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Brasília-2004
2
A meus pais.
A Marcela.
A Carolina.
3
Agradecimentos
Sérgio Penna, consultor geral legislativo do Senado Federal, pelo apoio não apenas à
realização da pesquisa, mas, sobretudo, ao propósito de transformá-la em livro;
Sumário
INTRODUÇÃO 8
CONCLUSÃO
146
ANEXOS
1 - Seminário de Habitação e Reforma Urbana (IAB/IPASE) —
Proposta de lei (1963) 167
2 - Projeto de lei de “reforma urbana” (1964)
173
3 - Projeto de lei nº 775, de 1983.
177
4 - Emenda Popular da Reforma Urbana (1987)
185
5 - Projeto original do Estatuto da Cidade (1989)
189
6 - Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001.
200
7 - Medida Provisória n° 2.220, de 4 de setembro de 2001. 211
INTRODUÇÃO
Considerações iniciais
trajetória, a população urbana representava 36,1% do total. Quando o Estatuto da Cidade foi
aprovado, 81,2% dos brasileiros habitavam as cidades.
Hoje, parece não haver mais dúvidas quanto à crescente importância dessa temática
na chamada agenda política nacional. Os efeitos das políticas públicas, que, nesse período,
demarcaram e caracterizaram o território urbano no Brasil, podem ser facilmente percebidos.
Grande parte dos brasileiros que vivem (ou sobrevivem) em cidades, enfrenta problemas
relativos à escassez de moradias, à precariedade dos sistemas de educação, de saúde e de
transportes, à insuficiência dos serviços de saneamento, ao crescimento dos índices de
desemprego e dos níveis de violência, ao lado de muitos outros fatores de desqualificação da
vida urbana.
A concentração da população em núcleos urbanos passou a caracterizar o Brasil a
partir do segundo quarto do século XX, tornando-se especialmente aguda entre os anos 1960 e
70. Os municípios passaram a lidar com os efeitos da urbanização inteiramente
desapetrechados para tanto. Não havia recursos financeiros suficientes, meios administrativos
adequados nem instrumentos jurídicos específicos. Influenciado pelos setores dominantes na
economia urbana, o aparelho estatal dirigiu seus escassos recursos para investimentos de
interesse privado e adotou normas e padrões urbanísticos moldados pelos movimentos do
capital imobiliário. Tanto quanto ocorria com a renda econômica nacional, a “renda” urbana
concentrou-se. A cidade cindiu-se. Para poucos, os benefícios dos aportes tecnológicos e do
consumo afluente. Para muitos, a privação da cidadania e a escravidão da violência.
O planejamento regulatório, fundado na crença de que a formulação da política
urbana deveria ocorrer no âmbito de uma esfera técnica da administração pública, ao contrário
de reverter esse quadro, acentuou os seus efeitos. Voluntária ou involuntariamente, a gestão
tecnocrática alimentou um processo caracterizado, de um lado, pela apropriação privada dos
investimentos públicos e, de outro, pela segregação de grandes massas populacionais, em
favelas, cortiços e loteamentos periféricos, excluídas do acesso a bens, serviços e
equipamentos urbanos essenciais.
Crescentes, essas demandas sociais resultaram na organização popular de grupos de
pressão, que passaram a exigir iniciativas do poder público. No final dos anos 1970, essas
organizações, então conhecidas como movimentos sociais urbanos, aliadas a entidades
representativas de certas categorias profissionais, como arquitetos, engenheiros, geógrafos e
assistentes sociais, constituíram o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) com o
objetivo de lutar pela democratização do acesso a condições condignas de vida nas cidades
brasileiras.
9
1
Grazia, 2002, p. 15.
10
negociações, o texto foi aprovado por unanimidade. Quais foram as intercorrências técnicas e,
sobretudo, políticas nesse percurso? O consenso obtido, do ponto de vista da proposta da
reforma urbana, resultou em perda de substância? O que mudou: o projeto inicial, a posição
do empresariado ou ambos? Que fatores, ao longo desses doze anos, fizeram com que
posições inicialmente litigantes fossem aproximadas?
Indagações dessa natureza são a motivação do presente trabalho, que resultou numa
dissertação de mestrado, defendida e aprovada, no dia 14 de maio de 2004, na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB). Na dupla condição de
assessor do parlamentar que apresentou o projeto de lei do Estatuto da Cidade e de dirigente
de entidades como o Instituto de Arquitetos do Brasil e o Sindicato dos Arquitetos do Distrito
Federal, o autor teve a oportunidade de vivenciar muitos dos episódios e circunstâncias
analisados, testemunhar o processo constituinte, bem como participar da elaboração do projeto
original da nova lei e acompanhar sua tramitação legislativa.
Para o MNRU, o período da morosa tramitação congressual do Estatuto da Cidade
foi um processo ciclotímico. Ao entusiasmo inicial — que havia no contexto da
redemocratização política, da convocação da Constituinte e da efervescência da participação
popular —, sucederam períodos em que a perspectiva de aprovação dessa nova legislação
pareceu distante e improvável.
Neste começo de século, contudo, vários elementos se combinaram no sentido de
novamente trazer à tona as proposições da reforma urbana: a aprovação do Estatuto da
Cidade; a eleição para a Presidência da República de um candidato do Partido dos
Trabalhadores (PT), programaticamente comprometido com o MNRU; e a criação do
Ministério das Cidades. Articulam-se nesta circunstância histórica, portanto, uma proposta
política de democracia participativa, que pela primeira vez assume o governo do País, e uma
legislação urbana inovadora, decorrente desses mesmos propósitos e fundada nos mesmos
princípios.
Embora não sejam examinados os acontecimentos políticos em curso — quanto mais
não fosse porque, como lembrou Eric Hobsbawn (1995, p. 7), “ninguém pode escrever sobre
seu próprio tempo de vida como pode (e deve) fazer em relação a uma época conhecida
apenas de fora, em segunda ou terceira mão” —, as circunstâncias presentes sugerem que
analisar o processo de elaboração do Estatuto da Cidade, saber em que medida a nova lei
incorporou os princípios da reforma urbana e quais os fatores que condicionaram sua longa
tramitação entre grupos de opinião conflitantes, significa de certo modo inferir as
11
possibilidades de êxito das políticas públicas que se poderão valer desse novo ordenamento
legal.
Objeto e objetivos
Este trabalho, que tem por objeto o processo de elaboração legislativa do Estatuto da
Cidade, pretende relacionar seu conteúdo com o projeto político da reforma urbana. Tenta-se
aferir, fundamentalmente, em que medida o texto aprovado corresponde ao conjunto de
propostas construído no âmbito do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU). Em
paralelo, busca-se encontrar os fatores que teriam levado os segmentos representativos do
capital imobiliário no Congresso Nacional a superar uma atitude inicial de franca rejeição e,
ao final, aprovar, por unanimidade, uma lei considerada capaz de municiar a reforma urbana
em muitos de seus propósitos.
A pesquisa procura acrescer ao campo temático ainda pouco explorado do Estatuto
da Cidade:
a) as principais proposições que o antecederam, inclusive o inteiro teor do projeto
de reforma urbana do governo João Goulart, escassamente conhecido;
b) o detalhado registro analítico do debate/embate parlamentar (a configuração da
arena política constituída em relação ao tema da política urbana, durante e após
a Assembléia Nacional Constituinte, os projetos apresentados, as emendas
aprovadas, as rejeitadas e aquelas que decorreram de acordos, assim como a
caracterização do perfil parlamentar de seus autores);
c) o conteúdo expresso das proposições legislativas elaboradas no âmbito do
MNRU (em especial as contidas na Emenda Popular da Reforma Urbana), bem
como a verificação da medida em que foram ou não incorporadas à legislação
vigente;
d) a análise exploratória das posições defendidas pelo empresariado e de como e
porque esse segmento de opinião teria transitado de uma atitude inicial de
rejeição para a de aceitação dos conceitos e princípios da nova lei.
Organização da exposição
1 – REFERÊNCIAS CONCEITUAIS
2
Mesmo sem tocar diretamente nos interesses da oligarquia rural, a Revolução de 1930 rompeu com o modelo
agrário-exportador ao criar estímulos para a economia urbano-industrial.
3
Mais adiante, em 1964 e 1966, ambas as políticas, regulação das relações de trabalho e investimentos em
programas habitacionais, se combinariam mais explicitamente. O governo militar cria o Sistema Federal e o
Banco Nacional de Habitação (BNH) por meio da Lei nº 4.380/64 e institui o Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço (FGTS) nos termos da Lei nº 5.107/66. “Sob o sistema anterior, o trabalhador tinha direito a receber uma
indenização considerável ao ser despedido, e também à estabilidade depois de dez anos de emprego contínuo”
(Schmidt e Farret, 1983, p. 31). O FGTS, formado pelo depósito mensal de 8% da folha salarial, além de
desonerar os empregadores dos pesados custos e responsabilidades da regra anterior, criava condições de
financiamento do setor da construção civil e permitia o atendimento de parcela da demanda habitacional. Como
expressou a então secretária do governo de Carlos Lacerda no Estado do Rio de Janeiro e futura presidente do
BNH, Sandra Cavalcanti, em famosa carta dirigida ao primeiro presidente do regime militar, marechal Castello
Branco: “a Revolução necessita urgentemente agir em favor das massas urbanas”.
18
Com exceção do Brasil e da Colômbia, os sistemas urbanos na América Latina se caracterizam pela articulação
em torno de apenas uma grande cidade (região metropolitana), que acumula funções econômicas, administrativas,
políticas e simbólico-culturais, a par de concentrar até um terço de toda a população urbana nacional.
19
5
Enquanto, na década de 1940, as áreas rurais e localidades com menos de vinte mil habitantes responderam por
58% do crescimento populacional do País e as cidades com mais de quinhentos mil habitantes por 28%, na
década de 1970, o campo e as localidades pequenas representaram apenas 10% do chamado “crescimento
intercensitário”, cabendo às cidades com mais de quinhentos mil habitantes a responsabilidade por nada menos
que 58% do crescimento demográfico nacional (Martine, 1995, p. 4).
6
Segundo L. C. de Queiroz Ribeiro (2003, p. 21), três aspectos marcantes “estão na raiz de nossos problemas
urbanos: (I) a industrialização com a formação concomitante de uma ‘massa marginal’ constituída por um
excessivo exército industrial de reserva; (II) o bloqueio da formação da moderna cidadania; e (III) a constituição
de poderosos interesses mercantis ligados à acumulação urbana (...)”. Para esse último aspecto, Ribeiro utiliza a
expressão ‘poder urbano corporativo’, na tentativa de definir um estrato socioeconômico que se tem valido do
poder estatal nas cidades para criar ‘amplas possibilidades de ganhos patrimoniais”.
7
A atividade de incorporação imobiliária foi regulamentada no Brasil por meio da Lei nº 4.591, de 16 de
dezembro de 1964.
20
8
Em decorrência das conflituosas divergências entre arquitetos “acadêmicos” e “modernos”, que, em 1927,
integravam o júri do concurso de projetos para a sede da Sociedade (ou Liga) das Nações (antecessora da ONU)
em Genebra, na Suíça, deflagrou-se em Paris um movimento, “destinado a afirmar um sólido ponto de vista”
sobre os problemas da arquitetura e do urbanismo, que culminou na fundação dos Congressos Internacionais de
Arquitetura Moderna (CIAM). Já no Manifesto do 1º CIAM, realizado em La Sarraz, Espanha, evidenciaram-se
os aspectos funcionais a que o urbanismo moderno deveria adequadamente atender: habitar, trabalhar e recrear-se
(mais adiante acrescentou-se a função de circular), bem como os seus objetos: a ocupação do solo, a organização
da circulação e a legislação. Nos Congressos seguintes, realizados respectivamente em Frankfurt, Bruxelas,
Atenas e Paris (5º CIAM, em 1937), essa doutrina se aprofundou. No 4º CIAM, ocorrido em 1933 num navio de
cruzeiro entre “três mares”: o Egeu, o Adriático e o Mediterrâneo, elaborou-se a Carta de Atenas como “uma
resposta ao atual caos das cidades. Posta em mãos das autoridades, detalhada, comentada, iluminada por uma
explicação suficiente, é o instrumento pelo qual será conduzido o destino das cidades”. A Carta de Atenas,
inicialmente publicada apenas nos “anais técnicos”, foi tornada pública em 1941, com comentários explicativos
de Le Corbusier e de Jeanne de Villeneuve, baronesa de Aubigny (CIAM, La Carta de Atenas, 1950. Livre
tradução das citações e grifos nossos).
21
Em sua última entrevista, concedida ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre, o arquiteto Demétrio Ribeiro,
respeitado professor declaradamente modernista, falecido em 2003, ao responder a uma pergunta sobre como
avaliava seu trabalho de planejador urbano declarou: “Acho que desempenhei um papel útil (...) no sentido de
avançar a noção civilizada do que é uma cidade, [de] que ela deve ter uma legislação”. Na mesma entrevista,
Demétrio Ribeiro identifica e critica uma “tendência recente”, sintetizada, segundo ele, “por uma senhora que foi
guru do urbanismo da Erundina na primeira gestão do PT em São Paulo: ‘Passou a época do planejamento,
estamos na época do gerenciamento; passou a época da legislação, estamos na época da negociação” (Ribeiro,
D., 2003).
10
Na já clássica definição de Lúcio Kowarick (1979, p. 59), a “espoliação urbana” se expressa, entre outras
manifestações, pelo “somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade dos serviços de
consumo coletivo que — conjuntamente com o acesso à terra e à habitação — se apresentam como socialmente
necessários à subsistência das classes trabalhadoras”.
11
Em outubro de 1988, em seguida à promulgação da nova Constituição e a partir da convocação do Seminário
Nacional pela Reforma Urbana, o Movimento organizou o primeiro Fórum Nacional de Reforma Urbana,
denominação que passou a caracterizar esse conjunto de entidades organizativas (Grazia, 2003, p. 54).
22
plantada, tendo sido “ampliada” no âmbito dos movimentos sócio-políticos dos anos 1980. No
entanto, segundo muitos dos seus líderes, ao ressurgir no contexto da redemocratização
política e da convocação da Assembléia Nacional Constituinte, ocorrida em 1986, a proposta
da reforma urbana se modifica. Nas palavras de Grazia de Grazia (2003, p. 54), é uma
“formulação totalmente nova em relação à que foi realizada na década de 60 [do século XX]”.
Ampliado ou transformado em relação ao que se propunha nos anos 1960, em que
consiste o ideário da reforma urbana?
Na tentativa de responder a essa questão, Ana Amélia da Silva (1991, p. 7) coletou
definições de alguns autores que se têm dedicado ao tema. Para Haroldo Abreu (1986):
“Reforma Urbana implica uma nova concepção intelectual e moral da sociedade (e uma nova
ética urbana) que condene a cidade como fonte de lucros para poucos e pauperização para
muitos”.
De forma similar, L. C. de Queiroz Ribeiro (1986) afirma:
“Trata-se de uma nova ética social (entendida enquanto valores básicos que
devem orientar a vida na cidade). Esta ética pretende politizar a discussão sobre a cidade e
ao mesmo tempo servir de plataforma política aos movimentos sociais urbanos fornecendo
um horizonte que ultrapasse as questões locais e específicas. A ética (...) se compõe de dois
elementos: o primeiro deve ser a condenação das práticas econômicas que tornam a cidade
um objeto de lucro; (...) por outro lado, o acesso à cidade deve ser um direito: direito de ir e
vir à cidade, sem que seja necessário pagar um tributo àqueles que mercantilizam o solo
urbano (...). Os que não podem pagar tributo urbano (na forma de aluguel, preço da terra,
prestação do BNH, tarifas de transporte etc.) são obrigados a habitar simulacros de cidade,
verdadeiros guetos sociais (...).”
fato, no âmbito do que se convencionou chamar nova sociologia urbana12, abordagem crítica
da urbanização nas sociedades capitalistas, compreende-se que, nesse sistema econômico, “a
distribuição dos locais residenciais segue as leis gerais da distribuição dos produtos e, por
conseguinte, opera os reagrupamentos em função da capacidade social dos indivíduos, isto é,
(...) em função de suas rendas, de seus status profissionais, de nível de instrução, de filiação
étnica, da fase do ciclo de vida etc” (Castells, 2000, p. 249).
A segregação social no espaço seria, portanto, “a expressão específica dos processos
que visam à reprodução simples da força de trabalho, mas estes processos estão sempre
inseparavelmente articulados com o conjunto das instâncias da estrutura social” (Castells,
2000, op. cit., p. 266). Ainda para Manuel Castells (apud Cariello Filho, 1999, p. 33), os
diferenciados padrões de consumo dos bens e serviços urbanos são elementos fundamentais
na estruturação das cidades:
“o essencial dos problemas que se consideram urbanos estão, de fato, ligados aos processos
de ‘consumo coletivo’, ou ao que os marxistas chamam de organização dos meios coletivos
de reprodução da força de trabalho. Isto é, dos meios de consumo objetivamente
socializados e que, por razões históricas específicas, são essencialmente dependentes, por
sua produção, distribuição e gestão, da intervenção do Estado”.
12
Precedidas das importantes publicações do filósofo francês Henri Lefebvre, como O direito à cidade e A
revolução urbana, nos anos 1970 foram publicadas “duas obras seminais” (Souza, 2003, p. 25), que marcaram
esse pensamento crítico de inspiração marxista: A questão urbana, de Manuel Castells, que já conta 22 edições
em 7 línguas, e A justiça social e a cidade, de David Harvey.
13
Harvey, 1985, p. 175 e 176, apud Souza, 2002, p. 27 (livre tradução).
25
Nessa passagem, ao lado de trazer à tona a expectativa da “participação popular” como núcleo do ideário da
reforma urbana, Ana Amélia adota análise de Raquel Rolnik (em Planejamento, cidade e cidadania, 1990,
mimeo.) e, de maneira ainda mais explícita, espelha a comentada abordagem de Castells e Harvey.
15
Ver, a respeito, dissertação de mestrado de Diana Meirelles da Motta (1998), que se dedica a identificar as
“principais deficiências institucionais e legais [com vistas a melhorar] a eficácia do planejamento e da gestão do
uso do solo urbano”. Deve-se observar, contudo, que importantes trabalhos recentemente publicados pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no campo da pesquisa urbana, como a Série “Caracterização e
Tendências da Rede Urbana do Brasil”, que avaliam instrumentos de planejamento e gestão do uso do solo
urbano em nove aglomerações urbanas (Belém, Natal, Recife, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas,
Curitiba e Porto Alegre), ainda que conservem a abordagem de viés tecnocrático de que a “desarticulação entre
os instrumentos (...) contribui para a ineficiência de cada um deles e do conjunto”, passaram a admitir a hipótese
de que “a ação pública na regulação do parcelamento, uso e ocupação do solo urbano, restrita ao âmbito de uma
parcela minoritária da população (...), pode contribuir para a escassez de terra urbana acessível (...) para a
população pobre” (IPEA et al., 2002, p. 25, grifo nosso).
26
do solo baseados nas práticas e lógicas de investimento de classe média e de alta renda e
destina o território urbano para esses mercados. (...) Dessa forma, os zoneamentos acabam
por definir uma oferta potencial de espaço construído para os setores de classe média e alta
muito superior a sua dimensão, ao mesmo tempo em que geram uma enorme escassez de
localização para os mercados de baixa renda, já que praticamente ignora sua existência.”
(Rolnik, Saule et al., 2002, p. 25).
coletivo que não são suscetíveis de serem regidas pelos rigores da cognição e que não se
subordinam, por isso mesmo, ao despotismo do caminho de mão única de uma só verdade”.
Atuante em dois pólos, o primeiro no âmbito do território físico e político das
cidades e o segundo no contexto da proposição de normas jurídicas especiais (Ribeiro, A. C.
T., 1993), o movimento político que se formava em torno da reforma urbana não propunha a
substituição do modo de produção capitalista por um projeto socialista17, mas a articulação de
uma luta pela participação na formulação e na implementação das políticas públicas e pela
distribuição mais eqüitativa dos bens e serviços produzidos coletivamente nas cidades, ainda
que nos marcos do regime de mercado.
Alguns partícipes da avaliação crítica do processo de urbanização nas sociedades
capitalistas — análise que fundamenta a proposta da reforma urbana — são céticos em relação
ao conteúdo propositivo do ideário “reformista”. Para esse segmento de opinião, “a luta por
uma nova cidade — igualitária — não pode ser dissociada da luta por uma sociedade
igualitária, livre da exploração de classe, das relações de produção e de propriedade e do
Estado capitalista” (Cariello Filho, 1999, p. 151). Para outros, contudo, a crítica ao
planejamento, ao contrário de conduzir à rejeição da idéia de uma ação política
transformadora nos limites da ordem econômica capitalista, deve ser traduzida por uma nova
atitude em relação a esse processo. Marcelo Lopes de Souza (2002, p. 28), por exemplo, ao
admitir “que a crítica marxista contra o planejamento usualmente conduzido nos marcos de
uma sociedade capitalista é, em si mesma, importante e reveladora”, questiona:
“Por que dever-se-ia presumir que toda atividade de planejamento precisa
enquadrar-se nos moldes descritos e condenados por essa crítica? Não se trata (...) apenas
de aventar a hipótese de uma eventual sociedade pós-revolucionária e pós-capitalista, na
qual, com a mais absoluta certeza, também existiria algum tipo de planejamento. Trata-se,
antes, partindo-se da premissa de que as sociedades capitalistas são contraditórias e não
monolíticas (negar isso equivaleria a abdicar do pensamento dialético e mesmo a negar a
possibilidade de uma mudança substancial a partir do interior da própria sociedade), de
indagar: por que dever-se-ia excluir, a priori, a possibilidade de um planejamento que,
mesmo operando nos marcos de uma sociedade injusta, contribua, material e político-
pedagogicamente, para a superação da injustiça social” (Souza, op. cit., p. 28-29).
17
Ver, como exemplo de explicitação desse princípio, documento levado pelo IAB em 2003 à Conferência
Nacional das Cidades, em que se afirma: “É preciso lembrar o marco histórico, econômico e institucional onde se
situam tais propostas [de direito à Cidade Habitável, à Moradia e ao Crédito]: (...) a Nação pelo voto, e em
conseqüência o aparelho estatal brasileiro, pretendem viver um Governo Popular e Democrático com ampla
participação e discussão; vivemos num regime econômico capitalista; os direitos do consumidor, novos entre
nós, ainda não foram incorporados aos usuários e mutuários da moradia e da cidade” (grifos nossos).
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Para compreender melhor essa assertiva, que contém relevante cunho pedagógico, é
preciso situar o direito de propriedade, ainda que sumariamente, em seu contexto histórico.
Segundo Darcy Bessone18, a propriedade é “um dos primeiros instintos do homem e
dos seres em geral que, num primeiro momento, levados por necessidades biológicas,
buscaram apropriar-se de coisas que lhes garantissem a subsistência”. Nesse sentido, ao
decorrer da necessidade social de suprimento de bens, o direito de propriedade “não é um
direito natural”.
No entanto, “na análise da linha evolutiva do conceito de propriedade, fica claro que
a tendência verificada foi a da passagem da propriedade coletiva para a individual, até se
chegar, hoje, a um redirecionamento para sua origem primitiva, no que diz respeito à
utilização voltada para o interesse da coletividade, em atendimento a uma função social”
(Mattos, 2003, p. 23).
Fustel de Coulanges ([1864] 2002, p. 65-67) afirma que, ao contrário das populações
da Grécia e da Itália, que “desde a mais remota antigüidade sempre reconheceram e
praticaram a propriedade privada”, muitos povos primitivos nunca admitiram a propriedade
individual e outros “só com o tempo e muito penosamente a admitiram”. Os tártaros e os
germanos, por exemplo, reconheciam a propriedade quanto aos rebanhos, mas nunca em
relação à terra. Já entre os gregos ocorria o oposto. Em algumas cidades da Grécia Antiga, os
frutos das colheitas eram de propriedade comum. Assim, “o indivíduo não era dono do trigo
por ele colhido, mas, por notável contradição, era proprietário absoluto do solo”.
Coulanges destaca ainda que, entre os gregos, a idéia de propriedade privada estava
implícita na religião. O lar devia assentar-se sobre a terra; “uma vez construído, nunca mais
deveria mudar de lugar”. O deus da família ali se instala enquanto “dela restar alguém que
conserve a chama do sacrifício”. Assim, a família fixa-se ao solo, “agrupada em volta de seu
altar”. Daí porque, segundo Coulanges, não foram as leis, mas a religião que primeiramente
garantiu o direito de propriedade, pois cada domínio estava sob a proteção das divindades que,
em cada lar, velavam por ele.
Na síntese de Liana Portilho Mattos (2003), podemos perceber como a noção do
direito de propriedade foi gradativamente se conformando desde a Roma Antiga; ao perpassar
o período feudal; no âmbito da Revolução Francesa; e, finalmente, como se configurou no
Estado socialista e no Estado democrático de direito.
18
Bessone, 1988, apud Mattos, 2003, p. 22.
30
20
O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens foi escrito por Rousseau
motivado pelo tema de concurso promovido, em 1753, pela Academia de Dijon: “qual é a origem da
desigualdade entre os homens e se ela é permitida pela lei da natureza”. Rousseau não obteve prêmio no
concurso, mas sua obra foi publicada em Amsterdam, por um livreiro seu amigo, em abril de 1755, e posta à
venda em Paris, em meados daquele ano. Sua abordagem do papel da terra como fator de desigualdade era de
imensa ousadia no contexto de uma sociedade de base feudal. Segundo Jean-François Braunstein, nos
comentários que fez à obra em 1981, “a observação de Voltaire, na margem de seu exemplar, mostra bem o
caráter revolucionário do pensamento de Rousseau: ‘eis a filosofia de um miserável que gostaria que os ricos
fossem roubados pelos pobres” (Rousseau, [1755] 1989, p. 7 e 84).
32
Não por acaso, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela
Assembléia Nacional em agosto de 1789, ainda nos primórdios da Revolução, a propriedade
foi considerada direito inviolável e sagrado, inscrito no rol dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem:
“Proclamando, pois, a inviolabilidade do direito de propriedade, a Declaração
legitimava com esse fato a desigualdade dos bens e a exploração do não-possuidor pelo
possuidor e, conseqüentemente, do pobre pelo rico. Entretanto, no século do despotismo e
da extorsão feudais, o Artigo 17 não era somente dirigido contra os não-possuidores, mas
também contra os senhores feudais, isto é, pretendia defender a propriedade burguesa e
camponesa contra possíveis atentados da aristocracia.”21
21
marcos do socialismo. Em diferentes modelos, esses princípios foram aplicados (e, em alguns
casos, ainda se aplicam) no Estado resultante da Revolução Russa de 1917, nos demais países
do antigo “bloco socialista europeu”, na China, em Cuba, no Vietnam, na Coréia do Norte.
Independentemente de seus resultados ou de sua continuidade, “a concretização
dessas possibilidades de conformação radical da propriedade privada pelo Estado foi decisiva
para que o paradigma de propriedade absoluta e individualista, predominante desde os
romanos, fosse paulatinamente abandonado a partir de então” (Mattos, op. cit., p. 35).
