 e ss.; BIDART CAMPOS,
gra elaborada pelo poder constituinte originário e que, German J.. La interpretacion y el control constitucionales eu la
juriscliccion constitucional, 1987, p. 238 e ss.; SILVA, José Afonso da.
como padrão, veicula consensos básicos do Estado organi- Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998; BARROSO, Luís
zado pela Constituição. Por fim, como a solução do caso Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2003, p.
baseou-se na percepção individual do intérprete, muito 113 e ss.; e BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios
freqüentemente ela não se repetirá em circunstâncias idên- constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p.
66 e ss.. Sobre a vedação do retrocesso, em particular, v. VIEIRA DE
ticas, ensejando violações do princípio da isonomia. ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição
O que se acaba de expor não significa que a área não portuguesa de 1976, 1998, pp. 307 e 308; SILVA, José Afonso da.
nuclear dos princípios não pretenda produzir efeito algum Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998, p. 158 e ss.; SARLET,
e que nenhuma conduta possa ser exigida para realizar es- Ingo Wolfgang. "A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica:
dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de
retrocesso social no direito constitucional brasileiro". In: ROCHA,
263 Naturalmente que o que se acaba de descrever produz uma
Carmen Lúcia Antunes (organizadora). Constituição e segurança
dificuldade que será preciso enfrentar: trata-se de definir, em relação a jurídica.- direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada — estudos
cada princípio ao qual a distinção seja aplicável, o que corresponde ao em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence, 2004, pp. 85 a 135;
núcleo, e portanto tem natureza de regra, e o que diz respeito à sua área MENDONÇA, José Vicente Santos de. Vedação do retrocesso: o que é e
não nuclear, em relação à qual vale o que se expôs acima acerca da como perder o medo, Revista da Associação dos Procuradores do Novo
estrutura dos princípios. Estado do Rio de Janeiro, vol. XII — Direitos Fundamentais, 2004, pp.

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mento, já consolidado, de que a interpretação das regras Em suma: seja porque essa é a conseqüência natural das
(constitucionais e infraconstitucionais) deve ser informada diferenças estruturais entre princípios e regras, seja por-
pelos princípios. Lembre-se, porém, que o objeto deste es- que, considerando o contexto constitucional, as duas espé-
tudo — a técnica de ponderação — só entra em cena quan- cies de enunciados desempenham funções diferentes, o
do o conflito normativo não pode ser superado por nenhum
primeiro parâmetro que deve orientara ponderação é o de
desses recursos da teoria constitucional moderna.
que as regras devem ter preferência em face dos princípios.
Na verdade, retomando a imagem dos princípios como
Assim, diante de um conflito insuperável entre regra e
círculos concêntricos, que ocupam grandes áreas, porém
princípio que demande a ponderação dos enunciados em
de maneira difusa e com pouca densidade (com exceção de
choque, a regra constitucional (aqui incluído) repita-se, o
seu próprio núcleo), as regras podem ser visualizadas corno
pontos de alta densidade espalhados por toda essa superfí- núcleo dos princípios) deve ser preservada e o princípio,
cie. Os princípios, para além de seu núcleo, estabelecem as comprimido.
fronteiras de um largo campo de atuação possível, dentro O funcionamento desse parâmetro, aplicado a um con-
de cujos limites as opções políticas podem ser consideradas flito entre um princípio constitucional e uma regra infra-
legítimas. As regras correspondem exatamente a decisões constitucional, pode ser observado na Ação Direta de In-
políticas específicas, de efeitos determinados, já tomadas constitucionalidade n°223, julgada pelo Supremo Tribunal
no interior de tais fronteiras265. Federal. As características do caso eram as seguintes. No
pacote jurídico que acompanhou o Plano Collor foi editada
a Medida Provisória n° 173, de 18.03.1990, que vedava a
205 a 236; e BAPTISTA, Felipe Derbli de Carvalho. A Constituição de concessão de liminar em mandados de segurança e em a-
1988 e o princípio da proibição do retrocesso social: uma investigação dos
limites à atividade legislativa, ainda mimeografada, 2004.
ções ordinárias e cautelares decorrentes de um conjunto de
265 LEITE, George Salomão e LEITE, Glauco Salomão. "A abertura da
10 (dez) outras medidas provisórias256, bem como proibia a
Constituição em face dos princípios constitucionais". In: SALOMÃO, execução das sentenças proferidas em tais ações antes de
George (organizador). Dos princípios constitucionais. Considerações em seu trânsito em julgado. A Ação Direta de Inconstituciona-
torno das nonnas principiológicas da Constituição, 2003, p. 159: "A lidade n° 2232" foi proposta para o fim de ver declarada a
Constituição, em razão de sua incompletude, permanece aberta ao inconstitucionalidade da MP n° 173/1990 por afronta, ge-
tempo. Por esta razão, na maior parte das vezes traça apenas as diretrizes,
os fundamentos das matérias objeto de regulamentação
normativo-constitucional, deixando o papel de integração/concretização
nas mãos do legislador e dos aplicadores do Direito. A Constituição não 266 As 10 (dez) medidas provisórias (151, 154, 158, 160, 161, 162, 164,
estabelece nem determina a total ordenação da unidade política, senão 165, 167 e 168) versavam sobre assuntos variados: extinção de entidades
limita-se apenas a consignar em seu corpo os princípios setores de uma da Administração Pública, criação de nova sistemática para reajustes de
determinada coletividade. (...) Entretanto, esta abertura e flexibilidade preços e salários em geral, isenção ou redução do imposto de importação,
constitucional só se tornam possíveis em razão da presença dos princípios
legislação tributaria em vários pontos (imposto sobre operações
na Constituição. O elevado teor de abstração e a intensa carga axiológica financeiras e imposto de renda principalmente), dentre outros temas.
fazem com que a Constituição acompanhe a dinâmica social sem,
contudo, cair em desuso." 267 STF, AD1n 223 MC/DF, Rel. Min. Paulo Brossard, DJU
29.06.1990.
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193
nericamente, aos princípios do acesso à justiça e da inafas- Na verdade, a leitura dos votos proferidos na ocasião
tabilidade do controle judicial. revela que as discussões travadas no STF por conta da
Por maioria, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal ADIN n° 223 tiveram três frentes principais: na primeira
Federal indeferiu a liminar solicitada na medida cautelar delas, discutiu-se propriamente o conflito entre a MP n°
requerida juntamente com a ação direta de inconstitucio- 173/1990 e o princípio constitucional do acesso à Justiça;
nalidade, manifestando o entendimento de que, ao menos na segunda frente, vários votos preferiram examinar o pro-
em juízo sumário, a MP n° 173/1990 seria constitucional. blema sob o ponto de vista técnico-processual no que dizia
Nada obstante, a ementa do acórdão registra um comentá- respeito ao cabimento da liminar na hipótese; e um terceiro
e interessante debate se travou acerca da posição política
rio incomum: a decisão que se acabava de tomar no STF
do STF. Vários Ministros questionaram, considerando o
não impedia que qualquer juiz, diante de um caso concre-
regime democrático e os limites do papel do STF, a perti-
to, considerasse a norma inconstitucional268. nência de uma decisão capaz de por em risco plano de re-
cuperação econômica que contava com amplo apoio popu-
268 Esta é a parte mais relevante da ementa: "Ação direta de lar e que seria de imediato submetido ao Congresso Nacio-
inconstitucionalidade contra a Medida Provisória 173, de 18.3.90, que nal. De toda sorte, para os fins deste estudo apenas a pri-
veda a concessão de 'medida liminar em mandado de segurança e em meira das discussões é pertinente.
ações ordinárias e cautelares decorrentes das medidas provisórias Os Ministros Paulo Brossard, relator do feito, Celso de
números 151, 154, 158, 160, 162, 165, 167 e I68': indeferimento do
Mello e Sepúlveda Pertence foram os que de forma mais
pedido de suspensão cautelar da vigência do diploma impugnado: razões
dos votos vencedores. Sentido da inovadora alusão constitucional à direta enfrentaram a questão do conflito entre a MP n°
plenitude da garantia a jurisdição contra a ameaça a direito: ênfase a 173/1990 e o princípio constitucional do acesso à Justiça,
função preventiva de jurisdição, na qual se insere a função cautelar e, embora tenham chegado a conclusões diversas. O Ministro
quando necessário, o poder de cautela liminar. Implicações da plenitude Paulo Brossard deferiu a liminar em parte, para considerar
da jurisdição cautelar, enquanto instrumento de proteção ao processo e
inconstitucional a restrição imposta pela MP no caso de
de salvaguarda da plenitude das funções do Poder Judiciário.
Admissibilidade, não obstante, de condições e limitações legais ao poder mandados de segurança. O Ministro Celso de Mello a defe-
cautelar do juiz. A tutela cautelar e o risco do constrangimento riu completamente, por entender inconstitucional como
precipitado a direitos da parte contrária, com violação da garantia do um todo a medida. O Ministro Sepúlveda Pertence, por
devido processo legal. Conseqüente necessidade de controle da sua vez, indeferiu a liminar, no que acabou sendo acompa-
razoabilidade das leis restritivas ao poder cautelar. Antecedentes
nhado pela maioria, ainda que por razões diversas.
legislativos de vedação de liminares de determinado conteúdo. Critério
de razoabilidade das restrições, a partir do caráter essencialmente
provisório de todo provimento cautelar, liminar ou não. Generalidade,
diversidade e imprecisão de limites do âmbito de vedação de liminar da da jurisdição e ao Poder Judiciário. Indeferimento da suspensão liminar
MP 173, que, se lhe podem vir, a final, a comprometer a validade, da MP 173, que não prejudica, segundo o relator do acórdão, o exame
dificultam demarcar, em tese, no juizo de delibação sobrei) pálido de sUja judicial em cada caso concreto da constitucionalidade, incluída a
suspensão cautelar, até onde são razoáveis as proibiçõeS'néli imposta& razoabilidade, da aplicação da norma proibitiva da liminar.
enquanto contenção ao abuso do poder cautelar, e onde se inicia, Considerações, em diversos votos, dos riscos da suspensão cautelar da
inversamente, o abuso das limitações e a conseqüente afronta à plenitude medida impugnada."

194 195
A argumentação do Ministro Paulo Brossard pode ser O Ministro Celso de Mello, diversamente, deferiu inte-
resumida da seguinte forma. Para o Ministro, a proibição gralmente a liminar requerida por entender que a lei não
de liminares em abstrato não seria inconstitucional, tanto poderia impor restrições à concessão de liminares, já que o
assim que outras disposições, jamais consideradas inconsti- poder de conferi-las é necessário para que o Estado possa
tucionais pelo STF, já previam essa possibilidade. Em algu- adimplir sua obrigação de prestar tutela jurisdicional"°.
mas circunstâncias, no entanto, essa restrição poderia se
tornar grave a ponto de impedir o acesso do cidadão ao período relativamente longo e que se pode tornar excessivamente longo,
Poder Judiciário: nessas hipóteses, tais restrições seriam não se pode dar a reparação judicial, ainda que a lesão seja insigne e o
inválidas e não poderiam ser admitidas. direito liquido e certo. (fls. 09)
A MP, a juízo do Ministro Relator, era excessivamente (...) Em relação a algumas normas, a irreparabilidade do dano é
menos clara ou mais hipotética; da medida provisória 151, por exemplo.
ampla e geral nas restrições que impunha, podendo chegar Em relação a outras, porém, qualquer procrastinação significaria o
a bloquear a atuação do Poder Judiciário na reparação de abandono do cidadão ao arbítrio da autoridade, sem que se pudesse
lesões e ameaças de lesões. Na tentativa de distinguir as levantar o escudo protetor da lei maior na defesa do seu direito,
situações — restrições aceitáveis do acesso à Justiça e condenado por medidas de duvidosa constitucionalidade ou de
transparente inconstitucionalidade. (fls. 10/11)
restrições inaceitáveis — o Ministro Brossard criou um pa-
(...) Buscando um critério objetivo e seguro, quer me parecer que na
râmetro. A MP havia impedido a concessão de liminares e medida em que se tratar de direito individual ferido ou ameacado de
a execução provisória de decisões em ações ordinárias, cau- lesão para cuja proteção eficaz a própria Constituição outorga, também
telares e mandados de segurança; porém, afirmou o Minis- como direito individual o mandado de segurança, não pode este ser
tro, o mandado de segurança é em si mesmo um direito tolhido; o mandado de segurança, na sua expressão tradicional, é um
direito individual em si mesmo, tanto mais valioso quando, muitas vezes,
individual tutelado pela Constituição de modo que, em
é o mais apropriado e eficaz instrumento de defesa de outros direitos
relação a ele, não se poderia admitir qualquer espécie de individuais exatamente pela possibilidade de proteção liminar. De modo
restrição em tese 269. que, permitir sua paralisia, ainda que parcial e limitada, importaria em
atingir, em maior ou menor grau, além do próprio mandado de segurança,
outros direitos individuais, solenemente assegurados na Constituição."
269 Confiram-se alguns trechos de seu voto: "Em determinadas (fls. 11) (sublinhado no original)
situações, porém, a lei veda a sua concessão. De modo que, in abstracto,
270 A linha de pensamento do Ministro pode ser facilmente
a proibição de liminares não chega a constituir novidade e tem sido
compreendida pelo exame dos seguintes trechos de seu voto: "Essa
admitida. (fls. 05)
(...) No caso vertente, o que chama desde logo a atenção é a correlação, que se traduz no binômio direito subjetivo ao processo /
amplitude e generalidade da medida, que envolve nada menos de dez obrigação estatal de efetivação da tutela jurisdicional, não pode ser
unilateralmente rompida pelo Poder Público, sob pena de configurar, o
medidas provisórias, com mais de uma centena de dispositivos, bem
como sua extensão. De chofre, por via unilateral e imperatória, ato de sua inobservância, uma frontal ofensa ao dogma do judicial review.
(fls. 02)
sumariamente se proíbe a concessão de liminares, bem como a execução
de sentença sem trânsito em julgado, em mandados de segurança, em (...) A proteção jurisdicional imediata, dispensável a situações
ações ordinárias e em ações cautelares, decorrentes das dez medidas jurídicas expostas a lesão atual ou potencial, não pode ser inviabilizada por
provisórias, que enumera. Desse modo, a missão reparadora de lesões de
ato normativo de caráter infraconstitucional que, vedando o exercício
direitos, inerente ao Poder Judiciário, fica bloqueada e durante um liminar da tutela jurisdicional cautelar pelo Estado, enseja a aniquilação

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196
O Ministro Sepálveda Pertence, por sua vez, partiu do A questão discutida pelos Ministros pode afinal ser des-
mesmo pressuposto lógico usado pelo Ministro Brossard.
Também para ele não se trata de considerar inconstituci o-
priori a toda e qualquer restrição que se faça à concessão de liminar, é
nal toda e qualquer restrição feita à concessão de liminares, impossível, no cipoal, de medidas provisórias que se subtraíram ao
mesmo porque o princípio do devido processo legal poderá deferimento de tais cautelares initio litis, distinguir, em tese e só assim
recomendar alguma limitação nesse sentido. Entretanto, poderemos decidir neste processo—, até onde as restrições são razoáveis,
não seria possível em abstrato saber em que momento essa até onde são elas contenções, não ao uso regular, mas ao abuso do poder
cautelar, e onde se inicia, inversamente, o abuso das limitações e a
restrição deixa de ser adequada e necessária e afeta essen-
conseqüente afronta à jurisdição legítima do Poder Judiciário. (fls. -10)
cialmente o princípio do acesso à Justiça. Apenas diante do (...) Por isso, Senhor Presidente, depois de longa reflexão, a
caso concreto será possível aferir essa inconstitucionalida- conclusão a que cheguei, data venia dos dois magníficos votos
de. Por essa razão, o Ministro decidiu indeferir a liminar precedentes, é que a solução adequada às graves preocupações que
pleiteada, ressalvando, porém, que cada juiz poderá, diante manifestei — solidarizando-me nesse ponto com as idéias já manifestadas
pelos dois eminentes Pares — não está na suspensão cautelar da eficácia,
de um caso concreto, declarar a inconstitucionalidade da em tese, da medida provisória. O caso, a meu ver, faz eloqüente a extrema
norma incidentalmente. O Ministro Relator, embora venci- fertilidade desta inédita simbiose institucional que a evolução
do, fez constar essa ressalva na parte final da ementa do constitucional brasileira produziu, gradativamente, sem um plano
acórdão"' . preconcebido, que acaba, a partir da Emenda Constitucional 16, a acoplar
o velho sistema difuso americano de controle da constitucionalidade ao
novo sistema europeu de controle direto e concentrado. Mostrei as
do próprio direito material. O princípio da inafastabilidade do controle dificuldades que vejo na suspensão cautelar da eficácia da própria lei em
jurisdicional representa, pelo seu caráter global e abrangente, tese. (fls. 11)
instrumento de defesa do direito à ação de conhecimento, do direito à (...) O que vejo, aqui, embora entendendo não ser de bom aviso,
ação de execução e do direito à ação cautelar. Particularizar qualquer naquela medida de discricionariedade que há na grave decisão a tomar, da
dessas situações e, em conseqüência, excluí-Ia da tutela constitucional suspensão cautelar, em tese, é que a simbiose institucional a que me
significaria, em última análise, repudiar conquista de inegável valor referi, dos dois sistemas de controle da constitucionalidade da lei,
político-jurídico. (fls. 08/09) permite não deixar ao desamparo ninguém que precise de medida liminar
Voto, assim, tendo presentes as razões expostas, pela concessão em caso onde — segundo as premissas que tentei desenvolver e melhor do
integral da liminar postulada. (fls. 10)" que eu desenvolveram os Ministros Paulo Brossard e Celso de Mello — a
271 Confira-se a reprodução do pensamento do Ministro Pertence sobre vedação da liminar, por que desarrazoada, por que incompatível com o
a questão: "De tal modo, Senhor Presidente, que o que choca, realmente, art. 5', XXXV, por que ofensiva do âmbito de jurisdição do Poder
na Medida Provisória 173 são a generalidade e a imprecisão. Não se trata, Judiciário, se mostra inconstitucional. Assim, creio que a solução estará
apenas, de proteger leis de emergências. Repito: se fez uma reforma, que no manejo do sistema difuso, porque nele, em cada caso concreto,
eu não tenho como avaliar neste momento, as suas repercussões, uma nenhuma medida provisória pode subtrair ao juiz da causa um exame da
reforma diversificada da Legislação Tributária Federal e até se chegou ao constitucionalidade, inclusive sob o prisma da razoabilidade, das
Direito Privado, ao Direito Cambial. (...) Mas, Senhor Presidente, essa restrições impostas ao seu poder cautelar, para, se entender abusiva essa
generalidade e essa imprecisão, que a meu ver, podem vir a condenar, no restrição, se a entender inconstitucional, conceder a liminar, deixando de
mérito, a validez desta medida provisória, dificultam, sobremaneira agora, dar aplicação, no caso concreto, à medida provisória, na medida em que,
esse juízo sobre a suspensão liminar dos seus efeitos, nesta ação direta. em relação àquele caso, a julgue inconstitucional, porque abusiva. (fls.
Para quem, como eu, acentuou que não aceita veto peremptório, veto a 12) "

198 199
crita da seguinte forma: uma regra de natureza infraconsti- pios constitucionais: no primeiro caso, o choque poderá se
tucional encontra-se em aparente colisão com um princípio dar com o núcleo do princípio; no segundo, com a área não
constitucional — o princípio do acesso à Justiça ou da ina- nuclear do princípio. Para essas duas situações de conflito
fastabilidade do controle judicial. Para o Ministro Celso de potencial já se pode apresentar soluções padronizadas:
Mello, trata-se de um caso simples de inconstitucional ida- quando a regra infraconstitucional viola o núcleo essencial
de: para ele há de fato uma colisão total entre a regra e o do princípio constitucional haverá simples inconstituciona-
princípio constitucional, de modo que a primeira será, na- lidade da regra, e não ponderação. No segundo, quando a
turalmente, inválida. Não há novidade neste ponto. Para os oposição se passa entre a regra e a área não nuclear de um
Ministros Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence, no entan- princípio, em geral a regra permanecerá sendo considerada
to, a situação é diversa. Ambos reconhecem que a regra cria válida, na qualidade de opção legítima do legislador demo-
iestrições ao princípio. Entretanto, algumas dessas restri- cráticom, e nesse ponto se realiza o primeiro parâmetro
ções serão aceitáveis e legítimas; outras, ao contrário, afe- descrito acima: as regras têm preferência sobre os prin-
tarão tão gravemente o acesso à Justiça que não podem ser cípios.
consideradas válidas Ou seja: uma regra poderá valida-
mente restringir o princípio até um determinado ponto,
mas não além dele.
De certa forma, a conclusão dos dois Ministros decorre da VIII.2. É possível ponderar regras?
circunstância, registrada acima, de que muitos princípios
são compostos por duas áreas de sentido: um núcleo, onde a) Modalidades de conflitos envolvendo regras
se situam seus efeitos essenciais, e uma área não nuclear,
como a coroa de dois círculos concêntricos, para onde o A despeito de toda a fundamentação do parâmetro que
princípio se expande quase indefinidamente, dependendo se acaba de expor, a experiência tem demonstrado que esse
das concepções individuais acerca do tema. Caso a restri- modelo, adotado de forma pura, se mostra muitas vezes
ção produzida por uma regra incida nessa área de expansão, insuficiente diante de casos concretos. Ou seja, há hipóte-
não haverá invalidade, ao passo que se a restrição disser ses em que a regra, perfeitamente válida em tese e perti-
respeito ao núcleo do princípio haverá inconstitucionalida- nente no caso, parece desencadear um conflito insustentá-
de. O interessante no caso examinado pelo STF é que as vel com outros enunciados normativos. Como resolver esse
diferentes normas, produzindo diversos níveis de restrição conflito? Parte da doutrina sustenta que, nesses casos, tam-
do princípio constitucional, terão como origem o mesmo
enunciado normativo, o mesmo dispositivo legal: a MP n°
173/1990. 272 Salvo, por natural, se a opção do legislador for tão incompatível com
os efeitos pretendidos pelo princípio que esteja fora inclusive de sua área
O precedente examinado ilustra duas possibilidades não nuclear Nessa hipótese a regra será inválida por conta da eficácia
em que regras estarão entrando em confronto com princí- negativa reconhecida aos princípios.

200 201
bém a regra deve ser ponderada. Será?273 Como exposto lavras, a ponderação pode conduzir a uma compressão recí-
acima, a lógica da ponderação está associada à estrutura dos proca entre os princípios envolvidos (suas áreas não nuclea-
princípios, de modo que é possível ponderá-los sem que res), que prosseguem sendo aplicados e respeitados como
isso produza a sua não aplicação absoluta274 . Em outras pa- válidos, ainda que em intensidades diversas. Mas o que di-
zer das regras?
É verdade que, por vezes, elementos contidos na pró-
273 Na verdade, essa parece ser a posição dos autores que concebem a
ponderação (i) em sentido amplo (pela qual todos os tipos de argumentos,
pria estrutura da regra conferem ao intérprete certa liber-
jurídicos e não jurídicos, são levados em consideração) e (ii) como uma dade na definição de seu sentido. O exemplo mais evidente
atividade inerente a qualquer interpretação jurídica (vide Capítulo I). dessa situação é o das regras que empregam conceitos jurí-
Para eles, as regras poderiam ser superadas mediante um processo de dicos indeterminados ou cláusulas de indeterminação de
ponderação de razões: se há mais razões para a aplicação da regra, ela deve outra natureza — como "mulher honesta", "relevante inte-
prevalecer; se, ao contrário, há mais razões para sua não incidência, não se
deve aplicá-la. As normas que decorrem das regras, portanto, teriam um
resse social", dentre outros. Nessas hipóteses, o aparente
caráter apenas preliminar, já que poderiam ser afastadas por razões conflito da regra com outras disposições poderá ser supera-
contrárias, cabendo ao julgador, em cada caso concreto, fazer essa do dependendo do sentido que se atribua ao conceito nela
avaliação. Nesse sentido, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, contido"5.
pp. 45 e 46: "As regras também podem ter seu conteúdo preliminar de
sentido superado por razões contrárias, mediante um processo de
ponderação de razões. Ademais, isso ocorre nas hipóteses de relação entre "Weighing in the law also concerns both principies and rules. All socially
a regra e suas exceções. A exceção pode estar prevista no próprio established legal norms, expressed in statutes, precedents etc., have a
ordenamento jurídico, hipótese em que o aplicador deverá, mediante merely prima facie character. The step from prima facie legal mies to the
ponderação de razões, decidir se há mais razões para a aplicação da ali-things-considered legal (and moral) obligations, claims etc. involves
hipótese normativa da regra ou, ao contrário, para a de sua exceção. (...) E evaluative interpretation, that is, weighing and balancing. For that reason,
a exceção pode não estar prevista no ordenamento jurídico, situação em one may doubt whether the distinction between rules and principies is
que o aplicador avaliará a importância das razões contrárias à aplicação da important. To answer this question, one must evaluate the following
regra, sopesando os argumentos favoráveis e os argumentos contrários à differences between rules and principles. (The list of differences has been
criação de uma exceção diante do caso concreto. (...) O importante é que elaborated in cooperation with Aulis Aamio). 1. Unlike a principie, the
o processo mediante o qual as exceções são constituídas também é um rule in question may be obeyed or not. There are no degrees of obedience.
processo de valoração de razões; em função da existência de uma razão The rule does not claim to be obeyed as much as possible. h rather claims
contrária que supera axiologicamente a razão que fundamenta a própria to be obeyed in so many cases as possible. (...) In routine ('easy') cases,
regra, decide-se criar uma exceção. Trata-se do mesmo processo de one ought to follow socially established legal rules without any necessity
valoração de argumentos e contra-argumentos — isto é, de ponderação.". of weighing and balancing. An act of weighing and balancing is then
V. sobre o tema HAGE, Jaap C. Reasoning with Rules, 1997, p. 113 e ss.. necessary only in order to ascertain whether the case under adjudication
Como se verá no texto, não se está de acordo com essa posição, ao menos is an easy one or not. Only if the case is not easy but 'hard', must one
não na abrangência sugerida. perform a value-laden legal reasoning, that is, an act of weighing and
274 Mesmo os autores que sustentam a possibilidade genérica da balancing. On the other hand, no cases of application of principies are
ponderação de regras reconhecem que se trata de um mecanismo easy." (grifos no original)
excepcional, urna vez que a ponderação se aplica mais propriamente aos 275 No HC 73662/MG (Rel. MM. Marco Aurélio, DJU 20.09.1996), já
princípios. V. PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 81: referido, o aparente conflito normativo foi resolvido por esse mecanismo.

202 203
Nada obstante, quando não for esse o caso, é difícil Em caso que obteve pouca repercussão na imprensa, a
conceber a aplicação mais ou menos intensa de determina- 2a Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade,
da regra. E a submissão de uma regra ao processo de ponde- sendo relator do feito o Ministro Marco Aurélio, decidiu
ração poderá ter como resultado final a sua não aplicação trancar ação penal proposta com fundamento no art. 1° do
no caso específico. Isto é: a ponderação de regras poderá Decreto-lei n° 201/1967 2 77, contra ex-prefeita, por contra-
acarretar a ruptura do sistema do Estado de direito, já que tação sem realização de concurso público. A hipótese pode
o intérprete simplesmente deixaria de aplicar uma regra ser resumida nos seguintes termos'.
válida em abstrato e que seria pertinente no caso concreto. O Município de São José de Coroa Grande, Pernambu-
Como lidar com essa espécie de dificuldade? co, contratou sem concurso público, por um período de
Na verdade, é importante distinguir duas modalidades cerca de 9 (nove) meses (12 de abril de 1992 a 28 de
bastante diferentes de situações que envolvem regras e re- janeiro de 1993), um gari. Posteriormente, o gari veio a
lativamente às quais parece ser necessário empregar a pon- ingressar na justiça trabalhista para ver reconhecida uma
deração. A primeira delas, e por certo a mais freqüente, se série de direitos e o Município, em sua defesa, alegou a
dá quando a incidência da regra no caso produz uma injus- nulidade da relação por ausência de concurso público. O
tiça tão grave que parece intolerável. Por conta do sentido Juízo trabalhista acolheu a alegação, julgou improcedente a
relativamente indeterminado da idéia de justiça, é comum reclamação trabalhista e determinou a remessa de peças ao
que o intérprete perceba e descreva o problema como um Ministério Público, para que este promovesse a responsabi-
conflito da regra com princípios como os da razoabilidade, lização da autoridade responsável pela contratação direta.
proporcionalidade" e até o da dignidade humana, e acabe A ação penal foi então proposta contra a ex-prefeita. O
deixando de aplicar a regra alegando que procedeu a uma habeas corpus foi impetrado contra o acórdão do Superior
ponderação. Um exemplo ajudará o entendimento.