Manifesto do Partido Comunista, de 1848, de Marx e Engels, p. 37 e 47, apud Cariello Filho, 1999, p. 21 e 22.
26
Citado por Liana Portilho Mattos (op. cit., p. 36).
35
(...) O Direito, então, imantado por esses valores, se enriquece do sentir popular e terá que
ajustar-se ao interesse coletivo”.
revela profunda hipocrisia, pois mais não serve do que para embelezar e esconder a
substância da propriedade capitalística. É que legitima o lucro ao configurar a atividade do
produtor de riqueza, do empresário, do capitalista, como exercício de uma profissão no
interesse geral.”
Desse ponto de vista diverge José Diniz de Moraes (1999, p. 111), pelo menos no
tocante ao caráter jurídico da função social da propriedade:
“Se do aspecto formal concluímos que a função social da propriedade é princípio
jurídico e que como norma jurídica deve ser tratado, materialmente somos levados a
concluir (...) que a função social da propriedade não é senão o concreto modo de funcionar
da propriedade, seja como exercício de direito de propriedade ou não, exigido pelo
ordenamento jurídico, direta ou indiretamente, por meio de imposição de obrigações,
encargos, limitações, restrições, estímulos ou ameaças, para satisfação de uma necessidade
social, temporal e espacialmente considerada.”
elemento jurídico a cumprir esse papel, pois “as diretrizes gerais do Estatuto da Cidade, seus
instrumentos de política urbana e outras de suas normas” também se prestam a vincular
objetivamente o direito de propriedade urbana29 ao cumprimento de sua função social.
Tanto é assim que, para Liana Mattos (op. cit., p. 117), as propriedades urbanas,
ainda que estejam situadas em localidades que não se enquadrem nas hipóteses legais de
exigência obrigatória do plano diretor, assim como na inexistência desses planos em
municípios que estejam obrigados a fazê-lo, “também estão sujeitas ao cumprimento de uma
função social que aproveite à coletividade e não só aos interesses do proprietário”.
Em síntese, expressamente limitado aos marcos do regime de mercado (tanto quanto
o próprio conteúdo da reforma urbana), o princípio constitucional da “função social da
propriedade urbana” objetiva, na verdade, não a transformação revolucionária das relações de
produção, mas a democratização do acesso aos bens e serviços produzidos nas cidades.
Edésio Fernandes (2002b, p. 37), que também vê juridicamente preenchido o
conceito de função social da propriedade, sintetizou, de maneira prospectiva, o significado do
novo ordenamento legal, no que respeita às transformações por que tem passado esse debate
no Brasil:
“Culminando um processo de reforma jurídica que começou na década de 1930, o
que a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade propõem é exatamente essa mudança de
‘olhar’, isto é, de paradigma conceitual de compreensão e interpretação, substituindo o
princípio individualista do Código Civil pelo princípio da função social da propriedade –
que, diga-se de passagem, encontra-se presente de maneira central nas ordens jurídicas de
muitos dos países capitalistas mais avançados.”
29
Deve-se observar, nesse aspecto, que a hipótese de desapropriação-sanção, prevista constitucionalmente como
penalidade para o proprietário que desatender à função social da propriedade, impõe-se diferentemente em
relação ao solo rural ou urbano. Para fins de reforma agrária, sendo a terra improdutiva, a Constituição é auto-
aplicável no sentido de permitir ao poder público expropriar o bem mediante o pagamento em títulos resgatáveis
em até vinte anos. No caso de reforma urbana, o mesmo procedimento passou a depender de uma lei federal
(Estatuto da Cidade), de uma lei municipal (plano diretor), bem como de duas etapas antecedentes à
desapropriação: decretação de edificação, parcelamento ou utilização compulsória e tributação progressiva no
tempo. Ademais, o prazo para o resgate dos títulos é reduzido à metade: dez anos. Ou seja, o “Brasil rural”, tido
por muitos como arcaico e conservador, assimilou o princípio da função social da propriedade de maneira menos
manietada que o “Brasil urbano”, comumente associado à modernidade.
38
em aferir em que medida esses preceitos foram contemplados no texto do Estatuto da Cidade
e, de certo modo, tentar inferir suas possibilidades de êxito.
Para tanto, convém verificar o papel que vem sendo desempenhado pela ação do
poder público e pelas normas legais na configuração das cidades brasileiras, não apenas no
seu aspecto físico, mas, sobretudo, no que se relaciona com a apropriação social e econômica
do espaço urbano. É o que tentaremos fazer no capítulo seguinte.
A legislação comumente adotada nas áreas urbanas tem por objetivo uma
configuração idealizada de cidade, teoricamente capaz de ordenar os padrões de ocupação e as
modalidades de utilização desses espaços. No entanto, ao definir o que pode e o que não pode
ser erigido, ou que atividades são ou não admitidas nessa ou naquela zona urbana, a lei acaba
por constituir fronteiras, reais ou virtuais. Num dos campos dessas fronteiras, estão os que
atendem aos padrões fixados na lei e, em contrapartida, são protegidos pelo aparato
institucional que a legalidade representa. Noutro, se situam os que, por não disporem dos
meios (materiais ou político-sociais) para cumprir as normas urbanísticas (ou, de outro ponto
de vista, tê-las produzidas à sua feição), são esquecidos pelas instituições e mantidos à
distância das condições básicas da cidadania.
Essa dualidade, a cidade formal e legal em contraste com vastas extensões de
ocupação urbana informal e ilegal, é crescentemente visível nos grandes e médios municípios
brasileiros. No entanto, a par de desassistidos pelas políticas públicas, os setores urbanos
informais e ilegais são muito freqüentemente desconsiderados até pelos registros, mapas e
cadastros municipais30.
Mesmo em cidades de dinâmica complexa e amplamente dotadas de recursos e
instrumentos de administração, como o Rio de Janeiro, por exemplo, “até 1994, as favelas
30
Dados recentemente divulgados pelo IBGE comprovam que: (i) 36,8 % dos municípios brasileiros têm
loteamentos irregulares/ilegais e 23% possuem favelas; (ii) todas as cidades com mais de 500 mil habitantes
possuem tanto favelas quanto loteamentos irregulares/ilegais (70% de todas as favelas estão nessas cidades); (iii)
nas Regiões Metropolitanas, 79% dos municípios têm favelas. Apesar da eloqüência desses números (que, aliás,
foram considerados subestimados por técnicos e autoridades da área, em entrevistas publicadas por ocasião da
divulgação da pesquisa, em novembro de 2003), somente 50% dos municípios que têm favelas possuem um
simples cadastro dessas ocupações (MUNIC/IBGE, 2003).
40
figuravam como áreas vazias ou áreas verdes na cartografia oficial do município” (Smolka,
2003, p. 267). Nessa mesma metrópole, embora não se refiram diretamente à chamada “cidade
ilegal”, dados publicados pelo jornal O Dia, de 12 de agosto de 2001, dão a medida do
contraste entre a atenção do poder público então dirigida à Zona Sul (ocupada, na maior parte,
por estratos sociais de alta renda, em áreas formais) e à Zona Oeste (caracterizada, em grande
medida, por ocupações de padrão popular, com elevada concentração de informalidade):
31
A reprodução radical dos mecanismos de segregação social em Brasília (cidade-modelo da aplicação dos
preceitos do racionalismo modernista), como efeito urbanístico de normas, leis, políticas e ações administrativas
de natureza público-estatal, pode ser compreendida por meio de análises como as de Gouvêa (1998) e Campos
(1998).
32
Como exemplo, pode ser citado texto do engenheiro Victor da Silva Freire, que foi diretor de obras da cidade de
São Paulo de 1899 a 1926, para quem os objetivos da legislação (referindo-se, no caso, aos códigos sanitários e
municipais) eram dois, nomeadamente: “Primeiro – positivo, de protecção e amparo – proporcionar à parte da
população que aspira viver n’um ambiente sadio e decente, e educar a sua prole em condições de dignidade,
disposições que facilitem realisar essa tão legítima ambição; Segundo – negativo, de repressão e policia –
impedir que a parte restante, a qual pouco se importa com tudo isso, ou é incapaz de tentar o esforço necessário
para o alcançar, possa crear situações que venham a constituir ameaça para os visinhos, para a communidade e
para a civilização” (Freire, 1918, p. 231, apud Rolnik, 1997, p. 43).
41
conteúdo urbanístico, e estabelece-se como legislação sanitária”, parece claro o efeito dessas
normas na configuração das principais cidades brasileiras.
Em São Paulo, já a partir de 1886, ano da edição de um Código de Posturas
Municipais, cuidou-se de proibir, por exemplo, a ocupação de cortiços na área urbana mais
valorizada, à época: o centro da cidade. Na prática, “com a proibição da instalação de cortiços,
casas de operários e cubículos, proibiu-se genericamente a presença de pobres no centro da
cidade” (Rolnik, op. cit., p. 37).
Nos inícios do século XX, no Rio de Janeiro, então sede do governo federal com
mais de 500 mil habitantes, “a existência de uma burguesia, que reivindica sob inspiração
européia condições mais confortáveis de vida” e um “processo de modernização que acontece
no país sob motivação do capital estrangeiro” (Rezende, 1982, p. 37) dão ensejo a um projeto
de remodelação e “embelezamento” da área central (também ocupada por cortiços e outras
formas de moradia popular), encomendado pelo presidente Rodrigues Alves ao prefeito
Pereira Passos33. A oligarquia rural — decadente, mas ainda poderosa — preocupa-se então
em manter seu já ameaçado poder político quando atende, ao mesmo tempo, reivindicações de
uma nascente e politicamente ativa burguesia e empreende obras de urbanização e de infra-
estrutura no interesse do capital externo, como a modernização do porto, por exemplo. “As
camadas populares, no entanto, não são consideradas no processo de planejamento (...). O
objetivo é resolver os conflitos com a burguesia e escamotear aqueles oriundos das camadas
médias e baixas, restaurando a ordem” (Rezende, op. cit., p. 40).
A idéia de “restaurar a ordem” pressupõe a interveniência de uma “desordem” e a
emergência de “crises”, que podem pretextar-se em questões de saúde pública, como era
freqüente nas primeiras décadas do século XX, ou em outros temas, sempre recorrentes, como
a escassez de moradias ou os entraves do trânsito e dos sistemas de transporte. O papel dos
planos e normas urbanísticas, nesse contexto, que em grande medida ainda perdura, passa a
ser o de orientar o restabelecimento de uma idealidade perdida ou, melhor dizendo, sempre
buscada e jamais realizada: a cidade pacífica e ordenada, fruto dos ditames de uma
racionalidade técnica que a tornaria própria ao desfrute coletivo.
33
Segundo Luiz Alberto Gouvêa (1998, p. 77-78), “é deste período, inclusive, que se tem notícia das primeiras
favelas no Rio de Janeiro, pois a população expulsa da área onde foi construída a avenida Rio Branco [então
Avenida Central, obra-símbolo da reforma Pereira Passos] se alojou nas periferias mais próximas, na época, os
morros cariocas”. Considera-se, na verdade, a primeira favela carioca a ocupação do Morro da Providência,
depois denominado Morro da Favela, ocorrida em 1897, por ex-combatentes da Guerra de Canudos. “Cerca de
10 mil soldados foram para o Rio com a promessa do governo de ganhar casas na então capital federal. Como os
entraves políticos e burocráticos atrasaram a construção dos alojamentos, os ex-combatentes passaram a ocupar
provisoriamente as encostas do morro - e por lá acabaram ficando. (...) Favela era o nome de um morro que
ficava nas proximidades de Canudos e serviu de base e acampamento para os soldados republicanos. Faveleiro é
também o nome de um arbusto típico do sertão nordestino” (www.favelatemmemoria.com.br, consultado em
29/1/04).
42
Parece ser esse — a busca de um ideal de cidade que se tornaria possível por meio de
ditames técnicos, mas que resulta em apartação social — o ponto de contato entre as distintas
correntes do pensamento urbanístico que se aplicaram no Brasil do século XX. Para Sarah
Feldman, essas correntes seriam três: “o urbanismo higienista, que estabelece uma legislação
sanitária; o urbanismo americano dos anos 20, que reelabora o zoneamento alemão; e o
movimento modernista, que se contrapõe à legislação de princípios higienistas vigente na
Europa dos anos 2034” (Feldman, 2001, p. 41).
Em todos esses períodos históricos, “crises urbanas” (sanitárias, circulatórias ou
habitacionais) são identificadas e dão ensejo a normas legais vinculadas, em maior ou menor
medida, a propostas planificadoras35. Segundo Vera Rezende (op. cit., p. 30), “a crise urbana é
comumente invocada no sentido de se elaborar um plano ou efetuar um conjunto de ações que
lhe dêem fim”. Para essa autora, apoiada em texto de Marilena Chauí36, esses planos decorrem
da idéia de que o real é o racional, não possuindo contradições internas, mas tão-somente
“divisões estruturais” de um todo composto de partes articuladas, dotadas, por sua vez, de
racionalidades específicas.
Mais ostensivamente, agora no âmbito da visão estrutural e funcionalista —
característica do modernismo —, a planificação e o planejamento se prestam a reduzir a
problemática urbana “a leis e teorias”, de tal maneira que “qualquer comportamento que não
se enquadre nas leis estabelecidas vai ser considerado um desvio dotado de irracionalidade”
(Rezende, op. cit., p. 31).
Para Herbert Ganz (1960, apud Rezende, op. cit., p. 32), “mais importante do que
esse tipo de plano contém é o que ele deixa de fora. As estruturas sociais, econômicas e
políticas e suas relações, que irão determinar o tipo de uso e ocupação da terra, não são
consideradas relevantes”. Ao ignorar essas estruturas, o planejamento passa a desconsiderar os
conflitos urbanos e, assim, desobriga-se de resolvê-los ou, pior, presta-se a acentuá-los.
Ainda com base na obra de Ganz, Vera Rezende identifica o papel desempenhado
pelo principal instrumento das leis planificadoras dessa natureza: o “zoneamento”37, divisão
34
Os modernistas viam a legislação higienista dos anos 1920 como entrave à aplicação dos pressupostos da
arquitetura moderna: plantas livres e flexíveis, espaço exterior amplo, verticalização, produção em série etc
(Feldman, 2001, p. 42).
35
Para reflexão: na concepção do marxista italiano Antonio Gramsci, desenvolvida nos Cadernos do cárcere (Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 6 vol., 2002), escritos entre 1929 e 1935, a crise se instala quando o velho
(modelo) está morrendo e o novo ainda não nasceu, dando vazão, nesse ínterim, a manifestações de toda sorte.
Desse ponto de vista, as “crises urbanas” seriam invocadas - de modo não desinteressado - pelos que querem
enterrar o velho e, por meio dos planos, anunciar o novo.
36
do espaço em zonas de usos específicos: “Quando propõe não misturar diferentes usos do
solo, muitas vezes está presente o temor de contaminação de áreas mais valorizadas por
grupos de baixa renda ou usos não convenientes” às forças econômica e politicamente
dominantes (op. cit., p. 32).
No mesmo sentido, Marcelo Lopes de Souza38 aponta, já nas origens do instrumento,
o caráter discriminatório do zoneamento:
“Após uma pré-história que começa nas últimas décadas do século XIX (...), o
zoneamento faz seu aparecimento, de modo definitivo, nas primeiras décadas do século
seguinte, tanto na Europa como nos Estados Unidos. A legislação de zoneamento de Nova
Iorque, de 1916, por exemplo, é considerada o primeiro código a instituir um zoneamento
abrangente nos EUA, dentro dos princípios que dominariam o instrumento no século XX:
excluir certos usos e, não raro, (e de modo às vezes muito pouco disfarçado), também certos
grupos sociais” (Souza, 2002, p. 251-252).
Decorre dessa percepção o argumento de que não é por falta de planos que as cidades
brasileiras crescem de modo social e ambientalmente predatório, mas, ao contrário, pelo
efeito, em grande medida, das próprias normas planificadoras. Para muitos pesquisadores, o
aparato legal que regula a produção do espaço urbano no Brasil (legislação exigente para o
parcelamento do solo, normas rígidas de zoneamento e minudentes códigos de obras, por
exemplo) tem cumprido um papel oposto aos seus aparentes objetivos ordenadores. Como
expressa, por exemplo, Ermínia Maricato,
“a exclusão social passa pela lógica da aplicação discriminatória da lei. A ineficácia dessa
legislação é, de fato, apenas aparente, pois constitui um instrumento fundamental para o
exercício arbitrário do poder (...). A ocupação ilegal da terra urbana é não só permitida
como parte do modelo de desenvolvimento urbano no Brasil (...). Ao lado da detalhada
legislação urbanística (flexibilizada pela pequena corrupção na cidade legal) é promovido
um total laissez-faire na cidade ilegal” (Maricato, 2000, p.147).
De fato, não é possível compreender a segregação social no espaço como efeito tão-
só de normas urbanísticas estabelecidas por um estamento profissional dominado pelos
pressupostos da razão técnica e alheio às causas estruturais da desigualdade. O aparelho
estatal, onde se incluem os grupos técnico-profissionais incumbidos da proposição de normas
urbanísticas, mas também parlamentares e autoridades, detentores de efetivo poder
institucional, não é autônomo, como formalmente prescreve a Constituição. Ao contrário,
move-se em função de condicionantes.
Como ensinou Karl Marx, “as relações jurídicas — assim como as formas de Estado
— não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito
humano (...)” (1977, p. 24). Na verdade, essas relações expressam as estruturas sociais que
representam, bem como suas respectivas correlações de forças. É a chamada “pirâmide
invertida”, de que costumava falar Florestan Fernandes: as grandes massas populares contam
com escassos representantes nas instâncias efetivas do poder político, ao contrário dos poucos
ricos que, influentes, detêm expressivo número de defensores institucionais.
Nesse sentido, a segregação social no espaço passa a ser entendida, não como mera
decorrência, mas como fator necessário aos interesses do capital imobiliário, detentor de
parcelas hegemônicas de poder nas principais cidades brasileiras.
Para compreender como isso se dá, é necessário, antes, perceber o significado da
terra na dinâmica da economia. Segundo Mark Gottdiener, os economistas clássicos
consideram a terra como fator de produção. Tanto para Ricardo quanto para Marx, a terra era
um recurso agrícola e a renda fundiária, um produto da aplicação de trabalho e capital para a
produção de alimentos.
“A terra, desvinculada de qualquer forma de regulação estatal, era o terceiro
elemento da famosa fórmula da trindade de Marx: trabalho, capital e terra. Marx enfocou
esses fatores ancorado em três classes separadas — trabalhadores, capitalistas e
proprietários de terra — que batalhavam pela divisão da riqueza social. (...) Somente
45
Engels39 superou essa visão com a abordagem da questão imobiliária comercial quando
considerou a questão da habitação” (Gottdiener, 1996, p. 18).
Pois basta tão-somente esse “poder de direito sobre a coisa”, e não necessariamente o
proveito econômico e social que pode decorrer da utilização da propriedade, para que
proprietários de solo urbano aufiram rendas patrimoniais expressivas. Como o preço de um
terreno decorre de externalidades — a exemplo, entre outras, das possibilidades urbanísticas
para o seu uso, dos serviços públicos que lhe são postos à disposição e das atividades
realizadas em outros imóveis lindeiros —, o proprietário aufere passivamente uma renda que
deriva diretamente do direito contratual à propriedade e não da utilidade que confira ao seu
patrimônio.
Em outro pólo, nesse caso de modo ativo, a obtenção da renda fundiária pode se dar
pela ação deliberada e concertada entre os proprietários de terra no sentido de controlar a
escassez da oferta de terrenos, exigindo assim uma espécie de “tributo” a ser pago pelos
usuários de qualquer lote, independentemente das peculiaridades de cada um deles.
Segundo Smolka (op. cit., p. 43), com respeito a essa última circunstância, a de um
“tributo” imposto pelos proprietários aos usuários de solo urbano, dois componentes, “que
podem reforçar-se mutuamente”, devem ser considerados na formação dos preços do solo
urbano: a realização do valor potencial, “calcada na capacidade dos proprietários fundiários
em exercerem influência no uso que se dá à terra”, e a expectativa de valorização futura,
decorrente de novos investimentos, públicos ou privados, e da rentabilidade que deles pode
decorrer.
“Tudo isto sugere, em suma, que o preço do terreno é determinado, em larga
medida, pelas condições de produção do ambiente construído e, em especial, pelo preço dos
imóveis. Parafraseando a máxima ricardiana, dir-se-ia que os preços dos terrenos são altos
porque os preços dos imóveis são altos, e não o inverso, como ainda pretendem certos
analistas” (Smolka, op. cit., p. 46).
41
Rudolf von Ihering (1818–1892), um dos primeiros defensores da concepção do direito como produto social,
ocupa, ao lado de Friedrich Karl von Savigny (1779-1861), lugar de relevo na história do direito alemão, com
repercussão de sua obra em todo o mundo ocidental. Savigny, defensor da posse como condição para a
prevalência da propriedade, advogava a idéia de que, na essência, a posse é um fato, mas, considerada quanto às
suas conseqüências, também equivale a um direito.
48
Não por acaso, mas certamente à vista da lucratividade obtida pela incorporação
imobiliária, alguns proprietários de terrenos e, especialmente, os construtores passaram a
desempenhar também o papel de incorporadores no processo de produção imobiliária, em
lugar de apenas fornecerem os “insumos produtivos” para um agente externo que, afinal,
obtinha a maior parcela da mais-valia gerada.
Essa tensão entre proprietários de terrenos e incorporadores (construtores ou não) é
explicada por Martim Smolka. Para esse autor, “ao tentar assumir o controle do processo pelo
qual rendas fundiárias são criadas e apropriadas”, o capital incorporador “depende de sua
50
capacidade em minar o poder dos proprietários” na aquisição dessas rendas, o que implica
“advogar medidas que favoreçam uma baixa nos preços de terrenos” (op. cit., p. 49)42.
Esse aspecto do conflito entre frações do capital imobiliário (proprietários de solo e
incorporadores) é especialmente importante para os objetivos deste trabalho na medida em
que parece explicar, por exemplo, o apoio de incorporadores a medidas como a tributação
progressiva sobre lotes ociosos (mas não sobre habitações vazias, como se verá adiante). Para
Smolka, medidas como essa, de combate à ociosidade de terrenos, podem transferir o controle
sobre a disponibilidade e forma de utilização do solo urbano “daqueles proprietários que se
beneficiam da terra parasitariamente para aqueles que a empregam como meio de produção”
(op. cit., p. 50), ou seja, tendem a ser benéficas para os incorporadores.
Com efeito, a atuação do capital incorporador se dá em distintos momentos da
produção imobiliária. De uma parte, valendo-se não apenas de normas legais, mas também de
exigências institucionais e administrativas de agentes financeiros, entre outras, a atividade de
incorporação torna-se reservada a empresas de médio ou grande porte e complexidade, o que
afasta ou, quando menos, dificulta que o pequeno proprietário de determinado lote assuma
diretamente o controle do processo produtivo que incidirá sobre a sua própria terra. Desse
modo, o poder de barganha do capital imobiliário se amplia no sentido de inibir, em seu
proveito, que a renda fundiária do solo urbano seja capturada diretamente pelos seus
proprietários.
De outra parte, a valorização imobiliária agenciada e apropriada pelo capital
incorporador se dá pela antecipação de variações no preço dos imóveis proporcionada por
modificações na estrutura urbana, como investimentos em infra-estrutura e equipamentos,
muitas vezes promovidas pelo poder público. Essas antecipações requerem, em primeiro
lugar, um sistema de crédito que assegure a rápida recuperação do capital aplicado pelo
incorporador e confira liquidez a variações de preço que só serão concretizáveis no futuro.
Assim, ao comercializar um imóvel, os incorporadores não estão apenas vendendo uma
habitação, mas buscando transformá-la num ativo financeiro, cuja valorização
presumidamente irá beneficiar o comprador; o qual, por isso, passa a ver a aquisição como um
investimento, associando-se em certa medida aos êxitos financeiros da incorporação.
No entanto, a realização dessa valorização presumida exige não apenas o aporte de
recursos públicos em melhorias urbanas, mas também que os fatores subjetivos da demanda
42
Com esse mesmo propósito, o de minar o poder dos proprietários de terras, em Brasília (DF), onde
peculiarmente o mercado imobiliário é abastecido em licitações promovidas por uma loteadora pública (a Cia.
Imobiliária de Brasília/Terracap, dirigida pelo autor, de 1995 a 1998), os incorporadores, pela imprensa,
costumam atribuir os altos preços dos imóveis que vendem ao “custo do terreno” — formado, na verdade, por
eles próprios, nas ofertas que fazem nos leilões.
51
43
Além de promover externalidades benéficas aos empreendedores privados, como infra-estrutura e
equipamentos urbanos, não poucas vezes o poder público carreia recursos diretamente em proveito desse setor do
capital, como ocorreu no caso do Fundo Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), constituído por recursos do
trabalhador. Ver, por exemplo, Schvasberg, 1986, p. 139-166.
44
Quando um grupo de especialistas do Comitê Econômico Europeu, da Organização das Nações Unidas, reunido
em Roma, concluiu que o direito de construir pertence à comunidade e deve sempre ser objeto de permissão
pública (Lorenzetti e Araújo, 2002, p. 3).
52
economicamente, ou possam resultar num valor econômico positivo” (Silva, De P., 1998, p.
594).
Ora, se há uma categoria de patrimônio que, sendo tangível, a exemplo dos imóveis,
é facilmente perceptível como tal, há também outra, da qual faz parte o direito de construir,
que, ainda que seja intangível e de percepção mais sutil, não tem menor importância ou valor.
Portanto, se ao aparelho estatal não é dada, nem legal nem moralmente, a prerrogativa de
transferir gratuitamente um bem público para o patrimônio particular, do mesmo modo lhe
deve ser vedada a possibilidade de ceder a particulares direitos que pertencem à coletividade e
integram o patrimônio público, no sentido de que podem ser aplicados economicamente.
Lamentavelmente, contudo, não é essa a noção prevalecente. Antes pelo contrário,
ainda é freqüente a prática estatal de beneficiar particulares, proprietários e incorporadores
imobiliários, com franquias edilícias que integram direitos patrimoniais de natureza pública.
45
Operado à época por um Estado de índole autoritária, em plena ditadura político-militar, esse aparato
institucional destinado a inibir a efervescência de manifestações populares também cumpria relevante papel no
sentido de estabelecer as bases da dualidade cidade legal/cidade ilegal. Não é de estranhar, portanto, que a
proposição da reforma urbana, construída a partir de então, tenha incorporado, como um de seus fundamentos, a
garantia e a ampliação dos direitos da cidadania. Nasce, assim, dessas restrições políticas, a luta pela gestão
democrática das cidades, que mais tarde viria a constituir um dos princípios do Estatuto da Cidade.
46
Para uma densa análise da “especificidade do fenômeno urbano nos países subdesenvolvidos” e em que esse
processo se diferencia do ocorrido nos centros capitalistas hegemônicos, ver Santos, M., 1982.
54
47
Ao tomar posse, em 1967, o segundo presidente do período militar, general Artur da Costa e Silva, afirmou em
discurso solene: “Queremos que os ricos se tornem mais ricos para que, com sua riqueza, possam tornar os
pobres menos pobres”.
55
48
Segundo Schmidt e Farret (op. cit, p. 34-35), “um projeto para este banco foi feito antes por Carlos Lacerda,
então governador do Estado da Guanabara e um dos principais líderes do movimento vitorioso de 1964; também
um forte candidato à sucessão de Castello Branco. Não se pode esquecer que estavam previstas eleições em
1965, para constitucionalizar o movimento de 1964”.
56
baseada na construção de moradias, ora pela Fundação da Casa Popular, ora pelos Institutos
de Aposentadoria e Pensão das várias corporações profissionais, cujos contratos de venda
eram incapazes de propiciar retornos financeiros suficientes para realimentar o sistema — foi
substituída.
Já no dia 21 de agosto daquele ano de 1964, editou-se a Lei nº 4.380, que instituiu “a
correção monetária nos contratos imobiliários de interesse social”, assim como o “sistema
financeiro para aquisição da casa própria”, na prática denominado Sistema Financeiro da
Habitação (SFH). Por meio dessa lei, também foram criados o Banco Nacional da Habitação
(BNH), as Sociedades de Crédito Imobiliário, as Letras Hipotecárias e, por fim, o Serviço
Federal de Habitação e Urbanismo (Serphau), que sucedeu a Fundação da Casa Popular,
existente desde 1946.
Entre as atribuições do Serphau, fixadas no art. 55, estava a de “estabelecer normas
técnicas para a elaboração de Planos Diretores, de acordo com as peculiaridades das diversas
regiões do país”, bem como “assistir aos municípios na elaboração ou adaptação de seus
Planos Diretores [a essas normas]”. De forma coercitiva, o § 1º do mencionado artigo
determinava que os municípios que não tivessem sua legislação urbanística ou seus “projetos
e planos habitacionais” adaptados às normas do Serphau estariam impedidos de “receber
recursos provenientes de entidades governamentais, destinados a programas de habitação e
urbanismo”49.
É curioso observar que, pelo menos desde 195350, documentos produzidos por
organizações de arquitetos, em especial o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), já
defendiam a institucionalização da questão urbana e habitacional no âmbito do poder público,
com base na idéia do planejamento da ação estatal. Reiterada em muitas ocasiões, essa
49
Por força dessa exigência, que perdurou até 1975, quando o Serphau foi extinto, ficou conhecida a prática da
contratação de “planos diretores” com pouca ou mesmo nenhuma vinculação com as realidades e processos
políticos locais, mas “com o objetivo primordial de constituir documento para a solicitação dos recursos para
investimentos e implementação de programas setoriais nos municípios, recursos estes centralizados no Governo
Federal” (Mendonça, 2001, p. 151).
50
Promovido pelo IAB, o Seminário, sem prejuízo do caráter contestador e reivindicatório de seu documento final,
teve o patrocínio governamental do Ipase (Instituto de Previdência e Assistência Social dos Servidores de
Estado). O evento reuniu não apenas arquitetos, mas “cerca de 200 técnicos de diferentes especialidades
(arquitetos, sociólogos, engenheiros, economistas, advogados, assistentes sociais, médicos) para, juntamente com
líderes estudantis e sindicais, representantes de órgãos estaduais de planejamento e de grandes empresas
industriais de economia mista, estudar e debater os aspectos da crise brasileira de habitação” (Serran, op. cit., p.
11).
58
“Todos esses esforços dirigem-se para uma caracterização das situações como
problemas, para os quais se deveriam procurar soluções. É a ideologia do planning, fazendo
eco às correntes européias e norte-americanas (...). Por isso, costuma-se considerar como
marco institucional do planejamento urbano no Brasil a criação do Serphau, mesmo porque
este ato desencadeou uma série bastante significativa de experiências, (...) abrangendo um
grande número de cidades de pequeno e médio portes, e não apenas os centros mais
populosos.”
52
Taylor, 1998, apud Souza, 2002, p. 123.
53
A construção teórica dessa crítica, de inspiração marxista, se deu, como vimos, no âmbito da mencionada “nova
sociologia urbana”, constituída a partir do final dos anos 1960, por autores como Henri Lefebvre, Manuel
Castells, Jean Lojkine, Christian Topalov e outros, que influenciaram fortemente a produção teórica latino-
americana sobre a problemática urbana, muito especialmente a formulada no Brasil. Para uma crítica à filiação
alegadamente marxista dessa corrente, ver Cariello Filho, 1999.
59
Nos primeiros anos do novo regime, essa estratégia política, que pretendia superar a
insatisfação das massas urbanas, bem como atender às expectativas das classes médias e dos
setores empresariais que haviam apoiado o golpe militar, resultou (conforme Schmidt e Farret,
1989, p. 33): (i) numa política de desmobilização popular, sustentada pela repressão aos
movimentos sociais e pela “manipulação dos mecanismos eleitorais”; (ii) na implementação
de uma política habitacional, cujo suporte financeiro destinou-se, na verdade, a “acentuar a
acumulação de capital em setores urbanos-chave”, a despeito do discurso oficial que
procurava conquistar a simpatia dos setores populares54.
Os dados demonstram essa afirmação. Até 1967, com apenas três anos de operações
do BNH, “o financiamento de habitação para grupos sociais com as mais altas rendas tomou
41% do total dos recursos, enquanto somente 35% foi para financiar habitações para as classes
mais empobrecidas” (Schmidt e Farret, op. cit., p. 40). Essa tendência não apenas se
confirmou, mas acentuou-se ao longo do tempo. Quando o BNH foi extinto, em 1985, o SFH
havia financiado aproximadamente seis milhões de moradias. No entanto, apenas 33,5%
dessas unidades foram destinadas à população de baixa renda, o que significa que, em termos
de volume de recursos, a concentração foi ainda maior: “Dado que o valor médio dos
financiamentos de interesse social é inferior ao valor médio dos financiamentos para as
classes de renda mais elevada, é lícito supor que uma parcela ainda menor do valor total dos
financiamentos foi direcionada para os primeiros” (Santos, C. H., 1999, p. 17).
A partir de 1973, quando são criadas as primeiras Regiões Metropolitanas e a
Comissão Nacional de Política Urbana e Regiões Metropolitanas (CNPU), o contexto urbano
passa a freqüentar mais ostensivamente a agenda política nacional. Os programas do BNH,
inicialmente restritos ao financiamento habitacional, passam a destinar-se também a serviços
(em especial os de saneamento) e equipamentos urbanos. Em 1976, é criada a Empresa
Brasileira de Transportes Urbanos (EBTU). Enquanto a abrangência temática das políticas
públicas crescia, a instância municipal era substituída pela concentração da formulação de
programas (e mesmo da iniciativa das ações administrativas) na esfera federal.
Sintomaticamente o Serphau, nascido para subsidiar os municípios, é extinto.
Mudam os enfoques, mas não o principal beneficiário da ação do poder público: o
capital privado. Para Schmidt e Farret (op. cit., p. 43),
“as causas ostensivas dessas mudanças são múltiplas e provêm da exaustão de oportunidades
lucrativas para novos investimentos, bem como de pressões emanadas de uma estrutura
urbana profundamente desorganizada. O capital disponível tinha de encontrar novas
54
O SFH foi calcado na fórmula da correção monetária acrescida de juros, sem cogitar de subsídios, o que, na
prática, afastava os mais pobres do acesso à moradia.
60
soluções e nas próprias ações administrativas. Noutro, para dar vazão a propostas de
“empresariamento” das cidades no âmbito da competitividade da economia globalizada56.
Embora intrinsecamente distintas, essas abordagens são às vezes confundidas,
sobretudo porque ambas se valem de novos preceitos para a abordagem da problemática
urbana, presentes na avaliação dos efeitos da urbanização durante as duas décadas
transcorridas entre a I Conferência da ONU para Assentamentos Humanos (Habitat I),
ocorrida no Canadá, em 1976, e a Habitat II, realizada na Turquia, em 1996, que ganharam
expressão no documento-referência denominado Agenda Habitat.
A partir dessa avaliação crítica, algumas importantes correntes de opinião adotam
uma perspectiva desregulamentadora e nitidamente propícia à ação empresarial privada, sob a
legenda do chamado “planejamento estratégico”.
Autores nesse campo do pensamento chegam a elevar esse conjunto de idéias,
construído “pela reflexão de estudiosos e pesquisadores e pela ação dos atores públicos,
empresariais e sociais que interagem nos espaços urbanos” (Fernandes, M., 1999, p. 76), à
condição de “novos paradigmas de desenvolvimento urbano”57, que seriam, resumidamente,
os seguintes:
“a) a adoção do conceito de desenvolvimento sustentável, ratificado pela Agenda 21, e
incorporado pela Agenda Habitat;
b) o protagonismo das cidades nos processos de desenvolvimento econômico nacional,
regional e mundial;
c) o governo local como agente de desenvolvimento e de fomento econômico;
d) a participação dos atores relevantes da sociedade no processo de gestão democrática da
cidade, demandada pela crescente presença das organizações da sociedade no cenário
urbano e na esfera pública” (Fernandes, M., op. cit., p. 76, grifo nosso).
56
Ermínia Maricato adverte que “a crítica ao planejamento modernista carrega o risco de ajudar a mover o moinho
das idéias neoliberais de flexibilização e da desregulamentação” e, contra esse risco, alerta que é necessário
evitar “a importação de idéias desvinculadas da forma contraditória, desigual e predatória ao meio ambiente, com
que evoluem as cidades brasileiras” (Maricato, 2000, p. 172).
57
A despeito de sua postura crítica em relação ao que considera “excessos da regulação estatal”, há
familiaridades entre essa abordagem do planejamento estratégico e o velho planejamento físico-territorial. A
expressão “novos paradigmas para o desenvolvimento urbano”, por exemplo, guarda notória semelhança com a
já mencionada concepção da Carta de Atenas como “o instrumento pelo qual será conduzido o destino das
cidades”.
62
Carlos Matus, economista chileno, foi ministro do governo comunista de Salvador Allende, deposto, no dia 11
de setembro de 1973, por um golpe militar. Em Matus, 1996b, examina o problema da efetivação das ações
políticas a partir de três estilos distintos: o do Chimpanzé, baseado no projeto individual e na luta pelo poder
pessoal; o de Maquiavel, que justifica os meios pela superioridade do projeto a ser implementado; e o de Gandhi,
fundado na força moral e no consenso, que objetiva converter o adversário e não destruí-lo. Com base nesse
último estilo, tenta demonstrar as possibilidades oferecidas pelo planejamento estratégico situacional.
59
Borja e Forn produzem textos e exercem consultoria em que difundem a experiência da transformação
urbanística promovida em Barcelona com vistas aos Jogos Olímpicos de 1992 (Vainer, 2000, p. 75).
60
A primeira em Borja e Forn, 1996, p. 33, e, a segunda, em Borja e Castells, 1997, p. 190, ambas apud Vainer,
2000, p. 78 e 84.
61
de renda, recusava a própria idéia desse tipo de plano como instrumento de gestão. No
entanto, a partir da promulgação da Constituição de 1988, cujo conteúdo promoveu uma
espécie de inesperado renascimento dos planos diretores, o movimento pela reforma urbana
reincorporou criticamente a idéia do planejamento, incluindo-a entre os processos
democráticos e participativos que deveriam orientar a política urbana.
Essa abordagem crítica é não apenas inovadora em relação ao modelo tecnocrático
que contestava e seguiu contestando, mas também pelo grau de autonomia e pioneirismo que
teria no âmbito internacional. Para Marcelo Lopes de Souza, “o principal exemplo de
apropriação do planejamento e da gestão urbanos pelo pensamento crítico se deu não no
Primeiro Mundo (de onde tem sido importada a maioria das modas e idéias em planejamento
e nas ciências sociais em geral), mas no Brasil, com o ideário da reforma urbana” (Souza,
2002, p. 155).
A tentativa de transformar essas novas idéias em leis começou a ocorrer durante a
elaboração da Constituição de 1988, como veremos no Capítulo 4. Por ora, para ajudar na
compreensão do papel que a legislação urbana passou a desempenhar na condição de arena da
disputa pelo direito à cidade, convém verificar o significado que a lei do plano diretor
adquiriu no texto constitucional.
Os grandes proprietários rurais, associados na denominada União Democrática Ruralista (UDR), sob a
presidência do deputado federal constituinte Ronaldo Caiado, do PMDB de Goiás, teve suas posições defendidas
65
agrária “a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu
proprietário não possua outra”, bem como a “propriedade produtiva”, conceito que restou
indefinido (art. 185 da CF).
Mais explicitamente, no art. 186, a Constituição estabeleceu que a propriedade rural
cumpre sua função social quando atende,
“simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos
seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos
recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das
disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar
dos proprietários e dos trabalhadores”.
O movimento social pela reforma agrária se sentiu frustrado com o texto aprovado, já
que pretendia estender a aplicação da desapropriação especial até as propriedades produtivas
que não cumprissem sua função social, possibilidade que, não sendo expressamente
autorizada, passou a depender de métodos jurídicos menos literais de interpretação das normas
constitucionais.
De fato, prevaleceu na Constituição uma redação redutora da perspectiva da reforma
agrária, “tamanha a vagueza do conceito de ‘produtividade’, podendo abranger boa parte dos
latifúndios existentes no País” (Spitzcovsky e Tura, 1993, p. 31). Derrotados pelo Centrão e
pela UDR, ainda que por pequena margem de votos64, os constituintes ligados ao chamado
setor democrático-popular atribuíram ao texto aprovado a responsabilidade pelas dificuldades
que poderiam advir na implementação da reforma agrária. João Gilberto Lucas Coelho e
Antonio Carlos Nantes de Oliveira, ao analisarem o tratamento desse tema no processo
constituinte — num documento redigido em 1989, cujo conteúdo premonitório poderia
também ser estendido à causa da reforma urbana —, afirmaram: “A Constituição não desatou
o nó da questão agrária. Tornou até mais difícil a sua solução. Grandes batalhas legislativas na
regulamentação e a luta prática e diária darão continuidade ao enfrentamento do problema de
parte dos movimentos populares” (Coelho e Oliveira, op. cit., p. 77).
Apesar desse prognóstico pessimista, em grande parte confirmado pelas efetivas
dificuldades para a implementação da reforma agrária (que, a bem da verdade, não se
resumem à expropriação da terra, mas dependem dela), a pré-existência do Estatuto da Terra,
Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964, permitiu que o poder público continuasse a
por um grupo de constituintes de perfil conservador, autodenominado “Centrão” (Coelho e Oliveira, 1989, p. 76
e 77).
64
Na votação n° 531, a tentativa do Centrão e da UDR de remover do texto até então aprovado a possibilidade de
desapropriação-sanção da propriedade que, mesmo produtiva, descumprisse sua função social, resultou bem
sucedida, apesar de derrotada numericamente. A despeito de ter vencido por 267 votos contra 253, a proposta de
reforma agrária ampla não alcançou o quorum mínimo de 280 votos, exigido pelo Regimento (Coelho e Oliveira,
1989, p. 102).
66
67
Todas as informações referentes aos textos produzidos no âmbito da Assembléia Nacional Constituinte estão
baseadas em informações disponíveis no Banco de Dados “APEM” (Anteprojetos, Projetos e Emendas da
Assembléia Nacional Constituinte), do Sistema de Informações do Congresso Nacional (SICON).
68
Essa lei federal vem a ser o Estatuto da Cidade, aprovado treze anos depois.
69
É inegável, nesse sentido, o avanço do chamado “arcabouço jurídico”, trazido pela Constituição de 1988. No
entanto, muitos “exemplos confirmam aquilo que diversos estudiosos da sociedade brasileira apontam como
distância tradicional entre o arcabouço jurídico e a realidade social” (Maricato, 2000, p. 152).
68
70
Ver, entre outras obras, Os donos do poder, de Raymundo Faoro (1991), no sentido de compreender os efeitos
do “patrimonialismo” na formação da sociedade brasileira.
71
Para algumas de suas principais lideranças, como Ermínia Maricato, o MNRU cometera “o equívoco de centrar
o eixo de sua atuação em propostas formais legislativas, como se a principal causa da exclusão social urbana
decorresse da ausência de novas leis ou novos instrumentos urbanísticos para controlar o mercado, quando
grande parte da população está e continuaria fora do mercado ou sem outras alternativas (...)” (Maricato, 2000, p.
143).
72
Na ausência da lei federal que deveria dispor sobre as diretrizes e os instrumentos da política urbana, muitos
municípios, ainda que sem previsão constitucional expressa para tanto, passaram a tratar dessa matéria na
legislação local, sujeitando-se a enfrentamentos judiciais que, aliás, ocorreram em vários casos, como, por
exemplo, na frustrada tentativa de aplicação do IPTU progressivo na gestão da prefeita Luíza Erundina, em São
Paulo.
73
A respeito das ZEIS ou AEIS, ver, por exemplo, os artigos de Bentes; de Hereda et al.; e de Botler e Marinho,
todos em Instrumentos Urbanísticos contra a Exclusão Social. Revista Pólis, São Paulo, n. 29, 1997.
69
Autores como Marcelo Lopes de Souza, embora ressalvem que “talvez não seja
necessário anatematizar o instrumento, como sugerem alguns críticos mais afoitos” (referindo-
se ao GT/OI-RJ), reconhecem que as OI “têm sido aprovadas para alterar parâmetros
urbanísticos em bairros e setores urbanísticos nobres (...), sendo que as contrapartidas exigidas
dos beneficiários (promotores imobiliários e outros), efetivadas sob a forma de doação de
imóveis ou pagamento em dinheiro, não convencem quanto ao interesse da transação para a
coletividade” (Souza, 2002, p. 288).
Em São Paulo, as operações interligadas, cujas origens remontam ao governo Jânio
Quadros na Prefeitura de São Paulo, em 1986 — quando esse alcaide envia a seu secretário de
Planejamento um memorando nos seguintes termos: “Solicito providências imediatas para
estudar projeto que favoreça construções em determinadas áreas desde que o proprietário
ofereça residências operárias aos ocupantes dessas mesmas áreas”74 —, receberam, mais tarde,
tentativas de aperfeiçoamento, mas, pelo efeito das críticas ao seu funcionamento duvidoso
como instrumento de interesse público e de restrições a seus aspectos jurídico-formais, sua
utilização foi interrompida. Em seu lugar, passaram a ser implementadas as chamadas
operações urbanas (OU), num modelo mais aproximado da fórmula que seria incorporada ao
Estatuto da Cidade. Ao contrário das OI,
“nas quais as contrapartidas financeiras se traduzem em construção de HIS [habitações de
interesse social] fora do terreno em que são obtidos direitos de edificação superiores aos
estabelecidos pelo zoneamento, nas OU tais recursos são utilizados no interior do
perímetro que delimita a área onde se realizará a OU, na forma de investimentos em infra-
estrutura, redes viárias, residências para os setores médios e para as populações de baixa
renda etc.”(Sandroni, 2001, p. 62, livre tradução).
Ao fazer proposições que, com base em sua grande experiência, poderiam melhorar o
desempenho social das OU, Paulo Sandroni observa que a Operação Urbana Faria Lima (Lei
Municipal n° 11.732, de 1995), em São Paulo, talvez o maior exemplo da comentada
deformação, ao invés de voltar-se para a obtenção de contrapartidas de interesse público,
destinou-se a prolongar uma avenida, cujos terrenos já ostentavam um dos mais elevados
preços do mercado imobiliário, no interesse quase exclusivo de empreendedores privados.
Assim, “ao contrário de representar uma captura de mais-valias pelo poder público, significou
um elevado gasto que pesa na dívida pública do município” (Sandroni, 2001, p. 70).
Circunstâncias dessa natureza, ou seja, a perspectiva da obtenção de vantagens
advindas dos novos instrumentos, parecem ter contribuído para quebrar resistências de
segmentos do capital imobiliário à aprovação do Estatuto da Cidade, que paralelamente
tramitava no Congresso Nacional, sendo acrescido ou modificado para absorver esses e outros
experimentos municipais. Os efeitos, em seus vários sentidos, da prática municipal na
implementação de dispositivos inovadores constituem, aliás, uma das principais hipóteses em
que se assenta este trabalho para explicar o consenso obtido na aprovação da nova lei.
Os analistas da aplicação das operações interligadas e urbanas, por exemplo,
confirmam essa evidência. Referindo-se à partição dos ônus e bônus entre poder público e
iniciativa privada, favorável a esta última, o GT/OI-RJ (op. cit., p. 60) afirma: “Por isso ele [o
instrumento da operação interligada] vem sendo utilizado sem enfrentar qualquer oposição do
setor imobiliário, pelo contrário, tendo o seu apoio quase irrestrito”.
É o que também pensa Marcelo Lopes de Souza, para quem esse instrumento, a
depender de sua regulamentação, “pode constituir-se em peça legitimatória de favorecimentos
abusivos de interesses capitalistas em detrimento da população. Esse tem sido, precisamente,
o caso do Rio de Janeiro” (Souza, 2002, p. 284).
Na ótica da crítica paulista, a opinião não é diferente. Ao examinar as primeiras
operações interligadas em São Paulo, Daniel Wilderode (1997, p. 54) conclui seu trabalho
constatando que a construção de moradias populares, embora em quantidades inexpressivas,
“é elogiada tanto pela imprensa em geral, quanto pelos diversos representantes do setor
imobiliário e da construção, deixando em segundo plano o superlucro obtido pelo
empreendimento interligado”.
Em que pesem esses comentários críticos, prevalece entre os militantes da causa da
reforma urbana a convicção de que é possível a utilização desse vasto instrumental urbanístico
em atendimento a preceitos éticos de eqüidade social. Abordagens como a das “Operações
Concertadas” em Porto Alegre, que prevêem uma análise prévia, de caráter deliberativo, de
72
Alguns chegam a ver o plano diretor, não sem certa dose de otimismo, como um “pacto social urbano” (na
expressão, entre outras análogas, de Linda Gondim apud Osório, 2001, p. 176).
73
apologia da parceria direta e explícita entre Estado e capital imobiliário” (Souza, 2002, p.
287).
Assim, a conquista desse novo e amplo instrumental jurídico pode ser traduzida de
muitas maneiras. Sua aplicação pode mesmo não ocorrer ou, a depender das circunstâncias, se
dar num ou noutro sentido. Como acuradamente observou Ermínia Maricato, ao citar pesquisa
do professor Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro que evidencia o “avanço legal” das leis orgânicas
e planos diretores municipais, após a Constituição de 1988: “na gestão das cidades, entretanto,
esse avanço não foi efetivado”. Certamente porque, ela mesma conclui, “estamos no terreno
da política e não da técnica” (Maricato, 2000, p. 181 e 185).
77
No livro Desordem e processo (Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1985), apud Sousa Jr., 1993, p. 6
(apresentação da 4a edição).
74
anteriormente, têm oferecido suporte legal à segregação social característica das cidades
brasileiras.
Os textos citados, de autoria do professor Lyra Filho, foram escritos,
respectivamente, em 1982 e 1985, e são, portanto, anteriores ao processo de redemocratização
do País, que culminou na promulgação da Constituição de 1988. A despeito, contudo, dos
inegáveis avanços sociais que nossa ordem jurídica experimentou desde então, sendo o
capítulo constitucional sobre a política urbana e o Estatuto da Cidade testemunhos desse
aprimoramento, impressiona perceber a semelhança daqueles ensinamentos com a análise, já
posterior a esse novo ordenamento legal (e, na verdade, a propósito dele), feita com acuidade
por Edésio Fernandes:
“é preciso ‘arrancar’ o tratamento jurídico do direito de propriedade imobiliária do âmbito
individualista do Direito Civil para colocá-lo no âmbito social do Direito Urbanístico, de tal
forma que o direito coletivo ao planejamento das cidades, criado pela Constituição Federal
de 1988, seja materializado. Da mesma forma, é preciso ‘arrancar’ o tratamento jurídico da
gestão urbana do âmbito restritivo do Direito Administrativo para colocá-lo no âmbito mais
dinâmico do Direito Urbanístico, de tal forma que o direito coletivo à gestão participativa
das cidades, também criado pela Constituição Federal de 1988, seja efetivado” (Fernandes,
E., 2002b, p. 34).
Esse alerta se dá no contexto da consistente defesa que seu autor faz da tese de que o
direito urbanístico já constitui um ramo autônomo do direito, na medida em que detém
“objeto, princípios, institutos e leis próprias” (Fernandes, E., op. cit., p. 60). Para ele, esse
ramo autônomo não mais pode ser confundido, como tem sido, com preceitos do direito civil,
privatista e individualista, ou do direito administrativo, na órbita pública, mas limitado e
insuficiente para abranger o novo escopo normativo.
No entanto, a percepção das dificuldades, presente em ambas as análises a despeito
de distarem vinte anos uma da outra, sugerem que o papel das ruas não pode ser negligenciado
na luta pela efetivação dos direitos conquistados. Se houve um longo caminho, cujos
pressupostos jurídicos comentaremos a seguir, para que o direito à cidade — direito achado na
rua — fosse transformado em normas legais, é razoável supor que não será menos penosa a
tarefa para que esses direitos, agora formais, sejam transpostos para a realidade.
78
Conforme Edésio Fernandes (2002b, p. 60-62).
77
79
Nesse ponto, há distintas opiniões, mesmo entre juristas que abraçam o ideário da reforma urbana. Enquanto,
por exemplo, Jacques Távora Alfonsin (2002, p. 11) entende que, nos termos do art. 1.228 do novo Código Civil,
“o direito de propriedade mudou o seu caráter jurídico” em cotejo com o anterior, Edésio Fernandes (2002b, p.
36), ao considerar que o novo Código “não é de todo coerente com a proposta do Estatuto da Cidade no que diz
respeito à noção do direito de propriedade imobiliária individual”, prevê que grupos conservadores explorarão
“controvérsias jurídicas”.
80
O Estatuto da Cidade, ao definir o princípio do direito a cidades sustentáveis, estabeleceu uma espécie de
hierarquia de direitos: o direito individual deve subordinar-se ao direito coletivo e, este, por sua vez, deve
regrar-se pelo interesse público. Se há risco, por exemplo, de comprometimento das condições de vida “para as
presentes e futuras gerações”, o assentamento da população, seja rica, seja pobre, deve evitá-lo. O que não
significa dar vezo ao reacionarismo das decisões administrativas e judiciais que são, o mais das vezes, rigorosas
com os pobres, sem que se lhes ofereçam alternativa digna, e complacentes com os ricos (quando, sendo o caso
de tratamento diferenciado, deveria prevalecer o exato contrário, em face do “estado de necessidade”). A
propósito, convém lembrar a inscrição em uma camiseta de um militante do movimento popular pela moradia,
que circulava pelos corredores da Cúpula das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Rio 92). Inconformado com
o conteúdo conservador de alguns discursos preservacionistas, que muitas vezes pareciam esquecer que a espécie
humana também integra a natureza, alertava, com ironia: “Gente também é bicho”!