277 Decreto-Lei n°201/1967: "Art.1 — São crimes de responsabilidade


A 2' Turma do STF dividiu-se entre conceder ou não a ordem a rapaz que dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário,
havia mantido relações sexuais com menor de 14 anos por conta das independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:
circunstâncias do caso, que indicavam que a relação havia sido consentida (...) XIII — Nomear, admitir ou designar servidor, contra expressa
pela moça. A decisão da maioria, pela concessão da ordem, fundou-se em disposição de lei.
uma reinterpretação da expressão presunção de violência, contida nos (...) § I° Os crimes definidos neste artigo são de ordem pública,
arts. 213 e 224, a, do Código .Penal, que foi compreendida na hipótese punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e
como consagrando uma presunção relativa, e não absoluta. os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos.
276 Embora não haja necessidade de aprofundar a discussão nesta sede, § 2° A condenação definitiva em qualquer dos crimes definidos neste
vale registrar que razoabilidade e proporcionalidade não são expressões artigo acarreta a perda do cargo e a inabilitação, pelo prazo de cinco anos,
tecnicamente fungíveis, como a doutrina contemporânea tem procurado para o exercício de cargo ou função pública, eletivo ou de nomeação, sem
destacar. V. sobre o tema, ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, prejuízo da reparação civil do dano causado ao patrimônio público ou
2003, p. 94 e ss.; e SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O proporcional e o particular."
razoável, Revista dos Tribunais n° 798, 2002, pp. 23 a 50. 278 STF, Rel. Min. Marco Aurélio, HC 770034/PE, DJU 11.09.98.

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Tribunal de Justiça que confirmou o recebimento da de- ção da regra. Em resumo, a incidência da regra no caso
núncia contra a ex-Prefeita. produzia um resultado tão injusto, que ela foi afastada.
A 2' Turma do Supremo Tribunal Federal, em votação Note-se que em ponto algum se questionou a validade do
unânime, concedeu a ordem de habeas corpus determinan- art. 1° do Decreto-lei n°201/1967, a estatura constitucio-
do o trancamento da ação penal por falta de justa causa. nal da exigência do concurso público ou a ilicitude de sua
Não foi suscitada, nem mesmo pela impetrante (ao menos não observância. Apenas se considerou que, naquele caso, a
ao que consta do relatório), qualquer discussão sobre os conseqüência indicada pelo enunciado era grave demais.
fatos: realmente houve a contratação direta do gari, sem O problema da injustiça grave que decorre da incidên-
concurso público, pelo período referido. Em seu relatório, cia de uma regra é relativamente fácil de apreender, ainda
o Ministro Marco Aurélio reproduz afirmação do impetran- que difícil de solucionar. Embora as regras tratem, em ge-
te de que a ex-Prefeita sequer conhecia o gari, mas nenhum ral, de condutas, sem maiores considerações sobre o propó-
dos votos fez qualquer consideração sobre esse ponto. sito para que foram concebidas, essas condutas estão indi-
A conclusão dos Ministros para o caso foi, textualmen- retamente associadas, por evidente, a fins e a valores que
te, a seguinte: insignificância jurídica do ato apontado buscam realizar. Daí por que se visualiza nas regras razões
como delituoso gerando falta de justa causa para a ação entrincheiradas279. Com essa expressão se pretende trans-
penal. Para fundamentar sua conclusão, o acórdão invoca mitir a idéia de que as regras estão ligadas a razões"° últi-
genericamente os princípios constitucionais da razoabilida-
de e da proporcionalidade e o princípio da insignificância 279 A expressão ("razões entrincheiradas") é de Humberto Ávila. O
ou da bagatela, considerando-se que "o evento isolado não autor, tratando sobre a possibilidade de ponderação de regras, faz o
seguinte registro: ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 58:
tem nenhuma significação no contexto jurídico da vida de
"é preciso ponderar a razão geradora da regra com as razões substanciais
uma pessoa jurídica de direito público". para o seu não cumprimento, diante de determinadas circunstâncias, com
Uma última ordem de argumentação adotada no julga- base na finalidade da própria regra ou em outros princípios. Para fazê-lo,
mento tem natureza pragmática: "Não se coaduna com os porém, é preciso uma fundamentação que possa superar a importância
interesses maiores da sociedade acionar-se o Judiciário, mo- das razões de autoridade que suportam o cumprimento incondicional da
vimentando-o, no que já por demais sobrecarregado, tendo regra.". Para uma abordagem geral sobre problemas envolvendo a
interpretação de regras, v. SUNSTEIN, Cass R. Problems with Rules,
presente situação concreta que nenhum prejuízo trouxe para California Law Review n°83, 1995, pp. 953 a 1023.
o bem protegido pelo Decreto-lei n° 201/67.". O acórdão 280 Para uma abordagem mais profunda do conceito de razão na
afirma ainda que o evento não teria causado prejuízo para a argumentação jurídica, v. HAGE, Jaap C. Reasoning with Rides, 1997, p.
Municipalidade. 45: "Reasons are facts that derive their status of reasons from a mental
Da leitura do acórdão resta bastante claro que os Minis- disposition that a belief in the reason causes a belief in the conclusion of
the reason. This means that reasons are on the one hand facts, and
tros simplesmente não estavam dispostos a atribuir uma
therefore part of the world, and on the other hand mind-dependent. The
conseqüência tão grave, como uma ação e uma possível causal connection in the mind that forms the basis for the existence of
condenação penais, a um evento tão sem importância real, reasons is dispositional. The belief in the presence of a reason need not
embora a hipótese se enquadrasse perfeitamente na descri- always cause a belief in the conclusion of this reason. If a dispositional

207
206
mas que lhes deram origem, mas a discussão sobre elas está adequado sacrificar o indivíduo afetado pelo caso concreto
a priori bloqueada por uma espécie de trincheira. Essa trin- no altar do aprimoramento das instituições político-jurí-
cheira pode ser descrita como a necessidade de segurança dicas?
jurídica e de previsibilidade das relações no âmbito do Es- Ou seja: além dos fins específicos para os quais a con-
tado de direito, que levam o legislador exatamente a insti- duta determinada pela regra pretende contribuir, a simples
tuir determinada providência sob a forma de regra. Não é observância de seu enunciado realiza outros fins essenciais
difícil perceber que o sistema seria muitas vezes mais inse- ao sistema jurídico, dentre os quais o da segurança e da
guro se a cada incidência de uma regra se reabrisse o debate
previsibilidade282. Isso torna o debate sobre a ponderação
acerca de seus fins e de sua justiça ou injustiça e sua aplica-
de regras consideravelmente mais complexo, já que não se
ção pudesse ser afastada.
trata apenas de uma disputa entre os efeitos pretendidos
A observância fiel das regras, ainda que elas possam
pela regra e pelos outros enunciados normativos aparente-
gerar incidências injustas ocasionais, é um meio de fortale-
cer o respeito institucional pela ordem jurídica. Parece evi- mente em colisão. Mais que isso, cuida-se de uma erupção
dente que a flexibilização corriqueira do disposto pelas re- da tensão permanente que perpassa o sistema jurídico en-
gras fragiliza a estrutura do Estado de direito, além de favo- tre a realização da justiça no caso concreto e o aperfeiçoa-
recer o exercício de autoridades arbitrárias e voluntaristas. mento institucional do Estado de direito.
Com efeito, se cada aplicador puder afastar uma regra por- Esse conflito pode ser ilustrado com um exemplo. A
que a considera injusta no caso concreto, pouco valor terão Constituição de 1988 prevê, de forma clara, que serão
as regras e o ofício do legislador28' . Por outro lado, será inadmissíveis no processo as provas obtidas ilicitamentem.
Boa parte da doutrina:284 e da jurisprudência, e essa é a
posição do Supremo Tribunal Federal, entendem que em
connection between beliefs is to give rise to reasons, this connection must
both be known and it must be approved of. If the causal connection
nenhuma hipótese se poderá flexibilizar a regra constitu-
between the belief in a reason and the belief in the conclusion of this
reason is incidentally interrupted, there are three . the
interruption is the consequence of belief in the presence of an regras têm um caráter prima facie essencialmente mais forte que
exclusionary reason; 2. the interruption is the consequence of the belief princípios. As regras formam, em virtude dessa qualidade, a parte dura do
in the presence of a reason against the conclusion; 3. the interruption is a ordenamento jurídico. Quanto mais peso é atribuído ao princípio da
case of irrationality." vinculação no determinado autorizadamente e quanto mais é fixado por
281 HECK, Luís Afonso. "Regras, princípios jurídicos e sua estrutura no regras, tanto mais duro é o ordenamento jurídico."
pensamento de Robert Alexy". In: LEITE, George Salomão 282 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
(organizador). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das expressamente autorizadas pela Constiuição, 2003, pp. 348 e 349.
normas principiológicas da Constituição, 2003, p. 65: "Quem quer inserir 283 CF : "Art. 5°. (...) LVI — são inadmissíveis, no processo, as provas
uma exceção carrega uma carga argumentativa, que se refere não só a isto, obtidas por meios ilícitos."
que Sua resolução deve ser melhor que a prevista pela regra, mas também 284 Para uma discussão mais ampla sobre o tema, v. GRINOVER, Ada
a isto, que ela deve ser tanto melhor que se justifique um desvio de algo Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio
determinado autorizadamente. Isso é um fundamento para isto, que Magalhães. As nulidades no processo penal, 1998.

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7

cional285. E isso não apenas porque a regra não admite essa como fins da República'ss, o constituinte tornou difícil a
possibilidade, mas também porque seria catastrófico para a convivência de decisões gravemente injustas dentro do sis-
construção do respeito aos direitos fundamentais, obra ain- tema289.
da em curso no âmbito das estruturas de investigação cri- Como equilibrar essas necessidades? No próximo tópi-
minal, a possibilidade de se validar uma prova obtida ilici- co serão propostas três formas de lidar com o problema das
tamente. Alguns autores, porém, como o ilustre Professor incidências injustas de regras. Antecipando o que será ex-
José Carlos Barbosa Moreira286, tendo em conta outros ele- posto, é possível dizer, de forma simples, que, (i) em qual-
mentos, entendem diversamente e admitem alguma espé-
cie de flexibilização da regra constitucional diante de casos
288 Preâmbulo, art. 30,1 e 170.
excepcionais.
289 Diante dessa espécie de situação, G ünther sustenta que a validade e
Há ainda um outro aspecto a considerar. Se a aplicação a aplicabilidade das disposições normativas formam duas questões
da regra, embora válida em tese, gera uma situação de grave distintas, GONTHER, Klaus. Un concepto normativo de coherencia para
injustiça no caso concreto287, as opções políticas formula- una teoria de Ia argumentacion jurídica, Revista Doxa n° 17-18, 1995,
pp. 279 e 283: "Deseo defender la tesis de que con la fundamentación
das pelo constituinte de 1988 oferecem de fato amplo su- imparcial de la validez de una norma pensamos algo diferente a su
porte àquele que procure uma fórmula para superar a situa- aplicación imparcial en un caso particular. Deberia setialarse que a nuestra
ção de injustiça. Ao consagrar, e.g., a justiça, geral e social, comprensión pragmática de una norma válida no pertenece la adecuación
de su aplicación en cualquier caso particular, por lo que tampoco seria
necesaria aquella hipótesis irrealista de que debamos estar en la situación
de prever todas las colisiones pensables de intereses en todo los posibles
285 Essa é também a posição de parte da doutrina portuguesa em relação casos particulares. (...). De cara a una situación de acción las normas
a dispositivo similar contido naquela Carta. V. NOVAIS, Jorge Reis. As válidas solo son acplicables prima facie. Este es siempre el caso si las
restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela circunstancias previstas por cilas se dan en una situación de aplicación.
Constiuição, 2003, pp. 374 a 375: "Por exemplo, quando a nossa Las circunstancias que se mantienen iguales deben completarse, por
Constituição prescreve a nulidade de todas as provas obtidas mediante tanto, con una descripción integra de la situación que considere también
abusiva intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou las circunstancias variables en cada situación. Dado que esta tarea no la
nas telecomunicações (art. 32, n° 8) a essa disposição subjaz uma óbvia puede atender ex definitione un discurso de validez, se necesita para elle
ponderação de bens. (...) Portanto, as proibições ou imposições decididas un discurso de un tipo especial, ai que en lo sucesivo me referiré como
pelo legislador constituinte como resultado de juizos próprios de 'discurso de aplicación'. Tan pronto como iniciamos este discurso
ponderação de bens são para levar a sério; por mais que tais resultados lhes debemos ampliar la perspectiva presupuesta con la validez de una norma
desagradem ou pareçam absurdos, não podem, em consequência, a las circunstancias que se mantienen en cada situación. En el discurso de
legislador ordinário, Administração e poder judicial ignorá-los ou aplicación las normas válidas tienen tan solo el status de razones prima
substituí-los pelas suas próprias valorações." facie para la justificación de enunciados normativos particulares tipo
286 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Constituição e as provas 'debes hacer ahora p'.". A despeito da propriedade da distinção, o
ilicitamente obtidas. Revista Forense n°337, 1997, pp. 125 a 134. impacto do discurso da validade sobre o da aplicação parece
287 Note-se que para se chegar a tal conclusão terá sido necessário excessivamente frágil, já que com muita facilidade uma disposição válida
percorrer ao menos as duas primeiras etapas da ponderação descritas na poderá ser considerada inaplicável. O ponto ficará mais claro ao longo do
parte anterior do estudo. texto.

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quer caso, a regra deverá ser interpretada de acordo com a O Supremo Tribunal Federal já examinou alguns casos
eqüidade; que (ii) a regra poderá deixar de ser aplicada na (similares entre si) em que essa espécie de colisão entre
hipótese de ser possível caracterizar a imprevisão legislati- regras pode ser identificada. Tratava-se de hipótese em que
va; e que (iii) uma determinada norma, produzida pela in- Estado da Federação não dispunha de recursos para pagar
cidência da regra, poderá ser declarada inconstitucional, os precatórios relativos a créditos alimentares, nos termos
ainda que o enunciado da regra permaneça válido em tese. do art. 78 do ADCT, e cumprir, ao mesmo tempo, outras
Fora dessas hipóteses, isto é, caso (afora o uso da eqüidade) regras constitucionais que exigem investimentos específi-
não seja razoável demonstrar a imprevisão legislativa e não cos de recursos públicos, como é o caso da obrigação de
se possa sustentar de maneira consistente a inconstitucio- aplicar determinados percentuais em prestações de saúde e
nalidade da norma particular, não será legítimo pretender educação. Como se sabe, uma das conseqüências possíveis,
afastar uma regra a pretexto de ponderá-la. tanto do não pagamento dos precatórios, como da não apli-
Cabe ainda identificar, como referido acima, o segun- cação dos percentuais previstos na Carta em prestações de
do tipo de situações nas quais a ponderação estaria envolvi- saúde e educação, é a intervenção federal (CF, art. 34, VI
da com regras. Esse segundo grupo é bastante excepcional e VII, e).
e congrega aquelas hipóteses em que há uma colisão de A questão que se colocava, portanto, era a de saber se
regras, insuperável por qualquer das técnicas tradicionais se deveria autorizar a intervenção, aplicando-se as regras
da hermenêutica jurídica. Embora pouco freqüentes, esses que disciplinam os precatórios e, indiretamente, determi-
casos também exigem a atenção da doutrina e da jurispru- nando o seu pagamento, ao passo que, com o mesmo ato, se
dência. estaria provocando o descumprimento de outras regras
Em tais hipóteses, cuida-se na verdade de uma ruptura constitucionais. Ao votar em um dos casos, além das regras
do sistema jurídico, pois a antinomia será de tal ordem que específicas em confronto, o Ministro Gilmar Mendes sus-
restará ao intérprete apenas escolher qual das regras deverá citou os demais enunciados pertinentes, incluindo princí-
ser obedecida e qual delas, desrespeitada. A rigor, sequer pios, e também outros bens relevantes, como é o caso, a
se trata aqui de uma ponderação jurídica ou normativa, mas favor da intervenção, da necessidade de proteção das deci-
sim de uma ponderação de valores ou bens de forma mais sões judiciais e, em sentido oposto, o princípio da autono-
geral. Isso porque, para escolher que regra deve ser aplica- mia dos Estados.
da, será necessário ascender na escala de abstração e exami- Quanto aos aspectos de fato, a Corte destacou, de um
nar os fins, as razões e os valores que, em última análise, lado, a boa fé do Estado no caso, que estaria empenhando
justificam cada uma das duas regras em confronto (as pró- seus melhores esforços para solucionar o problema finan-
prias razões entrincheiradas referidas acima). De toda for- ceiro. De outro, e o voto do Ministro Gilmar Mendes des-
ma, nesse ambiente de disputa, será especialmente útil taca o ponto, a circunstância de que a insuficiência de re-
aplicar não só o raciocínio ponderativo descrito nos capítu- cursos não seria superada pela simples presença de um in-
los anteriores, como também os parâmetros sobre os quais terventor. Também ele teria de lidar não apenas com as
se tratará nos capítulos seguintes. limitações financeiras, mas também com as demais regras

212 213
constitucionais que impõem despesas ao Estado, de modo da a proveniente de transferências, na manutenção e
que a intervenção na hipótese restringiria a autonomia do desenvolvimento do ensino. A Constituição também pre-
Estado sem qualquer proveito para o cumprimento da re- vê, no art. 198, § 2°, a aplicação de recursos mínimos
gra pretendida. Na verdade, o descumprimento das outras pelos Estados na área de saúde. O descumprimento de
regras constitucionais, envolvendo as aplicações mínimas tais obrigações, por óbvio, representaria negativa de efi-
em educação e saúde, também ensejam intervenção fede- cácia a normas constitucionais, bem como implicaria a
ral. Em suma: a providência seria desproporcional. configuração de específica hipótese de intervenção fede-
Nesse contexto, a conclusão da Corte foi a de que, na ral. De fato, o art. 34, VI, alínea 'e', prevê expressamente,
medida em que o Estado não esteja atuando dolosamente como hipótese de intervenção, a garantia da observância
com o fim de não pagar suas obrigações — ao contrário, da 'aplicação do mínimo exigido da receita resultante
uma vez que seja possível aferir sua boa-fé na gestão dos de impostos estaduais, compreendida a proveniente de
recursos públicos —, a intervenção não deveria ser autori- transferências, na manutenção e desenvolvimento do en-
zada, por ser desproporcional. Considerou-se ainda que en- sino e nas ações e serviços públicos de saúde'.
tre a regra que impõe o pagamento dos precatórios e as Diante de tais circunstâncias, cumpre indagar se a me-
regras que determinam o investimento em saúde e educa- dida extrema da intervenção atende, no caso, às três
ção, estas últimas deveriam ter preferência. Ainda que a máximas parciais da proporcionalidade.
transcrição seja um pouco longa, vale reproduzir trecho es- É duvidosa, de imediato, a adequação da medida de
pecialmente interessante do voto do Ministro Gilmar intervenção. O eventual interventor, evidentemente, es-
Mendes, que acabou por conduzir o julgamento: tará sujeito àquelas mesmas limitações factuais e nor-
mativas a que está sujeita a Administração Pública do
"É evidente a obrigação constitucional quanto aos pre- Estado. Poderá o interventor, em nome do cumprimento
catórios relativos a créditos alimentícios, assim como o do art. 78 do ADCT, ignorar as demais obrigações cons-
regime de exceção de tais créditos, conforme a disciplina titucionais do Estado? Evidente que não. Por outro lado,
do art. 78 do ADCT. Mas também é inegável, tal como é inegável que as disponibilidades financeiras do regime
demonstrado, que o Estado encontra-se sujeito a um de intervenção não serão muito diferentes das condições
quadro de múltiplas obrigações de idêntica hierarquia. atuais.
Nesse quadro de conflito, assegurar, de modo irrestrito Enfim, resta evidente que a intervenção, no caso, sequer
e imediato, a eficácia da norma contida no art. 78 do consegue ultrapassar o exame de adequação, o que bas-
ADCT, pode representar negativa de eficácia a outras taria para demonstrar sua ausência de proporcionali-
normas constitucionais. Exemplo bastante ilustrativo é dade.
a obrigação dos Estados no que se refere à educação e à Também é duvidoso que o regime de intervenção seja
saúde. Nos termos do art. 212 da Constituição, os Esta- necessário, sob o pressuposto de ausência de outro meio
dos estão obrigados a aplicar vinte e cinco por cento, no menos gravoso e igualmente eficaz. Manter a condução
mínimo, da receita resultante de impostos, compreendi- da Administração estadual sob o comando de um Go-

214 215
vernador democraticamente eleito, com a ressalva de cional da intervenção, somado às circunstâncias já ex-
que esteja o mesmo atuando com boa-fé e com o inequí- postas recomendam a precedência condicionada do
voco propósito de superar o quadro de inadimplência, é princípio da autonomia dos Estados.
inegavelmente medida menos gravosa que a ruptura na (.-.)
condução administrativa do Estado (...). Desse modo, enquanto o Estado de São Paulo se manti-
A intervenção não atende, por fim, ao requisito da pro- ver diligente na busca de soluções para o cumprimento
porcionalidade em sentido estrito. Nesse plano, é neces- integral dos precatórios judiciais, não estarão presentes
sário aferir a existência de proporção entre o objetivo os pressupostos para a intervenção federal ora solicita-
perseguido, qual seja o adimplemento de obrigações de da. Em sentido inverso, o Estado que assim não proceda
natureza alimentícia, e o ônus imposto ao atingido que, estará sim, ilegitimamente, descumprindo decisão judi-
no caso, não é apenas o Estado, mas também a própria cial, atitude esta que não encontra amparo na Consti-
sociedade. Não se contesta, por certo, a especial relevân- tuição." 29°
cia conferida pelo constituinte aos créditos de natureza
alimentícia. Todavia, é inegável que há inúmeros outros A ponderação em casos como o descrito acima é capaz
bens jurídicos de base constitucional que estariam sacri- de orientar a decisão acerca de qual regra deve ser escolhi-
ficados na hipótese de uma intervenção pautada por um da. Embora essa espécie de situação continue a representar
objetivo de aplicação literal e irrestrita das normas que uma quebra do sistema, o emprego da ponderação ao me-
determinam o pagamento imediato daqueles créditos. nos conferirá maior racionalidade à decisão a ser tomada.
(.. 3 De todo modo, não se trata rigorosamente de uma ponde-
Estão claros, no caso, os princípios constitucionais em
situação de confronto. De um lado, em favor da inter-
venção, a proteção constitucional às decisões judiciais, e 290 STF, IF 164/SP, Rel. MM. Gilmar Mendes, DJU 14.11.2003. Na
verdade, o Ministro reproduziu o seu voto proferido na IF 29I5-5/SP. Em
de modo indireto, a posição subjetiva de particulares artigo doutrinário, o hoje Ministro Eros Roberto Grau examinou conflito
calcada no direito de precedência dos créditos de natu- similar e concluiu em sentido semelhante: GRAU, Eros Roberto. A
reza alimentícia. De outro lado, a posição do Estado, no emenda constitucional n° 30/00: pagamento de precatórios judiciais,
sentido de ver preservada sua prerrogativa constitucio- Revista de Direito Administrativo n° 229, 2002, p. 98: "Assim,
nal mais elementar, qual seja a sua autonomia, e, de demonstrada ao Poder Judiciário a excepcionalidade expressa na
inexistência de disponibilidades de caixa suficientes para o pagamento
modo indireto, o interesse, não limitado ao ente federa- integral dos precatórios — e quero deixar bem claro que a existência de
tivo, de não se ver prejudicada a continuidade da pres- disponibilidades para tanto apenas poderá ser computada após a reserva
tação de serviços públicos essenciais, como educação e dos recursos financeiros indispensáveis a assegurar a continuidade dos
saúde. serviços públicos — demonstrada essa excepcionalidade, dizia, o
Assim, a par da evidente ausência de proporcionalidade pagamento insuficiente das quantias por ele determinadas não ensejará o
seqüestro; no caso, aliás, não haverá mesmo recursos que possam ser
da intervenção para o caso em exame, o que bastaria seqüestrados sem violência ao principio da continuidade dos serviços
para afastar aquela medida extrema, o caráter excep- públicos."