78
lei com o objetivo de criar o Conselho de Política Urbana (Copurb), com amplos poderes, de
caráter consultivo, deliberativo e propositivo. Com quinze artigos, a iniciativa, que chegou a
ser considerada “um projeto de lei de Reforma Urbana” (Finep, 1985, p. 68), tratava
exclusivamente da criação do Copurb, junto à Presidência da República, “com o objetivo de
estudar os problemas urbanos do País e elaborar as diretrizes de uma política de
desenvolvimento urbano equilibrado, harmônico e estético, sincronizado com a expansão
econômica e social do País” (art. 1º), em nada referindo-se, por exemplo, ao conteúdo do
direito de propriedade nas áreas urbanas84.
Na verdade, o Plano Trienal de Desenvolvimento (1962-64), que João Goulart havia
formulado no início de seu governo, não abordava a questão urbana, nem de maneira
abrangente nem mesmo em seus aspectos setoriais. No começo de 1963, contudo, no auge da
campanha popular pelas “reformas de base”, como se dizia então, o governo encaminha sua
Mensagem anual ao Congresso Nacional, “na qual aborda, em dois trechos, a questão
habitacional brasileira em sua verdadeira dimensão — a do desenvolvimento urbano”
(Schmidt e Farret, 1986, p. 22).
Numa das passagens dessa Mensagem ao Congresso Nacional, João Goulart afirma:
“Não desconhecemos que somente o desenvolvimento do país, aumentando a
riqueza nacional, poderá elevar o nível de vida do povo, proporcionando-lhe adequadas
condições de residência. Mas também não ignoramos que a falta de uma legislação
reguladora tem permitido que a indústria de construção se transforme em presa favorita de
especuladores, impedindo o acesso à residência própria das camadas mais pobres de nossa
população”,
para, adiante, pretextar-se pela omissão governamental buscando apoio nos dois lados da
“guerra fria”85: “recordo que mesmo nos Estados Unidos da América, o país de mais elevada
renda do mundo, dezenas de milhões habitam em condições precárias. A União Soviética
ainda não conseguiu debelar o seu déficit habitacional, não obstante dois planos septenais de
construção intensiva”; e, por fim, compromissar-se: “devo submeter à aprovação do
Congresso Nacional, dentro em breve, o projeto de lei de reforma urbana, que constituirá o
primeiro passo para a formulação de soluções em novas bases para os problemas da habitação
Ver anexo 2. Observe-se que, desde 22/11/1963, tramitava na Câmara dos Deputados o PL 1329/1963, de
autoria do deputado Artur Lima, liderança da base governista (PTB), que criava a Superintendência da Política
Urbana (Supurb), de menor abrangência que a que se pretenderia, poucos meses depois, atribuir ao Copurb.
85
Ficou conhecido como “guerra fria” o período, entre o fim da 2ª Guerra Mundial, em 1945, e a queda do Muro
de Berlim, em 1989, no qual os principais blocos de nações, o capitalista e o comunista, liderados
respectivamente pelos Estados Unidos da América e pela União Soviética, se antagonizavam no domínio da
tecnologia nuclear, na conquista espacial, na corrida armamentista e em outras disputas político-econômicas,
sem, contudo, declararem uma guerra efetiva.
81
O “bálsamo” para as classes médias, de que falava a deputada Sandra Cavalcanti, primeira presidente do BNH,
na comentada carta ao presidente-marechal Castello Branco.
87
Referência a uma das muitas “moedas” contratuais de que o SFH se valia, na tentativa de manter constantes,
num ambiente econômico inflacionário, os valores envolvidos nos financiamentos habitacionais.
82
Não havia ainda, contudo, nenhuma proposta legislativa com o objetivo de municiar
juridicamente o planejamento e a administração dos núcleos urbanos. A primeira tentativa
nesse sentido, durante o regime militar, ocorreu no âmbito da CNPU, depois transformada em
Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU), onde, em 1976, foi elaborado um
anteprojeto de lei de desenvolvimento urbano, baseado na constatação de seu “corpo técnico
[de que] as administrações locais não dispunham de um instrumental urbanístico para
enfrentar a especulação imobiliária e [promover] a distribuição dos serviços públicos urbanos”
(Grazia, 2003, p. 57, grifo nosso).
A notícia de que estava em elaboração esse anteprojeto vazou para a imprensa, o que
“suscitou manchetes alarmistas em alguns jornais e semanários da época, um dos quais
alertava os leitores para o fato de o governo militar pretender ‘socializar o solo urbano”
(Ribeiro e Cardoso, 2003, p. 12). O governo recuou e deixou de enviar a proposta ao
Congresso Nacional.
As reivindicações sociais, no entanto, cresciam. A campanha eleitoral de 1981, no
que seria a primeira eleição direta de governadores após o golpe de Estado de 1964, trouxe a
questão urbana para a pauta política nacional. No Rio de Janeiro, por exemplo, Leonel
Brizola88, de volta do exílio por efeito da lei de anistia, prometia, na campanha que resultou
surpreendentemente vitoriosa, “assentar cerca de 1 milhão de famílias nos lotes vazios
existentes na região metropolitana, fruto do laissez-faire do processo especulativo de
loteamento periférico ocorrido desde os anos 40” (Ribeiro e Cardoso, op. cit, p. 13).
Em 1982, a 20a Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) aprovou um documento, intitulado “Solo Urbano e Ação Pastoral”89, em que critica a
formação de estoques de terra urbana com fins especulativos e, entre outras ações públicas, a
política de remoção de favelas. O texto propunha, por exemplo, a regularização fundiária de
assentamentos informais, o combate à ociosidade do solo urbano e o condicionamento da
propriedade urbana a sua função social (CNBB, 1982).
No ano seguinte ao do documento da CNBB, mais precisamente no dia 3 de maio de
1983, o governo do general João Figueiredo, que tinha como Ministro do Interior (responsável
pela questão urbana) o coronel Mário Andreazza, motivado pela “percepção de que a questão
urbana pudesse empolgar as camadas populares em torno de lideranças da oposição ao regime
88
Um dos nossos mais importantes líderes políticos, herdeiro da vertente trabalhista (getulista) da esquerda
brasileira, Leonel de Moura Brizola faleceu no dia 21 de junho de 2004.
89
Numa de suas passagens mais expressivas, o texto da CNBB vaticina: “a aceleração do processo de
urbanização está transferindo para a cidade uma carga conflitual que poderá assumir as dimensões de uma
confrontação entre os muitos que têm pouco a perder e os poucos que têm muito a perder” (Jornal do Brasil,
21/2/1982, Caderno Especial, apud Grazia, 2002, p. 21).
83
autoritário” (Ribeiro e Cardoso, op. cit., p. 13), finalmente envia ao Congresso Nacional o
projeto elaborado no CNDU. Embora fosse uma versão já abrandada pela exclusão de certos
institutos, como a “concessão90 da posse da terra aos moradores urbanos que apresentavam
condições ilegais de ocupação” (Grazia, 2002, p. 21), a proposição conservava a essência do
anteprojeto de 1976.
O projeto de lei de desenvolvimento urbano, que ganhou o número 775/8391,
objetivava “a melhoria da qualidade de vida nas cidades”, por meio de diretrizes e
instrumentos, como, entre muitos outros:
1. a recuperação pelo poder público de investimentos de que resulte valorização
imobiliária;
2. a possibilidade de o poder público realizar desapropriações de imóveis urbanos
visando à renovação urbana ou para combater a estocagem de solo ocioso;
3. o direito de preempção;
4. a taxação da renda imobiliária resultante de fatores ligados à localização do
imóvel;
5. o direito de superfície;
6. o controle do uso e ocupação do solo;
7. a compatibilização da urbanização com os equipamentos disponíveis;
8. o condicionamento do direito de propriedade (imposto progressivo e edificação
compulsória);
9. a regularização fundiária de áreas ocupadas por população de baixa renda;
10.o reconhecimento jurídico da representação exercida pelas associações de
moradores;
11.o estímulo à participação individual e comunitária;
12.o direito de participação da comunidade na elaboração de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano;
13.a legitimação do Ministério Público para propor ações em defesa do
ordenamento urbanístico.
90
Segundo Adauto Cardoso (apud Grazia, 2002, p. 20), uma versão anterior do projeto havia sido publicada, “sem
a permissão governamental”, no jornal O Estado de S. Paulo, de 27/1/1982, o que teria ensejado reações a essa
possibilidade de regularização fundiária. É interessante notar que essa mesma polêmica ressurgiria na
Assembléia Nacional Constituinte e, quase duas décadas depois, por ocasião da sanção do Estatuto da Cidade.
91
Ver anexo 3.
84
92
Ao examinar comparativamente o PL 775/83 (LDU) e a Emenda Popular da Reforma Urbana, Adauto Lúcio
Cardoso (2003, p. 31), embora ressalve a diferença entre a ênfase da LDU no planejamento urbano e a da
Emenda na participação popular, afirma que “a emenda popular se move no campo de discussões e segundo um
padrão de pensar a questão urbana que foi estabelecido pela LDU”.
93
Somente em 1995, o projeto deixou oficialmente de tramitar, regimentalmente retirado pelo autor, o Poder
Executivo.
94
Emenda à Constituição n° 26, de 27 de novembro de 1985.
85
95
Existia um estudo elaborado pouco tempo antes por uma Comissão de Assuntos Constitucionais, constituída
pelo presidente José Sarney e conhecida como “Comissão dos Notáveis”. Esse trabalho, contudo, não foi
oficialmente reconhecido nem, muito menos, tomado como referência pela Assembléia Nacional Constituinte.
86
96
Ver anexo 4.
97
O conteúdo da Emenda Popular da Reforma Urbana será retomado no Capítulo 6, com o objetivo de verificar-se
o grau de seu acolhimento pela Constituição e/ou pelo Estatuto da Cidade.
87
ficar. (...) Acreditamos que a especulação imobiliária deve ser varrida do cenário brasileiro,
assim como o empreguismo, a ineficácia administrativa, a corrupção e o latifúndio agrário. O
que queremos é um País do século XX. Queremos eliminar o que é arcaico neste País”.98
A despeito da importância do tema, do denso apoio que a Emenda obteve e dos
substanciais argumentos que a sustentaram, parecia que o próprio Plenário dava razão à
dúvida sobre o grau de consciência dos problemas urbanos com que Ermínia Maricato iniciara
seu discurso. Havia apenas três constituintes presentes.
Como seria de se esperar, em face de seu conteúdo, a Emenda Popular da Reforma
Urbana suscitou reações. Em artigo publicado na Folha de São Paulo de 20/8/1987, dia
seguinte ao da apresentação da Emenda, o deputado constituinte Luiz Roberto Ponte, do
PMDB do Rio Grande do Sul, também presidente da Câmara Brasileira da Indústria da
Construção (CBIC), criticou-a firmemente ao considerar que a terra, foco das preocupações da
reforma urbana, não seria um problema importante, já que representaria apenas 5% “dos
recursos necessários para construir uma habitação digna”. O deputado também defendia que a
solução para a moradia popular deveria incorporar a iniciativa privada, cabendo ao governo
aportar recursos e subsídios, além de “desapropriar áreas necessárias”.
A própria Ermínia Maricato (1987), em artigo no mesmo jornal, encarregou-se de
refutar tais afirmações. Lembrou que o custo relativamente baixo do solo na produção da
moradia se dava em “conjuntos habitacionais praticamente ‘fora’ das cidades” e que a
“retenção especulativa da terra contribui para essa situação”. De outra parte, argumentou que,
quanto aos subsídios, seria necessário saber “precisamente a quem eles irão beneficiar” e, no
tocante às desapropriações, reconhecer que o “alto custo da terra”, ao lado da exigência de
pagamento prévio, em dinheiro, inviabilizam as “políticas habitacionais para baixa renda”.
A transcrição desse debate se presta a exemplificar o ambiente conflituoso em que a
proposta da reforma urbana foi examinada pela Constituinte. Ao final, foi o seguinte o parecer
do relator, o deputado Bernardo Cabral, do PMDB do Amazonas:
“No que se refere à Questão Urbana, a Emenda apresenta dispositivos inovadores e
aperfeiçoadores do Projeto de Constituição, nos campos da função social da propriedade, da
participação popular, da desapropriação, das normas gerais de direito urbano, do usucapião
urbano e da ordenação do espaço urbano. Os dispositivos referentes a avaliação de imóveis,
locação e venda de habitações, apresentam conteúdo infra-constitucional. (...) O transporte
deve, necessariamente, ser um serviço público essencial, por ser um direito do cidadão e um
dever do Estado. Para tanto, a criação de um fundo de transportes urbanos, para subsidiar a
diferença entre o custo do transporte e o valor da tarifa paga pelo usuário, processaria a
perfeita ordenação destes transportes. Com mudanças de redação e supressão das
98
Ver Diário da Assembléia Nacional Constituinte, de 27 de janeiro de 1988, p. 402-403.
89
As emendas de autoria da deputada Myrian Portella (PDS-PI), apresentadas na Subcomissão da Questão Urbana
e Transportes e reiteradas, na fase seguinte, perante a Comissão de Economia, embora rejeitadas, foram as
primeiras a utilizar a expressão “plano diretor” no processo constituinte.
101
Conforme Base de Dados APEM/SICON.
90
Apesar do conteúdo uniforme, o que, aliás, permite supor ter sido proveniente de
uma mesma fonte, e da ampla representatividade que granjeou, a sugestão não foi acatada no
relatório final102 da Subcomissão. Na fase posterior, na Comissão da Ordem Econômica, o
Conselho Nacional do Desenvolvimento Urbano (CNDU), por meio de depoimento de seu
secretário-executivo, Gervásio Cardoso, ao plenário da Comissão, apresentou sugestão de três
artigos para a Constituição103. O primeiro deles era redigido nos seguintes termos:
“Art. 1°. A propriedade e a utilização do solo urbano obedecerão às exigências
fundamentais de ordenação urbana e ambiental expressas nos planos urbanísticos, bem
como às relativas à habitação, transportes, saúde, lazer, trabalho e cultura da população
urbana” (grifo nosso).
102
Esse anteprojeto tratava a questão urbana pela ótica privatista do Código Civil.
103
O então deputado Lúcio Alcântara havia sido prefeito nomeado de Fortaleza (CE), pela ARENA, partido de
apoio ao regime militar, e elegera-se para seu primeiro mandato de deputado federal pelo PDS. Entretanto, na
avaliação do Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc), instituição ligada a sindicatos de trabalhadores e a
movimentos populares, “contrariando as expectativas, evoluiu, passando a adotar posições favoráveis às teses
progressistas” (Coelho e Oliveira, 1989, p. 164).
91
106
É importante registrar o esforço para suprimir a expressão “sucessivamente” e, assim, permitir que as
penalidades previstas pudessem ser aplicadas em função das circunstâncias com que se defrontassem os
municípios, promovido em vários momentos por muitos constituintes, entre eles, Dirceu Carneiro (PMDB-SC),
que insistiu em todas as oportunidades, mas também Itamar Franco (sem partido-MG), Myrian Portella (PDS-PI),
Irmã Passoni (PT-SP), Joaquim Bevilácqua (PTB-SP). Porém, todas as emendas nesse sentido foram rejeitadas
pelo relator, Bernardo Cabral (PMDB-AM).
107
A bancada do Centrão interessada na temática urbana era informalmente liderada pelo deputado Luís Roberto
Ponte (PMDB-RS).
108
Ao encaminhar a votação do que acabou por ser o capítulo constitucional da política urbana (houve, ainda, duas
alterações, nas últimas etapas do processo), o presidente da Assembléia, deputado Ulysses Guimarães, do PMDB
de São Paulo, tomou-se de entusiasmo: “Desejo dizer, meus amigos, que cumpro um dever, que estas palmas
anteciparam, de fazer justiça ao trabalho dos Srs. Líderes, de autores de destaque, que sexta-feira, sábado,
domingo, até de madrugada, fizeram um esforço de composição, de entendimento, não só para que o texto fosse
mais escorreito e abrangente, mas que realmente representasse, como esperamos na manifestação do Plenário, o
ponto de vista da sociedade através de uma grande maioria, de uma expressiva maioria, uma consagradora
maioria do Plenário da Assembléia Nacional Constituinte” (Diário da Assembléia Nacional Constituinte de
3/5/1988, p. 61). Foram 322 votos a favor, um contrário e três abstenções. Votou contra o senador Roberto
Campos, do PDS de Mato Grosso.
109
Participaram do acordo, na condição de autores das emendas aglutinadas, os constituintes Dirceu Carneiro
(PMDB-SC), Roberto Freire (PCB-PE), Mendes Canale (PMDB-MS), Mauro Miranda (PMDB-GO), Raul
Ferraz (PMDB-BA), José Carlos Grecco (PMDB-SP), Felipe Mendes (PDS-PI), José Richa (PMDB-PR), Jorge
Leite (PMDB-RJ), José Lins (PFL-CE), Irmã Passoni (PT-SP), Edmilson Valentim (PC do B-RJ), Mário Covas
(PMDB-SP), Ricardo Izar (PFL-SP), Joaquim Sucena (PTB-MT), José Santana de Vasconcelos (PFL-MG) e
Eduardo Jorge (PT-SP).
110
É curioso observar que a emenda do Centrão trouxe para a Constituição a expressão “funções sociais da cidade”,
que, embora não constante da Emenda Popular da Reforma Urbana (voltada para a noção de “direito à cidade”),
foi mais tarde apropriada como um dos pilares do MNRU.
92
Ainda na sessão que aprovou o texto do acordo, foi incorporada uma emenda de
autoria da deputada Myrian Portella112, do PDS do Piauí. Essa proposta, originalmente
destinada a proteger a mulher nos casos de posse ou de usucapião, acabou assumindo
destacada importância para os propósitos da reforma urbana ao servir de abrigo para o que
viria a ser a “concessão especial de uso para fins de moradia”. Seu texto foi literalmente
incorporado à Constituição: “O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao
homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil” (grifo nosso).
No final de agosto de 1988, ocorreriam as duas últimas alterações em relação ao
texto do acordo, uma delas especialmente importante, que levaram à redação do capítulo
finalmente promulgado113. A primeira, de iniciativa do deputado José Maurício, do PDT do
Rio de Janeiro, destinou-se tão-somente a especificar que o “imposto progressivo no tempo” a
que se referia o texto acordado era o “imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana
progressivo no tempo”.
111
A aprovação de lei complementar exige maioria absoluta de votos, ou seja, metade mais um entre todos os
parlamentares, presentes ou não, enquanto que a de lei ordinária ocorre por maioria simples, isto é, pela
manifestação de metade mais um dos efetivamente votantes.
112
A atuação da deputada Myrian Portella, eleita pelo PDS, um dos pólos partidários do Centrão, foi, apesar dessa
condição, bem avaliada pelo Inesc: “(...) uma das mais gratas surpresas da Constituinte (...). Mulher arrojada e de
iniciativa, pretende propor a regulamentação da soberania popular, assegurando, de vez, a participação popular
no processo legislativo (...) e uma lei que defina as formas de repressão ao abuso do poder econômico” (Coelho e
Oliveira, 1989, p. 324).
113
Ver Diário da Assembléia Nacional Constituinte de agosto de 1988, p. 13622-13634.
93
A emenda foi aprovada. Desse modo, o artigo que tratava do usucapião especial para
fins de moradia, para Ermínia Maricato (1988), “o único da emenda popular constitucional de
reforma urbana a ser incluído no projeto de Constituição com redação próxima da intenção da
emenda”, era extensamente limitado, mas não apenas, como apressadamente se poderia
imaginar, com os votos dos chamados “setores conservadores”.
Nesse caso, pólos partidários opostos se encontraram, em ambos os campos da
votação. Votaram “não”, ou seja, pela manutenção da possibilidade de usucapião em imóveis
públicos, tanto o PT e o PSB, liderados respectivamente pela deputada Irma Passoni, de São
Paulo, e pelo deputado Ademir Andrade, do Pará, quanto o PDS, conduzido pelo deputado
Amaral Neto, do Rio de Janeiro. Por sua vez, aprovaram a emenda que restringiu a aplicação
do usucapião a imóveis particulares, o PMDB, o PDC, o PSDB, o PTB, o PL e o PFL, mas
também o PDT e o PC do B115.
Promulgada a Constituição, os aspectos legislativos do ideário da reforma urbana
passaram a depender, em grande parte, de uma lei federal que regulasse a aplicação das
normas constitucionais.
Destacado empreendedor imobiliário, o deputado Francisco Carneiro, falecido em 1995, ligou-se ao Centrão na
Constituinte e exerceu seu mandado em defesa das propostas políticas do empresariado urbano.
115
Não por acaso, portanto, essa polêmica, ao lado de muitas outras, iria ressurgir durante a tramitação e no
período destinado à sanção do projeto de lei do Estatuto da Cidade.
94
116
Na história da comunicação social, Pompeu de Sousa é considerado o principal responsável pela adoção, no
Brasil, das técnicas do jornalismo moderno, baseado na objetividade do lide, que, adaptadas do jornalismo norte-
americano e implantadas por ele, em 1954, no Diário Carioca, ainda orientam a redação dos principais jornais.
Em 1961, tendo apoiado a proposta de mudança da sede do governo federal do Rio de Janeiro para Brasília,
transferiu-se para a nova capital e ajudou Darcy Ribeiro a fundar a Universidade de Brasília. Na vida pública,
participou de inúmeros movimentos de combate à ditadura militar e de luta pela liberdade de imprensa. Definia-
se como socialista e democrata. Presidiu a Associação Brasileira de Imprensa (ABI-DF), o Sindicato dos
Escritores do Distrito Federal e o Comitê Brasileiro da Anistia, entre muitas outras instituições e movimentos
políticos de que participou. Foi eleito para a Assembléia Nacional Constituinte pela chamada ala esquerda do
PMDB e, em 1989, tornou-se um dos fundadores do PSDB (Duarte, 1992).
117
Muitas dessas reuniões ocorreram na sede do IAB-DF, que também abrigava o SADF, e tiveram a expressiva
participação da arquiteta Suely Franco Netto Gonzales, professora da Universidade de Brasília (UnB).
95
senador Dirceu Carneiro120, do PSDB de Santa Catarina, foi aprovado no Senado exatamente
um ano depois e enviado à Câmara dos Deputados, onde permaneceria por onze anos.
Na Câmara, denominado PL 5.788/90, o projeto, por já ter sido votado, passou a
funcionar como uma espécie de “locomotiva”, à qual foram anexados dezessete “vagões”,
proposições (de menor ou maior abrangência) sobre o mesmo tema, com origem na própria
Câmara dos Deputados. Os autores desses projetos, com as respectivas datas de apresentação,
são os deputados Raul Ferraz (1989), Uldorico Pinto (1989), José Luiz Maia (1989), Lurdinha
Savignon (um em 1989 e outro, em co-autoria, em 1990), Ricardo Izar (um em 1989 e outro
em 1991), Antônio Brito (1989), Paulo Ramos (1989), Mário Assad (1989), Eduardo Jorge
(1990, em co-autoria), José Carlos Coutinho (1991), Magalhães Teixeira (1991), Benedita da
Silva (1993), Nilmário Miranda (1996), Augusto Carvalho (1997), Carlos Nelson (1997) e
Fernando Lopes (1997).
Dentre todos esses, devem ser destacados o do deputado Raul Ferraz, do PMDB da
Bahia, que, na verdade, “constitui-se do substitutivo apresentado pelo deputado ao PL 775/83
com suas adaptações à Constituição de 1988” (Motta, 1998, p. 211); os de Lurdinha Savignon
e Eduardo Jorge, do PT do Espírito Santo e de São Paulo, respectivamente, elaborados com a
participação do MNRU; e o do deputado Nilmário Miranda, do PT de Minas Gerais. Esse
último, como veremos adiante, espelhou o esforço de consenso que seria tentado, em 1993,
por um grupo de trabalho formado por representantes indicados pelo deputado Luiz Roberto
Ponte, ligado ao empresariado, e pelo próprio Nilmário Miranda, vinculado ao movimento da
reforma urbana.
Minudente e ambicioso, o projeto original121 do Estatuto da Cidade, com 72 artigos,
dispostos em três títulos e dez capítulos, pretendia, de início (arts. 2°, 3°, 4° e 5°), conceituar
política urbana, direito à cidade, direito urbanístico e até urbanismo (“conjunto de ações
promotoras e corretoras da organização do espaço urbano de modo a permitir sua adequada
fruição pelo homem, preservando-o do processo de espoliação urbana”). Depois, fixava os
objetos da política urbana, entre eles “o processo de produção do espaço urbano”, e dedicava
um inteiro capítulo a fixar requisitos para o cumprimento da função social da propriedade,
bem como atitudes que configurassem “abuso de direito e da função social da propriedade”.
Entre esses casos, estava, por exemplo, o da “recusa de oferecer à locação, sob qualquer
120
Arquiteto e parlamentar dos mais ligados à questão urbana, Dirceu Carneiro havia sido prefeito de Lages (SC),
onde, ainda na década de 1970, promoveu as primeiras experiências de gestão urbana de orientação popular e
participativa de que se tem notícia no Brasil (Alves, 1988).
121
Ver anexo 5.
96
Embora no projeto do Estatuto da Cidade tenha recebido conceituação exatamente oposta, a expressão
“desfavelamento” ficou marcada como a tentativa — posta comumente em prática nos anos 1960 e 1970, e
ressurgida, na década seguinte, nas operações interligadas do governo Jânio Quadros na prefeitura de São Paulo
— de remoção da população favelada para periferias distantes.
97
123
A adoção desse dispositivo pelos municípios nos procedimentos de desapropriação tende a instar os
proprietários a proporem a “correção” dos valores de lançamento de seus imóveis no cadastro fiscal, comumente
subavaliados, sob pena de receberem indenização igualmente reduzida. Suprimido nos primeiros pareceres das
comissões da Câmara dos Deputados, foi reincorporado pelo deputado Inácio Arruda (PC do B-CE), relator do
projeto na Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior.
98
O projeto estabelecia ainda que o plano diretor poderia determinar áreas especiais de
urbanização preferencial, renovação urbana, urbanização restrita e regularização fundiária.
Fixava, por fim, o quorum qualificado de dois terços da câmara de vereadores para sua
aprovação ou modificação e assegurava a gestão democrática de todo o processo por meio da
representação tripartite, com igualdade de direito a voz e voto, da representação popular, do
124
As restrições a esses dispositivos não provinham apenas dos setores ligados ao empresariado, mas igualmente de
alguns segmentos técnico-profissionais. Para Araújo e Ribeiro (2000, p. 7 e 8), por exemplo, “os casos de abuso
de direito e da função social da propriedade constantes do texto aprovado no Senado carregam forte componente
ideológico e são questionáveis do ponto de vista da viabilidade de sua aplicação”.
125
Chamaram-se “programas” as normas e ações derivadas do “plano diretor” porque, segundo ponderava Everaldo
Macedo, um dos elaboradores do texto, “um plano não origina outros planos (de uso do solo, por exemplo), mas
programas e projetos”.
99
126
Em contraste com o projeto original, a versão final do Estatuto da Cidade pouco trata do conteúdo do plano
diretor, fixando-se no processo (democrático) para sua elaboração e implementação. Não contribui, assim, para
reduzir o notável dissenso técnico e político sobre essa matéria. Para uma ampla abordagem do significado
jurídico desses planos, no Brasil e no mundo, bem como de sua vinculação com o direito de propriedade, ver
Pinto, 2001.
100
4. respeitar a diversidade das situações urbanas ocorrentes nas várias regiões do País,
mantendo a legislação federal em nível de generalidade capaz de ser aplicável a estas
várias situações” (Motta, 1998, p. 212 e 213).
127
Ver Araújo e Ribeiro, 2000.
128
Disponível no sítio www.tfp.org.br/secoes/arquivo/documentos da internet (consulta feita no dia 9/2/2004).
101
projeto mascara atos de autoritarismo estatal, entre outros, quando interfere na aquisição de
imóvel urbano, objeto de compra e venda entre particulares” (DM, 1992, p. 34).
Como se percebe, embora fossem distintas e até potencialmente conflitantes, as
várias frações do capital imobiliário urbano (proprietários de terras, construtores e
incorporadores) pareciam uníssonas na rejeição ao projeto do Estatuto da Cidade.
Em sentido contrário, no âmbito do movimento pela reforma urbana, o projeto era
muito bem acolhido. Desde a promulgação da Constituição de 1988, esse movimento passou a
lutar pela edição da lei federal requerida no capítulo da política urbana, como meio para tornar
eficazes seus dispositivos. Dos projetos apresentados na Câmara, o do deputado Raul Ferraz
era considerado o mais completo e outros dois (idênticos, aliás), o da deputada Lurdinha
Savignon (PT-ES) e o dela em co-autoria com o deputado Eduardo Jorge (PT-SP), foram
elaborados com a participação direta do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU)129.
Explica-se: como Raul Ferraz e Lurdinha Savignon, que haviam apresentado suas proposições
em 1989, não voltaram à Câmara nas eleições de 1990, seus projetos seriam regimentalmente
arquivados. Por essa razão, “em 1990, o deputado Eduardo Jorge, do PT, reapresenta o projeto
da deputada do Espírito Santo” (Grazia, 2003, p. 58)130. Esse, como todos os demais, também
foi apensado ao PL 5.788/90, o projeto Pompeu de Sousa.
Para o MNRU, segundo o jurista Nelson Saule Jr., “desde o início da década de 90, o
projeto de lei federal de desenvolvimento urbano denominado ‘Estatuto da Cidade’ [foi
considerado] o marco referencial para a instituição da lei que regulamenta o capítulo da
política urbana da Constituição brasileira” (Saule Jr., 2003, p. 1).
Estavam claras as posições. De um lado, o conjunto de entidades e movimentos que
haviam construído o ideário da reforma urbana apoiava o Estatuto da Cidade e cobrava sua
aprovação pelo Congresso Nacional; de outro, as entidades representativas do empresariado
urbano, encorpadas por instituições de defesa da propriedade privada como causa política, se
opunham ao projeto de lei.
A disputa parlamentar estava lançada.
129
“A atual coordenação do FNRU é composta por: FASE, Instituto Pólis, Central dos Movimentos Populares,
União Nacional por Moradia Popular, Movimento Nacional de Luta por Moradia, Federação Nacional de
Arquitetos e Urbanistas, Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros, Federação Nacional de
Associações de Funcionários da Caixa Econômica Federal” (Grazia, 2003, p. 56).
130
Na verdade, o projeto do deputado Eduardo Jorge, apoiado pelo MNRU, foi apresentado em co-autoria com a
deputada Lurdinha Savignon, que terminava o seu mandato, no dia 14/12/1990, quando o projeto Pompeu de
Sousa, aprovado no Senado, já tramitava na Câmara havia três meses.
103
131
Ligado às causas sociais, o deputado Nilmário Miranda notabilizou-se pela defesa dos direitos humanos.
104
apresentação de suas emendas” (Araújo e Ribeiro, 2000, p. 1 e 2). Em paralelo, duas outras
Comissões, a de Economia, Indústria e Comércio (CEIC) e a de Defesa do Consumidor, Meio
Ambiente e Minorias (CDCMAM) solicitaram audiências sobre o projeto. Por efeito do
Regimento da Câmara, a tramitação foi novamente invertida, pois a comissão de maior nexo
com a matéria, no caso a CDUI, deveria ser a última a se manifestar quanto ao mérito.
Já estávamos em 1993 e o projeto foi então encaminhado à CEIC, onde foi designado
relator, o deputado Luís Roberto Ponte, do PMDB do Rio Grande do Sul, cuja atuação na
Constituinte, na avaliação do Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc), foi assim
transcrita:
“Em matéria de coerência e reacionarismo este parlamentar é um dos melhores
exemplos. (...) Empresário de prestígio e liderança nacionais, soube, como poucos, usar o
mandato em defesa das causas que defende. Absolutamente contra todas as bandeiras do
movimento sindical, soube comportar-se como representante da classe empresarial com
brilho e determinação. Sem dúvida, uma revelação nos trabalhos da Constituinte e um nome
a mais com o qual a direita pode contar” (Coelho e Oliveira, 1989, p. 379).
132
Tiveram destacada atuação as arquitetas Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo e Maria Sílvia Barros
Lorenzetti, consultoras legislativas da Câmara dos Deputados.
133
O texto substitutivo elaborado pelo grupo, diante da recusa do relator em acatá-lo, foi mais tarde transformado
em projeto de lei (PL 1.734/96) pelo deputado Nilmário Miranda.
105
Sobre a atuação que o deputado Paes Landim tivera na Constituinte, a avaliação do Inesc foi premonitória: “Um
dos mentores do Centrão (...), será um dos entraves às conquistas pretendidas no campo dos direitos social e
econômico” (Coelho e Oliveira, 1989, p. 325).
135
Emenda n° 14/92, na CEIC (CD, s/d, p. 263).
136
Ainda sobre as dificuldades na tramitação legislativa do Estatuto da Cidade, é importante observar que a
ausência da lei federal poderia ter sido suprida, provisoriamente, pela legislação estadual. É o que diz o art. 24 da
Constituição. Essa possibilidade esteve à disposição das assembléias legislativas, mas não das câmaras de
vereadores, pois, em relação ao direito urbanístico, somente os Estados e o Distrito Federal poderiam ter
legislado enquanto perdurasse a omissão da legislação federal.
138
106
pela Secretaria de Política Urbana (Sepurb) do Ministério do Planejamento teria sido um fator
de forte influência na atitude do deputado. De outra, as entidades ligadas ao movimento pela
reforma urbana haviam tomado a iniciativa de buscar um processo de negociação com os
deputados contrários à aprovação e com o próprio relator, porque consideravam que o projeto
“precisava sair da referida comissão, onde os interesses contrários estavam concentrados”
(Grazia, 2003, p. 60). Para tanto, o MNRU “teve de abdicar de algumas de suas propostas (...)
com a esperança de que a matéria perdida se recuperaria nas outras comissões. (...) Uma
aposta arriscada, mas vitoriosa”, segundo Grazia de Grazia (op. cit., p. 61).
O fato é que o parecer do relator139 despiu o projeto original de sua abordagem
conceitual e voltou-o mais pragmaticamente para a instrumentalização dos municípios, muito
embora, nesse aspecto, todos os instrumentos originais tenham sido mantidos, a par de outros
acrescidos, como a transferência do direito de construir, a outorga onerosa do direito de
construir e as operações urbanas consorciadas.
Chama a atenção nesse caso, não a retirada, entre outras, da conceituação de função
social da propriedade e de abuso de direito, constantes do PL 5.788/90, pois o discurso
ideológico impossibilitara desde sempre a negociação parlamentar, mas a inclusão de certos
dispositivos que, defendidos pelo movimento da reforma urbana em muitos momentos, já
estavam em aplicação em algumas cidades.
Dessa experimentação municipal, como já vimos, muitos proveitos empresariais
foram obtidos. O próprio parecer do relator confirma essa evidência ao declarar, a respeito do
mencionado acréscimo, que “os instrumentos podem ser benéficos para as atividades
imobiliárias urbanas, ao inovar nas formas possíveis de parceria entre o Poder Público e as
empresas privadas” (CD, s/d, p. 377).
Ainda na CEIC, depois de apresentado o seu parecer, o relator acatou emenda do
deputado Fetter Júnior, do PPB do Rio Grande do Sul, que propunha retirar da relação de
instrumentos o direito de preempção. Mais uma vez as evidências de que as expectativas da
iniciativa privada estavam sendo atendidas se confirmam. Em seu voto, o relator afirmou
concordar com a retirada do instituto do direito de preempção para coadunar o projeto “com
Em paralelo ao embate que acontecia entre o MNRU e os representantes do empresariado, o governo federal,
em decorrência das críticas técnicas que fazia ao Estatuto da Cidade, promoveu, entre 1995 e 1996, várias
reuniões com vistas a um amplo acordo que resultasse na elaboração de um texto legal complementar, a ser
enviado ao Congresso. No entanto, envoltas em diferenças de abordagem entre a então Secretaria de
Desenvolvimento Urbano (Sepurb) e a Casa Civil, “foram tentadas diferentes iniciativas, sendo que nenhuma
delas logrou sucesso” (Araújo e Ribeiro, 2000, p. 3).
139
O deputado Luís Roberto Ponte exercia seu mandato na condição de suplente. Alterações na bancada estadual de
seu partido, fizeram-no deixar a Câmara antes da votação de seu parecer. Designado novo relator, o deputado
Pauderney Avelino, do PFL do Amazonas, manteve quase integralmente o parecer deixado pelo deputado Ponte.
107
freqüente que sua presidência coubesse a agremiações políticas de menor expressão numérica;
situação que caracterizava, aliás, quase todos os partidos ditos de esquerda. Nesse contexto, a
presidência da Comissão coube ao deputado Inácio Arruda, do PC do B do Ceará, liderança
popular naquele Estado, muito ligado aos movimentos sociais urbanos.
Cabe ao presidente das comissões indicar os relatores dos projetos. O deputado
Inácio Arruda avocou para si a relatoria do Estatuto da Cidade e começou a pôr em prática um
extenso e amplo calendário de coletas de sugestões, consultas, audiências públicas, debates e
seminários, que culminou com a realização da I Conferência das Cidades, estrategicamente
programada para começar no dia seguinte ao da votação do projeto na Comissão, ocorrida no
dia 1° de dezembro de 1999.
Na fase de debates que antecedeu a votação, muitas sugestões foram acatadas e
incorporadas ao texto submetido à votação, quase todas no sentido de reaproximar o projeto
do conteúdo da Emenda da reforma urbana. O Fórum Nacional da Reforma Urbana foi
acolhido quando propôs (FNRU, 1999), por exemplo, a inclusão de instrumentos de
regularização fundiária, como as ZEIS e a concessão especial de uso para fins de moradia, de
um plano de atendimento para a população atingida por operações consorciadas, de um
capítulo sobre a gestão democrática da cidade, de processos participativos de elaboração
orçamentária, assim como a fixação de penalidades para prefeitos omissos em relação à
elaboração do plano diretor. Não foi atendido, contudo, ao propor a supressão do artigo que
autorizava a emissão de certificados de potencial construtivo no âmbito das operações
urbanas.
O IAB obteve sucesso ao sugerir (conforme IAB-MG, 1999) a retirada da
comprovação de “demanda para utilização” para que se aplicassem o parcelamento e a
edificação compulsórios, bem como a fixação de um coeficiente básico e outro máximo para a
outorga onerosa do direito de construir.
Já o Secovi-SP (1999) apresentou poucas sugestões, fazendo crer-se satisfeito com o
texto que prevalecera até então. Além de quantitativamente escassas, suas propostas chamam
a atenção pelo conteúdo de algumas delas. Ao lado da previsível defesa da manutenção de
dispositivos como os que condicionavam a aplicação das penalidades de combate à ociosidade
do solo aos casos em que houvesse “ociosidade de infra-estrutura e demanda para utilização”,
no que, aliás, não foi atendida, essa entidade empresarial curiosamente propôs a inclusão do
“orçamento participativo” como instrumento da política urbana, bem como a exigência de que
a gestão das operações urbanas fosse “obrigatoriamente compartilhada com representação da
109
140
No capítulo 6, tenta-se explicar esse aparente paradoxo.
141
A proposta de instituição do Conselho Nacional de Política Urbana (CNPU) já havia sido suprimida do
projeto original porque a Constituição determina que a criação de órgão público somente pode decorrer de
projeto de lei de iniciativa do Poder Executivo.
110
142
Empresário, ex-banqueiro.
111
143
O senador Mauro Miranda foi o autor principal do projeto que resultou na inclusão do “direito à moradia” entre
os direitos sociais constitucionalmente assegurados (Emenda Constitucional n° 26, de 2000). Simpático às
reivindicações do MNRU, sua trajetória parlamentar também o credenciava perante os setores conservadores. A
atuação do então deputado Mauro Miranda na Constituinte já prenunciava essa amplitude política, que se
mostrou fundamental na aprovação do Estatuto da Cidade: “Filiado ao Centrão, nem sempre votou com o grupo”
(Coelho e Oliveira, 1989, p. 197).
144
Era essa a posição defendida pelo MNRU, como se afirma expressamente no documento “O Fórum Nacional de
Reforma Urbana conclama pela aprovação do Estatuto da Cidade – PL 5.788/90”, de 18/6/2001, dirigido a todos
os senadores: “somos totalmente favoráveis à aprovação do projeto de lei Estatuto da Cidade nos termos deste
substitutivo”.
145
Ver notas taquigráficas da sessão deliberativa de 18/6/2001. SF, Secretaria Geral da Mesa, Subsecretaria de
Taquigrafia, p. 244-249 e 277-319.
146
Assessor da Vice-Presidência de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do Secovi-SP, Vicente Amadei
representou o Secovi-SP e a CBIC durante a tramitação legislativa do Estatuto da Cidade.
147
Grazia de Grazia, assessora do Núcleo Cidadania, Políticas Públicas e Questões Urbanas da FASE, integrou a
coordenação do Fórum Nacional de Reforma Urbana durante os momentos mais importantes da tramitação do
Estatuto da Cidade.
112
148
Sociólogo respeitado, colega de profissão, amigo e assessor do presidente Fernando Henrique Cardoso desde
quando este era senador, Eduardo Graeff é filho do falecido professor Edgar Graeff, arquiteto e intelectual de
relevo, vinculado às causas sociais e democráticas de resistência ao regime militar.
113
função social da propriedade149 — o que, mais uma vez, permite supor a satisfação genérica
do setor empresarial com o texto aprovado.
As restrições da CBIC voltavam-se contra a fixação de prerrogativas expressas no
sentido de que o Ministério Público pudesse valer-se da ação civil pública para obstar danos à
“ordem urbanística” — no que, aliás, não foi atendida — e, principalmente, opunham-se à
“concessão de uso especial para fins de moradia”, instrumento que verdadeiramente polarizou
os debates no contexto da sanção do Estatuto da Cidade, reproduzindo, em outros termos, o
que ocorrera na Assembléia Nacional Constituinte.
Fundada no art. 183, § 1°, da Constituição, nos termos do qual “o título de domínio e
a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente
do estado civil”150, a concessão de uso especial para fins de moradia resgatava uma idéia
sempre presente nas propostas do MNRU. Constante da Emenda Popular da Reforma Urbana,
esse instituto, que fora removido da versão original a partir dos primeiros substitutivos, foi
reincorporado ao Estatuto da Cidade no parecer do deputado Inácio Arruda, aprovado pela
Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior.
Trata-se da possibilidade de assegurar segurança jurídica para fins de moradia aos
ocupantes de terra pública cuja posse, sem oposição do proprietário, ocorra há pelo menos
cinco anos. Como a Constituição de 1988 (art. 183, § 3°) seguiu a tradição de estabelecer a
impossibilidade de os imóveis públicos serem adquiridos por usucapião (ou seja, de que a
propriedade plena deixasse de ser pública e se transferisse ao particular), “estar-se-ia diante de
uma dificuldade quase intransponível para a regularização fundiária dos assentamentos em
área pública, o que colocaria os moradores na posição de terem de resignar-se com a
irregularidade” (Alfonsin, B., 2002, p. 163). A transposição desse obstáculo decorreu da
“construção hermenêutica151 que viu no art. 183, § 1° uma clara autorização para a utilização
149
Duas únicas restrições foram propostas pela CBIC nesse aspecto: (i) a supressão do parágrafo que se referia
aos patamares de progressão do IPTU, sob o argumento de que a alíquota máxima de 15% era “confiscatória”; e
(ii) a retirada da expressão “atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça
social e ao desenvolvimento das atividades econômicas”, vinculada ao plano diretor na definição do conceito de
função social da propriedade urbana, por considerá-la desnecessária porque redundante em relação às diretrizes
gerais da política urbana, fixadas no art. 2°. As solicitações não foram acolhidas.
150
Esse dispositivo, que, como vimos, decorreu da aprovação na Constituinte de emenda destinada à proteção da
mulher, acrescentou ao texto constitucional, ao lado da expressão “título de domínio” (propriedade), a hipótese
da “concessão de uso” nos procedimentos de regularização fundiária.
151
Foram de fundamental importância, nessa elaboração interpretativa, trabalhos como os dos juristas Nelson
Saule Jr. (1997), Leda Pereira Mota e Celso Sptizcovsky (1999), entre vários outros.
114
do instrumento da concessão de uso como um equivalente da152 usucapião, a ser usada nos
imóveis públicos” (Alfonsin, B., op. cit., p. 163).
A concessão de uso especial, a despeito das pressões do MNRU pela sua aprovação,
que novamente envolveram um “Manifesto dos Profissionais do Direito em Defesa da
Constitucionalidade do Estatuto da Cidade”, dessa vez assinado por 36 profissionais, embora
considerada, pelo presidente da República, “um importante instrumento para propiciar
segurança da posse — fundamento do direito à moradia — a milhões de moradores de favelas
e loteamentos irregulares”153, foi vetada com os seguintes argumentos:
1. a expressão “edificação urbana”, que visaria a permitir a regularização de
cortiços em imóveis públicos, poderia se prestar a gerar demandas do direito por
parte de ocupantes de habitações individuais (referindo-se aos “imóveis
funcionais”) de até 250m2;
2. o projeto de lei não ressalvaria do direito à concessão de uso especial os imóveis
públicos afetados ao uso comum do povo, como praças e ruas, assim como áreas
urbanas de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental ou destinadas
a obras públicas; nesses casos, dever-se-ia possibilitar a satisfação do direito à
moradia em outro local;
3. o texto aprovado no Congresso não estabelecia uma data-limite para a aquisição
do direito à concessão de uso especial;
4. não havia a definição expressa de um prazo para que a Administração Pública
processasse os pedidos de concessão de direito de uso, o que poderia vir a
congestionar o Poder Judiciário.
152
Substantivo de dois gêneros (Houaiss, 2001, p. 2815), o vocábulo usucapião, aqui transcrito como feminino, foi
utilizado neste trabalho como masculino.
153
Vetos parciais à Lei n° 10.257/01, constantes da Mensagem n° 730, de 10 de julho de 2001, publicada no DOU
de 11/7/2001.
154
Ibid.
115
155
Por força da Emenda Constitucional n° 32, de 12 de setembro de 2001, as medidas provisórias publicadas até
então “continuam em vigor até que medida provisória as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do
Congresso Nacional”. Em termos práticos, a MP n° 2.220/01, editada oito dias antes da promulgação da referida
Emenda, deve ser vista como se lei fosse.
156
Esse trecho da ementa da MP n° 2.220, de 2001, opera no sentido de consolidar o argumento de que a concessão
de uso especial para fins de moradia, tanto quanto o usucapião para o mesmo fim, tem sede constitucional.
157
Supõe-se que haja uma contradição jurídica na fixação de um limite temporal por norma infra-constitucional..
Tratando-se, como se trata (até porque, não fosse norma constitucional, o instituto não poderia estender-se, por
lei federal, aos bens estaduais e municipais), de um direito subjetivo constitucionalmente assegurado, a lei não
poderia limitá-lo no tempo se a Constituição não o fez. A questão deverá ser dirimida se e quando for levada ao
Poder Judiciário.
158
O inciso VI do art. 52, mantido pelo presidente da República, supre, em certa medida, o conteúdo do dispositivo
vetado.
116
Muito se tem falado do conteúdo do Estatuto da Cidade, sobretudo dos instrumentos previstos
na nova lei. Seja pelo aspecto de suas origens e de seu significado jurídico, seja pelo ângulo
das possibilidades urbanísticas e de gestão urbana que oferecem, os dispositivos da Lei n°
10.257, de 10 de julho de 2001, e da Medida Provisória n° 2.220, de 4 de setembro de 2001,
que o complementa159, estão expostos e amplamente comentados, de modo especial em
Rolnik, Saule Jr. et al., 2002; Mattos, 2002; e em Alfonsin, Fernandes et al., 2002, mas
também em publicações como Fernandes, 2001; Maricato, 2001; Smolka e Furtado, 2001;
Osório, 2002; Souza, 2002; Fernandes e Alfonsin, 2003; Mattos, 2003; e Ribeiro e Cardoso,
2003, entre muitas outras.
Assim, para os efeitos desse trabalho, a apresentação do conteúdo do Estatuto da
Cidade será feita de maneira sucinta, com o objetivo tão-só de explicitar seus principais
elementos constitutivos.
O Estatuto da Cidade, que “estabelece normas de ordem pública e interesse social”
(art. 1°, parágrafo único), o que expressamente sedimenta o direito urbanístico como ramo do
direito público, fixa, no art. 2°, o objetivo da política urbana: “ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”.
Para tanto, são fixadas “diretrizes gerais”, as quais, diferentemente do que possa
parecer num exame superficial, não são apenas enunciados genéricos ou etéreas manifestações
de vontade sem maior significado jurídico. Como o art. 182 da Constituição estabelece que a
execução da política de desenvolvimento urbano, competência municipal, deve ocorrer com
base em “diretrizes gerais fixadas em lei”, a prerrogativa municipal está vinculada pela
Constituição às diretrizes do Estatuto da Cidade, que, assim, “deverão ser absorvidas,
observadas e complementadas pelos municípios, de acordo com as particularidades e
peculiaridades locais” (Mattos, 2002, p. 87).
Entre essas diretrizes (art. 2°), encontram-se: o direito a “cidades sustentáveis”; a
participação popular; a cooperação entre agentes públicos e privados no processo de
urbanização; o planejamento do desenvolvimento das cidades; a ordenação e controle do uso
do solo de forma a evitar, entre muitos outros impactos negativos, “a retenção especulativa de
imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização”; a produção de bens e
serviços nos limites da sustentabilidade ambiental; a recuperação pelo poder público de
investimentos que tenham resultado em valorização imobiliária; a proteção de meio ambiente
natural e do patrimônio cultural; a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas
por população de baixa renda; e a simplificação da legislação urbanística local.
159
Ver anexos 6 e 7.
117
160
Revisto e ampliado com base em Bassul, 2000, p. 140-142.
161
Observe-se que se trata aqui da progressividade “no tempo”, com o objetivo extra-fiscal de instar o proprietário
a dar finalidade social ao seu imóvel. O IPTU, por força da Emenda Constitucional n° 29, de 2000, também pode
ser progressivo “em razão do valor do imóvel”, bem como “ter alíquotas diferentes de acordo com a localização
e o uso” da propriedade.
118
Os exemplos de aplicação da contribuição de melhoria no Brasil, inclusive por força de dispositivos legais, estão
mais relacionados com a recuperação dos custos dos investimentos públicos para socorrer fragilidades
orçamentárias do que com a captura de valorizações fundiárias. Ver experiências realizadas no município do
Guarujá, no Estado de São Paulo (Paulics, 2000, p. 31), ou em cidades do Estado do Paraná (conforme estudo de
J. Goelzer e P. Saad apud Smolka e Amborski, 2001, p. 41).
165
Ver, entre outras publicações, Cymbalista e Rolnik, 1997; Maricato, 2000; Paulics, 2000; Rolnik, Saule Jr. et
al., 2002; e Alfonsin, Fernandes et al., 2002.
122
166
Até mesmo o simples lançamento genérico do IPTU encontra imensas resistências políticas, culturais e
patrimoniais para a sua aplicação. Ver, a esse respeito, Furtado, 1999.
167
Com efeitos urbanísticos e sociais aparentemente positivos (o que ainda carece de comprovação empírica),
algumas dessas experiências consideradas bem sucedidas foram interrompidas por governantes sucessores, como
ocorreu em São Paulo e Brasília, ou, como no caso de Porto Alegre, onde a continuidade é maior, sofrem
críticas, ora pelo viés menos ético e mais pragmático de “reforço orçamentário” que teriam (com escassos
resultados), ora por possíveis impactos negativos que estariam provocando no meio urbano.
168
169
O PL n° 2.710/91, que cria o Fundo Nacional de Moradia Popular, primeiro projeto de lei federal de iniciativa
popular a tramitar no Congresso Nacional, com o apoio do MNRU, ainda não foi transformado em lei e, por isso,
não foi incluído na avaliação.
125
170
Acrescido da Medida Provisória n° 2.220, de 2001.
130
Assim, o que em certo momento parecia uma ameaça ao setor empresarial passou a
ser gradativamente percebido, e aproveitado, como oportunidade de mercado.
131
171
Jornal do Brasil, 14/3/1999. Filósofo da geografia, como o qualificou seu colega Aziz Ab’Saber, o professor
Milton Santos publicou mais de quarenta livros, quase todos sobre a questão urbana, com destaque para o
clássico A urbanização desigual (Petrópolis: Vozes, 1979), e recebeu vinte títulos honoris causa, de vários
países. Faleceu, aos 75 anos, exatos dezesseis dias antes da sanção do Estatuto da Cidade.
172
Ver, entre muitos outros autores, Harvey, 2000, p. 121-134. A respeito da vasta bibliografia produzida sobre o
impacto da globalização na problemática urbana, Ermínia Maricato (2000, p. 130) sugere consulta às teses de
doutoramento de João Whitaker, na FAU/USP.
132
como são postos em novas bases os mecanismos institucionais pelos quais passa a se dar o
relacionamento entre a administração pública e os agentes privados.
No Brasil, como em muitos outros países periféricos ou semiperiféricos173, esse novo
papel funcional da cidade encontrou um poder público cada vez menos “poder” e menos
“público”, uma vez que, carente de recursos em face da erosão de sua capacidade de
investimento174, a qual, por sua vez, decorreu da crise fiscal trazida pela nova ordem, foi
posto, ou pôs-se, crescentemente à mercê de corporações privadas, nacionais e internacionais,
interessadas em novas formas de expansão do capital175. Essa verdadeira comunhão da “fome
com a vontade de comer” tem dado ensejo a múltiplos formatos das chamadas parcerias
público-privadas176, cuja efetivação depende, em grande medida, de instrumentos legais da
natureza dos que acabaram presentes na lei federal de política urbana.