216 217
ração entre as regras, isto é, entre seus enunciados norma- com fundamento nas leis de Newton o homem chegou à
tivos, mas sim entre o conjunto de razões e valores que se lua e prevê com precisão os movimentos planetários, e ape-
acomodam atrás desses enunciados. nas por conta das descobertas de Einstein foi possível de-
Antes de prosseguir no exame para investigar os três senvolver a energia nuclear. Einstein 292 passou boa parte de
subparâmetros propostos relativamente à questão da inci- sua vida em busca de uma teoria geral que harmonizasse as
dência injusta de regras, convém fazer uma última observa- diferentes leis cientificas, que até hoje não foi descoberta.
ção. Na parte inicial deste capítulo procurou-se demons- Nem por isso suas conclusões perderam importância ou
trar que o primeiro parâmetro para a ponderação é aquele utilidade. Stephen W. Hawking, eleito para ocupar a cadei-
pelo qual as regras têm preferência sobre os princípios (so- ra de Isaac Newton em Cambridge, registra essa limitação
bre a área não nuclear deles, lembre-se). Mais que isso, nos seguintes termos:
sustentou-se que as regras não estão logicamente sujeitas à
ponderação. Nada obstante, o que se acaba de registrar, e "Provou-se que é muito difícil descobrir uma teoria que
igualmente as três fórmulas que se vai discutir na seqüên- descreva todo o universo. Por isso divide-se o problema
cia, revela que esse parâmetro sofre algumas limitações. E em diversas partes e inventam-se inúmeras teorias par-
é de todo conveniente dispor de humildade intelectual ciais. Cada uma delas descreve e prevê um número limi-
para reconhecê-lo. tado de categorias de observação, relegando os efeitos de
Os esquemas intelectuais e as concepções doutrinárias outras quantidades, ou os representando por conjuntos
são necessários e úteis, na tentativa de ordenar e explicar os simples de números. Pode ser que esta abordagem seja
fenômenos, mas não podem ter a pretensão de abarcar toda completamente errada. Se tudo no universo, de maneira
a realidade com precisão. Nem mesmo no ambiente das fundamental, depende de todo o resto, talvez seja im-
ciências exatas é possível ambicionar esse resultado. Leis possível atingir uma solução plena através da investiga-
diferentes e contraditórias convivem na Física moderna, na ção das partes isoladas do problema. Ainda assim, foi
medida em que cada urna delas é válida em determinado esta certamente a forma com que se fez progressos no
ambiente. A lei de gravitação de Newton, por exemplo, passado. "293
continua válida, ainda que alguns de seus pressupostos con-
trariem os da Teoria da Relatividade"' . Nada obstante, Se é assim com a física, com muito maior razão será em
temas jurídicos, cuja matéria-prima são relações sociais,
sempre embebidas de toda a complexidade que caracteriza
291 EINSTEIN, Albert. A teoria da relatividade especial e geral, 1999, p. o homem294. Em suma: ainda que os parâmetros gerais aqui
87; HAWKING, Stephen W. Uma breve história do tempo, 1995, pp. 55
a 59; ASIMOV, Isaac. Gênios da humanidade, vol. 2, 1980, pp. 590 a
592; e HART, Michael H. As 100 maiores personagens da História, 2001, 292 Einstein — vida e pensamentos. Clipping, 1997, pp. 26 e 33.
pp. 58 e 100 a 103. Para Newton, diversamente do que desenvolveu
293 HAWK1NG, Stephen W. Uma breve história do tempo, 1995, pp.
Einstein mais tarde, o tempo é absoluto e não relativo, o espaço é plano, e
214 e 215.
não curvo, e massa e energia são fenômenos diferentes, e não aspectos
diversos do mesmo fenômeno. 294 A presença de quebras no sistema é, a rigor, natural. CANARIS,

218 219
propostos devam conviver com exceções e situações ex- se tratou das características e das funções próprias das re-
cepcionais, isso não lhes retira sua consistência e validade. gras e não há necessidade de reproduzi-los aqui. Afinal, que
legitimidade tem o aplicador para afastar uma decisão dos
h) Solucionando os conflitos envolvendo regras: eqüi- órgãos majoritários (isto é: a regra) em favor de sua própria
dade, imprevisão e invalidade de incidência especific a concepção acerca do que é justo ou injusto, razoável ou
da regra irrazoável? Como já se anunciou, a não ser que a decisão
majoritária seja de tal modo teratológica a ponto de ser
Como identificado no item anterior, há hipóteses em considerada inconstitucional ou, ainda, que seja possível
que as regras, embora aplicáveis ao caso concreto, geram sustentar que o legislador não cogitou da circunstância con-
uma solução profundamente injusta e inadequada. Junte- creta em questão, não será possível afastar uma regra a
se a isso o fato, também sublinhado, de que as opções ma- pretexto de ponderação.
teriais da Constituição não convivem confortavelment e Em suma: afora o uso da eqüidade, que em qualquer
com a consagração de injustiças graves; princípios como o caso respeita as possibilidades semânticas do texto, o intér-
da justiça social, da razoabilidade e do próprio Estado de prete apenas poderá deixar de aplicar uma regra por consi-
direito repelem essa possibilidade. derá-la injusta se demonstrar uma de duas situações: (i)
Como então lidar com essa dificuldade? Autorizar am- que o legislador, ao disciplinar a matéria, não anteviu a
plamente a não aplicação das regras, na medida em que hipótese que agora se apresenta perante o intérprete: im-
pareçam injustas ou impróprias? Ora, os argumentos que previsão; ou (ii) que a incidência do enunciado normativo à
afastam essa linha de atuação já foram examinados quando hipótese concreta produz uma norma inconstitucional, de
tal modo que, ainda que o legislador tenha cogitado do caso
concreto, sua avaliação deve ser afastada por incompatível
Claus-Wilhelm, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência com a Constituição. Sublinhe-se que tais fórmulas funcio-
do direito, 1989, pp. 199 e 200; "De facto a formação de um sistema nam como exceções ao parâmetro geral da preferência das
completo numa determinada ordem jurídica permanece sempre um
objectivo não totalmente alcançado. Opõe-se-lhe, invencivelmente, a regras e, por isso mesmo, fazem recair sobre o intérprete o
natureza do Direito e isso a dois títulos. Por um lado, uma determinada ônus argumentativo especialmente reforçado de moti-
ordem jurídica positiva não é uma 'ratio scripta', mas sim um conjunto vação.
historicamente formado, criado por pessoas, apresentando como tal, de Feita essa introdução geral, vale fazer algumas notas
modo necessário, contradições e incompletudes, inconciliáveis com o sobre as três idéias expostas, por meio das quais se poderá
ideal da unidade interior e da adequação e, assim, com o pensamento
sistemático. Mas por outro, há na própria idéia de Direito um elemento
superar o problema das regras injustas e da necessidade de
imanente contrário ao sistema e, designadamente, a chamada 'tendência ponderação dessa espécie normativa: a eqüidade, a impre-
individualizadora' justiça que contracenando com o pensamento visão legislativa e a invalidade de determinada incidência
sistemático — assente na 'tendência generalizadorall — tem como de regra em tese válida.
consequência o surgimento de normas que a priori se opõem à Como já era registrado por Aristóteles, o caso concreto
determinação sistemática. 'Quebras no sistema' e 'lacunas no sistema' freqüentemente apresentará particularidades que não fo-
são, por isso, inevitáveis."
ram previstas de forma geral pelo legislador. Assim, ao apli-
220
221
car um enunciado normativo, o juiz poderá introduzir um Nessa função de elemento retificador da justiça rigoro-
elemento adicional: a eqüidade, que autoriza adaptar a samente legal, a eqüidade não tem o poder de afastar de
conseqüência a ser extraída do enunciado de acordo com as todo a aplicação de um enunciado normativo pelo fato de
características próprias do caso. Trata-se, como se tornou ser inadequado ou injusto296. A imagem da régua de Lesbos
corrente referir, da justiça do juiz ou da justiça do caso é esclarecedora quanto a esse ponto: o fato de ser maleável
concreto, na expressão clássica do próprio Aristóteles29s. permite que ela se adapte às diferentes reentrâncias das
superfícies, sem, no entanto, deixar de ser ela mesma.
295 ARISTOTELES. "Ética a Nicômaco", Livro V. In: Os pensadores, Atualizando a imagem, é possível dizer que o texto de um
1996, pp. 212 e 213: "A razão é que toda lei é de ordem geral, mas não é enunciado dificilmente comporta apenas um sentido uní-
possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a voco; o mais comum é que ele descreva um campo de pos-
certos casos particulares. Nestes casos, então, em que é necessário
estabelecer regras gerais, mas não é possível fazê-lo completamente, a lei
sibilidades semânticas297. É dentro desse campo, que pode-
leva em consideração a maioria dos casos, embora não ignore a rá ser mais ou menos amplo, mas em qualquer caso não é
possibilidade de falha decorrente desta circunstância e nem por isto a lei ilimitado, que a eqüidade poderá se desenvolver298.
é menos correta, pois a falha não é da lei nem do legislador, e sim da
natureza do caso particular, pois a natureza da conduta é essencialmente
irregular. Quando a lei estabelece uma regra geral, e aparece em sua
aplicação um caso não previsto por esta regra, então é correto, onde o 296 Em outra acepção, Aristóteles admitiria que a eqüidade chegasse a
legislador é omisso e falhou por excesso de simplificação, suprir a corrigir o direito legislado, autorizando a não aplicação da regra injusta em
omissão, dizendo o que o próprio legislador diria se estivesse presente, e face do caso concreto. V. sobre o ponto, TORRES, Ricardo Lobo. A
o que teria incluído em sua lei se houvesse previsto o caso em questão. Por eqüidade no processo administrativo tributário, Revista de Direito da
isto o eqüitativo é justo, e melhor que uma simples espécie de justiça, Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro n° 30, 1976, p. 82 e ss..
embora não seja melhor que a justiça irrestrita (mas é melhor que o erro De toda sorte, para os fins da proposta desenvolvida neste estudo, apenas
oriundo da natureza irrestrita de seus ditames). Então, o eqüitativo é, por as possibilidades descritas no texto são atribuídas à eqüidade. A não
sua natureza, uma correção da lei onde esta é omissa devido à sua aplicação de uma regra válida a um caso concreto dependerá da
generalidade. De fato, a lei não prevê todas as situações porque é verificação de uma das duas hipóteses apresentadas na seqüência: a
impossível estabelecer uma lei a propósito de algumas delas, de tal forma imprevisão legislativa ou a incidência inconstitucional da regra.
que às vezes se torna necessário recorrer a um decreto. Com efeito, 297 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 369: "Se
quando uma situação é indefinida a regra também tem de ser indefinida, assim o critério literal na maior parte dos casos não basta como critério
como acontece com a régua de chumbo usada pelos construtores em interpretativo, precisamente porque ainda permite diversas
Lesbos; a régua se adapta à forma de pedra e não é rígida, e o decreto se interpretações, já contudo o sentido literal possível, isto é, a totalidade
adapta aos fatos de maneira idêntica. Agora podemos ver claramente a daqueles significados que, segundo a linguagem vulgar, ainda podem estar
natureza do eqüitativo, e perceber que ele é justo e melhor que uma ligados à expressão, indica o limite da interpretação (em sentido
simples espécie de justiça. É igualmente óbvio, diante disto, o que vem a restrito)."; e BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da
ser uma pessoa eqüitativa; quem escolhe e pratica atos eqüitativos e não Constituição, 2003, p. 117 e ss..
se atém intransigentemente aos seus direitos, mas se contenta com 298 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios, 2003, pp. 94 e 95: "A
receber menos do que lhe caberia, embora a lei esteja do seu lado, é uma razoabilidade estrutura a aplicação de outras normas, princípios e regras,
pessoa eqüitativa, e esta disposição é a eqüidade, que é uma espécie de notadamente das regras." Para o autor, uma das manifestações da
justiça e não uma disposição da alma diferente." razoabilidade confunde-se com a eqüidade.

222 223
A figura da eqüidade é reconhecida explicitame nt e obstante essas previsões, independentemente de autoriza-
pelo direito brasileiro, que inclusive prevê casos específi- ção legislativa particular, o juiz sempre poderá e deverá
cos em que a questão posta diante do magistrado deverá ser empregar a eqüidade em suas decisões, dando ao enuncia-
decidida com fundamento na eqüidade299. Isto é: na incon- do o sentido possível que aproxime, da melhor forma, a sua
veniência de prever critérios normativos em tese, o próprio finalidade das circunstâncias do caso concreto301 . Na maior
legislador autorizou que a decisão seja tomada, em cada parte dos casos, o instrumental empregado pelo intérprete
caso, de acordo com a concepção de justiça do juiz'°. Nada para esse desiderato são as técnicas convencionais da her-
menêutica jurídica. O elemento sistemático e lógico, as
299 Seguem alguns dispositivos a título de ilustração. interpretações extensiva e restritiva, a analogia, a interpre-
No Novo Código Civil: tação orientada pelos princípios, dentre outras ferramen-
"Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz tas, são especialmente úteis nesse particular.
se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da A questão da incidência injusta de regras pode assim,
penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e
a finalidade do negócio."
em parte, ser reconduzida à estrutura geral da eqüidade.
No Código de Defesa do Consumidor: Apenas em parte porque, como já referido, a eqüidade, por
"Art. 51 — São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas si só, não autoriza o intérprete a negar aplicação a uma
contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: regra. Em muitas ocasiões, no entanto, a eqüidade bastará
IV — estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que
coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
para dar solução ao caso. Em boa medida, é possível fazer
incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade" uma aproximação do parâmetro da eqüidade com as técni-
No Código de Processo Civil: cas relacionadas com a interpretação conforme a Constitui-
"Art. 127 — O juiz só decidirá por eqüidade nos casos previstos em ção. Como se sabe, pela interpretação conforme a Consti-
lei."
tuição o intérprete procura, empregando o instrumental
Na Lei 9.099 de 26/09/1995 (Dispõe sobre os Juizados Especiais
Cíveis e Criminais e dá outras providências): hermenêutico disponível, afastar as possibilidades de inter-
"Art. 25 — O árbitro conduzirá o processo com os mesmos critérios pretação incompatíveis com a Constituição, respeitando o
do Juiz, na forma dos artigos 5 e 6 desta Lei, podendo decidir por limite do texto e suas potencialidades302 . No caso, a eqüi-
eqüidade." dade conduz a uma interpretação conforme a justiça do caso
No Decreto n° 1.979 de 09/08/1996 (Promulga a Convenção
Interamericana sobre Normas Gerais de Direito Internacional Privado,
Concluída em Montevidéu, Uruguai, em 8 de maio de 1979): 301 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil, vol. I, 1988,
"Art. 9 — As diversas leis que podem ser competentes para regular p. 145: "Em resumo podem ser fixados os seguintes princípios: a
os diferentes aspectos de uma mesma relação jurídica serão aplicadas de eqüidade, como função de interpretação da norma, independe de
maneira harmônica, procurando-se realizar os fins colimados por cada autorização legal, pois deve ser utilizada para coadjuvar a inteligência do
uma das referidas legislações. As dificuldades que forem causadas por sua dispositivo interpretando, de acordo com os dados sociológicos que o
aplicação simultânea serão resolvidas levando-se em conta as exigências envolverem e a finalidade que tiver".
impostas pela eqüidade no caso concreto."
302 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição,
309 ALVIM, Agostinho. Da eqüidade, Revista dos Tribunais n° 132, 2003, p. 185 e ss.; e MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição
1941, pp. 3 a 8 (republicada no n°797, 2002, pp. 767 a 770). constitucional, 1998, p. 268 e ss..

224 225
concreto, tendo em conta os princípios constitucionais que, sente e um provável cenário futuro. Se a despeito do esfor-
direta ou indiretamente, fundamentam a exigência de jus- ço e previdência das partes a relação jurídica for atingida
tiça. Ou seja: respeitado o limite do texto e suas possibili- por elementos imprevistos que alterem substancialmente o
dades, o intérprete poderá empregar uma interpretação equilíbrio do ajuste, será possível alterar as regras originais
conforme a eqüidade da regra, de modo a evitar a incidênci a para adequá-las à nova realidade.
iníqua. A teoria da imprevisão pressupõe, em suma, que as par-
A segunda forma de lidar com o problema da incidência tes teriam pactuado diferentemente se imaginassem os
injusta de regras é por meio de uma aplicação analógica da eventos futuros. Os dois elementos essenciais para sua in-
conhecida teoria da imprevisão. De forma bastante sim- cidência, portanto, são: (i) a imprevisibilidade do evento
ples, a teoria da imprevisão destina-se a reequilibrar rela- futuro e (ii) a alteração substancial que ele provoca no ce-
ções atingidas por eventos imprevisíveis e imprevistos pe- nário que as partes tinham em mente (em relação ao pre-
las partes envolvidas. Tanto em ajustes de natureza priva- sente e ao futuro) quando pactuaram304.
da, como em contratos administrativos303, com maior ou
menor liberdade, as partes prevêem as regras que discipli-
304 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, vol. III,
narão seu relacionamento tendo em conta um cenário pre- 1997, p. 100: "Admitindo-se que os contratantes, ao celebrarem a avença,
tiveram em vista o ambiente econômico contemporâneo, e previram
razoavelmente para o futuro, o contrato tem de ser cumprido, ainda que
303 Lei n° 8666/1993: não proporcione às partes o benefício esperado. Mas, se tiver ocorrido
"Art. 57 — § 10 Os prazos de início de etapas de execução, de modificação profunda nas condições objetivas coetâneas da execução, em
conclusão e de entrega admitem prorrogação, mantidas as demais relação às envolventes da celebração, imprevistas e imprevisíveis em tal
cláusulas do contrato e assegurada a manutenção de seu equilíbrio momento, e geradoras de onerosidade excessiva para um dos
econômico-financeiro, desde que ocorra algum dos seguintes motivos, contratantes, ao mesmo passo que para o outro proporciona lucro
devidamente autuados em processo: desarrazoado, cabe ao prejudicado insurgir-se e recusar a prestação. Não
II — superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à o justifica uma apreciação subjetiva do desequilíbrio das prestações,
vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de porém a ocorrência de um acontecimento extraordinário, que tenha
execução do contrato". operado a mutação do ambiente objetivo, em tais termos que o
"Art. 65 — Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, cumprimento do contrato implique em si mesmo e por si só, no
com as devidas justificativas, nos seguintes casos: (...) enriquecimento de um e empobrecimento do outro."; e AZEVEDO,
II — por acordo das partes: (...) Alvaro Villaça. Teoria da imprevisão e revisão judicial nos contratos,
d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente Revista dos Tribunais n°733, 1996, p. 109: "Em suma, a cláusula rebus
entre os encargos do contratado e a retribuição da Administração para a sic stantibus instala-se nos contratos, para prevenir contra a alteração
justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a objetiva, imprevista e imprevisível, das situações, existentes no momento
manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na da contratação, contra a onerosidade excessiva, representada pelo
hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de desequilíbrio prestacional, e contra o enriquecimento de um dos
conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do contratantes, com prejuízo do outro, não previstos no negócio Esse
ajustado, ou ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do acontecimento deve ser anormal (...), o que, se previsível, não teria levado
príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual." as panes à conclusão do contrato."

226 227
De certa forma, a mesma lógica se aplica ao processo por ser esquecidas: poucos se socorrem delas e pouquíssi-
legislativo. Também o legislador, ao editar qualquer espé- mos as aplicamms.
de de enunciado normativo, provê tendo em conta deter- Há, no entanto, uma outra possibilidade, que é a que
minadas situações de fato ou padrões de conduta, presen- mais diretamente interessa aqui. Trata-se da circunstância
tes e futuras, que planeja regular, e nem haveria como ser de a regra prosseguir perfeitamente válida; porém, ela vem
diferente. É certo que diversas modificações podem ocor- a incidir sobre uma hipótese particular que é substancial-
rer com o tempo. Algumas vezes, novas realidades se agre- mente diversa das situações-tipo para as quais foi planeja-
gam às anteriores, exigindo a mesma disciplina, problema da. Os elementos de fato que se consideram essenciais para
que pode ser facilmente resolvido quando o dispositivo provocar sua incidência não estão presentes naquele caso,
emprega uma fórmula geral em seu enunciadoms. Outra embora do ponto de vista lingüístico o enunciado possa ser
possibilidade de superação hermenêutica dessa dificuldade aplicado; há uma disparidade quanto aos pressupostos de
é a chamada interpretação evolutiva, que na verdade con- fato entre aquele caso específico e as situações em geral às
siste em uni processo informal de reforma do dispositivo, quais o dispositivo é aplicado comumente. Em suma: a si-
pelo qual novos conteúdos são atribuídos ao mesmo texto, tuação específica não estava nas cogitações razoáveis do
sem modificação do seu teor literal306. legislador; não foi prevista por ele309 pois, se o tivesse sido,
Há outras situações em que a realidade se altera de tal
forma que a regra prevista torna-se totalmente inconve- 308 É o que se passa, e.g., com o art. 240 do Código Penal, que tipifica
niente e indesejável — não há solução institucional para como crime o adultério.
esse problema em um Estado de direito de tradição roma- 309 HAGE, Jaap C. Reasoning with Rides, 1997, pp. 109, 112 e 117: "In
no-germânica clássica307 . Na prática, é freqüente que essas the law, a particularly important category of scope limitations derives
from the phenomenon of rule conflicts. Legal ideology will have it that
regras ingressem em um estado de inércia no qual acabam
rules of law do not conflict. If two rufes seem to conflict, at least one of
them is not applicable. The scopes of conflicting rules are assumed to be
disjoint. This phenomenon can be explainecl if we take into account that
legal mies are meant to identify reasons which replace the original reasons
305 O art. 159 do Código Civil de 1916, por exemplo, incorporou ao on which the rufes are based. The necessary weighing of reasons is
longo do tempo a indenizabilidade do dano moral. A Constituição considered to be the task of the legislator. The legislator so to speak
norte-americana, como se sabe, adotou uma linguagem bastante geral oversees ali conflicting goals and principies, and determines for each
exatamente para preservar sua capacidade de adaptação às mudanças. possible case what is the outcome of their interaction. This outcome is
306 Sobre a idéia geral de mutação constitucional, v. SILVA, José Afonso 'described in the legal rufes that are laid down in legislation. (...)
da. Poder constituinte e poder popular, 2000, p. 291 e ss.. Especificamente However, if there still are legally relevant facts that were not taken into
sobre a interpretação evolutiva, v. BARROSO, Luis Roberto. account by the legislator, not even in the sense that they were discarded
Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 144 e ss.. as irrelevant, these facts are not excluded by the reasons generated by the
307 As coisas se passam de forma diferente no sistema da common law. legal rule. A legal decision maker must still take these facts into account
Sobre esse tema, veja-se: CALABRESI, Guido. A Common Lato for the as legal reasons next to the reason identifiedby the legal tule. (...) Still, in
Age of Statutes, 1982. exceptional cases, there may be some reasons that were not taken into

228 229
a solução seria diversan°. Há aqui, como se vê, uma situa- aplicado? Na verdade, caso as duas perguntas acima sejam
ção de imprevisibilidade e de substancial diferença entre o respondidas afirmativamente, tudo funciona como se a in-
cenário planejado para a aplicação do enunciado e o caso'l cidência daquela regra ao caso decorresse apenas de uma
Nesse sentido, a aplicação da idéia de imprevisão de- coincidência lingüística, por inexistir, na realidade, disci-
pende de ser possível responder positivamente a essas duas plina jurídica para aquela hipótese. Não havendo enuncia-
perguntas: (i) é consistente afirmar que o legislador não do pertinente aplicável —já que o que existe é uma mera
imaginou uma situação como a que se apresenta ao aplica coincidência de signos lingüísticos —, a hipótese será deci-
dor? E (ii) há uma disparidade essencial e grave entre as dida nos termos do art. 4° da Lei de Introdução ao Código
circunstâncias de fato do caso examinado e as que caracte- Civil, pelo qual, sendo omissa a lei, "o juiz decidirá o caso
rizam normalmente as hipóteses às quais o enunciado é de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais
de direito.". Em qualquer caso, a não aplicação da regra
nessas circunstâncias exigirá do julgador a demonstração
account by the legislator, and are therefore not excluded by the analítica da presença dos elementos indispensáveis à confi-
applicability of the legal nde. In that case, there still be reasons not to guração da imprevisão legislativa'''.
apply the rule, and if the rule is not applied, its conclusion does not
Por fim, haverá uma terceira forma de lidar com o pro-
follow." É bem de ver que o autor admite a não aplicação de regras em
outras hipóteses além da referida na transcrição e que de certa forma se blema das regras que produzem resultados injustos. Trata-
equipara à idéia de imprevisão descrita no texto. se da declaração de inconstitucionalidade da norma
310 GRAU, Eros Roberto. A emenda constitucional n° 30/00: pagamento produzida pela incidência da regra sobre uma determi-
de precatórios judiciais, Revista de Direito Administrativo n°229, 2002, nada situação específica. A distinção entre enunciado
p. 97: "Aristóteles observa que a lei é sempre geral e existem casos em normativo e norma já foi examinada no Capítulo V e não há
relação aos quais não é possível estipular-se um enunciado geral que se
necessidade de retomar as questões ali expostas.
aplique com retidão. Nos casos nos quais é necessário limitar-se o
enunciado a generalidades, sendo impossível fazê-lo corretamente, a lei É possível cogitar de situações nas quais um enunciado
não torna em consideração senão os casos mais freqüentes, sem ignorar os normativo, válido em tese e na maior parte de suas incidên-
erros que isso possa importar. Nem por isso ela é menos correta, porque cias, ao ser confrontado com determinadas circunstâncias
a culpa não está na lei, nem no legislador, mas sim na natureza das coisas;
porque, em razão de sua própria essência, a matéria das coisas da ordem
prática reveste-se do caráter de irregularidade. Por isso, quando a lei
expressa uma regra geral e surge algo que se coloca fora dessa formulação 312 PECZENIK, Aleksander. Ora Law and Reason, 1989, p. 342: "2.
geral, devemos, onde o legislador omitiu a previsão do caso e pecou por Democracy requires that the courts sufficiently respect statutes, enacted
excesso de simplificação, corrigir a omissão e fazer-nos intérpretes do que by the representatives of the people. In hard cases, an extensive and
o legislador teria dito, ele mesmo, se estivesse presente neste momento e general justification is a necessary condition for making it clear that the
teria feito constar da lei se conhecesse o caso em questão." O autor faz court has actually fulfilled this requirement; 3. An extensively and
uma nota de rodapé ao fim do trecho citado com a seguinte dicção: generally justified decision directly fulfils the demand of intersubjective
"Tome-se sob as devidas ressalvas a alusão à vontade ou pensamento do testability and thus an important principie of rational practical discourse.
legislador." In other words, one knows on which grounds one may criticise it.
311 PECZENIK, Aleksander. On Lazy and Reason, 1989, p. 76 e ss.. Testability promotes objectivity of the decision, and thus legal certainty."

230 231
concretas, produz uma norma inconstitucional. Lembre-se valores pretendidos pelo autor sejam antecipados pela Fa-
que, em função da complexidade dos efeitos que preten- zenda Pública antes de proferida a decisão final.
dam produzir e/ou da multiplicidade de circunstâncias de No segundo caso entram em jogo os enunciados relacio-
fato sobre as quais incidem, também as regras podem justi- nados com o direito à vida e à saúde (impertinentes no
ficar diferentes condutas que, por sua vez, vão dar conteú- primeiro exemplo) e o grave risco de perecimento do direi-
do a normas diversas. Cada uma dessas normas opera em to. Nesse contexto, a norma que se extrai do mesmo enun-
um ambiente fático próprio e poderá ser confrontada com ciado é diversa: ela veda que o juiz autorize a realização de
um conjunto específico de outras incidências normativas, cirurgia sem a qual o autor poderá vir a falecer. Não é difícil
justificadas por enunciados diversos. Por isso, não é de es- concluir que essa segunda norma afeta muito mais intensa-
tranhar que determinadas normas possam ser inconstitu- mente o núcleo do direito de acesso ao Judiciário do que a
cionais em função desse seu contexto particular, a despeito primeira.
da validade geral do enunciado do qual derivam. Ilustra-se Os três mecanismos descritos como aptos a lidar com o
com um exemplo. problema dos conflitos normativos envolvendo regras fo-
A possibilidade que se acaba de identificar já foi reco- ram apresentados em ordem crescente de intervenção no
nhecida pelo Supremo Tribunal Federal na ADIn n° 223, sistema jurídico. No primeiro caso, a injustiça da incidência
descrita acima, na qual se discutia a validade de disposições da regra pode ser superada dentro dos limites semânticos
que proibiam a concessão de medidas liminares e antecipa- do enunciado por meio do uso da eqüidade. No segundo, a
ções de tutela em face da Fazenda Pública. A ação direta foi questão é solucionada uma vez que seja consistente susten-
julgada improcedente, como referido, já que, em tese, a tar que a injustiça aparentemente produzida pela aplica-
restrição à concessão de providências de urgência não era ção da regra não foi realmente pretendida nem pela mens
inconstitucional. Admitiu-se, porém, que em circunstân- legislatoris e nem pela mens legis. Trata-se de uma coinci-
cias específicas a incidência daqueles dispositivos poderia dência lingüística que deve ser desconsiderada por conta da
gerar normas inconstitucionais. imprevisão legislativa.
É fácil perceber que o mesmo enunciado produzirá nor- Por fim, o terceiro mecanismo enfrenta a hipótese na
mas diversas e, mais que isso, será confrontado por enun- qual o legislador de fato proveu para a hipótese, mas a
ciados diferentes conforme a demanda judicial envolva, solução por ele concebida, em determinado caso, torna-se
e.g., (i) o reenquadramento de servidores públicos ou (ii) o incompatível com a Constituição. Note-se que as observa-
custeio de cirurgia urgente e indispensável à manutenção ções pertinentes ao controle de constitucionalidade das leis
da vida do particular que deveria ter sido realizada pela e atos normativos aplicam-se também aqui. O juízo de in-
rede pública de saúde, mas que, por qualquer razão, não o constitucionalidade é um remédio excepcional que deve
foi. No primeiro caso, o direito patrimonial poderá em ge- ser reservado para as hipóteses em que há violação evidente
ral ser satisfeito adequadamente ao fim da demanda e, por- e grave de disposições constitucionais e não como instru-
tanto, a norma produzida pelo enunciado apenas veda que mento de afirmação das convicções políticas pessoais do

232 233
intérprete'''. E como em qualquer decisão em que se de-
clare a inconstitucionalidade de atos do Poder Público,
cabe ao juiz o dever de fundamentar de forma especial,-
mente sólida suas conclusões.
O parâmetro proposto neste capítulo — a preferênci a
das regras sobre os princípios —, juntamente com suas
cláusulas de exceção identificadas acima, procuram orde-
nar o processo de ponderação tendo em conta a estrutura
dos enunciados normativos em disputa (se regras ou princí-
pios), independentemente de seu conteúdo. É fácil perce-
ber, contudo, que se dois enunciados de igual estrutura
IX. Parâmetro geral 2:
entrarem em colisão, esse parâmetro terá pouco a dizer ao Normas que realizam diretamente
intérprete. Assim, além desse parâmetro de natureza es- direitos fundamentais dos indivíduos
trutural, é preciso formular igualmente algum parâmetro
substancial, que leve em consideração o conteúdo dos ele-
têm preferência sobre normas
mentos normativos e forneça balizas para a ponderação relacionadas apenas indiretamente com
quando a preferência das regras sobre os princípios, e tudo os direitos fundamentais
o mais que se expôs até aqui, não for capaz de solucionar o
conflito normativo. É sobre esse novo parâmetro que se
passa a tratar.

O segundo parâmetro preferencial a ser proposto neste


estudo pode ser descrito nos seguintes termos: a norma
que de forma direta promova e/ou proteja a dignidade hu-
mana deve ter preferência sobre outra norma que apenas
indiretamente está associada com a proteção ou promoção
da dignidade humana. Promoção e proteção da dignidade
humana, além de apresentarem ampla comunicação com
temas filosõficos'm e históricos315, são idéias muito gerais

313 Esse caráter excepcional da declaração de inconstitucionalidade é 314 A questão da legitimação ontológica da dignidade humana sempre
uma decorrência lógica da separação de poderes e do principio será uma questão de metafísica filosófica. V. sobre o tema, BARBOSA,
democrático, que dão origem à presunção de constitucionalidade dos atos Ana Paula Costa. "A fundamentação do princípio da dignidade humana".
do Poder Público. V. sobre o ponto BARROSO, Luis Roberto. In: TORRES, Ricardo Lobo (organizador). Legitimação dos direitos
Interpretação e aplicação da Constituição, 2003, p. 160 e ss.. humanos, 2002, pp. 51 a 98; e ALVES, Cleber Francisco. O princípio

234 235
merecedoras de um exame próprio, que não poderá ser são os enunciados normativos, como referido. Cabe ao in-
desenvolvido aqui. Para os fins deste estudo e do parâme- térprete identificar, relativamente a cada enunciado, a sua
tro que se acaba de propor, entretanto, a proteção e a p ro- estrutura — se regra ou princípio (e se núcleo ou área não
moção da dignidade podem ser identificadas com a prote- n uclear de princípio) — e, em decorrência disso, aplicar a
ção e a promoção dos direitos fundamentais dos indiví- preferência indicada pelo parâmetro. Do ponto de vista das
duos'', bem como de condições materiais necessárias para etapas da ponderação, a preferência das regras sobre os
seu bem estar mínimo e para o exercício da cidadania'''. princípios pode ser empregada já na primeira fase, pois
Há duas observações preliminares a fazer sobre o parâ- uma vez que os enunciados em disputa tenham sido identi-
metro enunciado. A primeira se relaciona com o objeto sobre ficados, a preferência já pode ser visualizada318 .
o qual o parâmetro incide e o momento próprio no qual ele O parâmetro que se acaba de enunciar — preferência
deve ser utilizado. A segunda observação envolve as expres-
das normas que de forma direta promovem os direitos fun-
sões direta e indireta empregadas para descrevê-lo.
damentais — funciona de maneira diversa. Uma vez que
ele propõe uma comparação de natureza substancial entre
IX.1.0 momento e o objeto do parâmetro o conteúdo dos elementos normativos, seu objeto de inci-
dência são as normas, e não os enunciados normativos. Já se
A matéria-prima do primeiro parâmetro discutido nes- demonstrou que um mesmo enunciado pode justificar a
te estudo (o da preferência das regras sobre os princípios) existência de variadas normas, cujo conteúdo será diverso
em função das circunstâncias de fato e da confluência de
outros enunciados. Isso significa, portanto, que apenas as
constitucional da dignidade da pessoa humana: O enfoque da doutrina normas autorizam a visualização precisa do conteúdo espe-
social da Igreja, 2001.
315 O conteúdo da noção de dignidade tem sempre uma dimensão
cífico dos elementos normativos em cada caso.
histórica e cultural. V. PINILLA, Ignacio Ara. /nr transfonnaciones de los Esta observação acerca do objeto sobre o qual deve in-
derechos humanos, 1994; e MARTINEZ, G regorio Peces-Barba: Derechos cidir o parâmetro está diretamente relacionada com a nota
sociales y positivismo jurídico, 1999. que deve ser feita a propósito do momento próprio de sua
316 Sobre a relação entre direitos fundamentais e dignidade humana,
veja-se, dentre outros, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais, 1998, p. 27 e ss.; e, do mesmo autor, Dignidade da pessoa 318 Como já se referiu, a divisão do processo ponderativo em etapas tem
humana da Constituição Federal de 1988, 2001. como objetivo ordenar o raciocínio, destacar problemas metodológicos
317 A questão das condições materiais necessárias para a sobrevivência, o que devem ser considerados e especialmente induzir o intérprete à
bem estar mínimo e o exercício da cidadania podem ser descritas como justificação da decisão. Isso não significa que as três fases não se
um mínimo existencial. Sobre o tema especifico, v. TORRES, Ricardo comuniquem, muito ao revés, mesmo porque esse movimento de ir e vir
Lobo. Os direitos humanos e a tributação — Imunidades e isonomia, entre premissas e resultados possíveis é próprio da atividade
1995; e BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios hermenêutica. No caso, por exemplo, dos parâmetros envolvendo a
constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002. ponderação de regras, descritos acima (eqüidade, imprevisão e
Sobre a evolução dos direitos sociais no Brasil, v. GALVÃO, Paulo Braga. inconstitucionalidade concreta), esse contato entre as diferentes etapas
Os direitos sociais nas Constituições, 1981. será a rigor indispensável.

236 237
utilização. Se o parâmetro aqui em exame tem por objeto cias de sua adoção. Imagine-se um indivíduo condenado a
normas, ele só poderá ser empregado organizadamente na um determinado período de reclusão por haver cometido o
terceira fase da ponderação, quando já se tenham examina- crime de roubo. Pergunta-se: não haveria aqui um conflito
do tanto os enunciados normativos como os fatos, e os di- entre o princípio constitucional da dignidade humana —
ferentes conjuntos de elementos em conflito tenham indi- que será obviamente afetada pela restrição da liberdade —
cado normas específicas para a solução do caso concreto. e a norma do Código Penal que dispõe sobre o roubo e sua
Explica-se melhor. pena?
Ora, se o parâmetro material for aplicado para solucio-
O parâmetro material que se acaba de propor não será
nar o aparente conflito entre os enunciados normativos,
empregado sozinho ou isoladamente, mas em conjunto ou, será necessário concluir que impedir a prisão do condenado
mais precisamente, na seqüência do primeiro parâmetro, promove de forma mais direta a sua dignidade do que pren-
caso este último não tenha sido capaz de solucionar o con- dê-lo (ainda que a prisão possa ser relacionada com a digni-
flito de forma satisfatória. Na primeira fase da ponderação, dade e segurança de vítimas futuras, potenciais, esta rela-
além de todas as demais técnicas tradicionais de herme- ção será sempre indireta). Deveríamos concluir então que
nêutica jurídica319, o intérprete poderá fazer uso da prefe- o condenado, na hipótese, não pode ser preso? Isto é: o
rência das regras sobre os princípios quando verificar con- aparente conflito deve ser solucionado pela preferência do
flitos entre os enunciados pertinentes. Caso o conflito per- princípio da dignidade humana que, no caso, imporia a li-
maneça, passa-se à segunda e terceira fases da ponderação, berdade do condenado? Parece certo que a resposta aqui é
por meio das quais as normas que cada um dos grupos de negativa. Na verdade, o suposto conflito descrito não resis-
elementos em conflito sugere como solução para o caso te à aplicação do primeiro parâmetro já discutido neste
concreto serão identificadas com maior clareza. Neste pon- estudo: o enunciado do Código Penal é uma regra e o ele-
to, então, é que poderá ser empregada a preferência das mento normativo em confronto corresponde à área não nu-
normas que diretamente promovem ou protegem os direi- clear de um princípio (a dignidade humananc), de modo
que prevalece a regra.
tos fundamentais sobre aquelas que estão ligadas a esse fim Imagine-se um segundo exemplo. Suponha-se que, por
apenas de forma indireta. conta dos enunciados que regulam o direito de vizinhan-
Alguns exemplos ajudam a compreender as razões que ça"' e das posturas municipais, seja proibido abrir janelas
fundamentam essas observações acerca do objeto e do mo-
mento de aplicação do parâmetro material e as conseqüên-
320 É possível discutir, do ponto de vista filosófico, se a pena privativa de
liberdade é ou não compatível com o conteúdo nuclear da dignidade
319 Só será possível saber se realmente se trata de um conflito humana. Sob uma perspectiva puramente jurídica, porém, o problema
insuperável pelas técnicas hermenêuticas tradicionais uma vez que elas
não se coloca pois a própria Constituição de 1988 admite essa modalidade
sejam experimentadas sem sucesso. Assim, como já se mencionou, a de pena.
primeira atividade do intérprete após a identificação dos enunciados
pertinentes é tentar solucionar o conflito normativo empregando essas 321 NCC/02: "Art. 1301. É defeso abrir janelas, ou fazer eirado, terraço
técnicas convencionais. ou varanda, a menos de metro e meio do terreno vizinho.

238 239
na face lateral dos prédios que distem menos de 1,5 m de Ora, se o parâmetro material fosse empregado logo de
outras construções. O proprietário de um apartamento início, antes de levar-se em conta a diferente estrutura dos
nessa situação, porém, a despeito das regras, abre uma ja- enunciados normativos, praticamente nenhum outro dis-
nela. Questionado, o indivíduo alega que é alérgico e preci- positivo resistiria quando confrontado com a dignidade,
sa de mais ventilação na sua residência; sustenta ainda que ainda que a pretensão apenas pudesse ser justificada com
a providência é necessária para a promoção de sua saúde
base em uma concepção particular do princípio e especial-
corolário direto da dignidade humana, de modo que as rei
mente distanciada de seu conteúdo nuclear. Por essa razão,
gras municipais e do Código Civil não devem prevalecer na
hipótese. o parâmetro material deve ser usado apenas quando há de
A mesma estrutura de raciocínio exposta no exemplo
fato um conflito insuperável entre normas, não resolvido
anterior aplica-se aqui. O argumento do proprietário do pelas técnicas tradicionais, nem pelo primeiro parâmetro.
Cabe agora fazer uma última observação da maior impor-
imóvel parece descrever um conflito entre a dignidade hu-
mana (em sua área não nuclear) e as regras em questão e, se tância, acerca das idéias de realização direta ou indireta da
fosse o caso de aplicar o parâmetro material isoladamente, dignidade humana contidas na descrição do parâmetro.
seria possível cogitar da prevalência da dignidade na hipó- O sistema jurídico não é feito apenas de princípios,
tese. Esse, entretanto, e por evidente, não é o caso. Tam- quanto à estruturam, e nem apenas de enunciados que de
bém aqui, o suposto conflito seria facilmente superado forma direta promovem a dignidade humana, assim enten-
pelo primeiro parâmetro, que cuida da estrutura dos enun- didos aqueles que cuidam de direitos de forma ampla. Há
ciados, a saber: a preferência das regras sobre os princípios. uma série de outros enunciados que se ocupam de delinear
Note-se, portanto, que o parâmetro material não será estruturas e instituições da maior relevância e que, de for-
empregado sem que antes a hipótese tenha sido submetida
ao crivo do primeiro parâmetro. E isso porque, em decor-
322 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da
rência do conteúdo relativamente indeterminado dos prin- Constituição, 1998, p. 1088: "Um modelo ou sistema constituído
cípios, a maior parte das pretensões individuais pode ser exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de
reconduzida em última análise à idéia, e.g., de dignidade, e limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa
cada um será capaz de atribuir ao princípio o sentido que exaustiva e completa — legalismo — do mundo e da vida, fixando, em
termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas.
lhe pareça melhor.
Conseguir-se-ia um 'sistema de segurança', mas não haveria qualquer
espaço livre para a complementação e desenvolvimento de um sistema,
como o constitucional, que é necessariamente aberto. (...) O modelo ou
§ 1° As janelas cuja visão não incida sobre a linha divisória, bem como sistema baseado exclusivamente em princípios levar-nos-ia a
as perpendiculares, não poderão ser abertas a menos de setenta e cinco consequências também inaceitáveis. A indeterminação, a inexistência de
centímetros. regras precisas, a coexistência de princípios conflituantes, a dependência
§ 2° As disposições deste artigo não abrangem as aberturas para luz do 'possível' fáctico e jurídico, só poderiam conduzir a um sistema falho
ou ventilação, não maiores de dez centímetros de largura sobre vinte de de segurança jurídica e tendencialmente incapaz de reduzir a
comprimento e construídas a mais de dois metros de altura de cada piso." complexidade do próprio sistema."

240 241
ma indireta, também estão relacionadas com o bem estar Mais que isso, já não se admite a idéia, sedutora em
humano. É fácil demonstrar o ponto. outros tempos, de um ditador "bom"; aquele que, livre das
A separação de poderes, por exemplo, é historicament e "formalidades" próprias à democracia — como legalidade,
a melhor técnica de organização do exercício do poder po- previsão orçamentária, negociações com o Congresso, etc.
lítico, e seu propósito último sempre foi conter o abuso e a —, pudesse empregar seu poder de forma direta e eficien-
arbitrariedade daqueles que exercem o poder, como forma te, sem dispersão de energia, em favor da promoção e pro-
de proteger os direitos dos indivíduos323. O mesmo se diga teção da dignidade das pessoas.
da legalidade e dos orçamentos, dentre vários outros exem- E não é apenas a Constituição de 1988 que rejeita as
plos: ambos são, ao mesmo tempo, instrumentos de afir- soluções messiânicas e consagra a democracia institucional;
mação democrática da vontade da maioria e formas de con- também do ponto de vista filosófico e histórico a opção por
trolar a autoridade, submetendo-a à vontade geral. No uma ditadura esclarecida não é mais admissivel. Do ponto
mesmo sentido, as chamadas garantias institucionais exis- de vista filosófico, essa possibilidade traz consigo a idéia
tem, em última análise, para assegurar o bem das pes- intolerável de que os homens não são iguais, não são capa-
soas324. Direitos não propriamente individuais, como a li- zes de governar-se e dependem de um Rei-Sábio-Ditador
berdade de imprensa, desempenham função similar: eles que os conduza. Historicamente, a fórmula já mostrou ser
garantem condições para o exercício do pluralismo políti- mal sucedida inúmeras vezes. Em suma: o fim último atri-
co, da liberdade de expressão e do controle social das ações buído ao Estado, de promover e proteger a dignidade hu-
do Poder Público"'. mana, não é alcançado apenas através de providências dire-
tas, mas também por meio de instituições que, indireta-
mente, contribuem para esse mesmo objetivo.
323 BARCELLOS, Ana Paula de. Separação de Poderes. Maioria Essa observação tem duas conseqüências principais. A
Democrática e Legitimidade do Controle de Constitucionalidade, Revista primeira está associada ao registro feito acima. Não se pode
Trimestral de Direito Público n° 32, 2000, p. 184 e ss..
aplicar isoladamente o parâmetro material na fase inicial da
324 V. sobre o tema, BONAVIDES, Paulo. Curso de direito
constitucional, 1999, p. 490 e ss.; e TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos ponderação, antes da incidência da preferência das regras
fundamentais e o Tribunal de Contas, Revista do Tribunal de Contas do sobre os princípios, sob pena de destruírem-se todas as
Estado do Rio de Janeiro n° 23, 1992, p. 55 e ss.. estruturas e instituições que, ainda que indiretamente, são
325 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos — a honra, a indispensáveis para assegurar a dignidade humana. Como é
intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e fácil perceber, empregando apenas o parâmetro material,
informação, 2000, pp. 166 e 167: "Se a liberdade de expressão e
bastaria formular um conflito entre as regras que dão corpo
informação, nos seus primórdios, estava ligada à dimensão individualista
da manifestação livre do pensamento e da opinião, viabilizando a critica
política contra o ancienrégime, a evolução daquela liberdade operada pelo
direito/dever à informação, especialmente com o reconhecimento do contribui para a formação da opinião pública pluralista — esta cada vez
direito ao público de estar suficientemente e corretamente informado; mais essencial para o funcionamento dos regimes democráticos, a
àquela dimensão individualista-liberal foi acrescida uma outra dimensão despeito dos anátemas eventualmente dirigidos contra a manipulação da
de natureza coletiva: a de que a liberdade de expressão e informação opinião pública."

242 243
a essas instituições e o princípio da dignidade humana para decisão entre uma norma que promove diretamente a dig-
que este último prevalecesse, já que a relação entre as nidade das pessoas e outra que apenas contribui para esse
instituições e a dignidade é indireta. Esse problema, no fim indiretamente, a primeira deve prevalecer. Há diferen-
entanto, pode ser superado na medida em que se tenha o tes maneiras de fundamentar o parâmetro que se acaba de
cuidado de empregar o parâmetro no momento e sobre o expor. Mas, antes de qualquer outra, é possível visualizar
objeto adequados. uma razão lógica bastante simples: se existem fins, e há
Por outro lado, essa observação repercute também so- meios para alcançá-los, e se, em determinadas circunstân-
bre a aplicação propriamente dita do parâmetro material. cias, os meios conflitam com os próprios fins que buscam
Se há de fato um conflito insuperável, e.g., entre duas re- realizar, não se deve privilegiar o meio em detrimento do
gras (ou, como ocorre com maior freqüência, entre conjun- fim. Do ponto de vista político-jurídico, há pelo menos três
tos de elementos normativos que dão origem a diferentes caMinhos diversos que podem ser percorridos para justifi-
normas), isto é, se o confronto entre elas não pode ser car a preferência das normas que diretamente promovem a
solucionado por qualquer técnica tradicional e/ou pela pre- dignidade humana sobre aquelas que o fazem apenas de
ferência das regras sobre os princípios, caberá então apurar forma indireta. É sobre eles que se passa a tratar sucinta-
qual delas, de forma direta, promove a dignidade do indiví- mente no tópico seguinte.
duo.
Note-se, portanto, ainda que sob outra perspectiva,
que as diferentes normas que o processo de ponderação IX.2. Fundamentação: o direito interno e o
venha a apurar sempre podem, em alguma medida, ser re- internacional e o procedimentalismo
conduzidas à idéia de dignidade humana. O propósito do
parâmetro é conferir preferência àquela que o faz de forma Empregar o conteúdo das normas em disputa como cri-
mais direta. Essa preferência, porém, não se funda em tério para solucionar conflitos entre elas parece aproximar
qualquer espécie de desprezo pelas estruturas que, indire- o parâmetro proposto da idéia de hierarquia normativa.
tamente, promovem a dignidade das pessoas, mas sim e Não é disso, porém, que se trata. A proposta de hierarqui-
apenas na necessidade de decidir entre uma coisa e outra. zação de disposições constitucionais já foi objeto de exame
Idealmente, as disposições que promovem a dignidade e crítica (Capítulo III) e também já se expôs a natureza
humana de forma direta (como as que cuidam dos direitos preferencial — e não absoluta — dos parâmetros propostos
fundamentais, por exemplo) devem conviver de maneira neste estudo (Capítulo VII). De qualquer modo, não é pos-
harmoniosa com aquelas outras que, indiretamente, têm o sível afastar a necessidade de, em determinadas circunstân-
mesmo propósito. Entretanto, se esses enunciados geram cias, escolher entre normas que conflitam de forma irreme-
normas e elas são, em determinado ambiente, inconciliá- diável326 . A questão a ser respondida, portanto, pode ser
veis, caberá ao intérprete ponderá-las e decidir qual deverá
ser aplicada e em que medida (quando isso seja possível). 326 Na verdade, estabelecer relações de prioridade em caráter prima
Nesse contexto de conflito inexorável e necessidade de facie entre as normas pode agregar coerência ao sistema, na medida em

244 245
formulada nos seguintes termos: diante de situações dessa como fim máximo do Estado e reconhecer direitos básicos
natureza, porque se deve empregar como parâmetro a pre- aos indivíduos.
ferência das normas que promovem a dignidade humana de
O terceiro fundamento apresentado adiante para o pa-
maneira direta?
râmetro é extraído de um conjunto variado de formulações
Há muitas formas de responder a essa indagação e este teóricas que têm em comum dois elementos. Em primeiro
estudo se ocupará de três delas de forma bastante objetiva. lugar, a crença de que em uma realidade plural como a
As duas primeiras fundamentam o parâmetro a partir de
contemporânea não é possível apurar consensos materiais,
consensos substantivos: uma, no âmbito do direito interno nem, conseqüentemente, empregá-los para legitimar deci-
e a outra na esfera do direito internacional. Com efeito, a sões que afetem a sociedade política. Se é assim, essa legi-
Constituição brasileira de 1988 formulou uma opção pre- timação só poderá decorrer da correção e qualidade dos
ferencial pela dignidade humana, alçando-a a valor central procedimentos por meio dos quais tais decisões são apura-
do sistema jurídico. Na esfera internacional, embora haja das. De toda sorte, como se verá, a partir de uma lógica
pouco consenso sobre os diferentes meios de promover e totalmente diversa da empregada nos dois fundamentos
proteger a dignidade humana, há ampla concordância teó-
anteriores, também os procedimentalistas acabam por con-
rica quando se trata de afirmar o bem estar do homem cluir que a proteção de direitos básicos do homem é pres-
suposto indispensável para o funcionamento adequado dos
procedimentos por eles propostos. Explica-se melhor cada
que permite lidar racionalmente com conflitos aparentemente
insuperáveis. V. PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989,
uma dessas três idéias.
p.164: "Moreover, coherence of some theories depends on priority orders Do ponto de vista do direito interno, a Constituição
between reasons. Inter alia priority orders are important when one faces de 198832 ' oferece amplo respaldo à preferência das nor-
a collision of principies, e.g., when an individual right collides with the mas que promovem diretamente a dignidade humana. O
demand to protect the environment. The relevant question is then, How axioma da unidade da Constituição, que decorre de reco-
to optimalise both principles within the system? This is the question of
nhecer-se a todos os enunciados a mesma hierarquia, é bas-
creating coherence. The only possible answer is to establish conditional,
more or less general, all-things-considered priority relations and tante conhecido e não há necessidade de desenvolver aqui
prima-fade priority orders. This is the case regardless the fact that one maiores considerações sobre o seu conteúdous. Nada obs-
can never establish an unconditional priority arder, applicable to all tante, tornou-se corrente o registro doutrinário de que de-
thinkable cases of a collision between the principies in question. To
establish a conditional priority arder is the only way to avoid the risk that
the system will be used to justify incoherent decisions. Incoherence 327 E da mesma forma diversas outras Constituições contemporâneas,
would consist in the fact that though the decisions are logically especialmente após a Segunda Guelra Mundial.
compatible, their relation to each other is arbitrary." (grifos no original) 328 A igualdade hierárquica entre as normas constitucionais e,
Sobre a possibilidade e até mesmo a necessidade de adotar-se uma certa conseqüentemente, a necessidade de preservação da unidade
hierarquização axiológica no sistema jurídico, v. FREITAS, Juarez. A constitucional foi registrada pelo STF de forma peremptória ao rejeitar a
interpretação sistemática do direito, 1998; e PASQUALINI, Alexandre. alegação de inconstitucionalidade de normas do ADCT. V. STF, RE
Hermenêutica e sistema jurídico, 1999, p. 109 e ss.. 160486/SP, Rel. MM Celso de Mello, DJU 09.06.1995.

246 247
terminadas disposições desempenham funções diferentes Na verdade, sem que isso produza uma ruptura do prin-
ou são dotadas de uma "superioridade axiológica" quando cípio da unidade, é apenas natural que o conteúdo material
comparadas com outras. Para registrar apenas um exemplo, dos enunciados — e a fortiori das normas — funcione como
é evidente, e na verdade até intuitivo, que o dispositivo que um elemento relevante para a hermenêutica jurídica"°. Em
trata da isonomia desempenha um papel muito diverso do primeiro lugar, porque há muito já se superou a modalida-
atribuído ao art. 236 da Carta de 1988, que cuida dos ser- de de positivismo que apenas era capaz de lidar com os
viços notariais e de registro. invólucros dos enunciados, independentemente daquilo
O próprio texto constitucional identificou, dentre to- que eles continham. Mais que isso, quando se trata da
dos os enunciados constitucionais, um grupo que conside- Constituição, a questão do conteúdo das disposições assu-
rou fundamentais, ao criar a argüição de descumprimento me importância ainda maior: como já se referiu, uma das
de preceito fundamental (ADPF). Já se fez referência a características mais destacadas das Cartas contemporâneas
este ponto. Embora nem a Constituição nem a Lei n°
9.882/1999 (que regulou a argüição) tenham definido
quais são os preceitos considerados fundamentais, a doutri- Ricardo de Souza. Hermenêutica e jurisdição constitucional, 2001; p. 18 a
na e a jurisprudência têm se ocupado desse mister. E em 49; e SARMENTO, Daniel. Apontamentos sobre a argüição de
todas as listas propostas figuram como fundamentais os descumprimento de preceito fundamental, Revista de Direito
Administrativo n° 224, 2001, pp. 95 a 116, 2001.
preceitos relacionados com a dignidade humana e com os
330 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. "Fundamentação e
direitos fundamentais329. normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz
do princípio democrático", In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso
de Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. IV,
329 Sobre o tema, v. BARROSO, Luís Roberto. O controle de 2002, p. 19: "(...) a tendência atual é de se passar a delimitar o campo da
constitucionalidade no direito brasileiro — Exposição sistemática da fundamentalidade com base em argumentos materiais, e não meramente
doutrina e análise critica da jurisprudência, 2004, pp. 215 a 248; REGO, teórico-formais ou positivos. É o que se verifica, p. ex., com a atribuição
Bruno Noura de Moraes. Argüição de descumprimento de preceito de fundamentalidade material a determinados direitos sociais através de
fundamental, 2003; TAVARES, André Ramos. Tratado da argüição de critérios decorrentes do conceito de mínimo existencial. Note-se que esta
preceito fundamental, 2001; VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de tendência específica, de se deslocar o debate do âmbito formal para o
constitucionalidade, 1999; BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição material, é somente uma das manifestações que se incluem em um
constitucional brasileira, 2001; MENDES, Gilmar Ferreira. Argüição de cenário contemporâneo mais amplo de ressurgimento do discurso sobre a
descumprimento de preceito fundamental e Argüição de descumprimento fundamentação filosófica dos direitos fundamentais. Aos antigos
de preceito fundamental: demonstração de inexistência de outro meio argumentos da positividade, se agregam argumentos situados no plano da
eficaz, disponíveis em www.iusnavigandi.com.br acesso em 28.05.2004; fundamentação racional. Nessa linha, pode-se afirmar, p. ex., que as
VELLOSO, Carlos Mário da Silva. A argüição de descumprimento de normas incluídas no âmbito do conceito de direitos fundamentais serão
preceito fundamental, Fórum Administrativo n° 24/2003; SILVA, José efetivadas já não só porque gozam de um determinado tipo de
Afonso da, Comentário de acórdãos, Cadernos de soluções positividade, mas também porque representam verdadeiros critérios de
constitucionais n° I, 2003; CLÈVE, Clemerson Merlin. "Algumas legitimação do próprio poder criador de positividade. Supera-se, assim, a
considerações em torno da argüição de descumprimento de preceito velha e já estéril dicotomia entre os planos da fundamentação e da
fundamental". In: SAMPAIO, José Adércio Leite e CRUZ, Álvaro efetividade."