A bem da verdade, o projeto do Estatuto da Cidade, que obviamente não nascera
influenciado pelos paradigmas neoliberais do Estado mínimo, da desregulamentação e da
privatização — adotados no “Consenso de Washington”177, seu contemporâneo —, também
não se fundamentava nas críticas ao planejamento regulatório estatal, que o ideário da reforma
urbana havia consolidado. Ainda que permeado por processos participativos e repleto de
instrumentos destinados a assegurar efetividade à função social da propriedade, o projeto
original do Estatuto da Cidade, assim como ocorrera com o próprio capítulo constitucional da
173
Para Ermínia Maricato (2000, p. 162), com base no conceito de Giovanni Arrighi (A ilusão do
desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997), nesses países, “a reestruturação produtiva impacta uma base
socioeconômica [já] excludente”.
174
A par de reduzida pela crise fiscal, a capacidade remanescente de investimentos públicos mantém-se
predominantemente voltada para a realização de obras viárias e de infra-estrutura, o que, embora considerado
insuficiente pelo capital privado (que considera sempre elevado o que costuma denominar “custo Brasil”), agrava
imensamente a carência de investimentos públicos em setores socialmente estratégicos, como habitação popular,
saneamento e educação.
175
Como, em outros termos, já ocorrera em nossa fase pré-industrial, de finais do século XIX a inícios do século
XX, quando grande parte da infra-estrutura nacional — portos e ferrovias, assim como os serviços urbanos (e até
loteamentos) necessários à expansão capitalista — foi implantada por meio de concessões à iniciativa privada,
promovidas por um Estado de escassa base fiscal (ver o exemplo de São Paulo em Rolnik, 1997, p. 147-149).
176
Essas parcerias podem ser promovidas não apenas entre Estado e empresas privadas, mas também entre o poder
público e o chamado “terceiro setor”, formado por organizações não governamentais nem empresariais, as
ONGs. Exemplos das primeiras são as concessões de serviços e obras públicas ou as operações urbanas
consorciadas; como exemplos das segundas, considerados processos de “gestão pública não estatal”, podem ser
citados os mutirões autogeridos para a produção de habitações populares em São Paulo (SP) e o premiado
trabalho da ONG Cearah Periferia, em Fortaleza (CE), entre muitos outros (com relação a programas de moradia
popular em parcerias público-privadas, ver Bonduki, 1996, p. 180-194 e 261-267).
177
O “Consenso de Washington” resultou de uma reunião ocorrida na capital norte-americana, em 1989, mesmo
ano da apresentação do projeto do Estatuto da Cidade, na qual representantes das organizações financeiras
internacionais e de países ditos “emergentes” acordaram uma receita de política econômica a ser indistintamente
adotada nesses países. Esse modelo baseava-se em princípios como disciplina fiscal, liberalização financeira,
comercial e cambial, desregulamentação da atividade econômica, estímulo ao investimento estrangeiro, proteção
da propriedade intelectual (softwares etc.).
133
política urbana, estava ainda impregnado da crença na força planificadora do Estado, cujo
papel de protagonismo econômico o poder político recém-redemocratizado parecia pretender
restaurar178.
Desse modo, a inclusão do plano diretor no texto constitucional não apenas
significou o adiamento da aplicabilidade normativa da função social da propriedade nas
cidades, como podiam almejar naquele momento as forças conservadoras (as quais, também
por isso, mas não exclusivamente, a apoiaram), mas igualmente desvelou uma renovada
profissão de fé nos preceitos “fetichistas”179 da razão planificadora. Tornou-se, assim, uma
espécie de “canto do cisne” do urbanismo racional-funcionalista, que, afinal, como já
comentamos, e sem menosprezo a seus propósitos humanistas, menos servira ao interesse
público que se prestara a ser útil aos movimentos do capital privado.
Daí a apropriação diferenciada desse preceito constitucional pelas forças que se
confrontaram nas votações. De um lado, o MNRU — surpreendido pela vinculação da função
social da propriedade ao plano diretor e vacinado contra as quimeras prometidas pelo
planejamento tecnocrático — dirigia seus esforços para a democratização dos processos de
elaboração e implementação desse plano nos municípios. De outro180, o empresariado urbano
buscava oportunidades de investimento e acumulação que pudessem decorrer do mesmo
processo democrático; o qual, aliás, poderia vantajosamente legitimar seus benefícios perante
a opinião pública, agora mais atenta e ressonante na democracia reconquistada.
Não é casual, portanto, nem deve causar estranheza, que o documento encaminhado
pelo Secovi-SP (1999) à Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior (CDUI) da Câmara
dos Deputados, por ocasião do debate ali promovido pelo relator do projeto ainda pendente de
votação, incluísse propostas como a do “orçamento participativo”, em relação ao qual o
empresariado afirmava que “não se admite mais, especialmente em assuntos que digam
respeito à sociedade como um todo, a exclusão da participação dos cidadãos”. O mesmo
documento defendia que as operações urbanas consorciadas fossem geridas de forma
compartilhada “com representação da sociedade civil”, pois essa participação “se faz
178
Vários artigos da Constituição de 1988, sobre temas diversos, fazem menção a planos e programas de natureza
estatal.
179
Essa polarização entre a apropriação dos planos diretores como instrumento de reforma urbana, fundada na
participação popular e na efetividade da função social da propriedade, e sua contra-parte, a dos planos
estratégicos, centrados no empresariamento urbano, cujo conceito de participação é preenchido apenas pelos
“atores relevantes”, foi abordada no capítulo 2. Nesse último caso, em contradição com a própria expressão
“estratégico”, a idéia de um planejamento universalista, de amplo alcance social, passa a ser substituída pela
efetivação de “projetos”, de um urbanismo de resultados, quase sempre orientado pelo interesse de
empreendedores. Ver, a respeito, entre outras obras, Vainer, 2000.
134
menos que 39 itens, entre os quais segurança, sistemas de saúde, saneamento ambiental,
educação e transportes, nossas cidades são consideradas de pior qualidade de vida que
Montevidéu (76ª), Buenos Aires (78ª) ou Santiago do Chile (80ª), apenas para ficar com
exemplos vizinhos, sujeitos a determinismos históricos assemelhados.
O aspecto mais relevante para o mau desempenho do Brasil na pesquisa é a violência
urbana, que nas últimas décadas vem crescendo dramaticamente, à medida que também se
eleva a disparidade na distribuição da renda nacional183. Também por essa explícita razão,
empresários da Alemanha, por exemplo, que têm ou pretendem fazer investimentos no Brasil
afirmam temer aumentá-los ou promovê-los. Nas palavras de um deputado federal daquele
país, ligado ao empresariado, “há um receio em colocar mais dinheiro em um país onde uma
tragédia pode acontecer no percurso aeroporto-hotel”184.
Essa percepção do empresariado com relação à problemática urbana, que passou a
ver na deterioração das condições de vida nas grandes metrópoles fatores de risco
mercadológico, conquanto seja notoriamente distinta da formulação crítica produzida no
âmbito do MNRU, ajuda a explicar a mudança das posições do “poder corporativo” no tocante
ao conteúdo do Estatuto da Cidade e a formação de consensos entre os dois campos. Para
Raquel Rolnik (2003b), “a situação urbana ficou muito ruim, se degradou demais (...). Em São
Paulo, você percebe que os empresários tomaram consciência de que o modelo não deu certo e
se vê uma certa abertura para se pensar em modelos alternativos”.
A síntese dessa posição conciliadora, pelo ponto de vista do empresariado, talvez
possa ser expressa pelas palavras com que o senador Romeu Tuma, do PFL de São Paulo,
saudou a aprovação da nova lei: “Mesmo defendendo uma visão liberal da atividade
econômica, não podemos desatrelá-la de uma perspectiva socialmente justa. Assim como
defendo a liberdade de empreender e de lucrar com o empreendimento, defendo que tal
liberdade não pode ser usufruída em detrimento da comunidade” (Tuma, 2001).
Deve-se reconhecer que formulações dessa natureza contêm preceitos distributivos e
universalistas, de ampla aceitação (embora também capazes de servir a múltiplos interesses).
Num aforismo falacioso, todos querem um mundo melhor para todos. Porém, os que estão
mais confortavelmente instalados tendem a ser menos tocados por princípios éticos de
183
Vários estudos demonstram que a violência urbana está menos associada à circunstância de um país ser menos
ou mais pobre do que à desigualdade na distribuição da renda nacional (ver depoimentos à CDUI da Câmara dos
Deputados, reunidos pela Comissão em publicação avulsa). Ainda a esse respeito, em palestras e publicações, o
ex-presidente do IPEA (1999-2002), Roberto Borges Martins, ao comentar o fato de a distribuição da renda no
Brasil ser a 3ª mais concentrada do mundo, costumava afirmar e demonstrar que “o Brasil não é um país pobre,
mas um país que tem muitos pobres”.
184
combate às causas das desigualdades do que por motivações mais pragmáticas de mitigação
de seus efeitos.
Ao produzir uma reportagem sobre o apoio que a candidatura de Luiz Inácio Lula da
Silva, líder sindical ligado a causas esquerdistas, obteve na alta sociedade paulistana na
eleição de 2002 para presidente da República, o jornal Folha de São Paulo encontrou nessa
elite não o constrangimento ético para com a iniqüidade nacional, mas tão-somente o ânimo
de que o novo governo combatesse o desemprego e a violência urbana, no sentido de
reconquistarem, como alguns definiram, “o direito de ser rico”185.
Nesse ambiente, não é difícil compreender a convergência de opiniões, ainda que
fundadas em análises e propósitos diferenciados, entre o empresariado e o MNRU. A idéia de
um direito universal à cidade, que compreenda o acesso de todos a bens e serviços urbanos
essenciais à dignidade humana, deixa de ser apenas uma causa impregnada dos princípios
ideológicos ditos socializantes, ou até “comunistas”, como se apregoara nas décadas de 1970 e
80, para assumir, do ponto de vista oposto, a condição minimamente necessária à reprodução
do capital.
Nos primórdios da tramitação do Estatuto da Cidade, a reação conservadora, dentro e
fora do Congresso Nacional, conseguiu protelar as deliberações por nada menos que sete anos.
O somatório das forças sociais e políticas que representavam a proposta da reforma urbana
não parecia suficiente sequer para obter acordos considerados razoáveis.
Com o passar do tempo, em síntese, os experimentos municipais que ocorriam em
paralelo e estimulavam a iniciativa privada; a percepção, pelo empresariado urbano, das
desvantagens competitivas que decorriam do processo de deterioração das condições de vida
urbana; e o sentimento de fragilidade que, em face da agudização da violência186, passou a
assomar aos olhos das elites nas grandes cidades, entre outros fatores, propiciaram
circunstâncias políticas que resultaram na aprovação unânime do projeto e, posteriormente, na
sanção presidencial187.
Vale ainda lembrar, pelo papel politicamente importante que teve, a coincidência do
período das votações finais com a participação do Brasil nas sessões extraordinárias da ONU,
185
“Golden Lula conquista high society: petista é visto como mediador entre Brasil que endinheirados conhecem
e país que eles temem”, Folha de São Paulo, 1°/12/2002, p. A18.
186
A despeito dessa noção de fragilidade que tem levado até ao encastelamento dos segmentos mais afluentes nas
cidades brasileiras, as maiores vítimas da violência urbana são as populações pobres. Contra aqueles, incidem
majoritariamente os crimes de natureza patrimonial; em relação a essas, predominam os crimes contra a vida
(ver, em Maricato, 2000, p. 164, referência a pesquisas realizadas no Núcleo de Estudos da Violência da USP;
ver também o Mapa da Violência, publicado periodicamente pela Unesco desde 1996).
187
Suspeita-se, sem que se possa, nesse caso, comprovar a hipótese, que a circunstância da impopularidade do
governo de então nos grandes centros urbanos e a proximidade da eleição presidencial de 2002 também
operaram no sentido de favorecer o acatamento da nova lei.
137
188
Graeff (2003, p. 2) destaca, na preparação do documento brasileiro, a participação da professora Regina Meyer,
da FAU/USP, que teria defendido a sanção do Estatuto do Cidade, inclusive em telefonema pessoal ao presidente
da República.
138
189
Segundo Smolka (2003, p. 262), com base em estudos por ele citados, no Rio de Janeiro, 39,47% dos
domicílios seriam irregulares; em São Paulo, 66%; em Recife, 80%; em Salvador, 70%; e, em Curitiba, 50% da
população viveria em situações de violação dos códigos urbanísticos.
190
Ver banco de experiências no sítio da internet (www.cidades.gov.br) do Ministério das Cidades. A respeito dos
programas de regularização fundiária na América Latina, é importante o alerta de Martim Smolka para o risco de
realimentação da informalidade se não forem paralelamente enfrentados os fatores que levam à elevação dos
preços do solo urbano provido de infra-estrutura (Smolka, 2003, p. 255-291).
139
público” (Fernandes, M., 1999, p. 80), foram atendidas pelos preceitos de gestão democrática
incorporados ao Estatuto da Cidade.
Embora tais preceitos sejam, também neste caso, distintamente apropriados pelas
divergentes correntes de opinião que os aprovaram, não se pode negar a multiplicação, que
ocorre Brasil afora, de debates, audiências públicas, conselhos, conferências e outros
instrumentos192 de natureza democrática.
Estão igualmente presentes, em ambos os pólos do debate, princípios de defesa da
sustentabilidade ambiental, adotada na nova lei como inerente ao próprio direito à cidade.
Assim como o segmento empresarial tem superado seu característico ranço crítico nesse
campo e crescentemente assimilado a responsabilidade ambiental em suas atividades193, o
movimento popular pela moradia também tem deixado gradativamente de ver a preservação
do meio ambiente como um discurso conservador e reacionário, necessariamente contrário aos
seus interesses. Exemplo disso é a própria Plataforma Nacional pelo Direito à Cidade, que
afirma: “O desenvolvimento econômico deve integrar os direitos sociais em harmonia com o
meio ambiente. As políticas e planos para a cidade precisam assegurar o acesso democrático
aos recursos ambientais e paisagísticos, reduzindo os riscos ambientais e promovendo uma
efetiva melhoria da qualidade de vida”194.
Na mesma linha, não será difícil encontrarmos afinidades no que diz respeito à
defesa de direitos coletivos e sociais, como o acesso a informações de interesse público ou a
universalização, pelo Estado, do provimento de serviços e equipamentos urbanos, como os de
moradia, saneamento, educação, saúde, transportes, segurança, cultura, lazer; o que, de resto,
como Marx percebeu há um século e meio, assegura condições para a reprodução da força de
trabalho e desonera o capital privado.
No entanto, de onde viriam os recursos para tanto, se o velho Estado provedor do
desenvolvimentismo não existe mais? O consenso havido na expressão normativa e
distributiva dos direitos parece acabar quando são exigidos os meios para implementá-los.
Desse ponto em diante, a disputa entre os múltiplos segmentos sociais e agentes econômicos
se restaura e instrumentos de perfil redistributivo sofrem interdições na sua efetividade. De
192
Plebiscitos e referendos sobre questões locais, embora comuns em vários países, especialmente os europeus,
ainda são raros no Brasil.
193
A iniciativa privada, em muitos casos, como costuma acontecer, transformou o “estorvo” do respeito ao meio
ambiente em “valor agregado” a seus produtos, transformado em preço. Apelos comerciais freqüentemente se
referem à preservação ambiental como um fator de diferenciação e qualificação de produtos tão diferentes quanto
cosméticos e loteamentos, por exemplo.
194
O documento Plataforma Nacional pelo Direito à Cidade: dez pontos para a “cidade que queremos” foi
elaborado pelo MNRU em 2002 (www.direitoacidade.org.br, consulta em 18/2/2003).
140
volta aos aforismos falaciosos, todos querem um “mundo mais justo e solidário”, a “renda
nacional mais bem distribuída”, uma “cidade melhor para todos” — mas quase ninguém se
dispõe a perder para que tal aconteça; e, em face da crescente desigualdade dos meios em que
a disputa se dá, perdem ainda mais os que historicamente já têm perdido195.
Se frações do próprio capital imobiliário, como os donos de terra e os construtores,
divergem em relação a certos instrumentos, como, por exemplo, os de combate à ociosidade
do solo urbano, essas posições não demoram a se reencontrar quando se trata de dar efetivo
sentido social à norma legal.
Os proprietários representados pela TFP defendem a manutenção de terra nua ociosa
como um direito natural e consideram que o Estatuto da Cidade “demoniza como especulação,
sem mais análises, todo esse gênero de aplicação de recursos” (TFP, 2004, p. 13). Já para os
promotores imobiliários esse dispositivo é bem-vindo. Nas palavras de Vicente Amadei,
representante do Secovi-SP: “A questão da compulsoriedade [em relação às] áreas que estão
paradas esperando valorização (...) é um ponto que acho positivo para o mercado (...). Nosso
setor é empreendedor, não é setor de especulação imobiliária” (Amadei, 2003, p. 1).
Mas as diferenças quanto à utilização compulsória da propriedade urbana acabam aí.
Tanto proprietários quanto empreendedores se opõem a que o conceito de não utilização (ou
de subutilização) seja interpretado de modo a alcançar imóveis construídos e desocupados:
“Em alguns municípios, há pessoas que entendem que a compulsoriedade atinge prédios já
existentes e desocupados. Na leitura da Lei, vê-se que não é nada disso, pois se trata da
utilização do solo, para a edificação do solo, para o parcelamento do solo, e não de imóveis já
construídos” (Amadei, op. cit., p. 3). Deve-se lembrar, a propósito, que a sugestão de que haja
penalidades para proprietários de moradias construídas que as retenham vazias já constava do
documento final do Seminário do Quitandinha, de 1963 (ver anexo 1).
Segundo o IBGE, há, no Brasil, 5 milhões de imóveis urbanos para moradia
desocupados196. Por outro lado, dados do próprio IBGE e da Fundação João Pinheiro (FJP)
quantificam o déficit habitacional brasileiro, nas cidades, em 5,3 milhões de moradias197, o
195
Ao lado do crescimento do desemprego (estrutural e circunstancial) observado nos últimos anos, chamam a
atenção números como os que demonstram a perda da massa salarial. Entre 1996 e 2003, anualmente, no mínimo
32,8% e até 57,7% dos acordos e convenções coletivas de trabalho resultaram em reajustes inferiores à taxa de
inflação do respectivo período (DIEESE, 2003). Em contraponto, para uma inflação acumulada de 2.950% entre
1993 e 2003, o ganho com a cobrança de tarifas bancárias, pela média dos quatro maiores bancos brasileiros,
cresceu 12.674% no mesmo período (O Globo, 21/3/2003, p. 33).
196
Esse número se limita às cidades e já exclui os imóveis de “uso ocasional”, como casas de campo, de veraneio
e outras, considerando tão-somente as moradias vagas ou fechadas (IBGE, Sinopse Preliminar, 2000).
197
Na definição da Fundação João Pinheiro, o conceito de déficit habitacional abrange quatro situações:
precariedade física, co-habitação (mais de uma família), ônus excessivo de aluguel e deterioração pela ação do
tempo.
141
que levaria à conclusão de que, parodiando o ex-presidente do IPEA, Roberto Martins, “no
Brasil não há déficit de moradias; há muitas pessoas sem teto”.
Mas como fazer as pessoas sem teto ocuparem os tetos sem pessoas? No Distrito
Federal, a Câmara Legislativa aprovou o projeto de lei n° 956/2003, de iniciativa do deputado
Chico Vigilante, do PT, instituindo o “IPTU progressivo para unidades imobiliárias
desocupadas”. Em uníssono, as entidades empresariais do setor imobiliário (Ademi-DF,
Sinduscon-DF e Secovi-DF), ao lado da representação dos corretores de imóveis, Creci-DF e
o respectivo sindicato, publicaram uma Carta Aberta solicitando que o governador Joaquim
Roriz vetasse a medida, sob um argumento ao menos sincero: “O projeto afasta os
investidores em imóveis”198. O governador vetou o projeto.
O argumento dos empresários confirma o que vimos no capítulo 2. A produção
habitacional no Brasil, em grande parte, não se destina a atender à demanda efetiva de
moradias, mas a produzir um ativo financeiro. E o mercado interessado na valorização desse
ativo não é obviamente formado apenas pelos seus produtores, mas igualmente pelos
compradores/investidores. Em outros termos, resistências dessa natureza associam
proprietários, grandes e pequenos, e empreendedores contra a efetiva implementação de
dispositivos que, por levarem a uma maior oferta, possam constituir ameaça às altas taxas
médias de rentabilidade desse tipo de investimento.
No Brasil, essa condição de ativo financeiro que caracteriza o bem imobiliário —
que, de resto, mas em outras circunstâncias, também ocorre nos países capitalistas centrais199
— assume uma feição que potencializa seus efeitos discriminatórios. Entre nós a expressão
patrimonial do investimento financeiro se combina com os simbolismos sociais e culturais
que elevaram a propriedade a confundir-se com os elementos constitutivos da própria
cidadania: “Quem tem patrimônio tem direitos. Quem não possui, não tem”200.
As disputas pela apropriação das rendas imobiliárias envolvem, portanto, não apenas
os interesses fortemente concentrados e atuantes, como os do empresariado do setor
imobiliário, mas também um exército disperso e silencioso, mas veladamente associado, de
198
201
Em instigante artigo, Martim Smolka, sem deixar de reconhecer a necessidade dos programas de regularização
fundiária, tenta demonstrar que “a regularização de assentamentos informais materializa a resposta neoliberal
para a informalidade, sem (ou melhor, para não) alterar as regras do jogo imobiliário” (Smolka, 2003, p. 288).
Seus argumentos, em parte lastreados em pesquisas de Pedro Abramo (IPPUR/UFRJ), fundamentam-se no fato
de que imóveis irregulares, tanto quanto ocorre nas áreas legais, têm preços de mercado muito elevados, o que
constituiria causa da persistência da informalidade e de realimentação da pobreza. Para ele, as políticas públicas
nesse campo deveriam concentrar-se em medidas (especialmente, mas não exclusivamente, de natureza fiscal)
contrárias “à exacerbação do preço da terra” urbanizada.
202
Em “Acordo busca manter Plano Diretor na Câmara”, O Popular, Editoria de Política, 9/12/2003.
203
Sobre o papel dissimulador desempenhado por representantes do segmento imobiliário nos debates relativos ao
plano diretor de Angra do Reis, ver Guimarães e Abicalil, 1990. Esse plano diretor tem sido apresentado como
exemplo de gestão democrática por vários autores ligados ao MNRU. Ao lado das dificuldades próprias do
patrimonialismo ideológico, Marcelo Lopes de Souza identifica “a arrogância e o excesso de confiança das
forças comprometidas com a mudança social” como fatores de frustração de sua implementação (Souza, 2002, p.
483).
143
discurso, no plano que esconde ao invés de mostrar. Esconde a direção tomada pelas obras e
pelos investimentos, que obedecem a um plano não explícito”.
Os planos participativos e democráticos, embora mostrem e não mais escondam,
também correm o risco de permanecerem no discurso. Ou, pior, terem os seus elementos,
politicamente úteis porquanto legitimadores, apropriados pelas mesmas forças que se têm
historicamente valido do aparelho estatal. Se no Estado tecnocrático a participação popular era
escassa e, assim, essa apropriação “por baixo dos panos” era facilitada, também é frágil a
garantia de que o mesmo processo, agora “por cima dos panos”, deixe de ocorrer na ordem
democrática.
Exemplos desse risco são as decisões de muitos governos e câmaras de vereadores,
que, de uma parte, resistem de forma clientelista204 à atualização de cadastros fiscais e à
cobrança de contrapartidas como a contribuição de melhoria (Lima, 1986, p. 169-188) e, de
outra, beneficiam com vergonhosa freqüência interesses privados com facilidades
urbanísticas. É o caso das comentadas aplicações, com sinal trocado, de alguns dos
instrumentos de potencial redistributivo, como a outorga onerosa do direito de construir e de
alteração de uso e as operações urbanas, muitas vezes imbricados, que os transformam numa
espécie de “tributo regressivo”, no sentido de que decresce quanto maior seja o poder de
barganha política do “contribuinte-empreendedor”, interessado em franquias edilícias.
São múltiplas, assim, as evidências de dificuldades concretas na implementação (ou
até, antes, nas próprias tentativas de regulamentação), com sentido efetivamente social, de
instrumentos que foram unanimemente aprovados nas votações do Estatuto da Cidade; o que
sugere que, sob um consenso aparente, havia, de fato, um conflito latente.
204
CONCLUSÃO
conferir eficácia aos princípios da função social da propriedade e da cidade, para proprietários
e empreendedores, o consenso parece exaurir-se quando a aplicação dos preceitos legais
ameaça, ou pareça ameaçar206, interesses patrimoniais. Nesse campo dos efeitos do novo
ordenamento legal, as reações características da velha ordem se revigoram.
Propostas de natureza distributiva — como as voltadas para a democratização de
direitos formais, a instituição de mecanismos de controle social ou a universalização de
condições básicas de acesso a bens, serviços e equipamentos urbanos — conquistaram ampla
aceitação no âmbito dos setores empresariais207 e razoável grau de aplicabilidade. Já os
instrumentos de potencial redistributivo, sobretudo os que interferem negativamente na
expectativa de valorização imobiliária, ainda encontram imensos obstáculos, expressos ou
velados, para sua implementação.
Considerações prospectivas
206
Smolka e Furtado (2001, p. XXXII e XXXIII) trazem fundados argumentos no sentido de demonstrar que se
trata de uma “resistencia más ideológica que lógica” aos instrumentos de recuperação de mais-valias fundiárias,
visto que, em muitos aspectos, como o fato de os ônus recaírem sobre os proprietários de terras (não promotores)
e os efeitos de neutralização de externalidades na formação dos preços, são aplicados princípios que deveriam ser
defendidos pelos empreendedores.
207
A adoção de instrumentos desse tipo tem se dado por meio de compensações decorrentes de franquias
urbanísticas, na forma de parcerias, que, muitas vezes — como há tempos percebera David Harvey (1996), um
dos pioneiros dessa corrente crítica —, aproveitam mais aos empreendedores que ao interesse público.
148
De outra parte, as restrições críticas não provêm apenas da chamada intelectualidade. No dia
18/3/2004, pouco mais de um ano e dois meses da posse do novo governo, cuja eleição
apoiara, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em Olinda (PE), entrou em
conflito com a Polícia Militar quando promoveu uma manifestação por ocasião da visita do
presidente da República àquela cidade. O coordenador do MTST em Pernambuco, reverendo
Marcos Cosmos, declarou aos jornais208: “Queremos uma política habitacional coerente com
um governo que se diz popular. Os empresários e os banqueiros têm mais espaço do que nós
no governo Lula”.
O inconformismo, ou a impaciência, a depender do ponto de vista, tanto do
pensamento crítico quanto do movimento popular em relação à “impotência do poder”209,
põem em xeque não mais agora os preceitos éticos e o conteúdo programático da reforma
urbana, mas a sua eficácia como política pública.
Nem mesmo o fato de a Constituição reduzir o papel do governo federal no campo da
política urbana, em benefício da autonomia municipal, tende a amenizar as expectativas.
Ainda mais quando se sabe que essa circunstância importa pouco num país em que a noção de
dependência em relação ao poder central ainda é muito forte nas instâncias locais. E também
porque muitos dos argumentos utilizados por governos municipais de base popular para
explicar suas dificuldades na implementação de políticas urbanas de compromisso social
costumavam referir-se à inexistência de instrumentos legais e à falta de apoio do governo
federal. Ambos agora estão presentes.
Pode-se afirmar que o MNRU foi notoriamente vitorioso numa das vertentes da
luta pela reforma urbana: a da constituição de um marco legislativo que incorporasse seus
preceitos ao ordenamento legal brasileiro. Parece claro, contudo, que a efetividade desse
novo instrumental jurídico dependerá de muitos fatores, como, entre muitos outros, a
capacidade do poder público e do movimento popular em obter acordos que resultem em
eqüidade; a superação da “representação ideológica da cidade”210; a disseminação dos novos
conceitos nos cursos de formação e na prática de planejadores urbanos e operadores do
direito; a assimilação pela opinião pública de modelos que lidam com a noção de patrimônio
e rendas que, embora de alto valor, são quase sempre “invisíveis”; e a superação de
208
O Globo, 18/3/2004, p. 4.
209
O autor ouviu a expressão de Pompeu de Sousa, frustrado com a percepção de que, se pode alguma coisa, o
poder político pode pouco no sentido de promover efetivas transformações sociais.
210
Para Ermínia Maricato (2000, p.165), “a representação da ‘cidade’ é uma ardilosa construção ideológica que
torna a condição da cidadania um privilégio e não um direito universal”. A parcela da cidade ocupada pela elite
passa a representar a própria idéia de cidade, encobrindo grandes extensões territoriais e, sobretudo, sociais da
cidade real. Numa espécie de metonímia da gramática urbana, parte da cidade toma o lugar do todo.
150
211
Segundo Oscar Borrera Ochoa, ex-presidente da FEDELONJAS, entidade representativa do setor imobiliário na
Colômbia, os empreendedores colombianos, após terem também considerado “comunista” a legislação pró-
reforma urbana naquele país, “aproximaram-se das preocupações sociais e coletivas” e passaram a considerar
justa a captura de mais-valias pelo poder público por meio de instrumentos urbanísticos (Land Lines, LILP,
july/2003, p. 16, livre tradução).
212
Para ela:
“As reflexões críticas analíticas são fundamentais nesse processo. Elas ajudam a
demolir os simulacros das representações ideológicas. Não se aceita, entretanto, a cômoda
postura dos que decretam a morte do urbanismo democrático (e também dos urbanistas
democráticos) enquanto as relações capitalistas forem dominantes. As contradições são
muitas e suas brechas imensas, na sociedade brasileira, para adotar a postura da paralisia
propositiva, em quase todas as áreas do conhecimento aplicado. Durante a ditadura militar
essa postura não surpreenderia. Hoje ela não é cabível. É preciso e é viável anunciar uma
nova sociedade a cada momento em cada lugar” (Maricato, 2001, p. 123).
Comentários finais
213
Para o grande constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho: “O mundo pós-moderno será mesmo um
mundo plural (dos ‘discursos’, das ‘histórias’, das ‘idéias’, dos ‘progressos’), onde existe apenas um singular: o
indivíduo. Todavia, esse indivíduo assume-se como pós-sujeito: renuncia a ‘verdades universais’, e, em vez de
projectar mundos, encontra os ‘fenómenos’ e os ‘sistemas’. Neste sentido se diz que é um indivíduo topológico,
um ‘espectador de aconteceres’, soberanamente indiferente”. In: Direito constitucional, Coimbra: Almedina,
1991, p. 18-19, apud Queiroga, 2002 p. 23.
152
entanto, mesmo não sendo transformadas as relações de produção que a ensejaram (e a têm
aprofundado), parece possível reduzi-la. Não fosse assim, não haveria, como há, nações
capitalistas menos iníquas que outras e, dentro delas, regiões e cidades socialmente mais
justas que outras.
Sendo o Brasil um país marcado por iniqüidades de toda sorte, é preciso e possível
formular planos e executar ações que, em vez de resultarem num jogo de “perde-e-ganha”
(onde se sabe bem quem perde e quem ganha), possam ensejar, por assim dizer, acordos de
“ganha-e-ganha”, no sentido de que saibam retirar proveito público de mecanismos próprios
da iniciativa privada. Até porque, a permanecer a tendência de agravamento desse quadro,
mesmo as forças política e economicamente hegemônicas devem saber que poderemos viver
sucessivas e mais intensas tragédias de “perde-e-perde”.
Nesse processo, a contribuição que a qualificação técnica dos planejadores urbanos
poderá oferecer, ao compreender a dimensão política que condiciona e subordina suas
decisões, certamente não será a de formular respostas tão pretenciosas quanto
simplificadoras de uma realidade complexa, mas a de ajudar, nas suas especificidades, a
produzir um conhecimento crítico que venha a ser coletivamente apropriado.
Como se depreende do presente trabalho, muitas possibilidades investigativas
podem contribuir para a efetividade dessa nova ordem urbanística. Entre elas, por exemplo:
(i) o estudo das características do mercado imobiliário, formal e informal, e dos fatores
determinantes da localização residencial, especialmente os referentes às populações pobres,
que podem revelar surpresas214; (ii) propostas para a delimitação conceitual dos
instrumentos do Estatuto da Cidade, muito especialmente o plano diretor, além de outros,
inovadores ou não, destinados a promover a “recuperação de mais-valias fundiárias”215; ou,
ainda, (iii) o aprofundamento de conceitos jurídicos vinculados à noção de que os direitos
dependentes de autorizações do poder público, legislativas ou administrativas, necessárias
ao processo de urbanização, configuram patrimônio público e, nessa condição, não podem
ser graciosamente transferidos ao domínio privado.
Abrem-se, igualmente, fronteiras técnicas mais específicas, a exemplo da
atualização das normas de avaliação de imóveis para absorver o conteúdo do instrumental
urbanístico trazido pelo Estatuto da Cidade (inclusive como recurso para a análise empírica
214
Como, por exemplo, a persistência de preços excessivamente elevados no mercado informal em decorrência
de diversos fatores, entre eles a negação empírica da premissa comumente aceita de que a “concorrência entre o
mercado imobiliário informal com o mercado formal reduziria preços do informal (...)” (Abramo, s/d, p. 1).
215
dos efeitos de sua aplicação), ao lado de outras, de cunho pedagógico, como a maior
assimilação pelos currículos acadêmicos desse novo ambiente cognitivo.
Por fim, caberia lembrar que a distância entre intenção e gesto, ou, em outras
palavras, o risco de que o Estatuto da Cidade se transforme numa “lei-discurso”, será menor
quanto maior seja a compreensão de seus significados e o efetivo execício prático de suas
potencialidades; mas também será necessária a aceitação de seus limites.
O mérito de um planejamento crítico e de uma gestão democrática assim
promovidos não estará, portanto, em negar a revolução tecnológica e a reestruturação
produtiva que se encontram em marcha, mas em saber dirigi-las, sob preceitos éticos, para a
democratização dos seus benefícios.
E o que seriam as cidades, ante as condições culturais e materiais que reúnem,
senão o território dessa possibilidade e a arena dessa luta?
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166
ANEXO 1
(...)
propõe:
1ª proposta:
2ª proposta:
Que o Congresso Nacional reforme o parágrafo 16 do artigo 141 da Constituição Federal, suprimindo as
expressões “prévia” e “em dinheiro”, de modo a permitir ao governo a escolha da forma de indenização, de
acordo com o interesse social.
3ª proposta:
Que o Poder Executivo envie projeto de lei ao Congresso Nacional corporificando os princípios de Política
Habitacional e de Reforma Urbana aprovados neste seminário e contendo os seguintes pontos:
1) A fim de disciplinar e coordenar todos os esforços necessários à correção da carência habitacional e de seus
problemas de aproveitamento do território, o governo deve criar um Órgão Central Federal, com autonomia
financeira e com competência de jurisdição sobre todo o território nacional, incorporando-se a ele o
Conselho Federal de Habitação.
a) fixar as diretrizes da política habitacional e de planejamento territorial do país, através da elaboração dos
planos nacionais, territorial e de habitação, de duração plurianual, tomando todas as resoluções que lhe
167
parecerem necessárias para assegurar o seu pleno desenvolvimento, sendo que, sua execução, sempre que
possível, deve ser descentralizada;
b) encaminhar, por intermédio do Presidente da República, os planos nacionais, territorial e de habitação (tal
como são entendidos nos Capítulos IV e V da presente proposta) ao Congresso Nacional, para sua
apreciação e aprovação;
c) coordenar, assessorar e estimular a ação de todas as entidades governamentais, autárquicas, paraestatais e
privadas que exerçam atividade no setor habitacional, considerando os planos estaduais ou municipais
existentes;
d) centralizar e coordenar os recursos federais destinados à habitação;
e) coordenar, supervisionar e distribuir os recursos e a assistência técnica provenientes de países estrangeiros
ou agências internacionais, destinados a programas de habitação e de aproveitamento do território;
f) propor e executar medidas legais de desapropriação por interesse social, tanto para a habitação como para o
planejamento urbano e proporcionar aos órgãos responsáveis pela execução de planejamentos territoriais e
habitacionais, recursos que facilitem a desapropriação por interesse social, observado o enquadramento de
tais planejamentos aos planos regionais a que pertencerem;
g) propor, estabelecer e executar medidas legais ou administrativas, necessárias à execução da Política
Habitacional do governo;
h) firmar convênios com entidades oficiais ou privadas;
i) adotar providências necessárias para o incremento da indústria de materiais de construção e
desenvolvimento de processos tecnológicos, tendo em vista a padronização e estandardização desses
materiais, e a possibilidade de processos de pré-fabricação;
j) promover, estimular e divulgar estudos e pesquisas, especialmente visando à criação de uma consciência
pública do problema;
k) promover o entrosamento da Política Habitacional com a Política Agrária e com a de Desenvolvimento
Econômico.
3) O Órgão Central deve ter uma organização com as seguintes características e normas:
a) bens móveis, imóveis, direitos e ações sobre imóveis pertencentes à Fundação da Casa Popular e ao
Conselho Federal de Habitação;
b) imóveis que desaproprie e adquira a qualquer título, bem como os imóveis urbanos pertencentes à União e
por ela não utilizados.
5) Para o financiamento da Política Habitacional deve ser criado um Fundo Nacional de Habitação,
administrado pelo Órgão Central, com os seguintes recursos:
II) no caso do item 2 deste artigo, de 3% sobre o valor da transferência de lotes até 300m2 e mais 1% sobre
cada 100m2 ou fração que exceder;
III) no caso do item 3 deste artigo, na seguinte proporção sobre o valor da transferência, de acordo com a área
total construída:
1% para os imóveis de 100 a 150m2;
2% para os imóveis de 150 a 200m2;
3% para os imóveis de 200 a 300m2;
5% para os imóveis de mais de 300m2.
IV) no caso do item 4 deste artigo, de 3% anualmente sobre o valor real do imóvel, de acordo com a avaliação
do município onde estiver localizado, quando no perímetro urbano, e 1% anualmente, quando fora desse
perímetro.
Os loteamentos que apresentem serviços e equipamentos na ocasião do registro terão as reduções seguintes do
imposto de habitação previsto neste item:
a) água: 20%
b) esgoto: 20%
c) rede de energia elétrica: 20%
d) equipamento das vias de acesso: 20%
e) transporte coletivo: 20%
Terá isenção do imposto de habitação previsto nos itens 2 e 4 deste artigo, o proprietário de um único lote de
terreno até 500m2 de área e que não possua outro imóvel.
b) arrecadação do selo de habitação a ser aposto nos contratos e recibos de locação, substituindo o selo comum
federal;
c) arrecadação proveniente do tributo cobrado na conformidade dos artigos 92 a 95 do Decreto 51.900, de 10-
4-63;
d) arrecadação proveniente de operações imobiliárias realizadas por pessoas jurídicas;
e) renda líqüida da Loteria Federal;
f) dotações orçamentárias, nunca inferiores a 5% da receita bruta da União, cobrindo inclusive as despesas com
desapropriação;
g) rendas de bens e serviços eventuais;
h) contribuições de entidades oficiais ou particulares, nacionais ou estrangeiras, recebidas exclusivamente pelo
Órgão Central para sua aplicação de acordo com os planos nacionais, territorial e de habitação.
6) Com o Órgão Executor Financeiro devem passar à jurisdição do Órgão Central, as Caixas Econômicas
Federais, que funcionarão como Banco nacional de habitação, obedecendo às seguintes normas:
a) as disponibilidades das CEF somente poderão ser aplicadas nas finalidades do Órgão Central;
b) as agências e serviços das CEF serão aproveitados como órgãos regionais e locais do Órgão Central.
7) As verbas do Orçamento da União, destinadas ao Fundo Nacional de Habitação, deverão ser globais e
automaticamente registradas no Tribunal de Contas. As despesas com o pessoal administrativo do Órgão
Central não deverão ultrapassar de 10% (dez por cento) das dotações orçamentárias.
8) As verbas do Fundo Nacional de Habitação deverão ser aplicadas estritamente em conformidade com os
critérios de atendimento que forem estabelecidos para fins de elaboração dos planos nacionais, territorial e
de habitação.
1) Ficarão sujeitos à desapropriação por interesse social os bens considerados necessários à habitação, ao
equipamento dos centros urbanos e ao aproveitamento do território;
2) Poderá o Órgão Central promover a desapropriação do imóvel por interesse social, tomando como valor da
oferta inicial o declarado para fins tributários, eliminados os conflitos que possam existir em conseqüência
da futura Lei de Reforma Agrária;
3) Não havendo valor declarado pelo proprietário, o valor da oferta será fixado, na zona rural, por avaliação
conjunta do Órgão Central, SUPRA e município; e, na zona urbana, pelo Órgão Central e pelo município;
4) Os bens desapropriados pelo Órgão Central dentro dos seus objetivos poderão ser transferidos a particulares,
obedecidas as condições específicas nos planos nacionais, territorial e de habitação.
1) Na elaboração dos planos nacionais, territorial e de habitação, o Órgão Central levará em conta critério de
atendimento às áreas e populações a serem beneficiadas, os quais deverão possibilitar a fixação objetiva de
um escalão de prioridade;
2) Em relação à distribuição geográfica dos atendimentos, os planos nacionais, territorial e de habitação
deverão levar em conta, entre outros fatores:
a) a densidade e o ritmo de crescimento da população;
b) a intensidade da urbanização;
c) a densidade relativa em sub-habitação;
d) a disponibilidade de recursos e fatores produtivos ociosos;
e) a ocorrência de esforços locais ou regionais para o desenvolvimento econômico-social, quando se
enquadrem na política nacional de desenvolvimento;
f) a existência de planos de habitação, locais ou regionais.
3) No pertinente às camadas da população a serem atendidas, os planos nacionais, territorial e de habitação
devem considerar, primordialmente:
a) a incapacidade econômica para construção ou aquisição de moradia, nas condições vigentes do
mercado imobiliário;
b) a possibilidade de retribuição econômica pela moradia proporcionada através do Plano Nacional de
Habitação.
4) (...).
5) O Órgão Central fixará anualmente a lista dos municípios que deverão preparar, dentro do prazo
estabelecido, seus respectivos planos, de acordo com os planos regionais e atendendo ao objetivo de
atenuação das disparidades regionais do desenvolvimento do país.
6) O Órgão Central poderá financiar e dar assistência técnica aos municípios para elaboração de seus planos, e
aos órgãos regionais de planejamento.
7) Quaisquer planos elaborados pelos municípios deverão ser executados segundo as normas gerais do Órgão
Central, sob pena de suspensão dos pagamentos mencionados nos itens 4 e 6 anteriores.
1) O Órgão Central elaborará o Plano Nacional Territorial, no qual serão fixadas as diretrizes gerais do
Planejamento Territorial e distribuição demográfica, a interligação de diversos planos regionais, sua
vinculação aos planejamentos de caráter econômico e aos grandes empreendimentos de interesse nacional,
de forma a obter-se o desenvolvimento físico-territorial integrado e orgânico das diversas regiões do país.
2) O Plano Nacional Territorial dará especial atenção à distribuição demográfica, aos aspectos sociais
provenientes do desenvolvimento econômico, aos problemas de habitação, circulação e transporte, trabalho,
recreação, cultura, saúde, educação, produção e abastecimento, reservas para expansão urbana e de áreas
florestais, proteção de mananciais e regiões de valor turístico, aplicando os princípios de planejamento
territorial consagrados pelos congressos internacionais de arquitetura.
3) O Órgão Central, uma vez elaborado o Plano Territorial, fixará normas gerais que deverão obedecer ao
planejamento em todos os níveis.
1) O Plano Nacional de Habitação destina-se a corrigir o déficit de moradias e suprir a crescente demanda de
habitações, serviços e equipamentos urbanos.
2) Para elaboração desse plano, o Órgão Central terá livre acesso a todas as fontes de informações das diversas
repartições federais, estaduais, municipais, autárquicas e paraestatais, relativas ao seu campo de atuação.
3) Os imóveis adquiridos, construídos ou financiados para os fins do Plano Nacional de Habitação, não
poderão ser usados a título gratuito, nem doados a particulares.
4) A alienação ou a locação desses imóveis obedecerá a normas e critérios previamente estabelecidos, não
sendo permitido ao adquirente sua transferência pelo prazo de 10 (dez) anos, a contar da aquisição.
5) Os referidos imóveis só poderão ser alienados ou locados a pessoas que se enquadrem nos critérios de
atendimento do Plano Nacional de Habitação.
6) Os núcleos habitacionais enquadrados no Plano Nacional de Habitação deverão prever as instalações
necessárias aos serviços e equipamentos urbanos.
7) Quando as construções referidas no item anterior se destinarem à venda ou ao aluguel a pessoas com
suficiente capacidade econômica, será cobrado no valor da venda ou locação um acréscimo sobre o preço
fixado pelo Órgão Central.
8) Nenhuma construção para os fins do Plano Nacional de Habitação será realizada sem que as obras de
urbanização correspondentes estejam de acordo com o planejamento dos municípios onde for executada.
170
9) A alienação dos imóveis enquadrados no Plano Nacional de Habitação poderá ser feita com reserva de
propriedade do solo, caso em que o financiamento cobrirá apenas o valor da edificação. Os registros
imobiliários transcreverão o edifício em nome do adquirente, com as averbações cabíveis.
10) O Plano Nacional de Habitação deverá desde logo adotar medidas de emergência destinadas a melhorar as
condições de habitabilidade de agrupamentos de sub-habitações, tais como favelas, mocambos, malocas e
semelhantes.
11) As medidas de emergência serão consideradas uma etapa intermediária entre o estado atual dos
agrupamentos de sub-habitações e os objetivos do Plano Nacional de Habitação.
12) O Plano Nacional de Habitação deverá considerar o aproveitamento social das áreas recuperadas das sub-
habitações, para execução por seus proprietários, ou diretamente, mediante desapropriação.
1) Será assegurado ao locatário do imóvel à venda, preferência na compra, em igualdade de condições, pelo
prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da data da notificação, através do Cartório de Registro de Títulos, desde
que o imóvel e o locatário se enquadrem nos objetivos do Plano Nacional de Habitação, devendo a
notificação conter o preço e as condições de pagamento.
2) Será assegurado ao locatário o direito de adjudicação compulsória do imóvel vendido sem observância do
disposto no item anterior, satisfeitas as condições constantes da escritura.
4a Proposta:
Que o Poder Executivo envie mensagem ao Congresso Nacional propondo modificações na Lei do Imposto de
Renda, de modo a permitir isenção de tributação para as economias aplicadas na aquisição da casa própria
(terreno e edificação), por parte das pessoas cuja renda real não seja suficiente para a obtenção do primeiro
imóvel, dentro das leis que atualmente regulam o mercado imobiliário.
5ª Proposta:
Que a política de investimentos estatais na melhoria dos conjuntos de sub-habitação obedeça a normas no sentido
de:
a) organizar as comunidades, disciplinando e orientando tecnicamente as construções, com o aproveitamento
também dos próprios recursos dos grupos sociais;
b) coordenar as obras de responsabilidade do poder público;
c) tornar produtiva toda a mão-de-obra ociosa local, mediante seu aproveitamento em oficinas de artesanato e
pequenas indústrias locais.
6ª Proposta:
Que, para o estabelecimento de um Programa Habitacional, seja adotada metodologia tendo em conta o
dimensionamento qualitativo e quantitativo da atual escassez, num processo que se baseia na projeção do número
de “unidades familiares”, sendo cabível circunscrever a projeção da demanda futura com base nas prioridades
estabelecidas pela política habitacional.
7ª Proposta:
8ª Proposta:
171
Que os órgãos da Previdência Social, as Caixas Econômicas e outros da esfera governamental que realizam
programas habitacionais, mediante execução direta ou financiamento, procurem aplicar, desde já, os princípios e
normas estabelecidos neste seminário.
Nesse sentido, o seminário dirige-se de forma particular ao IPASE, cuja direção, ao co-patrocinar esta reunião,
demonstrou plena consciência de suas responsabilidades neste setor.
9ª Proposta:
Que o Congresso Nacional altere a legislação em vigor, de modo a que, nas áreas de grande concentração urbana,
constituídas territorialmente por municípios distintos, sejam criados órgãos de administração, que consorciem as
municipalidades, para a solução de seus problemas comuns, tendo em vista, particularmente, as questões de
organização do território e as habitacionais.
172
ANEXO 2
O Presidente da República, no uso das atribuições que lhe confere o artigo 81 da Constituição Federal:
Considerando o agravamento dos problemas urbanísticos, habitacionais, sanitários e dos serviços públicos em
geral, principalmente nos grandes aglomerados urbanos do País;
Considerando a urgência no encaminhamento e na solução de tais problemas;
Considerando, para tal fim, a necessidade de unificar as atividades dos órgãos públicos destinados ao
equacionamento e à execução de tarefa de alto significado social;
Considerando a necessidade de providências urgentes de ordenamento e incentivo às atividades privadas ligadas
a esse setor;
Considerando que tal providência tem de ser precedida de pesquisas, estudos e análises sobre os diversos
aspectos dessas questões, para que se possa traçar uma correta política urbana, suas diretrizes e prioridades,
DECRETA:
Art. 1º Fica instituído, junto à Presidência da República, o Conselho de Política Urbana (COPURB), sediado em
Brasília, com o objetivo de estudar os problemas urbanos do País e elaborar as diretrizes de uma política de
desenvolvimento urbano equilibrado, harmônico e estético, sincronizado com a expansão econômica e social do
País.
VII – sugerir medidas para o ordenamento do crédito para fins imobiliários no País;
VIII – coordenar-se com outros órgãos e entidades regionais, estaduais e municipais cujas atividades interessem
ao planejamento físico nacional;
IX – elaborar as diretrizes gerais do Planejamento Físico Nacional, assim como as diretrizes regionais daí
decorrentes, as quais devem ser fornecidas aos órgãos estaduais e municipais de planejamento físico;
X – proceder à elaboração do “Planejamento Físico” do Distrito Federal e providenciar os
meios necessários à paulatina eliminação do déficit habitacional, visando à definitiva
transferência de todos os órgãos e entidades públicas federais;
XI – fixar as necessidades dos equipamentos urbanos do País, estabelecendo todas as iniciativas que devem ser
tomadas neste terreno;
XII – servir como órgão consultivo aos governos estaduais e municipais em matéria de planejamento físico dos
aglomerados urbanos e áreas de influência;
XIII – orientar o Governo Federal com relação à distribuição de auxílios técnicos e financeiros aos Estados e
Municípios para a realização do planejamento físico de seus aglomerados urbanos e dos serviços infra-estruturais
urbanos, estabelecendo prioridades para os serviços e obras que dependem do auxílio federal;
XIV – cuidar do aperfeiçoamento das técnicas do planejamento físico e promover cursos de formação de
planejadores físicos e de outros profissionais do planejamento;
XV – fomentar o desenvolvimento da mentalidade de planejamento nos setores governamentais e privados;
XVI – estabelecer padrões mínimos a serem atingidos pelos aglomerados urbanos do País no seu
desenvolvimento físico, social, econômico e cultural.
Art. 3º O COPURB poderá realizar, também, planos de ajuda mútua para fixação de população trabalhadora de
baixas rendas na base de financiamento a longo prazo para aquisição do terreno e dos materiais e equipamentos
essenciais à moradia higiênica e em conformidade com um planejamento físico integral.
Art. 4º Fica o COPURB com a incumbência de solicitar às Prefeituras das Capitais dos Estados da Federação o
levantamento de suas necessidades em serviços e obras básicas e a elaboração de um Plano Bienal de Obras e
Investimentos, definindo metas físicas, quantitativos financeiros e prioridades.
§ único. Para a execução do Plano Bienal de Obras e Investimentos, o COPURB, juntamente com outros órgãos
públicos federais, deverá realizar convênios com as Prefeituras Municipais das Capitais.
Art. 5º Nenhuma verba federal, orçamentária ou não, destinada a atividades previstas no presente decreto poderá
ser liberada sem que os planos de aplicação apresentados pelas entidades públicas e privadas beneficiárias sejam
aprovados pelo COPURB.
Art. 6º Nenhum empréstimo será concedido por estabelecimento oficial de crédito a companhias privadas
construtoras ou financiadoras de empreendimentos imobiliários cujos projetos não tenham sido aprovados pelo
COPURB.
Art. 7º Nenhum redesconto de títulos da rede bancária privada será procedido por estabelecimento oficial de
crédito, correspondentes a operações de companhias privadas construtoras ou financiadoras de empreendimentos
imobiliários cujos projetos não tenham sido aprovados pelo COPURB.
Art. 8º Todo o empréstimo estrangeiro que se destine a financiamentos de planos habitacionais ou urbanísticos
no País só poderá efetivar-se após parecer do COPURB.
Art. 12. Dentro das diretrizes gerais da política do desenvolvimento urbano do País e em articulação com o
DASP, a Secretaria Executiva proporá medidas, inclusive de natureza legislativa, objetivando:
I – a extinção de órgãos que perderem razão de ser, pela mudança de condições;
II – a transformação ou adaptação de órgãos que perderem funções, devam assumir ou assumam funções novas;
III – a criação de órgãos para o exercício de funções novas ou melhor exercício de funções atuais;
IV – as medidas necessárias à eliminação de duplicidade, concorrência ou oposição de funções.
Art. 13. Ao COPURB deverá ser prestada decisiva cooperação pelos Ministérios, autarquias, sociedades de
economia mista e outros órgãos de serviço público federal, inclusive sob a forma de trabalhos técnicos.
Art. 14. Dentro de 30 (trinta) dias, a Secretaria Executiva, ouvido o Conselho Consultivo, submeterá ao
Presidente da República, para a necessária aprovação, o Regimento Interno do COPURB, dispondo sobre as
normas de funcionamento de seus órgãos e grupos de trabalho.
Art. 15. Este decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
175
176
ANEXO 3
CAPÍTULO I
Dos Objetivos e Diretrizes do Desenvolvimento Urbano
Art. 1º O desenvolvimento urbano tem por objetivo a melhoria da qualidade de vida nas cidades, mediante:
I – adequada distribuição espacial da população e das atividades econômicas com vistas à estruturação do
sistema nacional de cidades;
II – integração e complementaridade das atividades urbanas e rurais;
III – disponibilidade de equipamentos urbanos e comunitários.