248 249
é precisamente a decisão de constitucionalizar valores ma- to ao seu conteúdo não faria sentido algum diante das esco-
teriais e opções políticas"' . Ignorar as diferenças que exis- lhas do próprio constituinte originário.
tem entre os enunciados constitucionais no que diz respei- Nesse contexto, a decisão de tomar como critério para
a ponderação a preferência das normas que diretamente
promovem a dignidade humana justifica-se amplamente
331 Sobre a experiência alemã, v. ALEXY, Robert. El concepto y la com a Carta de 1988. É absolutamente tranqüilo na doutri-
validez dei derecho, 1994, p. 159: "El ejemplo más importante de una Ila332 e na jurisprudência que a Constituição fez uma opção
posición constitticionalista lo ofrece la axiología dei Tribunal
Constitucional Federal. (...) la Ley Fundamental contiene en su capitulo material clara pela centralidade da dignidade humana e,
sobre derechos fundamentales, un 'orden objetivo de valores' que, en como conseqüência direta, dos direitos fundamentais333.
tanto Idecisión iusconstitucional fundamental', vale para todos los
ámbitos dei derecho y del cual reciben 'directrices e impulsos' la
legislación, la administración y la justicia. La suposición de que, a más de
332 V. sobre o tema, na doutrina nacional, SARLET, Ingo Wolfgang.
ias normas de tipo tradicional, ai sistema jurídico pertenecen también
valores que, en tanto valores de range constitucional, ejercen un 'efecto
Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
de irradiación' en todo el derecho ordinario tiene amplias consecuencias. Federal de 1988, 2001; SANTOS, Fernando Ferreira dos. O princípio
La Constitución no es ya solo base de autorización y marco dei derecho constitucional da dignidade da pessoa humana, 1999; FARIAS, Edilsom
ordinario. Con conceptos tales como los de dignidad, libertad e igualdad Pereira de. Colisão de direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a
y de Estado de derecho, democracia y Estado social, la Constitución imagem versus a liberdade de expressão e informação, 1996; SILVA, José
proporciona un contenido substancial ai sistema jurídico." Na mesma Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da
linha, sobre a Carta espanhola, v. SEGADO, Franciso Fernández. La democracia, Revista de Direito Administrativo n°212, 1998, pp. 89 a 94;
teoria jurídica de los derechos fundam entales en la Constitución Espaiiola MENDES, Gilmar Ferreira. Os direitos fundamentais e seus múltiplos
de 1978 y en su interpretación por el Tribunal Constitucional, Revista de significados na ordem constitucional, Revista Brasileira de Direito Público
n° 2, 2003, pp. 91 a 104; ROCHA, Carmen Lucia Antunes. O princípio
Informação Legislativa n° 121, 1994, p. 73 e ss.. Sobre a Carta belga, a
despeito de se tratar de um texto bem mais antigo que os demais aqui
da dignidade da pessoa humana e a exclusão social, Revista Interesse
Público n° 4, 1999, p. 23 e ss.; NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O
referidos, v. DELPÉRÉE, Francis. "O direito à dignidade humana". In:
BARROS, Sérgio Resende de e ZILVETI, Fernando Aurelio direito brasileiro e o princípio da dignidade da pessoa humana, Revista de
(coordenadores). Direito constitucional — Estudos em homenagem a Direito Administrativo n° 219, 2000, p. 237 e ss.; SANTOS, Marcos
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, 1999, p. 151 e ss.. Na França, a André Couto. A delimitação de um conteúdo para o direito: em busca de
dignidade humana é considerada um elemento implícito desde a uma renovada teoria geral com base na proteção da dignidade da pessoa
Declaração de 1789. Assim tem se manifestado, reiteradamente, o humana, Revista de Informação Legislativa n° 153, 2002, pp. 163 a 191.
Conseil Constitutionnel: "Considérant que le peuble français a, par le Na doutrina estrangeira, v. ALEXY, Robert. Discourse Theory and
preambule de la Constitution de 1958, proclame solennellement 'son Human Rights, Rodo Juris, vol. 9, n° 1, 1996, pp. 209 a 235.
attachement aux droits de l'homnie et aux principes de la souveraineté 333 V., dentre muitos, o seguinte acórdão: STF, Ext 633/CH, Rel. Min.
nationale tels qu'ils ont été définis par la Déclaration de 1789, confirmée Celso de Mello, DJU 06.04.2001: "O fato de o estrangeiro ostentar a
et complétée par le preambule de la Constitution de 1946; qu'il ressort, condição jurídica de extraditando não basta para reduzi-lo a um estado de
par ailleurs, do preambule de la Constitution de 1946 que la sauvegarde submissão incompatível com a essencial dignidade que lhe é inerente
de la dignité de la personne humaine contre toute forme d'asservissement como pessoa humana e que lhe confere a titularidade de direitos
et de dégradation est un principe de valeur constitutionnelle" (Décision fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua insuperável
n°98408 DC, 22.01.1999). importância, a garantia do due process of law. Em tema de direito

250 251
Essa conclusão decorre de forma muito evidente da leitura O segundo fundamento que pode ser apresentado para
do preâmbulo, dos primeiros artigos da Carta e do status o parâmetro material proposto vem do direito internacio-
de cláusula pétrea conferido a tais direitos'. Com efeito, nal. O direito interno e as opções do constituinte nacional
não há autor, de direito público ou privado, que dão desta- fundamentam suficientemente o parâmetro aqui em dis-
que a dignidade da pessoa humana como elemento central cussão. Entretanto, na realidade contemporânea, seria pou-
do sistema jurídico, bem como sua superior fundamentali- co consistente empregar um critério oriundo do direito in-
dade, se comparada a outros bens constitucionais". Há, terno de forma isolada, sem levar em conta o entendimento
portanto, uma justificativa normativa de direito interno vigente na sociedade internacional sobre o tema, apenas
para o critério escolhido: a própria Constituição decidiu sob o argumento de que se trata de uma manifestação sobe-
posicionar a dignidade humana e os direitos fundamentais rana do Estado". Nesse contexto, e embora não exista
como centro do sistema por ela criado". O ponto é bastan- descompasso aqui entre o direito interno e o internacional,
te simples e não há necessidade de discorrer mais sobre ele. muito ao revés, vale examinar o tema sob a perspectiva do
direito internacional, ainda que rapidamente.
Os últimos sessenta anos, e o fim da Segunda Guerra
extradicional, o Supremo Tribunal Federal não pode e nem deve revelar
Mundial pode servir de marco inicial simbólico dessa fase,
indiferença diante de transgressões ao regime das garantias processuais caracterizam-se por uma crescente comunicação entre o
fundamentais. É que o Estado brasileiro — que deve obediência irrestrita direito interno e o internacional. São exemplos dessa nova
à própria Constituição que lhe rege a vida institucional — assumiu, nos realidade a profusão de atos internacionais versando assun-
termos desse mesmo estatuto político, o gravíssimo dever de sempre tos os mais variados", a existência de novas organizações
conferir prevalência aos direitos humanos (art. 40, II)."
internacionais339, o fortalecimento dos blocos regionais, a
334 Não há necessidade de discutir aqui a extensão da proteção conferida
pelo art. 60, § 4°, IV, da Constituição, embora esta não seja uma questão
pacífica.
335 O ponto é registrado por autores de direito público (e.g., o princípio (e valor) de maior hierarquia da nossa e todas as ordens
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, jurídicas que a reconheceram." V. também ALEXY, Robert. Discourse
2003, p. 149 e ss.) e de direito privado (e.g., LIRA, Ricardo Pereira. Theory and Human Rights, Ratio Juris, vol. 9, n° 1, 1996, pp. 209 a 235.
Direito amoradia, cidadania e o estatuto da cidade, Revista Trimestral de O mesmo se pode dizer em relação a outros textos constitucionais
Direito Civil n° 12, 2000, p. 260). contemporâneos, como o português, o espanhol, o alemão, o italiano, o
sul-africano, etc.
336 SARLET, Ingo Wolfgang. "Algumas notas em torno da relação entre
o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na 337 Como já se tornou corrente, a noção histórica da soberania vem
ordem constitucional brasileira". In: LEITE, George Salomão passando por ampla reformulação nas últimas décadas, tanto na sua feição
(organizador). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das interna, como na internacional, principalmente para o fim de impor-lhe
normas principiológicas da Constituição, 2003, pp. 225 e 226: "É limitações. V. MELLO, Celso Albuquerque. "A soberania através da
justamente para efeitos da indispensável hierarquização que se faz História". In: Anuário direito e globalização, PIDIG 1, A soberania, 1999.
presente no processo hermenêutico que a dignidade da pessoa humana 338 Dentre os assuntos mais comuns estão temas relacionados com
(ombreando em importância talvez apenas com a vida — e mesmo esta há direitos humanos, comércio, tributação, meio ambiente, cooperação
de ser vivida com dignidade) tem sido reiteradamente considerada como jurídica etc.

252 253
possibilidade (e a realidade) de inspeções e intervenções, sive a criação de uma nova disciplina, o Direito Internacio-
até mesmo armadas, de organismos internacionais em paí- nal dos Direitos Humanos, já introduzida em muitos cursos
ses que desrespeitem normas consideradas fundamentais universitários342 . Os principais organismos internacionais
pela sociedade internacional, dentre outros exemplos. rnultilaterais343, de que fazem parte considerável parcela
Pois bem. Uma das questões responsáveis por boa parte dos países do mundo, consideram a proteção dos direitos
desse fenômeno foi por certo, e continua a ser, o tema da humanos um de seus objetivos principais e contam com
proteção dos direitos hurnanos34° e o processo de interna- instrumentos institucionais para realizá-law. Há um nú-
cionalização dessa preocupação'''. O tema justificou inclu-

339 O fenômeno da proliferação das organizações internacionais é humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em
descrito em MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão
internacional público, vol. I, 2001, p. 573 e ss.. O autor traz alguns equivalentes às emendas constitucionais.
exemplos de organizações internacionais: Organização das Nações Unidas § 40 0 Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional
(ONU), Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização a cuja criação tenha manifestado adesão.".
Mundial do Comércio (OMC), Organização Internacional do Trabalho 342 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção
(OIT), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização de Aviação internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos
Civil Internacional (OACI), Organização Mundial de Saúde (OMS), básicos, 1991; PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito
entre outras. constitucional internacional, 2000; BONAVIDES, Paulo. "Os direitos
340 A expressão direitos humanos é mais freqüente no debate fundamentais e a Globalização". In: LEITE, George Salomão
internacional que direitos fundamentais. Alguns autores, com efeito, (organizador). Dos princípios constitucionais. Considerações em torno das
atribuem sentidos diversos às duas expressões. Direitos humanos seria a normas principiologicas da Constituição, 2003, pp. 165 a 179; e
expressão reservada ao conjunto de direitos ideais, metafísicos, derivados PIOVESAN, Flávia. "Direitos humanos e o princípio da dignidade
da natureza do homem, ao passo que os direitos fundamentais seriam humana". In: LEITE, George Salomão (organizador). Dos princípios
apenas aqueles reconhecidos por uma ordem jurídica positiva. Por essa constitucionais. Considerações em torno das normas principiológicas da
razão a expressão direitos humanos seria a locução mais freqüentemente Constituição, 2003, pp. 193 a 195: "Consagra-se, assim, a dignidade
empregada na esfera internacional. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito humana como verdadeiro superprincípio a orientar o Direito
constitucional e teoria da constituição, 1997, p. 347 e ss.. Internacional e o Interno. (...) É no valor da dignidade humana que a
ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida
341 Nessa linha, e mesmo fora da experiência da comunidade européia,
e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. (...) Assim,
vários países já alteraram suas Constituições para consagrar a
seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz do direito
superioridade hierárquica dos tratados internacionais de direitos
constitucional ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que
humanos sobre o direito interno, como é o caso da Argentina (1994),
unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial
Equador (1998) e Venezuela (1999). V. TORRES, Ricardo Lobo.
prioridade."
"Direitos humanos e tributação nos países latinos". In: TORRES, Ricardo
Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores). Arquivos de 343 Destacam-se, entre outras, a ONU, a OEA e a OMC.
direitos humanos, vol. III, 2001, p. 112 e ss.. O Brasil segue caminho 344 O Conselho Econômico e Social da ONU, por exemplo, conta com
semelhante. A recente Emenda Constitucional n° 45, de 8.12.2004, uma Comissão de Direitos Humanos. O ingresso na OMC depende de
introduziu os seguintes parágrafos ao artigo 5' da Carta de 1988: uma avaliação, feita pela organização, acerca da observação pelo país dos
"§ 3° Os tratados e convenções internacionais sobre direitos direitos humanos.

254 255
mero enorme de atos internacionais (tratados, declarações Neste ponto, todavia, é preciso fazer uma observação.
etc.) abordando pontos relacionados com a proteção dos Não se pode ignorar que o aparente consenso acerca dos
direitos humanos e praticamente todas as recentes direitos humanos na esfera internacional enfrenta algumas
intervenções patrocinadas por organismos internacionais dificuldades. A primeira dificuldade está relacionada com
pretenderam legitimar-se alegando a necessidade de prote- o descompasso entre esses padrões supostamente univer-
sais e a realidade institucional e cultural de muitos países,
ção dos direitos das populações locais345.
especialmente os não ocidentais ou de tradições diversas
Ou seja: o direito internacional encontra-se comprome- das ocidentais347.
tido com a dignidade humana e com a proteção dos direitos A segunda, se desenvolve no plano teórico e, alimenta-
humanos. Não é apenas a Constituição brasileira de 1988 da de certa maneira pela primeira, manifesta-se na forma
que consagra a dignidade humana como fim central do sis- de um conjunto de questionamentos: O que significa a lo-
tema jurídico e do Estado, para o qual todos os demais cução direitos humanos? De que direitos se está tratando
elementos devem convergir. Não se trata de uma idiossin- afinal? A tentativa de universalizar o discurso dos direitos
crasia nacional. Também o direito internacional comparti- humanos não seria uma modalidade de imposição e domi-
lha dessa mesma opção substantiva346 e, portanto, o parâ- nação culturais de um produto tipicamente ocidental sobre
metro proposto neste capítulo pode contar com fundamen- culturas totalmente diferentes? O que legitima essa impo-
tação não apenas no direito interno, mas também no direito sição? Ou, pior, o tema dos direitos humanos — até por sua
fluidez — não se prestaria facilmente a operar como urna
internacional.
justificativa ideológica e moral para um neo-imperialismo
político e econômico ocidental? Esse é o debate que opõe,
345 Seguem alguns exemplos de resoluções do Conselho de Segurança de um lado, aqueles que sustentam a universalidade dos
da ONU que autorizaram a intervenção militar em Estados membros por direitos humanos — os universalistas — e os que criticam
razões humanitárias: Resolução n° 688/1991 — Intervenção humanitária esse entendimento — os culturalistas, regionalistas ou rela-
no Iraque em função da repressão aos Curdos; Resolução n° 794/1992 — tivistas. Entre esses dois extremos, por evidente, há um
Intervenção humanitária na Somália, pois o país estava em estado de
anarquia decorrente da guerra civil entre várias facções; Resolução n"
conjunto de posições intermediárias'''.
929/1994 — Intervenção humanitária na Ruanda em razão das guerras
étnicas entre tutsis e hutus; Resolução n° 940/1994 — Intervenção
humanitária no Haiti decorrente do golpe de Estado efetuado pelos 347 É certo que também muitos países ocidentais não implementam
militares que levou o pais à guerra civil; Resolução n° 770/1992 — esses padrões, mas em geral o problema nesses casos não é de oposição
Intervenção humanitária na Bosnia-Herzegovina em razão da guerra civil cultural, mas de ineficiência político-administrativa, falta de recursos,
separatista empreendida pelo Estado; Resolução n° 1244/1999 — prioridades distorcidas, ou, ainda, de uma concepção específica acerca do
Intervenção militar em Kosovo também por razões humanitárias. Os sentido dos direitos humanos em determinadas circunstâncias, dentre
textos estão disponíveis em http://www.un.org/documents/. V. sobre o outros fatores. V. MAIA, Antônio Cavalcanti. "Direitos humanos e a
tema, RODRIGUES, Simone Martins. Segurança internacional e direitos teoria do discurso do direito e da democracia". In: TORRES, Ricardo
humanos: a prática da intervenção humanitária no pós-guerra fria, 2000. Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores). Arquivos de
346 Sobre o tema, v. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito direitos humanos, vol. II, 2000, p. 5 e ss..
constitucional internacional, 2000. 348 V. WALZER, Michael. Spheres of Justice —A Defense of Pluralism

256 257
A questão é complexa, não admite uma resposta sim- ses que com a decisão do Estado de implementar o conteú-
plista e cabe aqui apenas registrá-la. Nada obstante, uma do do ato. De todo modo, é sintomático que ainda assim os
nota importante deve ser feita. Um exame dos atos inter- governos se sintam compelidos a expressar compromissos
nacionais'49 sobre direitos humanos revela, ao contrário do com a dignidade humana e com os direitos humanos.
que talvez se pudesse imaginar, que entre seus subscritores Não há dúvida de que o debate entre universalismo e
não se encontram apenas países ocidentais ou ocidentaliza- culturalismo, identificado acima, além da relevância filosó-
dos'', mas também diversos países africanos e asiáticos, de fica, será vital no momento em que seja necessário delinear
tradições culturais totalmente diversas das ocidentais"'. É concretamente que direitos devem ser considerados direi-
certo que as formulações dos atos internacionais são muitas tos humanos e o que pode ser feito para impor seu cumpri-
vezes providencialmente genéricas e que o discurso exter- mento, sobretudo em ambientes de tradição cultural e ins-
no dos países não é necessariamente coerente com sua rea- titucional diversa da ocidental. Nada obstante isso, no nível
lidade interna, jurídica, histórica ou cultural. Também se- teórico, é possível dizer que há confortável consenso na
ria ingenuidade ignorar que, por vezes, a subscrição de um esfera internacional acerca da prioridade do homem e do
ato internacional está mais relacionada com outros interes- seu bem estar.
Além disso, o objetivo deste estudo é apresentar uma
proposta operacional de parâmetros para a técnica da pon-
and Equality, 1983, p. 9 e ss.; e, do mesmo autor, Thick and Thin. Moral
Argionent at Home and Abroad, 1994, p. 8 e ss.. deração dirigida à realidade jurídica ocidental. Desse
349 Aí incluídos de tratados a meras declarações. As declarações modo, o debate universalismo versus culturalisrno não im-
veiculam em geral valores de grande relevância e caráter duradouro e têm pede que se afirme, para os fins aqui em vista, que também
ampla influência nas relações internacionais, mas não possuem força a sociedade internacional compartilha da opção material
jurídica impositiva imediata. Apenas após serem amplamente pela dignidade humana como valor fundamental da ordem
reconhecidas é que são consideradas fontes de direito, como é o caso da
jurídica, ainda que no plano teórico e talvez em extensão
Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Os tratados (e
também as convenções, pactos e protocolos), por outro lado, são firmados menor que o direito interno352 . É o que basta para funda-
pelas pessoas de Direito Internacional com o objetivo de produzir efeitos
de direito em suas relações mútuas e, em geral, passam a integrar o direito
interno dos países com a ratificação. V. o Dicionário da Cidadania, 352 É apenas natural que haja dificuldade na construção de uma teoria
disponível em www.dhnet.org.br (acesso em 12.09.2004). universalmente válida sobre os direitos humanos, já que o direito é
350 Como, ainda que em parte, Austrália, Nova Zelândia e Israel, dentre sempre experiência cultural e histórica. Isso não impede, ao contrário,
outros. que se formulem teorias contextualizadas e válidas nesses ambientes. V.
351 O art. 4° da Carta Geral das Nações Unidas de 1945, por exemplo, LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito, 1969, p. 158: "A
admitiu como países membros, dentre outros, Afeganistão, Azerbaijão, validade objectiva de qualquer experiência imediata de valores é
Albânia, Coréia do Sul, Coréia do Norte, Emirados Árabes, Kuait, indemonstrável. O subjectivismo judicial, por outro lado, harmoniza-se
Nigéria, Paquistão, Somália, Tailândia, Uganda, Uzbequistão, Zâmbia e mal com a exigência de decisões uniformes e com a necessidade de
Zimbábue. Também a Declaração Universal dos Direitos do Homem de segurança jurídica. Afigura-se assim que a questão dos critérios de valor
1948 foi assinada por países como o Afeganistão, a China, a Etiópia, o Irã, não pode receber resposta satisfatória. A verdade, porém, é que a
o Iraque, o Líbano, o Paquistão e a Tailândia. experiência demonstra que em matéria de valor é também possível um

258 259
mentar a prioridade das normas que de forma direta pro- sideravelmente a possibilidade de ampliação pelo intérpre-
movem a dignidade humana quando em confronto com ou- te do conceito geral de dignidade humana. É certo que
tras que estão associadas a esse objetivo apenas de form resta o problema de delinear o núcleo dos princípios, que
a
indireta. terão natureza de regra: esse tema será retomado no último
Os dois elementos que se acaba de apresentar — direi- capítulo.
to interno e internacional — são mais do que suficientes Como referido, os dois fundamentos apresentados até
para fundamentar o parâmetro aqui em discussão. Em pri- este ponto para o parâmetro em questão fundam-se em
meiro lugar, como se acaba de sublinhar, porque o universo consensos substanciais, isto é, opções de conteúdo valorati-
de trabalho deste estudo é o sistema jurídico ocidental, que vo. Não se pode, no entanto, ignorar a constante crítica
comunga, tanto na esfera interna, como internacional, de filosófica e política que tem se voltado contra o emprego
consensos materiais acerca da dignidade humana e dos di- dessa espécie de consenso como fundamento de qualquer
reitos fundamentais. Ademais, o risco da indefinição ou de construção teórica ou como elemento de legitimação de
uma ampliação excessiva do conceito jurídico de proteção estruturas sociais e jurídicas, não apenas na esfera interna-
e promoção da dignidade humana — real nas discussões cional, mas também no âmbito do direito interno354.
internacionais —, é bastante reduzido no contexto da pro- O fundamento desse ceticismo acerca de consensos
posta deste estudo. materiais repousa, em última análise, na percepção de uma
Como já exposto, o primeiro parâmetro a ser emprega- sociedade (interna e internacional) cada vez mais plural,
do no processo ponderativo consagra a preferência das re- dividida por concepções as mais diversas acerca de defini-
gras sobre os princípios (sua área não nuclear, na verdade). ções valorativas (o que é a justiça, o bem ou o belo), ten-
Assim, no mais das vezes, o segundo parâmetro lidará ape- dências políticas e ideológicas, opções pessoais de vida355,
nas com disputas envolvendo regras353, o que restringe con- dentre tantos outros aspectos. A revisão das grandes ideo-

consenso, e que há portanto critérios de valor que — pelo menos numa 354 HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre facti cidade e
época e numa comunidade cultural determinadas — são reconhecidos de validade, vol. I, 2003; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição
modo dominante. (...) Se extrairmos desta ordem 'positiva' de valores constitucional democrática, 2004, p. 135 e ss.; POZZOLO, Suzanna. "Un
princípios jurídicos susceptíveis de fornecer orientação ao legislador e ao constitucionalismo ambíguo". In: CARBONELL, Miguel (organizador).
juiz, obteremos uma espécie de Direito natural relativo, constituído pelos Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 187 e ss.; e BARBEAIS, Mauro.
valores que são objectos de experência histórica — isto é, que se dão à "Neoconstitucionalismo, democracia e imperialismo de la moral". In:
consciência do homem na realidade histórica de determinada época." CARBONELL, Miguel (organizador). Neoconstitucionalismo(s), 2003, p.
353 Em tese, o segundo parâmetio poderá ter de lidar com normas 259 e ss..
oriundas de um conflito do tipo regra versus regra ou do tipo área não 355 V. WALZER, Michael. Spheres of Justice —A Defense of Pluralism
nuclear de princípio versus área não nuclear de princípio. Esta segunda and Equality, 1983; ALMEIDA, Ricardo. "A critica comunitarista ao
hipótese, bastante incomum, terá lugar quando a questão não seja liberalismo". In: TORRES, Ricardo Lobo (coordenador). Teoria dos
regulada por regra alguma. Nesse caso, como já determinava a Lei de direitos fundamentais, 1999; e CITADINO, Gisele. Pluralismo, direito e
Introdução ao Código Civil, o intérprete terá de recorrer à analogia, ao justiça distributiva — Elementos da filosofia constitucional
costume e aos princípios afinal, ainda que em sua área não nuclear. contemporânea, 1999, p. 159 e ss..

260 261
logias do século XX, com a decadência do socialismo histó- tros condicionantes, indivíduos cru um estado original e
rico e a crise do Estado de bem estar social, agravou ainda sob o "véu da ignorância" firmam um novo contrato social
mais esse quadro. De acordo com esses críticos, não é pos- sem saber quais serão suas convicções valorativas e ideoló-
sível identificar um consenso material compartilhado pelos gicas na sociedade. O conteúdo do novo contrato social não
diversos grupos dentro da sociedade de modo que, por essa pode depender das concepções materiais dos participantes
razão, não é possível empregar tais consensos como funda- e nem se justifica com base nelas; sua legitimidade está
mento legitimador de decisões ou estruturas no âmbito da fundada na correção do procedimento por meio do qual foi
sociedade política. possível chegar aos princípios propostos pelo autor. E certo
Já que não é viável concluir, sob urna perspectiva co- que Rawls não adota um procedimentalismo radical: fixa-
mum a todos, que determinada solução é materialmente dos esses princípios no momento inicial, as deliberações
boa ou justa, tudo o que se pode pretender é a existência de
um procedimento para a tomada de decisões que, por suas
características, ainda que apenas formais, possa legitimar as para alcançá-lo. Na justiça processual perfeita, há um padrão
decisões que venham a ser apuradas. Ou seja: corno não se independente e preciso para decidir qual o resultado justo, bem como uni
procedimento que garante a obtenção de tal resultado. O autor reconhece
pode controlar o resultado produzido ao final desse proce- que esta situação é ideal, não se verificando na prática de forma relevante.
dimento, uma vez que isso exigiria um juízo de natureza Por outro lado, a característica da justiça processual imperfeita é que,
material, os autores, a partir de diferentes pressupostos e embora haja um critério independente para determinar qual o resultado
com propósitos igualmente diversos, ocupam-se de discu- correto, não há qualquer processo prático que assegure que ele será
tir modelos procedimentais, suas características, seus pres- atingido. Por fim, a justiça processual pura aplica-se quando não há
supostos e as condições necessárias para seu desenvolvi- critério independente para o resultado justo, mas existe um processo
mento. correto ou equitativo que, devidamente aplicado e respeitado, permite
que o resultado, seja ele qual for, seja igualmente correto ou equitativo.
Esse elemento procedimentalista e crítico dos consen- Este é o modelo adotado pelo autor em sua teoria já que, como
sos materiais, em maior ou menor intensidade, está presen- conseqüência da diversidade individual de projetos e concepções de vida
te em diferentes construções teóricas contemporâneas. e de justiça, Rawls entende que não há um resultado justo
John Rawls (Uma teoria da justiça e Liberalismo políti- pré-estabelecido e consensual entre os homens. O que a sua teoria da
co356) emprega o raciocínio procedimental ao discutir prin- justiça pretende é estabelecer um procedimento equitativo que conduza
a um resultado, se não justo, ao menos não injusto. V. John Rawls, Uma
cípios para ordenação da sociedade justa. Na formulação teoria da justiça, 1993, p. 86 e ss.. V. também TORRES, Ricardo Lobo.
do autor, esses princípios são concebidos a partir de um A teoria da justiça de Rawls e o pensamento de esquerda, Revista da
modelo de "justiça processual pura"3" no qual, dentre ou- Faculdade de Direito da UERJ n° 5, pp. 157 a 175, 1997; BARCELLOS,
Ana Paula de. "O mínimo existencial e algumas fundamentações: John
Rawls, Michael Walzer e Robert Alexy". In: TORRES, Ricardo Lobo
356 RAWLS, John. Uma teoria da justiça, 1993; e Liberalismo político, (organizador). Legitimação dos direitos humanos, 2002; e SOUZA
1992. . NETO, Cláudio Pereira de. "Fundamentação e normatividade dos
357 Rawls confronta três noções correlatas: a justiça processual perfeita, direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à luz do principio
a justiça processual imperfeita e a justiça processual pura. Cada uma delas democrático". MELLO, Celso de Albuquerque e TORRES, Ricardo
vai trabalhar com dois elementos: a qualidade do resultado e o processo Lobo (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. IV, 2002, p. 49.

262 263
públicas posteriores (inclusive as relacionadas com o con- Essas reflexões de cunho predominantemente filosófi-
teúdo da Constituição e das leis) estão a eles vinculadas co refletem sobre a Teoria do Direito em geral e, em parti-
para o fim de aplicá-los e desenvolvê-los359. cular, sobre a Teoria da Constituição. O chamado constitu-
A concepção de Jurgen Habermas acerca da razão co- cionalismo procedimental trabalha justamente com a idéia
municativa adota a lógica procedimental de forma muito de que as opções de caráter material, valorativo, devem
mais abrangente359. Para Habermas, a legitimação do direi- ficar a cargo da deliberação majoritária em cada momento
to nas sociedades contemporâneas deve ser construída a histórico362, cabendo à Constituição tratar apenas das re-
partir do consenso obtido por meio da comunicação e diá- gras e procedimentos necessários para o funcionamento
logo públicos, e não a partir de argumentos autoritativos ou das estruturas democráticas353 . Embora haja nesse caso
consensos materiais prévios"°. Sendo assim, a deliberaçã o toda uma fundamentação democrático-majoritária para a
pública está aberta a qualquer resultado final no que diz teoria (que, a rigor, não deixa de ser uma opção material),
respeito ao seu conteúdo, justificando-se na medida em
que o procedimento seja adequado"'.
conseguinte, esta característica implica que os conteúdos morais surgirão
da própria vida social, por meio dos embates travados pelos próprios
interessados, os quais, seguindo a moldura argumentativa proposta pela
358 Sobre esse elemento substancialista ou material da teoria de Rawls, ética do discurso, podem chegar consensualmente a acertar suas
veja-se a bela tese de doutorado de Cláudio Pereira de Souza Neto, ainda diferenças. De modo algum o teórico, dentro da perspectiva da ética
em mimeo, Teoria constitucional e democracia deliberativa, 2004. comunicativa, assume a posição de quem pode indicar padrões
359 Para um exame mais amplo do pensamento de Habermas sobre o axiológicos; o que ele sustenta é a inevitabilidade do reconhecimento de
ponto, v. MAIA, Antônio Cavalcanti. "Direitos humanos e a teoria do determinadas regras de argumentação provenientes de uma análise
discurso do direito e da democracia". In: TORRES, Ricardo Lobo e interna das propriedades da comunicação lingüística em geral. A ética do
MELLO, Celso Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos discurso é um veículo para a reflexão sistemática acerca do problema de
humanos, vol. II, 2000, pp. 3 a 80. como obter um acordo racionalmente motivado em uma sociedade
360 HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre facticidade e pluralista."
validade, vol. I, 2003, p. 154 e ss.; CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. 362 Veja-se, sob uma perspectiva diversa, SUNSTEIN, Cass R. Legal
Jurisdição constitucional democrática, 2004, p. 193 e ss.; e Reasoning and Political Conflict, 1996.
CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da 363 ELY, John Hart. Democracy and Distrust. A Theoty of Judicial
Constituição, 1998, p. 1310 e ss.. Review, 1980; VIEIRA. Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de
361 MAIA, Antônio Cavalcanti. "Direitos humanos e a teoria do discurso justiça, 1999, p. 213 e ss.; BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição
do direito e da democracia". In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso constitucional brasileira, 2001, p. 93 e ss.; PIRES, Francisco Lucas.
Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. II, "Legitimidade da justiça constitucional e principio da maioria". In:
2000, pp. 22 a 27: "A ética do discurso pode ser caracterizada como uma Legitimidade e legitimação da justiça constitucional — Colóquio no 100
ética da argumentação. (...) Além da ética do discurso apresentar-se como aniversário do Tribunal Constitucional, 1995, p. 167 e ss.; e HAGE
universalista, cognitivista e deontológica, ela também possui uma SOBRINHO, Jorge. "Democracy and distrust — A Theoly of judicial
característica formalista (...) Afinal, uma ética formalista deve poder review" — John Hart Ely: resumo e breves anotações à luz da doutrina
fornecer um princípio que justificadamene consiga dirimir questões contemporânea sobre interpretação constitucional, Arquivos do Ministério
prático-morais litigiosas por meio de um acordo racional motivado. Por da Justiça n°48 (186), 1995, pp. 201 a 225.

264 265
o constitucionalismo procedimental se funda també m dos os canais de participação popular, por exemplo. E,
no igualmente, cada indivíduo deve ter respeitado um conjun-
pressuposto de que, além de indesejável, na verdade seria
inviável contar com consensos materiais permanentes. to básico de direitos fundamentais, sem os quais ele não
Há, no entanto, um aspecto fundamental a ser observa- terá condições de exercer sua liberdade, de participar cons-
do aqui. As diferentes teorias que incorporam elementos cientemente do processo político democrático e do diálogo
procedimentais, e é o que acontece com os exemplos lista- no espaço público366 . Em outras palavras, o sistema de diá-
logo democrático não tem como funcionar de forma mini-
dos nos parágrafos anteriores, assumem como pressuposto
mamente adequada se as pessoas não tiverem condições de
a igualdade de todos os indivíduos364 e, a fortiori, uma pri-
dignidade ou se seus direitos, ao menos em patamares mí-
meira característica legitimadora dos diferentes modelos
nimos, não forem respeitados.
procedimentais por eles propostos deverá ser seu caráter Na mesma linha, o constitucionalismo procedimental
democrático365. Ora, a conseqüência direta desses pressu- reconhece que, além de regras puramente procedimentais
postos — a igualdade e o caráter democrático do procedi- (como a disciplina das eleições e da separação de poderes),
mento — é a necessidade de assegurar a liberdade das pes- as Constituições também devem tratar da proteção de di-
soas para que elas possam participar do procedimento. E, reitos fundamentais367 . Na verdade, o regime democrático
para que essa liberdade possa ser exercida em condições depende de todos os cidadãos terem assegurado um con-
razoáveis, exige-se também um conjunto mínimo de condi- junto mínimo de direitos que permita sua participação livre
ções materiais, como educação, alimentação, etc. e consciente na formação da vontade majoritária. Note-se
Habermas registra exatamente que o funcionamento
adequado de sua proposta exige um conjunto de condições
ou pré-requisitos. É necessário manter livres e desobstruí- 366 HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre facticidade e
validade, vol. I, 2003, p. 154 e ss.; MAIA, Antônio Cavalcanti. "Direitos
humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia". In: TORRES,
364 AARNIO, Aulis. Reason and Authority, 1997, p. 217 e ss.; e ALEXY, Ricardo Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores). Arquivos
Roberto. Derechos, razonamietzto jurídico e discurso racional. Revista de direitos humanos, vol. II, 2000, p. 58 e ss.; NASCIMENTO, Rogério
Isonoinia n° 1, 1994, pp. 48 e 49: "Para el argumento que quiero Soares do. "A Ética do discurso como justificação dos direitos
presentar ahora, solo necesito la idea de libertad e igualdad en los fundamentais na obra de Jürgen Habermas". In: TORRES, Ricardo Lobo
argumentos, que es la base normativa de la teoria dei discurso. La teoria (organizador), Legitimação dos direitos humanos, pp. 451 a 498, 2002;
del discurso sostiene que una argumentación que excluye o suprime BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdição constitucional brasileira,
personas o argumentos — excepto por razones pragmáticas que tienen 2001, p. 47 e ss.; e SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. "Fundamentação
que ser justificadas — no es una argumentación racional, y que las e normatividade dos direitos fundamentais: uma reconstrução teórica à
justificaciones que se obtienen de la misma soa defectuosas. (...)Mi tesis luz do principio democrático". In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO,
es que el resultado de un discurso racional seria un sistema de derechos Celso de Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos humanos,
fundamentales que incluya una preferencial prima facie de los derechos vol. IV, 2002.
individuales sobre los bienes colectivos." 367 BAYÓN, Juan Carlos. "Derechos, Democracia y Constitución". In:
365 O que, a rigor, não deixa de ser uma opção material de caráter CARBONELL, Miguel (organizador). N eoconstitucionalismo (s), 2003, p.
valorativo. 225 e ss..

266 267
que esses direitos deverão ser respeitados quer se faça par- Por fim, também Rawls reconhece que o funcionamen-
te da maioria ou não368 . Se a maioria pudesse violar os direi- to de seu modelo de justiça processual pura pressupõe logi-
tos da minoria, ela poderia destruir o próprio sistema de- camente a garantia não apenas de liberdades aos indiví-
mocrático, obstruindo os canais de participação e instalan- duos, mas também de condições elementares de existência
do uma ditadura do grupo majoritário naquele momento material. Com efeito, o autor registra que, para que o pro-
histórico369. cedimento decidido pelos indivíduos no estado original
seja verdadeiramente eqüitativo, é necessário que eles te-
368 Sobre o tema das relações democracia e direitos fundamentais, v.
nham assegurado um conjunto de direitos, que deve incluir
Landelino Lavilla. "Constitucionalidad y legalidad. Jurisdiccion os direitos de liberdade e condições materiais mínimas
constitucional y poder legislativo". In: Division de poderes e para o exercício dessas liberdades. A falta desse pressupos-
interpretacion — Hacia una teoria de la praxia constitucional, PINA, to, o processo deixa de ser eqüitativo, arruinando a lógica
Antonio Lopes (organizador), 1997, pp. 58 a 72; QUADRA, Tomás de la; procedimental concebida pelo autor"°.
PERGOLA, Antonio La; GIL, Antonio Hernández;
RODRIGUEZ-ZAPATA, Jorge Gustavo; ZAGREBELSKY;
BONIFACIO, Francisco P.; DENNINGER, Erhardo e HESSE, Conrado. that law as unconstitutional. That would presumably be an occasion on
"Metodos y criterios de interpretacion de la constitucion". In: PINA, which the majoritarian premise was flouted, but though this is a matter of
Antonio Lopes (organizador). Division de poderes e interpretacion — regret according to the majoritarian conception of democracy, it is not
Hacia una teoria de la praxia constitucional, 1997) p. 134; e SEGADO, according to the constitutional conception." No mesmo sentido, v.
Francisco Femández. La teoria jurídica de los derechos fundamentales en MARTINEZ, Gregorio Peces-Barba. Derechos sociales y positivismo
la Constitución Espariola de 1978 y en su interpretacion por el Tribunal jurídico, 1999, p. 57: "El primer argumento pues, para defender su
Constitucional, Revista de Informação Legislativa n° 121, 1994, p. 77: inclusión en la categoria genérica de los derechos fundamentales, pasa por
"(...) los derechos son, simultaneamente, la conditio sine qua non dei este reconocimiento de la conexión de los derechos económicos, sociales
Estado constitucional democrático." y culturales, con la generalización de los derechos políticos. Su objetivo
369 Essa observação é comum a procedimentalistas e substancialistas, era la igualdad a través de la satisfacción de necesidades básicas, sin Ias
como se vê da observação de um não procedimentalista como cuales muchas personas no podián alcanzar los niveles de humanidad
DWORKIN, Ronald. Freedom's Law. The Moral Reading of the American necesarios para disfrutar de los derechos individuales, civiles y políticos,
Constitution, 1996, pp. 17 e 18: "Democracy means govemment subject para participar en plenitud en la vida política y para disfrutar de sus
to conditions — we might call these the 'democratic' conditions — of beneficios."; PEREZ LUNG, Antonio Enrique. Derechos humanos,
equal status for ali citizens. When majoritarian institutions provide and Estado de derecho y Constitucion, 1999, p. 227.; e ESPADA, João Carlos.
respect the democratic conditions, then the veredicts of these Direitos sociais e cidadania, 1999; e GARCIA, Maria. Implicações do
institutions should be accepted by everyone for that reason But when princípio constitucional da igualdade, Revista de Direito Constitucional e
they do not, or when their provision or respect is defective, there can be Internacional n° 31, 2000, p. 109 e ss..
no objection, in the name of democracy, to other procedures that protect 370 RAWLS, John. Uma teoria da justiça, 1993, p. 221. V. também pp.
and respect them better. The democratic conditions plainly include, for 81 e 222. Mais eapercificamente, vale conferir os seguintes trechos de seu
example, a requirement that public offices must in principie be open to Liberalismo político, 1992,pp. 32 e 33: "En especial, el primer principio,
members of ali races and groups on equal terms. If some law provided que abarca los derechos y libertades iguales para todos, bien puede sir
that only mernbers of one race were eligible for public office, then there precedido de un principio que anteceda a su formulación, el cual exija que
would be no moral cost — no matter for moral regret at ali — if a court las necesidades básicas de los ciudadanos sean satisfechas, cuando menos
that enjoyed the power to do so under a valid constitution struck down en la medida en que su satisfacción es necesaria para que los ciudadanos

268 269
Ainda que não se compartilhe inteiramente da posição Um exemplo do emprego desse parâmetro pode ser
descrita acima do ponto de vista filosóficom e, mais que observado na interpretação que significativa parte da dou-
isso, que ela não produza um impacto tão importante do trina — a nosso ver com acerto—confere ao art. 213, § 1°
ponto de vista operacional no funcionamento do parâmetro da Constituição Federal, referente à destinação dos recur-
aqui em discussão (já que o estudo ocupa-se de uma pro- sos públicos na educação. O dispositivo tem a seguinte dic-
posta jurídica, e não filosófica, destinada a operar em um ção:
sistema constitucional que já fez uma opção material pela
dignidade humana, como é o caso da Carta de 1988), há "§ 1° Os recursos de que trata deste artigo poderão ser
aqui um ponto que merece ser sublinhado. Mesmo concep- destinados abolsas de estudo para o ensino fundamental
ções que operam com categorias essencialmente procedi- e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem
mentais acabam por reconhecer que os direitos fundamen- insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas
tais terão de ser prioritariamente respeitados, ainda que e cursos regulares da rede pública na localidade da resi-
sob fundamentos diferentes e provavelmente em extensão dência do educando, ficando o Poder Público obrigado a
menor do que a pretendida pelos fundamentos materiais investir prioritariamente na expansão de sua rede na
de direito interno e internacional. localidade."
Em suma: seja por se tratar de uma opção material cla-
A leitura imediata do enunciado leva o intérprete à se-
ramente perceptível na Constituição de 1988, seja por de-
guinte conclusão: não havendo vagas suficientes na rede
correr de um consenso universal, seja pela necessidade de
pública de ensino, e enquanto o Poder Executivo investe na
construir um ambiente no qual procedimentos democráti- sua expansão, caberá ao Legislativo disciplinar a concessão
cos e eqüitativos possam funcionar, a prioridade das nor-
de bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio
mas que diretamente promovem a dignidade — quando em para os que demonstrem insuficiência de recursos. Mas e
conflito insuperável com outras cuja relação com o bem se não houver vagas na rede pública e nem lei regulando a
estar individual seja apenas indireta — encontra-se ampla- matéria? Poderá o Judiciário, provocado, determinar a con-
mente justificada do ponto de vista jurídico e racional. cessão de bolsas de estudo?
A resposta de boa parte da doutrina à pergunta que se
acaba de formular é positiva. O conflito normativo no caso
entiendan y puedan ejercer fructiferamente esos derechos y esas
libertades. Ciertamente, tal principio precedente debe adoptarse al pode ser desenhado, resumidamente, da seguinte forma.
aplicar el primer principio.". Os princípios da legalidade e da separação de poderes exi-
371 Para urna crítica às teses procedimentalistas, v. BONAVIDES, gem a lei para que as bolsas de estudo sejam concedidas, já
Paulo. A constituição aberta, 1996, p. 33 e ss. (embora o autor se ocupa que a decisão envolve dispêndio de recursos públicos, exi-
mais especificamente do procedimentalismo sociológico, suas reflexões gência que afinal consta do próprio dispositivo com nature-
podem ser generalizadas); e STRECK. Lênio Luiz. Jurisdição
constitucional e hermenêutica. Unia nova crítica do direito, 2004, p. 147
za de regra, por meio da locução na forma da lei. De outra
e ss.. parte, os enunciados que consagram o direito fundamental

270 271
à educação — no caso do ensino fundamental claramente Note-se um aspecto interessante. Na hipótese, não foi
sob a forma de regra — postulam que, de alguma forma, o sequer necessário afastar a regra que exigia lei: bastou con-
indivíduo tenha acesso ao ensino fundamental e médio e ferir-lhe uma interpretação capaz de acomodar a preferên-
possa usufruir desse direito. cia em favor dos direitos do indivíduo. Como registrado ao
Qual deve ser a escolha então? Atender à regra que tratar da terceira etapa da ponderação, sempre que possível
exige lei prevista no dispositivo, e assim manter fora da convém evitar que algum dos enunciados em conflito seja
escola um indivíduo sem recursos para obter educação for- totalmente esvaziado.
mal por outro meio? Ou obedecer à regra constitucional Em resumo do que se expôs até aqui é possível registrar
sobre educação fundamental e admitir a concessão de bol- o seguinte. Os dois parâmetros descritos, neste capítulo e
sas mesmo na ausência de lei? Qual das duas normas deve no anterior, têm natureza geral, isto é, procuram fornecer
prevalecer? ao intérprete preferências racionais e juridicamente consis-
Em atenção à centralidade constitucional da pessoa hu- tentes para a solução dos conflitos normativos que, por suas
mana, de sua dignidade e dos direitos fundamentais, diver- peculiaridades, exijam o emprego da ponderação. A prefe-
sos autores têm concluído que é preferível restringir par- rência das regras sobre os princípios orienta o intérprete na
cialmente os princípios da legalidade e da separação dos primeira fase da ponderação, quando são identificados os
poderes, que se relacionam indiretamente com o bem estar enunciados relevantes. A preferência das normas que pro-
do homem no caso, e assesurar ao indivíduo o acesso à movem diretamente a dignidade opera na terceira fase,
escola a fazer o inverso372 . E possível cogitar-se, inclusive, momento em que as normas propriamente ditas já foram
para que a regra ("na forma da lei") não seja completamen-
apuradas
te ignorada, que ela se destina apenas ao Executivo, que Entre a primeira e a terceira fases da ponderação, po-
não poderá, sem lei, conceder bolsas de estudo em escolas rém, há uma etapa intermediária, na qual são identificados
privadas, ao invés de investir na expansão da rede pública. os fatos relevantes, atribuídos pesos aos elementos norma-
O Judiciário, no entanto, não estará limitado por essa res- tivos e afinal construídas as normas em disputa, que conti-
trição, mesmo porque, no momento em .que a disputa che- nua desvinculada de qualquer parâmetro objetivo. Na ver-
ga ao Judiciário, isso significa que nem o Poder Executivo dade, a construção de parâmetros ou standards capazes de
ofereceu vagas na rede pública e nem o Legislativo regula- orientar o intérprete nesse momento depende do estudo
mentou a concessão de bolsas. da casuística dos conflitos. Aqui será preciso construir pa-
râmetros específicos para cada tipo de conflito de que se
372 V. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios possa cogitar, seja por meio do levantamento de casos reais,
constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. e nesse sentido o estudo da jurisprudência é da maior im-
260 e ss.; BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a
efetividade de suas normas, 2003, p. 114 e ss.; e SANTOS, Marcelo de
portância, seja pela elaboração teórica de conflitos hipoté-
Oliveira Fausto Figueiredo. As normas programáticas — Uma análise ticos.
político-constitucional, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Este trabalho não se ocupa de examinar ou propor parâ-
Política n° 16, 1996, p. 119 e ss.. metros para conflitos específicos, já que cada um deles exi-
272
273
ge um estudo particular e demanda uma pesquisa autôno-
ma373. O objetivo do próximo capítulo é apenas propor ele-
mentos que possam auxiliar a construção desses parâme-
tros particulares.

373 Em importante estudo, Daniel Sarmento examina a tensão entre


direitos fundamentais nas relações entre particulares e propõe dois X. Parâmetros específicos: Elementos para
parâmetros principais que deverão orientar o intérprete na decisão dessa sua construção ou um roteiro para a
espécie de conflito: (i) a desigualdade fática entre as panes da relação
jurídica e (ii) a circunstância de a questão controvertida envolver opções ponderação preventiva ou abstrata
existenciais da pessoa ou decisões de caráter patrimonial ou económico.
Confira-se, SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações
privadas, 2004, pp. 375 e 376: "31. Para conferir maior previsibilidade e
reduzir as margens de arbítrio na ponderação judicial de interesses ligada
à aplicação de direitos fundamentais nas relações entre particulares, é Os parâmetros específicos ou particulares, como já se
importante delinear alguns standards. Todavia, nesta matéria não há registrou, destinam-se a orientar de forma mais precisa a
como fugir completamente de uma análise tópica, voltada para as
solução dos conflitos a partir da análise das características
peculiaridades de cada caso concreto. 32. Um dos parâmetros
importantes nesta questão liga-se ao grau de desigualdade fática entre as
próprias dos diferentes elementos normativos em disputa e
partes da relação jurídica. A assimetria de poder numa determinada das circunstâncias concretas que os envolvem. Eles não dis-
relação tende a comprometer o exercício da autonomia privada da parte pensam o uso dos parâmetros gerais; ao contrário, em seu
mais fraca, expondo a um risco maior seus direitos fundamentais. Por isso, processo de construção os parâmetros gerais devem ser in-
quanto mais a relação for assimétrica, maior será a vinculação da parte corporados, como se verá adiante.
mais forte ao direito fundamental em jogo, e menor a tutela da autonomia De forma simples, o esforço associado à definição de
privada. Sem embargo, mesmo nas relações tendencialmente iguais, os parâmetros específicos tem por objetivo delinear da forma
direitos fundamentais incidem, para impor um mínimo de respeito à
mais precisa possível o sentido de cada enunciado e as prin-
dignidade da pessoa humana, que é irrenunciável. 33. Nestas
ponderações, outro fator relevante é a natureza da questão sobre a qual cipais normas que dele derivam. Para isso devem ser leva-
gravita a controvérsia. Nas questões ligadas as opções existenciais da dos em conta sua própria estrutura normativa, as circuns-
pessoa, a proteção à autonomia privada é maior. Já nos casos em que a tâncias de fato envolvidas em sua aplicação com maior fre-
autonomia do sujeito de direito ligar-se a alguma decisão de cunho qüência, outros elementos normativos existentes no siste-
puramente econômico ou patrimonial, tenderá a ser mais intensa a tutela ma que o limitam (ou até mesmo que com ele se chocam
ao direito fundamental contraposto. Nestas relações patrimoniais, por sua em determinados ambientes) e as diferentes normas que
vez, a proteção da autonomia privada será maior, quando estiverem em surgem nesses contextos. Uma vez que o universo de cada
jogo bens considerados supérfluos para a vida humana, .e menor quando o
caso envolver bens essenciais para a dignidade da pessoa."
enunciado seja mapeado sob essa perspectiva múltipla, o

274 275
intérprete terá a sua disposição — para sua instrução e tam- tretanto, o fato de não ser viável imaginar parâmetros abso-
bém para o controle de sua atuação — uma quantidade lutos ou completos (ali things consideredn não impede
importante de parâmetros e preferências abstratas374. A que se conceba aquilo que é possível para os fins desejados.
partir delas será mais fácil visualizar, em cada caso real, os A construção dos parâmetros particulares em abstrato pre-
elementos de fato relevantes e os pesos que devem ser tende fornecer ao aplicador balizas para orientar sua deci-
atribuídos aos diferentes conjuntos normativos ao longo do são, discutidas ampla e previamente pela doutrina, no espa-
processo de ponderação. ço público'. De toda sorte, como já se registrou, os parâ-
É certo que não se pode pretender antecipar por inteiro
as complexidades da vida real para o fim de identifica r
todas as circunstâncias que podem interferir na aplicação principios constitucionales". In: CARBONELL, Miguel (organizador).
de um enunciado normativo. Isso seria impossível3". En- Neoconstitucionalismo(s), 2003, ppj.- 120 e 121: "En relación con la
movilidad de las jerarquizaciones ideales de nuestros principios en
conflicto, hay algún grado de indeterminacion en la aplicación de los
principios en conflicto, pero la movilidad no supone la incapacidad de
374 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
convertir la ponderación en una operacion de subsunción. La racionalidad
expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, pp. 910 e 911: "Os
subsuntiva es, en mi opinión, un presupuesto necesario para la
resultados obtidos na categorização são, à partida, funcionalment e
justificación de todas nuestras decisiones. Es posible, sin embargo, que no
orientados para a formulação de regras gerais de preferência relativa entre
siempre estemos en condiciones de articular consistentemente nuestras
bens ou de valoração diferenciada de modalidades concretas de exercício
evaluaciones, que nuestras intuiciones sean opacas a la articulacion, y,
dos direitos fundamentais — regras que resultam de ponderações, mas
claramente, es también posible que no estemos interesados en justificar
que, simultaneamente, permitem a orientação e estruturação de
algunas de nuestras decisiones (...). Sin embargo, en la medida en que
ponderações futuras. (...) A formulação deste tipo de regras pode, ainda,
consigamos aislar un conjunto de propiedades relevantes, estamos en
desenvolver-se num nível muito mais concreto e capaz de fornecer a
disposición de ofrecer soluciones para todos los casos, aunque dichas
solução dos posteriores casos com dispensa de recurso a ponderações de soluciones puedan ser desafiadas cuanto cuestionamos la adecuacion del
caso concreto, na medida em que a máxima previamente fixada, ainda
criterio por el cual hemos seleccionado las propiedades relevantes. Ahora,
que formulada com base em anteriores ponderações, estabeleça já uma
bien, idealmente el juez constitucional que aplica principios
relação de prioridade concretizável através de procedimentos de mera
constitucionales opera con un conjunto delimitado de propiedades
subsunção e só infirmável através da ponderação de novos factores
relevantes que permiten correlacionar de manera unívoca determinados
circunstanciais não considerados na formulação da regra em causa ou
casos genéricos con sus soluciones normativas. La ponderacion consiste en
mediante novos resultados de ponderação que conduzam à alteração da
la articulacion de ese conjunto de propiedades relevantes, en la
regra anterior. Nessas circunstâncias, a formulação de uma regra funciona
explicitacion de las condiciones de aplicación que previamente eran solo
simultaneamente como orientação e quadro das futuras ponderações que
implícitas. Una vez realizada esta tarea, la aplicación de los principios
devam ocorrer por força da necessidade de consideração de novos
consiste en la subsunción de casos individuales en casos genéricos. Si la
factores, mas constitui também, enquanto parâmetro substantivo que o
aplicación del Derecho consiste en resolver casos individuales mediante
Estado deve observar, um standard de controlo das restrições que
la aplicación de pautas generales, entonces — por razones conceptuales —
venham a ocorrer no contexto abrangido pela regra"
no hay aplicación del Derecho sin subsunción."
375 José Juan Moreso sustenta, otimisticamente, que a construção de
376 PECZENIK, Aleksander. On Law and Reason, 1989, p. 76 e ss..
parâmetros pode chegar a reduzir toda a ponderação a subsunção, na
medida em que sempre poderia existir um parâmetro ao qual o caso 377 Neste ponto, a contribuição dos conceptualistas é da maior
concreto se subsume. V. MORES O, José Juan. "Conflictos entre importância. Veja-se, sobre o tema, o Capítulo III.

276 277
metros abstratos (tanto os gerais, expostos nos capítulos promovem os direitos fundamentais dos indivíduos, sobre
anteriores, como os particulares, que venham a ser cons- aquelas que o fazem apenas de forma indireta), caso isso
truídos a partir do roteiro proposto aqui) têm natureza pre- seja necessário. O terceiro grupo de perguntas procura
ferencial e não absoluta?". O intérprete não está impedido identificar circunstâncias que interferem de forma relevan-
de afastá-los, uma vez que seja capaz de justificar sua opção te na definição do sentido e propriamente com a aplicação
satisfatoriamente, tanto do ponto da vinculação ao sistem a do enunciado"' .
jurídico, como da racionalidade propriamente dita'''. Começando pelo primeiro grupo, é possível formular
Não há fórmula pronta que esclareça como construir resumidamente as perguntas ou testes descritos abaixo.
parâmetros para os conflitos específicos, mas um conjunto (i) O enunciado examinado tem natureza de princí-
de perguntas ou testes e suas respostas podem auxiliar o pio ou de regra? Dessa informação dependerá em boa me-
interessado nessa tarefa". A proposta que segue descrita dida a compreensão do papel do enunciado no sistema jurí-
de forma bastante objetiva emprega três grupos de pergun- dico e a apuração de seus efeitos e de sua eficácia jurídica,
tas com essa finalidade. As perguntas reunidas no primeiro especialmente se for necessário aplicar o primeiro parâme-
grupo estão relacionadas de forma preponderante com a tro geral (regras preferem princípios — Capítulo VIII).
estrutura do enunciado normativo e já incorporam as Nem sempre a distinção será evidente e por vezes classifi-
preocupações do primeiro parâmetro geral (regras prefe- car um enunciado como regra ou princípio pode envolver
rem princípios). um conjunto intrincado de ações hermeneuticas382 . De
O segundo conjunto de perguntas está associado ao con- toda sorte, alguns equívocos podem ser evitados com esse
teúdo material do enunciado: os efeitos que ele pretende esforço. Por exemplo, a afirmação generalizante de que
produzir no mundo dos fatos, as condutas necessárias e todo direito fundamental é um princípio não é correta na
exigíveis à realização desses efeitos e, afinal, as prerrogati- realidade constitucional brasileira, já que a Carta de 1988
vas que ele confere. As respostas obtidas aqui, dentre ou- veicula vários direitos sob a forma de regras'.
tras utilidades, auxiliarão o intérprete a visualizar o núcleo (ii) Caso se trate de uma regra, há elementos de
dos princípios e a empregar o segundo parâmetro geral pro- indeterntinação em seu enunciado? Como se viu em vá-
posto acima (preferência das normas que de forma direta rios exemplos ao longo do texto, elementos de indetermi-

378 Tópico VII.2. 381 Os testes descritos no texto procuram se adequar ao maior número
379 Veja sobre os elementos da racionalidade o tópico 1.2. possível de tipos de enunciados.
380 Algumas das idéias para a proposta descrita no texto foram colhidas 382 V. nota n° 240.
em SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretación 383 É o que acontece) e.g., com os seguintes incisos do art. 5": "III —
constitucional de los derechos fundatnentales. Una alternativa a los ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
conflictos de derechos, 2000, p. 57 e ss.. As diretrizes sugeridas por degradante"; "LVI — são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por
Humberto Ávila para a análise dos princípios serão especialmente úteis no meios ilícitos:. É certo que a definição do que exatamente deve ser
processo de construção dos parâmetros específicos. V. ÁVILA, considerado como tratamento desumano ou degradante ou do que define
Humberto. Teoria dos princípios, 2003, p. 73 e ss.. uma prova como ilícita ficará a cargo da doutrina e da jurisprudência.

278 279
nação contidos nas regras oferecem espaços para argumen- ou também por estrangeiros? Jornalistas estrangeiros estão
tação e muitas vezes é possível solucionar conflitos reais ou incluídos entre seus titulares? O estrangeiro que recebeu
•aparentes apenas por meio da definição de sentido dessas asilo político também goza desse direito?'" Outro exem-
cláusulas384. É certo que muitas vezes não se vislumbra na plo. O direito a não ter sua correspondência pessoal viola-
regra, examinada em abstrato, essa espécie de elemento, da, salvo nos termos previstos pela Constituição (CF, art.
5 0, XII), destina-se apenas a homens livres ou também
que acaba por surgir apenas diante de um caso concreto385 .
àqueles que estejam presos?'" O direito à licença materni-
De todo modo, é útil tentar identificar desde logo essa
dade é titularizado exclusivamente por gestantes ou tam-
característica do enunciado.
bém por mães adotivas, cujos filhos sejam de tenra ida-
(iii) O enunciado atribui um direito? Define compe-
de?"'
tências? Fixa metas públicas ou bens coletivos? Essa dis- (v) Por fim, se o enunciado atribui um direito, quem
tinção é particularmente relevante quando se esteja diante está obrigado a respeitá-lo ou dar-lhe efeito? O Estado?
de princípios. Em geral, é mais fácil identificar os efeitos Os particulares? Ambos? Por quais razões? Assim como a
pretendidos, as condutas necessárias para realizá-los e até questão anterior, identificar quem será atingido pelo enun-
mesmo a área nuclear de princípios que consagram direi- ciado, não pelos benefícios que outorga, mas pelos deveres
tos; princípios que estabelecem metas públicas de caráter que impõe, ajuda a delinear seu sentido e alcance. O deba-
geral exigem uma compreensão diferenciada, já que seu te sobre a chamada eficácia horizontal dos direitos funda-
sentido pode depender intensamente de decisões de natu- mentais ou a eficácia dos direitos fundamentais sobre as
reza política e ideológica. relações privadas tem muito a oferecer neste particular389.
(iv) Se o enunciado atribui um direito, quem é seu
titular? A resposta a essa questão ajuda a definir o espectro
de abrangência do enunciado normativo. Alguns exemplos 386 O Decreto n° 1570/1937, trata da questão, mas resta saber se ele foi
demonstram a relevância desse teste. A liberdade de ex- recepcionado pela Carta de 1988.
pressão, e.g., é um direito titularizado apenas por nacionais 387 O STJ, no julgamento do HC 3982/RJ (Rel. Min. Adhemar Maciel,
DJU 26.02.1996) e do HC 4138 (Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU
27.05.1996), admitiu como prova a gravação, obtida ilicitamente, de
384 Um dos exemplos em que isso aconteceu foi no julgamento do HC conversas mantidas por presos. Um dos argumentos apresentados pelo
73662/MG. Por maioria, a 2' Turma do STF considerou que a presunção Ministro relator foi o de que a garantia constitucional não protegeria os
de violência a que se referia o art. 213 do Código Penal, e que tipificava a presos.
relação sexual mantida com menor de 14 anos como estupro, era relativa, 388 Essa discussão foi travada pelo STF, já diante de casos concretos, no
e não absoluta. Com essa interpretação, concedeu o habeas corpus ao RE 197807/RS, Rel. MM Octavio Gallotti, DJU 18.08.2000. O STF
agente que havia de fato mantido relação sexual com moça menor de 14 entendeu que o direito tinha como destinatárias apenas as gestantes. A Lei
anos, tendo em conta que, no caso, teria ficado demonstrado que não n° 10.421/2002 estendeu o beneficio também às mães adotivas, nos
ocorreu violência (STF, HC 73662/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU termos em que disciplina.
20.09.1996) . 389 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas,
385 Foi o que aconteceu quando da interpretação do art. 213, § 1°, da 2004; e PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. "Apontamentos sobre a
Constituição, levada a cabo no fim do capítulo anterior. aplicação das normas de direito fundamental nas relações jurídicas entre

280 281
O recorrente tema que envolve a possibilidade de exigir do validade derivam da própria ordem jurídica dependem
Estado prestações positivas também deverá ser retomado, igualmente dos contornos que essa mesma ordem jurídica
em relação a cada enunciado, neste ponto390 . lhes confere. Se, diversamente, os fenômenos têm uma di-
- Cabe agora passar ao segundo grupo de testes, ligados nâmica e existência praticamente independente do Direi-
ao conteúdo propriamente dito dos enunciados. São pro- to, ao incorporá-los, os enunciados apenas reconhecem sua
postas apenas três perguntas, embora elas possam desdo- existência como elementos da realidade, tendo menor es-
brar-se em outras, na medida em que a investigação se paço para alterar seu sentido e configuração39i . Assim, e.g.,
aprofunde.
(i) Que efeitos o enunciado pretende produzir no
mundo dos fatos? Essa questão é fundamental para qual- 391 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não
quer espécie de enunciado, mas sobretudo quando se este- expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, pp. 162 e 163: "De
ja lidando com princípios, até para que seja possível, no acordo com esta tipologia, direitos fundamentais como as liberdades
teste seguinte, identificar seu núcleo, se for o caso. Outras artística ou cientifica, as liberdades de crença ou de consciência são, no
essencial, determinadas materialmente, ou seja, têm uma dinâmica e
questões que podem derivar desta estão relacionadas com existência praticamente independentes do Direito: respeitam as garantias
o grau de determinação desses efeitos e com a identificação de necessidades elementares ou de complexos de acções que não se
do ponto a partir do qual a definição desses efeitos depen- fundam no Direito, não recolhem nele os seus elementos estruturais, nem
de da percepção individual do intérprete acerca de elemen- carecem de regulamentação jurídica no que se refere ao seu núcleo. Com
tos morais, valorativos ou políticos. efeito, a crença, a consciência, a arte e a ciência situam-se numa área
pré-jurídica, não sendo nem criadas nem conformadas pelo Direito;
Uma outra informação relevante neste ponto está rela- aquilo que a Constituição faz é, apenas, reconhecer estas estruturas como
cionada com a circunstância de os fenômenos que o enun- manifestações específicas da liberdade humana. Então, o facto de esses
ciado pretende disciplinar (i) se formarem no inundo dos direitos fundamentais serem normalmente consagrados sem reservas não
fatos, independentemente do direito (ex. artes, ciências, é a causa mas antes uma consequência da sua não determinabilidade pelo
crença), (ii) serem, ao contrário, tipicamente jurídicos (ex. Direito, sendo a inexistência de reservas, quando muito, um indício da
presença daquela característica estrutural. E a sua natureza de direitos de
princípio da tipicidade penal), ou (iii) terem natureza mis- determinação puramente material que os torna total ou parcialmente
ta, combinando elementos próprios da realidade e elemen- inacessíveis à conformação do legislador ordinário. Já, por sua vez,
tos jurídicos (ex. casamento, família). garantias constitucionais como as da nulla poena sine lege ou da no bis in
A relevância dessa classificação está em que os efeitos idem ou, em geral, as garantias processuais constituem direitos que devem
de enunciados que envolvem fenômenos cujo surgimento e o seu surgimento e validade à própria ordem jurídica. Num plano
intermédio situar-se-iam direitos fundamentais, como as garantias da
propriedade, da família, do casamento, da profissão, que apresentam uma
estrutura mista, pois, embora não sejam produzidos juridicamente na sua
particulares". In: BARROSO, Luis Roberto (organizador). A nova totalidade, têm por objecto institutos de direito civil, instituições ou
interpretação constitucional. Ponderação, direitos fundamentais e relações relações sociais parcialmente determinadas pelo Direito — facto de que,
privadas, 2003, pp. 119a 192. precisamente, a doutrina das 'garantias institucionais' procurou dar conta
390 MASELL1, Marcos. Controle judicial das omissões administra 'as, — e, como tal, são mais ou menos acessíveis ou carentes de uma
2003. intervenção do legislador ordinário."

232 283
a liberdade religiosa já dispõe de um conteúdo material ao pluralismo político (CF, art. 1°, V) não existe sozinho no
ser consagrada pelo dispositivo constitucional, ao passo que sistema jurídico brasileiro. Ele é acompanhado de uma sé-
o direito ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço exis- rie de outros princípios e regras que disciplinam, e.g., direi-
te apenas nos termos definidos pela própria legislação. tos políticos, liberdade de expressão, partidos e eleições,
(ii) Que outros enunciados estão relacionados com etc., e também de disposições infraconstitucionais sobre o
esse mesmo tema e, portanto, com esses mesmos efeitos? assunto. O mesmo se diga, e.g., do princípio constitucional
Como é corrente, os diferentes enunciados normativos que trata da proteção ao meio ambiente (CF, art. 225) e de
não existem isolada e autonomamente392 . Eles estão inte- muitos outros temas.
grados ao sistema jurídico como um todo, dentro do qual se (iii) Que condutas são necessárias e exigíveis para
ligam a outros enunciados, formando subsistemas temáti- realizar os efeitos pretendidos pelo enunciado?
cos que englobam disposições constitucionais e também A identificação das condutas necessárias e exigíveis re-
infraconstitucionais. Assim, e.g., há um conjunto de enun- lativamente a cada enunciado é provavelmente a etapa
ciados constitucionais que tratam do tema educação — mais complexa de toda a investigação doutrinária. Nada
disposições que atribuem competências legislativas e admi- obstante, ela é simplesmente vital para a construção da
nistrativas para disciplina do assunto, fixam princípios ge- eficácia jurídica dos enunciados, já que é neste momento
rais para o setor e descrevem direitos específicos — e tam- que cabe identificar o que pode ou não ser exigido (judi-
bém infraconstitucionais (Lei n° 9394/1996 — Lei de Di- cialmente até, se necessário) com fundamento neles393.
retrizes e Bases da Educação Nacional; Lei n° 942 4/1 996 Cabe aqui uma observação importante. Ao lidar com
— Dispõe sobre o Fundo de manutenção e desenvolvimen- princípios, a identificação das condutas necessárias à reali-
to e valorização do magistério; Lei n° 9766/1998 — Salá- zação dos efeitos do enunciado encontrará muitas vezes o
rio-educação, dentre outras). obstáculo das escolhas de natureza política. Quando exis-
Na hipótese de um conflito aparente com outras tam várias formas de realizar um efeito pretendido pelo
disposições, o intérprete deverá considerar não apenas o enunciado, a escolha de uma ou algumas delas nem sempre
enunciado isoladamente, mas também os demais que com poderá ser fundamentada juridicamente. Sempre restam, é
ele se relacionam, e para isso será fundamental identificar bem de ver, outras formas de conduta que, mesmo indire-
os elementos desse subsistema temático. Um princípio tamente, podem contribuir para sua realização, como, e.g.,
constitucional aparentemente bastante genérico como o do a proibição de ações que produzam efeitos contrários aos
pretendidos pelo enunciado.
Além de apurar as condutas necessárias, é necessário
392 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 19971 pp. 19 e qualificar também quais, dentre elas, são exigíveis, isto é,
20: "(...) as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre em
um contexto de normas com relações particulares entre si (...) Repetimos
que a norma jurídica era a única perspectiva através da qual o Direito era 393 V. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios
estudado (...) Para nos exprimirmos com uma metáfora, considerava-se a constitucionais — O princípio da dignidade da pessoa humana, 2002, p.
árvore, mas não a floresta." 59 e ss..

284 285
podem ser de fato exigidas até mesmo pela via judicial. simples, mas podem surgir outras complexidades. Há
Novas questões podem se colocar aqui, como os limites enunciados que ensejam um grande conjunto de condutas,
impostos à atuação do Judiciário pela separação de poderes que devem, tanto quanto possível, ser identificadas. Há
e as limitações orçamentárias. Como se percebe, a identifi- ainda problemas externos ao enunciado, mas que podem
cação das condutas necessárias e exigíveis estará freqüente- interferir com a sua eficácia, como acontece com os custos
mente em contato com o tema, referido inicialmente, do por acaso envolvidos nas condutas necessárias à realização
equilíbrio indispensável entre democracia e Constituição de seus efeitos396.
e, conseqüentemente, dos espaços a serem ocupados por Por fim, o terceiro conjunto de perguntas se ocupa das
cada uma das funções estatais (jurisdição, administração e circunstâncias específicas que podem envolver a aplicação
legislação). Essas dificuldades, porém, precisam ser en- do enunciado e lhe agregar especificidades"'. Algumas
frentadas para que os enunciados ganhem mais consistên- perguntas úteis nesse contexto são descritas abaixo.
cia dogmática394. (i) Há circunstâncias relevantes que interferem com
De forma específica, travam-se neste momento, no a aplicação do enunciado (como condições de modo de
caso dos princípios, ao menos duas discussões: (i) a possibi- exercício, tempo ou lugar)?
lidade de identificar-se, no princípio, um núcleo de sentido Ao longo dos capítulos anteriores se destacou, em vá-
com natureza de regra, de modo que seja possível atribuir rios momentos, a importância das circunstâncias de fato
às condutas contidas nesse núcleo a eficácia positiva ou
simétrica própria das regras (isto é: a exigibilidade direta
de tais condutas); e (ii) a construção de modalidades de 396 GALDINO, Flávio. "O custo dos direitos". /Ir TORRES, Ricardo
eficácia jurídica alternativas, como a interpretativa, a nega- Lobo (organizador). Legitimação dos direitos humanos, 2002, pp. 139 a
tiva e a vedativa do retrocesso"s, quando não seja possível 222.
atribuir a eficácia positiva ou mesmo em conjunto com ela. 397 ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón
Em matéria de regras, sua eficácia jurídica típica é a práctica, Revista Doxa n°5, 1988, pp. 145 e 146: "El que las colisiones
entre principias deban resolverse mediante ponderación en el caso
positiva ou simétrica, o que em geral torna a questão mais concreto, no significa que la solución de la colisión sea solamente
significativa para el caso concreto. Antes bien, pueden establecerse, con
ocasián de la decisión para casos concretos, relaciones de prioridad que
394 CLÈVE, Clemerson Merlin. "A teoria constitucional e o direito son importantes para la decisión de nuevos casos. (...) Las condiciones de
alternativo". Irt: Unia vida dedicada ao direito — Homenagem a Carlos prioridad establecidas hasta el momento en un sistema jurídico y las regias
Henrique de Carvalho, o editor dos juristas, 1995, pp. 37 e 38: "Mais do que se corresponden con ellas proporcionan información sobre el peso
que isso, importa, hoje, para o jurista participante, sujar as mãos com a relativo de los principios. Sin embargo, a causa de la posibilidad de nuevos
lama impregnante da prática jurídica, oferecendo, no campo da casos con nuevas combinaciones de características, no se puede construir
dogmática, novas soluções, novas fórmulas, novas interpretações, novas con su ayuda una teoria que determine para cada caso precisamente una
construções conceituais. Este é o grande desafio contemporâneo." decisión. Pero de todos modos, abren la posibilidad de un procedimiento
395 V. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios de argumentación que no se daria sin alas. Este procedimiento, desde
constitucionais — O principio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. luego, debe ser incluido en una teoria completa de la argumentación
61 e ss.. jurídica."

286 287
para a interpretação em geral e para a ponderação em par- rior)400; e (ii) constar ou não o medicamento solicitado pela
ticular. É apenas natural, portanto, que a aplicação dos parte da lista padronizada do Ministério da Salide401. Esses
enunciados sofra interferência desses elementos fáticos,
levantamento casuístico, e crítico, dessas interferências re-
lativamente a cada enunciado (na verdade, aqui já no pro- 400 STJ, REsp 353147/DF, Rel. Min. Franciulli Netto, DJU
cesso de construção da norma) facilita a identificação dos 18.08.2003: "O Sistema Único de Saúde pressupõe a integralidade da
conflitos apenas aparentes e, no caso de conflitos reais, assistência, de forma individual ou coletiva, para atender cada caso em
permite a visualização do grau de restrição e das possibili- todos os níveis de complexidade, razão pela qual, comprovada a
dades de acomodação da disputa a que se fez referência nas necessidade do tratamento no exterior para que seja evitada a cegueira
completa do paciente, deverão ser fornecidos os recursos para tal
segunda e terceira fases da ponderação (Capítulo V)398. empresa. Não se pode conceber que a simples existência de Portaria,
Alguns exemplos ajudam a ilustrar o ponto. suspendendo os auxílios-financeiros para tratamento no exterior, tenha a
Do exame da jurisprudência envolvendo o direito a virtude de retirar a eficácia das regras constitucionais sobre o direito
prestações de saúde em face do Estado é possível listar dois fundamental à vida e à saúda". Em sentido oposto, STJ, MS 8895/DF,
Rel. Min. Eliana Calmon, DJU 07.06.2004: "1. Parecer técnico do
elementos de fato freqüentemente indicados pelas deci- Conselho Brasileiro de Oftalmologia desaconselha o tratamento da
sões judiciais para fundamentar o acolhimento do pedido 'retinose pigmentar' no Centro Internacional de Retinoses Pigmentaria
do autor da ação: (i) a gravidade da doença; e (ii) a possibi- em Cuba, o que levou o Ministro da Saúde a baixar a Portaria 763,
lidade (ainda que remota) de eficácia do tratamento399. In- proibindo o financiamento do tratamento no exterior pelo SUS. 7.
Legalidade da proibição, pautada em critérios técnicos e científicos. 3. A
teressantemente, outras duas circunstâncias fáticas, que
Medicina social não pode desperdiçar recursos com tratamentos
anos atrás eram suscitadas pelos juizes como óbices ao de- alternativos, sem constatação quanto ao sucesso nos resultados. 4.
ferimento dos pedidos formulados, têm sido consideradas Mandado de segurança denegado".
irrelevantes em algumas decisões mais recentes: (i) o fato 401 STJ, REsp 325337/RJ, Rel. MM. José Delgado, DJU 03.09.2001:3.
de o local do tratamento ser ou não no Brasil (várias deci- É dever constitucional da União, do Estado, do Distrito Federal e dos
Municípios o fornecimento gratuito e imediato de medicamentos para
sões têm determinado o custeio de tratamentos no exte-
portadores do vírus HIV e para tratamento da AIDS. 4. Pela
peculiaridade de cada caso e em face da sua urgência, há que se afastar a
398 NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não delimitação no fornecimento de medicamentos constante na Lei n°
expressamente autorizadas pela Constituição, 2003, p. 237 e ss. 9.313/96."; e STJ, MS 8740/DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha,
DJU 09.02.2004: "Não se pode generalizar a aplicação da norma que veda
399 STJ, REsp 509753/DF, Rel. MM. Teori Albino Zavascki, DJU
ao Estado a concessão de auxílio financeiro para tratamento fora do Pais,
06.10.2003: "Em face do principio constitucional à saúde, deve
a ponto de abandonar, à sua própria sorte, aqueles que,
prevalecer a possibilidade, ainda que remota, do tratamento a ser
comprovadamente, não podem obter, dentro de nossas fronteiras,
realizado em Cuba, por ser reconhecidamente o pais que, atualmente,
tratamento que garanta condições mínimas de sobrevivência digna. Não
vem conseguindo os melhores resultados no tratamento da retinose
havendo no País equipamento terapêutico apropriado ao tratamento da
pigmentar." Na verdade, embora a questão de mérito tenha sido
enfermidade, justifica-se que o Estado disponibilize recursos para a sua
amplamente discutida, e mantido afinal o acórdão recorrido que
aquisição no exterior, não podendo servir de óbice às pretensões do
consagrava a solução acima, a maioria entendeu que o recurso não deveria
doente, necessitado, argumentos fundados em questões burocráticas, de
ser conhecido, pois nele se discutia matéria constitucional.
cunho orçamentário."
288
289
parâmetros, formulados pela jurisprudência, são adequa- (ii) Há circunstâncias relevantes que interferem
dos? Ou devem ser acrescidos outros? Seguem mais dois com a aplicação do enunciado relativamente ao titular
exemplos. do direito?
A liberdade de reunião prevista no inciso XVI do art. 50 Esta questão pode se ligar em alguns casos àquela for-
da Constituição pode sofrer restrições em função do local mulada no primeiro grupo de testes, envolvendo os benefi-
em que se pretende realizar o evento? E do horário? É pos- ciários do enunciado normativo. É possível, no entanto, co-
sível impor limitações, e.g., quanto ao volume de som que gitar de circunstâncias transitórias que, ainda assim, podem
pode ser utilizado?"' O estudo da jurisprudência que lida se tornar relevantes para a aplicação de enunciados. Como
com confrontos entre o princípio da segurança jurídica e já se referiu, no caso, e.g., do direito à intimidade e à vida
exigências decorrentes da legalidade também fornece um privada, a maior parte dos autores destaca que o fato de o
conjunto de informações interessantes acerca dos elemen- indivíduo ser uma pessoa pública (no sentido de notória)
tos fáticos considerados pertinentes. Ao menos dois po- ou desconhecida, titular de uma função publica ou não, são
dem ser encontrados em quase todos os casos: (i) o trans- elementos que conformam diferentemente a extensão do
curso de longos períodos de tempo entre a consolidação da
direito"s. Note-se que estas indagações podem estar per-
situação considerada ilegal e o questionamento de sua vali- feitamente contidas na pergunta anterior. A separação visa
dade403; e (ii) a boa-fé da parte que alega em seu favor a
apenas a facilitar a visualização das questões que podem ser
segurança jurídica. Um terceiro elemento, presente em
úteis para a construção dos parâmetros.
muitos casos, é o argumento de que a situação, mesmo (iii) Há circunstâncias relevantes que interferem
ilegal, contribuiu para a realização de algum fim constitu- com a aplicação do enunciado relativamente àqueles
cional geral, como, e.g., a promoção da educação404.
que estão obrigados a respeitar os direitos por ele ou-
torgados?
Esta pergunta é também um desdobramento das duas
402 Como registrado anteriormente, o tema foi examinado pelo STF na anteriores. De fato, é possível imaginar exemplos em rela-
ADIn 1969/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU 25.03.2004.
ção aos quais esse tema será relevante. Ao lidar como direi-
403 No MS 24268/MG, Rel. MM. Gilmar Mendes, j. 15.03.2004, o STF
to de imagem de alguém, um jornalista, cujo propósito é
examinou caso muito interessante no qual esse ponto foi debatido. A
impetrante questionava no mandado de segurança ato do TCU que havia noticiar um evento, e um publicitário, que planeja produzir
considerado ilegal e cancelado sua pensão especial, concedida há dezoito
anos, sem ouví-la previamente. O STF anulou o ato do TCU, por violação
ao devido processo legal, mas o voto do Ministro Relator destacou que o dentre muitos outros, STF, MC 2900/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, j.
princípio da segurança jurídica igualmente se aplicava na hipótese, tendo 08.04.2003, Informativo STF ri' 310; e STJ, MC 4546/MG, Rel. Min.
em conta, em primeiro lugar, o longo tempo transcorrido entre o ato e o Luiz Fux, DJU 16.12.2002.
seu questionamento (dezoito anos), e também a boa-fé da impetrante. 405 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre liberdade de expressão e
404 Este último argumento é invocado nas freqüentes disputas direitos da personalidade. Critérios de ponderação. Interpretação
envolvendo alunos transferidos para universidades públicas cuja constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa,
transferência é posteriormente considerada inválida. Nesse sentido, Revista de Direito Administrativo n° 235, 2004, pp. 1 a 36.

290 291
uma peça comercial, encontram-se em posições bastante que podem ser visualizadas entre diferentes enunciados ou
diferentes. O jornalista poderá utilizar a imagem de um grupos de enunciados (seja pela experiência, seja pela for-
indivíduo para a notícia, dentro de certos limites, sem ne- mulação de hipóteses) e cogitar, considerando os elemen-
cessidade de autorização; o publicitário por certo não po- tos identificados nas etapas descritas até aqui, como ele
derá fazer o mesmo em uma peça publicitária. Outro deve ser superado e por quais razões, seja ou não possível
exemplo: o princípio constitucional que trata da proteção chegar à concordância prática'''.
do meio ambiente (art. 225) não incide da mesma forma O conjunto de testes descrito acima não é por certo o
sobre as pessoas em geral e sobre as populações indígenas único possível nem o mais abrangente que se poderia ima-
(art. 231). ginar e nem tinha ele qualquer dessas pretensões. Seu ob-
(iv) Quais as finalidades lógica e histórica associa- jetivo é apenas associar aos parâmetros gerais, descritos ao
das ao enunciado?
As finalidades lógica e histórica associadas ao enuncia- 408 Alguns conflitos, por sua freqüência ou repercussão, têm atraído em
do406 contribuem para a identificação das áreas de aplica- particular a atenção da doutrina. Sobre as tensões e limites envolvendo as
ção do enunciado mais resistentes a qualquer espécie de liberdades de expressão e informação e outros enunciados
restrição e outras mais sensíveis à presença de elementos constitucionais, vejam-se, dentre outros, SILVA, José Afonso da.
normativos em oposição. No caso de enunciados que atri- Ordenação constitucional da cultura, 2001, p. 70 e ss.; MENDES, Gilmar
Ferreira. Colisão de direitos fundamentais: liberdade de expressão e de
buem direitos, as hipóteses de exercício abusivo também comunicação e direito à honra e à imagem, Revista de Informação
podem ser investigadas nesse mesmo contexto407 . A liber- Legislativa n° 122,1994, pp. 297 a 301; CHAVES, Antônio, Imprensa.
dade de expressão e de imprensa, e.g., está historicamente Captação audiovisual. Informática e os direitos da personalidade, Revista
ligada à manifestação política, ideológica e artística e, nesse dos Tribunais n° 729, 1996, pp. 11 a 42; e LEONCY, Léo Ferreira.
ambiente, dificilmente convive com restrições. Já a publi- Colisão de direitos fundamentais a partir da Lei 6.075/97— O direito à
imagem dos presos, vítimas e testemunhas e à liberdade de expressão e de
cidade comercial, embora seja 'também uma manifestação informação, Revista de Direito Constitucional e Internacional n° 37,
da liberdade de expressão, poderá admitir limitações mais 2001, pp. 274 a 279. Na doutrina estrangeira, v. também SUNSTEIN,
intensas. Cass R. Television and Public Interest, California Law Review n° 88,
(v) É possível identificar situações de conflito com 2000, pp. 499 a 564. As discussões envolvendo a garantia constitucional
da propriedade e sua função social também tem sido objeto de exame
outros enunciados? Como é possível supera-las?
doutrinário, sobretudo sob a ótica do direito urbanístivo, v. SILVA, José
A última pergunta sugerida neste roteiro se beneficia Afonso. Direito urbanístico brasileiro, 2000, p. 68 e ss.. Sobre as possíveis
de todas as conclusões apuradas nas anteriores. Cabe agora, oposições entre a garantia do devido processo legal e a efetividade da
neste último momento, identificar as situações de conflito prestação jurisdicional, v. ZAVASCKI, Teori Albino. Os princípios
constitucionais do processo e suas limitações, Revista da Escola Superior
da Magistratura do Estado de Santa Catarina vol. 6, 1998, pp. 49 a 58.
406 Ainda que a definição dessas finalidades possa em si mesmo envolver Acerca da necessária convivência entre os diferentes princípios
alguma controvérsia. constitucionais próprios ao direito tributário, v. TORRES, Ricardo Lobo.
407 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Abuso do direito, ADV/COAD Legalidade tributária e riscos sociais, Revista Dialética de Direito
março/2003, pp. 16 a 20. Tributário n°59, 2000, pp. 95 a 112.

292 293
longo do texto, ferramentas que possam auxiliar a constru-
ção de parâmetros específicos, de tal modo que se possa
fornecer ao aplicador um conjunto amplo e consistente de
standards metodológicos e materiais capazes de orientá-lo
quando seja necessário empregar a técnica da ponderação.

Conclusões

À guisa de conclusão, parece útil apresentar um breve


resumo dos objetivos gerais do estudo, por meio dos quais
se poderá ter uma visão de conjunto do trabalho, para, em
seguida, compendiar de forma mais analítica as principais
idéias desenvolvidas ao longo do texto.
A ambição deste estudo foi contribuir para a redução
do voluntarismo no emprego da ponderação e para atingir
esse objetivo duas proposições centrais foram estudadas.
Em primeiro lugar, apresentou-se uma proposta de ordena-
ção metodológica para a técnica da ponderação, com a indi-
cação das etapas a percorrer e dos cuidados de natureza
lógica ou argumentativa a tomar em cada uma delas. Em
segundo lugar, foram propostos dois parâmetros gerais, ca-
pazes de orientar o intérprete na generalidade dos casos em
que a ponderação seja necessária e de utilização seqüencial,
a saber: (i) os enunciados com estrutura de regra (aqui
incluídos os núcleos de princípios que possam ser descritos
dessa forma) preferem aqueles com estrutura de princípio;
e (ii) as normas que promovem diretamente direitos fun-

294 295
damentais dos indivíduos têm preferência sobre normas ponderação, para a qual os mais diversos argumentos de-
relacionadas apenas indiretamente com direitos. vem ser considerados, de modo que toda interpretação en-
O estudo ocupou-se ainda de dois outros temas, ambos volveria sempre ponderação. O objeto deste estudo é mais
vinculados ao mesmo propósito geral. Ao tratar do primei- restrito, mesmo porque a ponderação normativa propria-
ro parâmetro descrito acima, três sub-parâmetros foram mente dita, nos termos descritos acima, apresenta tama-
sugeridos para lidar com o problema dos conflitos envol- nhas especificidades que demanda um exame particular.
vendo regras. Ao fim do estudo, além dos dois parâmetros 3. As hipóteses de colisão ou tensão entre enunciados
gerais, produziu-se também um catálogo de elementos que normativos válidos, muitas vezes de estatura constitucio-
podem auxiliar a construção de parâmetros específicos, nal, têm se tornado cada vez mais freqüentes por um con-
destinados a fixar standards para a solução de conflitos junto de razões e exigem um estudo próprio. As sociedades
normativos particulares. democráticas contemporâneas são cada vez mais plurais e
De forma analítica, é possível compendiar as principais as diferentes concepções de pessoas e grupos nem sempre
idéias desenvolvidas ao longo do estudo nas proposições são harmônicas. Do ponto de vista jurídico, não só a Cons-
que se seguem. Na medida do possível, elas serão apresen- tituição, mas também a ordem infraconstitucional empre-
tadas na ordem em que os assuntos foram tratados no tex- gam com progressiva intensidade expressões genéricas cujo
to. conteúdo varia em função de avaliações de natureza valora-
1. O termo ponderação não é privativo do Direito. Em tiva ou política, transferindo para o aplicador a definição
sentido geral, ele significa avaliar todas as vantagens e des- precisa de seu sentido.
vantagens relacionadas com determinada situação, de 4. O processo descrito no item anterior tem ampliado
modo que toda decisão humana minimamente racional en- significativamente o espaço ocupado pela interpretação ju-
volve algum tipo de ponderação. Não é nesse sentido am- rídica na definição do que é afinal o Direito. Junte-se a isso
plíssimo, porém, que o termo foi empregado neste estudo. a ascensão política do Poder Judiciário, visualizada por seg-
2. A ponderação aqui estudada pode ser descrita como mentos importantes das sociedades em várias partes do
a técnica jurídica de solução de conflitos normativos que mundo como espaço de discussão alternativo aos órgãos
envolvem valores ou opções políticas em tensão insuperá- eleitos em geral e ao Legislativo em particular. Consideran-
veis pelas formas hermenêuticas tradicionais. Afastou-se a do que cada intérprete carrega sua própria bagagem de pré-
idéia de que a ponderação se destinaria a solucionar qual- compreensões, o cenário para a proliferação de conflitos
quer espécie de conflito normativo, já que a maior parte normativos encontra-se montado.
deles é superado por técnicas convencionais de solução de 5. Se as exigências de racionalidade e justificação são
antinomias que empregam a lógica subsuntiva. Igualmente próprias a toda interpretação e decisão jurídicas, o serão
não se incorporou aqui a noção que identifica a ponderação ainda com maior intensidade nas hipóteses em que se pre-
com a forma própria de aplicação dos princípios, já que ela tenda utilizar a ponderação. Isso porque, nesses casos, a
também poderá ser relevante no tratamento de regras. Por legitimidade de uma decisão ou dos critérios adotados para
fim, o estudo não adotou uma concepção abrangente- da superar conflitos normativos não decorre de forma eviden-

296 297
te de enunciados normativos e nem se funda em uma sub- há conflito, não há necessidade de ponderação. A dificulda-
sunção simples. A racionalidade de uma decisão judicial de consiste exatamente em como determinar o que se en-
está ligada (i) à sua capacidade de demonstrar conexão com contra dentro e o que se encontra fora de tais limites.
o sistema jurídico e, nas hipóteses em que várias conexões 9. O conceptualismo, por sua vez, afirma que o sentido
diferentes são possíveis, (ii) à racionalidade propriamente de cada direito corresponde a um conceito que deve levar
dita da escolha feita entre essas conexões. A justificação em conta os fins próprios daquele direito, sua história, as
por sua vez, envolve a prestação de contas e a motivação d; necessidades de convivência social e os demais direitos.
decisão propriamente dita. Delineados dessa forma, os conceitos dos diferentes direi-
6. A técnica da ponderação e sua utilização têm sido tos formarão uma unidade harmónica e, assim, eliminado o
objeto de numerosas críticas por parte da doutrina. A téc- conflito entre eles, a ponderação torna-se desnecessária. A
nica seria metodologicamente inconsistente, inexistindo dificuldade, também aqui, está precisamente no processo
parâmetros racionais ou um padrão de medida externo ca- de construção do conceito de cada direito.
paz de pesar os elementos em conflito. Conseqüentemen- 10. A hierarquização, diferentemente das propostas an-
te, a ponderação ensejaria voluntarismos e arbitrariedades, teriores, reconhece que os direitos colidem em determina-
transformando a aplicação do direito em um novo processo das circunstâncias. Sua idéia para a solução deste proble-
político no qual se (re)avaliam vantagens e desvantagens, ma, no entanto, consiste na fixação de uma ordem hierár-
em usurpação das funções próprias dos demais poderes. quica entre os direitos de tal modo que, diante de um con-
Nessa linha, a ponderação é uma ameaça à normatividade flito entre eles, aquele dotado de maior hierarquia deve
da Constituição e sobretudo aos direitos fundamentais.
preponderar sobre os demais. A sedutora simplicidade des-
7. As críticas resumidas no item anterior são em boa
sa fórmula encontra diferentes obstáculos: a necessidade
parte procedentes e, por isso mesmo, concepções alterna-
de manutenção da unidade da Constituição não admite a
tivas à ponderação têm sido propostas pela doutrina, espe-
hierarquização entre seus enunciados, o fundamento axio-
cialmente quando se trata de lidar com conflitos normati-
lógico que justificaria a escala hierárquica é questionável e
vos envolvendo direitos fundamentais. As três principais
o critério não é capaz de lidar com diferentes manifesta-
opções concebidas, e examinadas neste estudo, são as teo-
rias dos limites imanentes, o conceptualismo e a hierarqui- ções de um mesmo direito.
11. Os limites imanentes, o conceptualismo e a hierar-
zação.
8. A idéia de limite imanente pode ser descrita nos quização ou empregam a ponderação sem explicitá-la,
usando outra denominação, ou apresentam as mesmas es-
seguintes termos: cada direito possui limites lógicos que
pécies de limitações ou oferecem ainda maiores problemas
decorrem de sua própria estrutura e natureza. Assim, boa
que os apontados relativamente à técnica da ponderação.
parte dos conflitos envolvendo direitos fundamentais (ou
Na verdade, o recurso à ponderação parece realmente in-
todos eles) não é real, já que o suposto conflito afetaria
dispensável em determinadas hipóteses, o que não afasta a
uma manifestação do direito que se encontra fora dos limi-
necessidade — antes a reforça — de aprimorar a técnica,
tes imanentes. A conclusão, portanto, seria simples: se não

298 299
inclusive incorporando idéias desenvolvidas pelos três con- conflito na hipótese e agrupá-los em função das soluções
juntos de teorias que se acaba de referir. que indiquem para o caso.
12. Nas últimas décadas, a ponderação tem sido empre- 15. Há dois cuidados centrais a observar nessa primeira
gada de forma explícita como técnica de decisão jurídica fase do processo de ponderação. Em primeiro lugar, meros
nas experiências norte-americana e alemã e ambas desen- interesses só devem ser admitidos se puderem contar com
volveram formas de neutralizar as limitações e as fragilida- o suporte de algum elemento do sistema jurídico. Em se-
des da técnica, a despeito das múltiplas diferenças que cer- gundo lugar, apenas enunciados — isto é: o conteúdo do
cam ouso da ponderação e os resultados por ela produzidos texto dos dispositivos ou a enunciação de princípios ou
nos dois países. regras implícitos no sistema —, e não normas, devem ser
13. Nos Estados Unidos, doutrina e jurisprudência ocu- listados nesta primeira fase. A norma, como se sabe, corres-
pam-se predominantemente de conceber standards espe- ponde ao comando específico que dá solução a um caso e é
cíficos para os diferentes conflitos tendo em conta situa- o produto final da interpretação jurídica, e bem assim da
ções comumente observadas. As diferentes categorias nas ponderação. Embora seja construída a partir de enuncia-
quais a liberdade de expressão foi subdividida pela juris- dos, a norma não se confunde com eles, contribuindo para
prudência norte-americana é um exemplo dessa espécie de sua confecção outros elementos, sobretudo as circunstân-
raciocínio. Na Alemanha, a maior ênfase se concentra na cias de fato do caso concreto, que ainda não foram exami-
criação de parâmetros lógicos de caráter geral, cujo objeti- fiadas organizadamente nesta primeira etapa da pondera-
vo é organizar e controlar o raciocínio jurídico, de que é ção.
exemplo, tão difundido no Brasil, a idéia de proporcionali- 16. Uma aplicação dessa segunda observação envolve as
dade. Essas duas formas de conferir à ponderação maior hipóteses de confronto entre direitos individuais e enun-
previsibilidade e racionalidade — isto é: standards mate- ciados que consagram interesses de natureza coletiva. Não
riais associados a conflitos específicos e construídos a partir é incomum que se observe o conflito opondo ao direito
da observação da casuística e parâmetros gerais de natureza individual (isto é, à norma particular) o enunciado sobre
argumentativa e lógica — ou combinações delas podem ser bens coletivos, o que pode desequilibrar o raciocínio crian-
especialmente úteis para a experiência brasileira. O estudo do uma artificial e equivocada preferência em favor do se-
ocupou-se principalmente de conceber parâmetros gerais gundo elemento normativo.
(não exclusivamente lógicos, mas em certa medida tam- 17. Na segunda etapa do processo ponderativo, cabe ao
bém dotados de conteúdo material) e uma estrutura meto- intérprete examinar as circunstâncias concretas do caso e
dologicamente ordenada para a própria técnica da pondera- suas repercussões sobre os enunciados identificados na fase
ção. anterior. A relevância atribuída aos fatos, algumas vezes
• 14. De acordo com a proposta de organização sugerida instintivamente, funda-se em geral em elementos jurídicos
para a ponderação, o intérprete deve percorrer três etapas ou na experiência cultural da sociedade, ou ainda em uma
ao empregar a técnica. Na primeira delas lhe cabe identifi- mistura desses dois fenômenos, e deve ser justificada. Os
car todos os enunciados normativos aparentemente em fatos repercutem de duas maneiras principais sobre os gru-

300 301
•pos de enunciados identificados na etapa anterior: (i) eles
conflitos já identificados pela experiência. A ponderação
podem atribuir maior ou menor peso a alguns desses gru- em abstrato procura formular modelos de solução pré-fa-
pos; e/ou (ii) eles podem esclarecer o grau de restrição que bricados (parâmetros gerais e particulares) que deverão ser
cada solução (norma) possível impõe aos diferentes enun- empregados pelo aplicador nos casos que se mostrem se-
ciados envolvidos. melhantes. Caso os modelos propostos pela ponderação
18. A terceira e última etapa é o momento de decidir
em abstrato não sejam inteiramente adequados às particu-
tendo em conta os grupos de enunciados, os fatos relevan- laridades do caso concreto, o intérprete deverá justificar
tes e sua repercussão sobre a hipótese e as diferentes nor- expressamente essa circunstância e proceder a uma nova
mas que podem ser construídas para a solução do conflito. ponderação — a ponderação em concreto —, agora tendo
A técnica da ponderação em si não oferece respostas para em conta os elementos específicos da situação real (por
as questões de natureza material que se colocam neste mo- isso diz-se que os parâmetros são apenas preferenciais). A
mento. Nada obstante, há três cuidados metodológicos a utilidade da distinção consiste especialmente em fomen-
observar nesta etapa. tar, na doutrina, o estudo e a formulação de parâmetros
19. Em primeiro lugar, o intérprete deve estar compro- que possam servir de norte ao aplicador, reduzindo a subje-
metido com a capacidade de universalização dos argumen- tividade do processo ponderativo.
tos empregados no processo, que devem ser aceitáveis para
21. Ao longo do processo ponderativo o intérprete
a comunidade em geral, e da decisão propriamente dita, pode lançar mão de dois parâmetros gerais: (i) os enuncia-
que deve poder ser generalizada para todas as situações dos com estrutura de regra (dentre os quais os núcleos dos
equivalentes. Em segundo lugar, o intérprete deve escolher princípios que possam ser descritos dessa forma) têm pre-
a solução que impõe a menor quantidade de restrição à ferência sobre aqueles com estrutura de princípios; e (ii) as
maior parte dos elementos normativos em discussão (con- normas que promovem diretamente os direitos fundamen-
cordância prática), embora essa diretriz deva ser aplicada tais dos indivíduos e a dignidade humana têm preferência
em conjunto com standards materiais em cada caso. Em sobre aqueles que apenas indiretamente contribuem para
terceiro lugar, quando a disputa envolve direitos funda- esse resultado.
mentais, a decisão que vier a ser apurada no processo de
22. A preferência das regras sobre os princípios (na ver-
ponderação não pode traspassar o núcleo de nenhum deles, dade, sobre a área não nuclear deles) justifica-se com fun-
entendido aqui não como um núcleo rígido ou absoluto, damento em três razões principais. Em primeiro lugar, as
mas como o conjunto de parâmetros materiais preferen- regras estabelecem desde logo os efeitos que pretendem
ciais construídos pela doutrina e jurisprudência acerca do produzir no mundo dos fatos e é possível identificar as
conteúdo essencial dos direitos em questão. condutas necessárias para realizá-los independentemente
20. É possível falar de uma ponderação em abstrato ou de novas decisões de natureza valorativa ou ideológica. Os
preventiva e de uma ponderação em concreto ou real. A princípios, diversamente, descrevem efeitos relativamente
ponderação em abstrato .é a desenvolvida pela dogmática indeterminados (cuja compreensão integral depende de
jurídica considerando a metodologia própria do direito e os avaliações valorativas) ou, mesmo quando se ocupam de

302 303
efeitos determinados, a identificação das condutas neces- ral pelas decisões associadas a esse consenso mínimo, ao
sárias para realizá-los pressupõe uma escolha valorativa ou passo que os princípios delineiam um campo de atuações
'ideológica. Assim, a não realização dos efeitos das regras possíveis, dentro de cujos limites as opções políticas po-
envolve em geral sua violação e, em um Estado de direito, dem ser consideradas legítimas. As regras correspondem
as regras devem ser obedecidas. O mesmo não ocorre com exatamente a decisões políticas especificas, de efeitos de-
os princípios, que admitem logicamente compressões di- terminados, já tomadas no interior de tais fronteiras.
versas na definição de seus efeitos e das condutas próprias 25. Embora o parâmetro geral seja o da preferência das
para sua realização. Assim, havendo um conflito entre uma regras sobre os princípios, há duas situações nas quais as
regra e a área não nuclear de um princípio o primeiro terá regras estarão envolvidas com a ponderação de certa forma:
preferência. (i) quando a incidência de uma regra produz tamanha injus-
23. Em segundo lugar, as regras, por conta de sua pró- tiça que a torna incompatível com as opções materiais da
pria estrutura, desempenham um papel específico na or- Constituição; e (ii) quando há uma colisão insuperável de
dem jurídica ao prover previsibilidade e estabilidade, ao regras.
passo que os princípios garantem abertura e flexibilidade 26. Três parâmetros são capazes de lidar com o proble-
ao sistema. As regras correspondem ainda a decisões espe- ma das regras injustas sem romper com a racionalidade do
cíficas dos poderes eleitos, gozando de considerável legiti- parâmetro geral pelo qual as regras têm preferência sobre
midade democrática. Se os princípios, além de sua função os princípios, a saber: (i) a interpretação conforme a eqüi-
própria, ocuparem-se de afastar a incidência das regras in- dade das regras; (ii) a caracterização da imprevisão legisla-
discriminadamente (sendo que a aplicação da área não nu- tiva; e (iii) a inconstitucionalidade da norma produzida
clear dos princípios sempre vem impregnada das concep- pela incidência da regra na hipótese concreta.
ções valorativas e ou políticas do intérprete), haverá um 27. No caso da colisão insuperável de regras haverá de
incremento da insegurança, em função da imprevisibilida- fato uma ruptura do sistema, já que alguma delas deixará
de e da falta de uniformidade das decisões, com prejuízos de ser observada. A escolha entre elas configura uma espé-
evidentes para o equilíbrio do sistema, sobretudo no que cie de ponderação entre os bens que justificam as regras.
diz respeito à isonomia e à legitimidade dessas próprias De toda forma, será útil utilizar também nesse processo
decisões. decisório a proposta de ordenação da ponderação descrita
24. Há um terceiro fundamento para o parâmetro pro- acima e os parâmetros jurídicos que se mostrarem perti-
posto, uma vez que a questão se coloque no nível constitu- nentes, especialmente o segundo parâmetro geral e os parâ-
cional. As constituições contemporâneas procuram realizar metros particulares, examinados na seqüência.
ao menos dois propósitos gerais: estabelecer determinados 28. O segundo parâmetro geral proposto neste estudo
consensos mínimos, que devem inclusive ser protegidos da pode ser descrito nos seguintes termos: diante de um con-
ação das maiorias, e garantir as condições para o desenvol- flito normativo insuperável, a norma que de forma direta
vimento do pluralismo político. As regras constitucionais promova e/ou proteja os direitos fundamentais dos indiví-
(aí incluídos os núcleos dos princípios) respondem em ge- duos tem preferência sobre aquelas que estejam apenas

304 305
indiretamente relacionadas com esses direitos. O objeto desses parâmetros são, por certo, as características próprias
deste segundo parâmetro são as normas apuradas ao cabo da estrutura de cada enunciado (Trata-se de um princípio?
da ponderação e ele deverá ser manejado apenas após a Regra? Apresenta elementos de indeterminação? Atribui di-
aplicação, se pertinente, do primeiro parâmetro geral. reitos? Define competências? Fixa metas públicas? Se atri-
29. O segundo parâmetro geral pode ser justificado a bui direito, quem é seu titular? Quem está obrigado a res-
partir de duas perspectivas diversas. Em primeiro lugar, é peitar tal direito ou dar-lhe efeito?), o conteúdo de cada
possível falar de um consenso material acerca da prioridade enunciado (Que efeitos ele pretende produzir? Que outros
do homem e de seus direitos fundamentais tanto no direito enunciados guardam relação com o tema? Que condutas são
interno, especialmente após a Constituição de 1988, como necessárias e exigíveis para realizar esse efeito?) e as cir-
na ordem internacional, ainda que neste último caso o con- cunstâncias que interferem com sua aplicação, inclusive
senso possa ser apenas teórico em vários pontos. A opção situações de conflito com outros enunciados.
pela norma que realize diretamente direitos fundamentais Ao fim desse resumo das principais idéias desenvolvi-
funda-se, portanto, na aplicação dessa prioridade às hipóte- das ao longo do texto, vale notar alguns aspectos importan-
ses de conflito normativo. tes. O modelo sugerido de ordenação para a técnica, embo-
30. O parâmetro encontra justificativa também a partir ra não garanta por si só a previsibilidade do resultado, con-
de uma concepção procedimentalista (pela qual a legitimi- fere maior consistência metodológica à ponderação, com
dade das decisões decorre da correção do processo delibe- proveitos evidentes para a redução do subjetivismo. No
rativo, já que não é possível apurar consensos materiais momento em que a doutrina indica com maior clareza as
abrangentes na sociedade plural contemporânea), uma vez etapas a serem percorridas pelo intérprete e os cuidados a
que se adote corno premissa a igualdade dos indivíduos. Se serem por ele observados nesse percurso, não apenas o apli-
os indivíduos são iguais, qualquer deliberação pública exi- cador do direito estará mais consciente do seu ofício, como
girá que a cada participante seja reconhecido um conjunto o controle do processo de argumentação e decisão ficará
básico de direitos sem os quais o procedimento não poderá facilitado.
funcionar adequadamente. Esse conjunto de direitos mere- Ademais, não há dúvida de que (i) demonstrar a vincu-
ce proteção prioritária, já que opera como condição para o lação das diferentes pretensões e interesses em jogo a
próprio procedimento. Nesse sentido, ainda que o conjun- enunciados normativos, (ii) justificar a relevância atribuída
to de direitos aqui seja menor que o previsto pelo direito aos fatos, (iii) empregar exclusivamente argumentos que
interno, o parâmetro descrito continua a encontrar funda- possam transitar livremente no espaço público, (iv) preser-
mentação consistente. var, na medida do possível, a integridade dos enunciados
31. Além dos dois parâmetros gerais descritos nos itens em conflito, e (v) fundamentar a possibilidade de universa-
anteriores, a redução do subjetivismo no uso da pondera- lização da decisão apurada são exigências que, dentre ou-
ção depende também da existência de parâmetros particu- tras, contribuem para reduzir o risco de voluntarismos e
lares, construídos em função de conflitos entre enunciados arbitrariedades no uso da ponderação.
específicos. Alguns elementos a considerar na construção Associado a esse esforço de organização racional da téc-

306 307
nica, a formulação de parâmetros, tanto gerais como espe- tivamente incorporadas ao cotidiano da interpretação jurí-
cíficos, se destina a orientar as decisões do intérprete, ago- dica e da prestação jurisdicional. Este é um ponto impor-
ra sim, tornando mais previsível o resultado da ponderação. tante. O debate teórico, especialmente no que diz respeito
O caráter preferencial de tais parâmetros decorre de have- à argumentação jurídica, pode tornar-se extremamente
rem sido discutidos publicamente pela doutrina e, por con- complexo, até por conta de seu objeto de estudo, ingres-
ta de sua fundamentação lógica e jurídica, contarem com a sando amplamente no terreno filosófico da justificação do
aceitação geral. O aplicador, por natural, não está rigida- discurso racional em geral e do jurídico em particular. É
mente vinculado a eles ou à solução por eles indicada, mas, apenas natural e próprio que seja assim.
ao desconsiderá-los, deverá demonstrar de forma específi- Nada obstante, é freqüente que, na impossibilidade de
ca por quais razões os fundamentos que informam o parâ- incorporar toda a sofisticação teórica ao dia-a-dia da aplica-
metro devem ser afastados no caso concreto. ção do Direito, cuja compreensão, ademais, é por vezes
Há ainda duas observações finais a fazer. A pretensão dificultada por um certo hermetismo lingüístico, os opera-
deste estudo não foi eliminar o elemento subjetivo das de- dores jurídicos simplesmente ignorem ou deixem de lado
cisões jurídicas, o que seria impossível, mas apenas reduzi - importantes contribuições desenvolvidas no âmbito da aca-
1°4°9 . Por certo haverá situações em que após aplicação da demia. Assim, o que não deixa de ser irônico, os diferentes
ponderação nos termos aqui propostos, juntamente com desenvolvimentos teóricos que versam justamente sobre a
todos os parâmetros sugeridos, ainda restará espaço para interpretação jurídica acabam tendo pouca ou nenhuma re-
avaliações e decisões puramente pessoais. De toda sorte, a percussão na atividade concreta de interpretação e aplica-
previsibilidade das decisões judiciais é uma garantia pró- ção do Direito.
pria do Estado republicano, democrático e de direito e, Parece fundamental, portanto, desenvolver uma outra
tanto quanto seja possível, não deve ser banalizada. linha de estudos que, sem prejuízo do progressivo aprofun-
Por fim, o objetivo deste trabalho foi apresentar um damento das questões no nível teórico, produza uma co-
conjunto de propostas operacionais, que pudessem ser efe- municação eficiente entre esses dois mundos. Essa comu-
nicação deve ser capaz de transformar formulações teóricas
em instrumentos operacionais, utilizáveis pelo juiz no dia-
409 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto, 1989, a-dia de sua atividade, ainda que isso imponha, em alguns
p. 33 e ss.; e TRIBE, Laurence H. and DORF, Michael C. On Reading the momentos, a simplificação de discussões mais complexas.
Constitution, 1991, pp. 18 e 19: "It should not be terribly surprising to O presente estudo se insere nesse contexto e pretende fa-
learn that judicial deliberation, like ali legal discussion, cannot be reduced zer essa comunicação, de modo que a realidade da aplica-
to scientific processes of deduction and induction, although some people
apparently continue to be surprised by this truism. The impossibility of ção do Direito, e a vida das pessoas, afinal, possa se benefi-
airtight 'proof' does not, however, translate — as some seem to believ it ciar dos avanços e elaborações da teoria jurídica.
does — into such total indeterminacy that ali interpretations of the
Constitution are equally acceptable. Nor does it follow that the only way
to judge an interpretation is to ask whether it advances or retards your
vision of the good society. It is possibile to do much better than that."

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