CAPÍTULO II
Da urbanização
Art. 5º O Município poderá condicionar a licença para construir à existência ou à programação de equipamentos
urbanos e comunitários necessários.
Parágrafo único. A licença poderá ser outorgada, em condições especiais, se o interessado se responsabilizar pela
implantação dos referidos equipamentos.
Art. 6º Lei municipal definirá o tipo de uso, a taxa de ocupação e o índice de aproveitamento do terreno.
§ 1º A lei prevista neste artigo deverá atender às diretrizes fixadas em plano de uso do solo, aprovado pelo
Município.
§ 2º Enquanto o Município não aprovar a lei prevista neste artigo, o índice de aproveitamento máximo será de
uma vez a área do terreno.
Art. 7º A construção será averbada no Registro de Imóveis, mediante documento de aprovação da Prefeitura
Municipal no qual conste a taxa de ocupação do terreno e o respectivo índice de aproveitamento ou área total de
construção, previsto na lei municipal, e efetivamente utilizados.
§ 1º Fica vedado o desmembramento do terreno desde que a parte a ser desmembrada esteja vincula a construção
existente.
§ 2º A parte do terreno não vinculada a construção existente pode ser desmembrada, desde que, por si só, ou
reunida a outra de terreno contíguo, venha a constituir lote autônomo, de acordo com a legislação urbanística
municipal.
Art. 8º Lei municipal definirá o prazo de validade da licença para construir e os requisitos que caracterizam o
início, reinício e conclusão da obra.
178
Parágrafo único. Caso não iniciada a obra no prazo de validade da licença, sua renovação sujeitar-se-á aos termos
da legislação em vigor.
Art. 9º São nulas de pleno direito as licenças e autorizações expedidas em desconformidade com esta Lei e a
legislação pertinente, sujeitando-se as obras a embargo e demolição, mediante processo administrativo ou
judicial.
Art. 10. Lei municipal poderá autorizar o proprietário de terreno, considerado pelo Poder Público como de
interesse do patrimônio histórico, artístico, arqueológico e paisagístico, a exercer em outro local, ou alienar,
mediante escritura pública, o direito de construir previsto na legislação de uso do solo do Município e ainda não
utilizado.
Parágrafo único. A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que doar ao Poder Público seu imóvel,
ou parte dele, para fins de implantação de equipamentos urbanos e comunitários.
Art. 11. A lei municipal referida no artigo anterior estabelecerá os locais e as condições em que será possível a
transferência dos direitos de construir.
§ 1º A Prefeitura fornecerá certidão na qual constará o montante das áreas construíveis que poderá ser transferido
a outro imóvel, por inteiro ou fracionadamente.
§ 2º A certidão referida no parágrafo anterior bem como a escritura de transferência dos direitos de construir do
imóvel para outro serão averbadas nas respectivas matrículas.
CAPÍTULO III
Da Promoção do Desenvolvimento Urbano
Art. 13. A promoção do desenvolvimento urbano compete, precipuamente, ao Poder Público, mediante ação
integrada da União, dos Estados e dos Municípios, observado o disposto nesta Lei.
c) transportes e trânsito;
d) saneamento;
e) habitação;
f) localização das atividades produtivas, em especial as indústrias;
g) proteção ao meio ambiente;
h) patrimônio histórico, artístico, arqueológico e paisagístico;
III – estabelecer Regiões Metropolitanas, na forma da Constituição Federal;
IV – definir critérios para o estabelecimento de aglomerações urbanas;
V – estabelecer e disciplinar as aglomerações urbanas localizadas em mais de uma unidade da Federação,
ouvidos os Estados e Municípios interessados;
VI – estabelecer as áreas de interesse especial previstas no artigo 12, itens III a V, que sejam de relevância para a
execução da política nacional de desenvolvimento urbano, ouvidos os Municípios interessados.
§ 1º A política nacional de desenvolvimento urbano, bem como suas estratégias e programas, integrarão os planos
nacionais de desenvolvimento.
§ 2º Na execução da política nacional de desenvolvimento urbano, bem como de seus programas e projetos, serão
consideradas as peculiaridades regionais e locais.
CAPÍTULO IV
Do Regime Urbanístico
SEÇÃO I
Dos Instrumentos do Desenvolvimento Urbano
f) direito de superfície;
g) parcelamento, edificação ou utilização compulsórios;
h) direito de preempção;
IV – a regularização fundiária;
V – outros instrumentos previstos em lei.
Parágrafo único. A desapropriação, a servidão administrativa, a limitação administrativa, o tombamento de bens
e o direito real de concessão de uso regem-se pela legislação que lhes é própria.
SEÇÃO II
Do Planejamento Urbano
Art. 18. Os planos municipais de desenvolvimento urbano serão aprovados por lei e deverão atender às diretrizes
federais e estaduais.
§ 1º Quando se tratar de Municípios integrantes de Região Metropolitana ou aglomeração urbana, os respectivos
planos de desenvolvimento urbano deverão ser compatibilizados com o planejamento metropolitano ou da
aglomeração urbana.
§ 2º Para a elaboração de planos de uso de solo ou o estabelecimento de área de interesse especial, o Município
poderá suspender a concessão de licença ou autorização para urbanização, até 3 (três) meses, por decreto, e até 1
(um) ano, mediante lei.
Art. 19. Os órgãos e entidades federais, estaduais e municipais com atuação nas Regiões Metropolitanas deverão
compatibilizar sua atuação com os planos, diretrizes e prioridades do planejamento metropolitano.
Parágrafo único. No exercício do planejamento, a autoridade metropolitana ouvirá os órgãos e entidades federais,
estaduais e municipais com atuação na respectiva Região Metropolitana.
Art. 20. Os órgãos e entidades federais e estaduais com atuação nos Municípios que disponham de planos de
desenvolvimento urbano deverão compatibilizar sua atuação às diretrizes e prioridades neles estabelecidas, para
a localização e execução de seus projetos e atividades.
SEÇÃO III
Do Direito de Superfície
Art. 21. O proprietário urbano pode conceder a outrem o direito de construir em seu terreno, por tempo
determinado ou indeterminado, mediante escritura pública devidamente inscrita no Registro de Imóveis.
Art. 22. A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa; se onerosa, estipularão as partes a
forma de pagamento.
Art. 23. O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel.
Art. 24. A superfície pode transferir-se a terceiro e, por morte do superficiário, se transmite a seus herdeiros.
Parágrafo único. Não poderá ser estipulado, a nenhum título, o pagamento de qualquer quantia pela transferência
da superfície.
Art. 25. Em caso de alienação do imóvel ou da superfície, o superficiário ou o proprietário tem direito de
preferência, em igualdade de condições.
Art. 26. Antes do advento do termo, resolver-se-á a superfície se o superficiário der ao terreno destinação
diversa daquela para a qual lhe foi concedida.
Art. 27. Extinta a superfície, o proprietário passará a ter o domínio pleno sobre o terreno, construção e
benfeitorias, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário.
Art. 28. O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por esta lei, no
que não for diversamente disciplinado em lei especial.
SEÇÃO IV
Do Parcelamento, da Edificação ou Utilização Compulsórios
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Art. 29. Lei municipal, baseada em plano de uso do solo, para assegurar o aproveitamento de equipamento
urbano existente, poderá determinar o parcelamento, a edificação ou utilização compulsórios de terreno vago,
fixando as áreas, condições e prazos para sua execução.
§ 1º O prazo para início do parcelamento, da edificação ou da utilização não poderá ser inferior a 2 (dois) anos, a
contar da notificação ao proprietário.
§ 2º O proprietário será notificado pela Prefeitura para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser
averbada no Registro de Imóveis.
Art. 30. A alienação do imóvel, posterior à data da notificação, não interrompe o prazo fixado para o
parcelamento, a edificação ou a utilização.
SEÇÃO V
Do Direito de Preempção
Art. 32. O direito de preempção confere ao Município preferência para aquisição de terreno urbano objeto de
alienação onerosa entre particulares.
Parágrafo único. Lei municipal, baseada em plano de uso do solo, delimitará as áreas em que incidirá o direito de
preempção e fixará o prazo de vigência, que não será superior a 10 (dez) anos.
Art. 33. O direito de preempção será exercido para atender às seguintes finalidades:
I – realização de programas habitacionais;
II – criação de áreas públicas de lazer;
III – implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
IV – constituição de reserva fundiária;
V – ordenação e direcionamento da expansão urbana;
VI – constituição de áreas de preservação ecológica ou paisagística;
VII – outras finalidades de interesse social ou utilidade pública.
Art. 34. O proprietário deverá notificar sua intenção de alienar o terreno, mencionando o preço desejado para
que o Município manifeste sua opção de compra, no prazo de 30 (trinta) dias. Transcorrido esse prazo, sem
manifestação, entende-se estar o Município desinteressado da aquisição, podendo o proprietário realizar
livremente a alienação.
§ 1º Caso o Município discorde do preço constante da notificação, e não entre em composição amigável com o
alienante, poderá requerer o arbitramento judicial na forma da lei civil.
§ 2º Realizado o arbitramento judicial, a parte que não concordar com o preço poderá desistir do negócio,
responsabilizando-se o Município pelo pagamento das custas.
§ 3º Se a desistência for do proprietário, este somente poderá realizar a alienação de acordo com o preço
arbitrado judicialmente, monetariamente corrigido, no prazo de um ano.
Art. 35. No arbitramento do preço não será considerada a valorização decorrente de investimentos públicos na
área, após a data de publicação da lei a que se refere o parágrafo único do art. 32.
Art. 36. A alienação efetuada em desacordo com os preceitos deste capítulo é nula de pleno direito.
CAPÍTULO V
Da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano
Art. 37. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU é o órgão de decisão superior para propor,
implementar e acompanhar a execução da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano.
Art. 38. Para os fins do que dispõe o art. 37, compete ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano –
CNDU:
I – propor diretrizes, estratégias, prioridades e instrumentos da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano;
II – propor programas anuais e plurianuais de investimentos urbanos e a programação do apoio financeiro oficial
ao desenvolvimento urbano, bem como de outros recursos destinados ao mesmo fim, a serem despendidos
diretamente pela União ou transferidos aos Estados, Distrito Federal e Municípios, especialmente os relativos à
habitação, saneamento, áreas industriais, transportes urbanos e administração metropolitana e municipal;
182
III – articular e compatibilizar as ações concernentes ao desenvolvimento urbano exercidas por órgãos ou
entidades integrantes da administração Federal, Estadual e Municipal, direta ou indireta, bem como das
fundações instituídas pelos poderes públicos;
IV – propor a legislação básica e complementar e expedir normas e diretrizes relativas ao desenvolvimento
urbano.
Art. 39. Ao Ministério do Interior cabe promover o cumprimento das diretrizes, estratégias, prioridades e
programas da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano.
CAPÍTULO VI
Disposições Gerais
Art. 40. Fica incluída, entre os serviços comuns de interesse metropolitano, nos termos do art. 5º, item VII, da
Lei Complementar n° 14, de 8 de junho de 1973, a habitação.
Art. 41. Considera-se aglomeração urbana o conjunto formado pela contigüidade das áreas urbanas de dois ou
mais Municípios que demandem tratamento integrado de sua urbanização.
Art. 43. Para os fins desta Lei, equipara-se ao proprietário o compromissário comprador com título irretratável e
registrado no Registro de Imóveis.
Art. 44. Aplicam-se, no que couber, ao Distrito Federal e aos Territórios, as disposições desta Lei referentes aos
Estados e Municípios.
Art. 45. O Município poderá manter a delimitação de área urbana feita em lei municipal anterior à publicação
desta Lei, mesmo em desconformidade com o disposto no artigo 4º, caso em que não poderá ser expandida até
que se enquadre na exigência do referido artigo.
Art. 46. Na elaboração de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, o Poder Público facultará a
participação da comunidade.
Art. 47. A associação comunitária, regularmente constituída, será considerada parte legítima para propor ação
visando ao cumprimento dos preceitos desta Lei e das normas estaduais e municipais pertinentes.
Art. 48. O vizinho é parte legítima para propor ação destinada a impedir a ocupação ou o uso de imóvel em
desacordo com as normas urbanísticas.
Art. 49. O Ministério Público é parte legítima para propor ação visando ao cumprimento dos preceitos desta Lei
e das demais normas urbanísticas pertinentes.
§ 1º Quando a ação prevista neste artigo tiver por objeto a impugnação de um ato e da sua execução puder
resultar a ineficácia da medida, será determinada a suspensão liminar do ato.
§ 2º Qualquer pessoa poderá representar ao Ministério Público para promover a ação referida neste artigo.
Art. 50. Não será permitida a urbanização que impeça o livre e franco acesso público às praias e ao mar.
Art. 51. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.
183
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ANEXO 4
1. Inclui, onde couber, no Capítulo I (Dos Direitos Individuais) do Título II (Dos Direitos e
Liberdades Fundamentais), os seguintes dispositivos:
“Art. _ Todo cidadão tem direito a condições de vida urbana digna e justiça social, obrigando-se o Estado a
assegurar:
I - Acesso à moradia, transporte público, saneamento, energia elétrica, iluminação pública,
comunicações, educação, saúde, lazer e segurança, assim como preservação do patrimônio ambiental e cultural.
II - A gestão democrática da cidade.
Art. _ O direito a condições de vida urbana digna condiciona o exercício do direito de propriedade ao interesse
social no uso dos imóveis
urbanos e o subordina ao princípio do estado de necessidade.
Parágrafo único. É assegurado o amplo acesso da população às informações sobre planos de uso e
ocupação do solo e transporte e na gestão dos serviços públicos.
Art. _ A desapropriação da casa própria somente poderá ser feita em caso de evidente utilidade
pública, reconhecida em juízo, e mediante plena, integral e prévia indenização em
dinheiro, de cujo depósito dependerá também a imissão provisória na posse do bem.
Art. _ O poder público, respeitado o disposto no art. 5o, pode desapropriar imóveis urbanos para fins de
interesse social, mediante o pagamento de indenização, em títulos da dívida pública resgatável em 20 anos. Essa
indenização será fixada até o montante cadastral do imóvel para fins tributários, descontada a valorização
decorrente de investimentos públicos.
Art. _ A desapropriação dos imóveis necessários à regularização fundiária de áreas ocupadas por comunidades
consolidadas será feita considerando o valor histórico de aquisição do imóvel através de ação judicial, sujeita ao
procedimento ordinário, e cuja sentença, depois do trânsito em julgado, valerá como título para fins de registro
imobiliário.
Art. _ No cálculo da indenização pelo valor histórico não serão considerados os negócios que, envolvendo os
imóveis desapropriados sejam realizados subseqüentemente à data das primeiras
ocupações da área.
Art. _ A valorização de imóveis urbanos que não decorra de investimentos realizados no próprio imóvel, mas
que seja proveniente de investimentos do poder público ou de terceiros poderá ser apropriada por via tributária
ou outros meios.
185
Art. _ É assegurada a iniciativa popular de leis no âmbito municipal, relativas à vida urbana,
mediante proposta articulada e justificada de cidadãos eleitores em número equivalente a 0,5% do colégio
eleitoral.
Art. _ O descumprimento dos preceitos estabelecidos neste capítulo sujeitará a administração pública à ação
própria, e implicará a responsabilidade penal e civil da autoridade a quem se possa imputar a omissão.”
2. Insere, onde couber, no Título VIII (Da Ordem Econômica e Financeira), os seguintes dispositivos:
“Art. _ O Poder Público assegurará a prevalência dos direitos urbanos, através da utilização dos seguintes
instrumentos:
I - Imposto progressivo sobre imóveis;
Art. _ O direito de propriedade territorial urbana não pressupõe o direito de construir, que deverá ser autorizado
pelo poder público
municipal.
Art. _ Cabe ao poder público municipal exigir que o proprietário do solo urbano ocioso ou
subutilizado promova seu adequado aproveitamento sob pena de submeter-se à tributação progressiva
em relação ao tempo e à extensão da propriedade, sujeitar-se à desapropriação por interesse social ou ao
parcelamento e edificação compulsórios.
Art. _ À União, aos Estados e aos Municípios, visando ao interesse social, cabem obrigatoriamente
adotar as medidas administrativas necessárias à identificação e recuperação de terras públicas e à
discriminação das terras devolutas, sendo garantida a participação das representações sindicais e associativas.
Art. _ No exercício dos direitos urbanos consagrados no primeiro artigo, todo cidadão que,
não sendo proprietário urbano, detiver a posse não contestada, por três anos, de terras públicas
ou privadas, cuja metragem será definida pelo
Poder Municipal até o limite de 300m2, utilizando-a para sua moradia e de sua família, adquirir-lhe-á o domínio,
independente de justo título e boa fé.
§ 1o. O direito de usucapião urbano não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 2o. Os terrenos contínuos ocupados por dois ou mais possuidores são suscetíveis de serem usucapidos
coletivamente através de entidade comunitária e obedecerá a procedimento sumaríssimo.
§ 3o. Ao ser proposta ação de usucapião urbano, ficarão suspensas e proibidas quaisquer ações
reivindicatórias ou possessórias sobre o imóvel usucapido.
Art. _ Para assegurar a todos os cidadãos o direito à moradia, fica o poder público obrigado a formular políticas
habitacionais que permitam:
186
Art. _ Compete ao poder público garantir a destinação de recursos orçamentários a fundo perdido
para a implantação de habitação de interesse social.
Parágrafo único. É proibida a aplicação de recursos públicos ou sob administração pública para financiar
investimentos privados assim como a intermediação financeira na obtenção e transferência de recursos destinados
a programa de habitação de interesse social.
Art. _ Lei Federal disporá sobre a criação e a manutenção de agência que coordenará as políticas gerais de
habitação.
§ 1o As políticas e projetos habitacionais serão implementadas pelo Município de forma
descentralizada, cabendo o controle direto da aplicação dos recursos à população, através de suas entidades
representativas.
§ 2o Nas aplicações para compra ou construção de habitação popular não haverá qualquer incidência de
encargos financeiros.
§ 3o Os contratos de compra, venda, cessão e aluguel de imóveis urbanos terão seu
pagamento e forma de reajuste fixados em moeda corrente, sendo vedado o uso de qualquer moeda fiscal ou
cambial.
§ 4o As prestações mensais referentes a empréstimos para a compra ou construção de habitação própria não
poderão comprometer mais de 20% dos rendimentos familiares.
Art. _ Os índices de reajuste do aluguel residencial e do pagamento das prestações e os débitos de financiamento
dos imóveis serão atualizados com periodicidade mínima de 12 (doze)
meses, tendo como limite máximo o índice de variação salarial.
Art. _ A prestação dos serviços públicos é monopólio do poder público e será realizada através da administração
direta e indireta.
Parágrafo único. Lei ordinária regulamentará o disposto neste artigo, ficando desde já vedado
todo e qualquer uso de recursos públicos para subsidiar serviços públicos operados pela iniciativa privada.
Art. _ As tarifas dos serviços de transportes coletivos urbanos serão fixadas de modo que a despesa dos
usuários não ultrapasse 6% do salário mínimo mensal.
§ 1o Lei ordinária disporá sobre a criação de um fundo de transportes, administrado pelos
municípios e Estado, para cobertura da diferença entre o custo do transporte e o valor da tarifa paga pelo
usuário.
§ 2o No reajuste de tarifas de serviços públicos será observada a autorização legislativa
e garantida a ampla divulgação dos elementos inerentes ao cálculo tarifário.
ANEXO 5
TÍTULO I
Princípios e Objetivos
CAPÍTULO I
Definições
189
Art. 1º A política de desenvolvimento urbano de que trata o artigo 182 da Constituição Federal será orientada
pelas diretrizes e demais dispositivos constantes desta lei de Política Urbana.
Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta lei será denominada Estatuto da Cidade.
Art. 2º Entende-se por Política Urbana o conjunto de princípios e ações que tenham como objetivo assegurar a
todos o direito à cidade e a interação desta com o ambiente rural.
Art. 3º Entende-se como garantia do direito à cidade o conjunto de medidas que promovam a melhoria da
qualidade de vida, mediante a adequada ordenação do espaço urbano e a fruição dos bens, serviços e
equipamentos comunitários por todos os habitantes da cidade.
Art. 4º Entende-se por urbanismo o conjunto de ações promotoras e corretoras da organização do espaço urbano
de modo a permitir sua adequada fruição pelo homem, preservando-o do processo de espoliação urbana.
Art. 5º Entende-se por direito urbanístico o conjunto de preceitos que disciplinam ou limitam o uso da
propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos.
CAPÍTULO II
Função Social da Propriedade
Art. 7º A propriedade imobiliária urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais do
Plano Diretor, em especial:
I – democratização das oportunidades de acesso à propriedade urbana e à moradia;
II – justa distribuição dos benefícios e ônus do processo de urbanização;
III – ajustamento da valorização da propriedade urbana às exigências sociais;
IV – correção das distorções de valorização do solo urbano;
V – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda;
VI – adequação do direito de construir às normas urbanísticas, aos interesses sociais e aos
padrões mínimos de construção estabelecidos nesta lei.
Art. 8º Configuram abuso de direito e da função social da propriedade:
I – retenção especulativa de solo urbano não construído ou qualquer outra forma de deixá-lo subutilizado ou não
utilizado;
II – recusa de oferecer à locação, sob qualquer pretexto, imóveis residenciais não necessários à habitação do
proprietário ou seus dependentes, salvo nos casos excepcionados no Plano Diretor;
III – manobras especulativas, diretamente ou por intermédio de terceiros, que visem à extorsão de preços de
venda ou locação;
IV – construção ou reconversão que impliquem a venda ou locação de habitações para população de baixa renda
com padrões inferiores aos estabelecidos no art. 41, XIV, desta Lei.
V – posse ou domínio de área urbana excedente ao máximo fixado em módulos pelo Plano Diretor.
Art. 9º O desrespeito à função social da propriedade, conforme definido no artigo anterior, será punido pelo
Poder Público Municipal mediante a aplicação sucessiva dos instrumentos enunciados nos arts. 20 a 22 desta lei.
TÍTULO II
Da Política Urbana
CAPÍTULO I
Diretrizes Gerais
Art. 10. A Política Urbana deverá ser orientada pelas seguintes diretrizes gerais:
I – gestão democrática e incentivo à participação popular na formulação e execução de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano, como forma reconhecida do exercício da cidadania;
190
CAPÍTULO II
Políticas Setoriais
Art. 11. A Política Urbana no âmbito municipal constitui sistema integrado de políticas setoriais que
disciplinam:
I – a ordenação do território;
II – o controle do uso do solo;
III – a participação comunitária e a contribuição social;
IV – o desfavelamento.
Art. 12. A política de ordenação do território engloba o conjunto de ações públicas e privadas sobre:
I – os aspectos funcionais, morfológicos, construtivos, sanitários e ambientais da cidade;
II – a integração cidade/campo;
III – o zoneamento;
IV – a oferta de equipamentos urbanos e comunitários, inclusive os de habitação, saneamento e transportes;
V – a correção das distorções do crescimento urbano;
VI – a escolha de eixos naturais de expansão urbana;
VII – a densidade das áreas urbanas.
Art. 14. A política de participação comunitária e de contribuição social tem por objetivo assegurar aos
moradores da cidade o controle sobre a gerência dos espaços urbanos e a justa repartição dos custos e benefícios
do processo de urbanização.
CAPÍTULO III
Instrumentos da Política de Desenvolvimento Urbano
Art. 16. Para assegurar o direito à cidade e sua gestão democrática, bem como corrigir distorções no consumo de
bens comunais, o Poder Público utilizará os seguintes instrumentos:
I – fiscais:
a) Imposto Predial e Territorial Urbano, progressivo e regressivo;
b) taxas e tarifas diferenciadas;
c) incentivos e benefícios fiscais;
II – financeiros e econômicos:
a) fundos especiais;
b) tarifas diversificadas de serviços públicos;
c) co-responsabilização dos agentes econômicos;
III – jurídicos:
a) edificação compulsória;
b) obrigação de parcelamento ou remembramento;
c) desapropriação;
d) servidão administrativa;
e) limitação administrativa;
f) tombamento;
g) direito real de concessão de uso;
h) direito de preempção;
i) direito de superfície;
j) usucapião especial.
IV – administrativos:
a) reserva de áreas para utilização pública;
b) regularização fundiária;
c) licença para construir, apoiada em código de obras e edificações;
d) autorização para parcelamento, desmembramento ou remembramento do solo para fins urbanos, em
observância ao Plano Diretor;
V – políticos:
a) planejamento urbano, que deverá conter o Plano Diretor;
b) participação popular.
VI – outros instrumentos previstos em lei.
§ 1º A desapropriação será regida pela legislação própria, observados os preceitos desta Lei.
§ 2º A servidão administrativa, a limitação administrativa, o tombamento e o direito real da concessão de uso
regem-se pela legislação que lhes é própria.
Art. 17. O imposto predial e territorial urbano será progressivo e regressivo e não terá caráter expropriatório,
mas guardará proporcionalidade capaz de produzir o efeito de conversão social do direito de propriedade urbana.
Art. 18. Os tributos sobre imóveis urbanos poderão ter alíquotas menores em beneficio dos proprietários de
habitações em áreas de expansão urbana, de trabalhadores de baixa renda ou de proprietários de única moradia
com padrões mínimos de construção.
Art. 19. O município promoverá a recuperação dos investimentos públicos, diretamente dos proprietários de
imóveis urbanos, mediante contribuição de melhoria e outras cobranças que o Plano Diretor determinar.
192
Art. 20. Mediante lei, baseada no Plano Diretor, o Poder Público poderá determinar o parcelamento, a edificação
ou utilização compulsória do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as
condições e prazos para a sua execução.
§ 1º O prazo para parcelamento, edificação ou utilização não poderá ser superior a dois anos a partir da
notificação, salvo para obras de grande porte, sendo de um ano, em todos os casos, o prazo para início das obras.
§ 2º O proprietário será notificado pela Prefeitura para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser
averbada no Registro de Imóveis.
Art. 21. A alienação do imóvel, posterior à data da notificação, transfere ao adquirente ou promissário
comprador as obrigações de parcelamento, edificação ou utilização previstas no art. 20.
Art. 22.O não cumprimento da obrigação de parcelar, edificar ou utilizar possibilitará ao município a aplicação
do imposto territorial urbano progressivo, cujo termo inicial será a data da notificação referida no § 2º do art. 20,
pelo prazo máximo de cinco anos.
Art. 23. Decorridos cinco anos de cobrança do imposto territorial progressivo sem que o proprietário tenha
cumprido as obrigações previstas no art. 20, o município determinará sua desapropriação, com pagamento em
títulos públicos de valor real.
§ 1º Os títulos da divida pública terão prévia aprovação pelo Senado Federal e serão resgatados no prazo de dez
anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, e não terão poder liberatório para pagamento de tributos e tarifas
públicas;
§ 2º O valor real da indenização será sempre reconhecido pelo proprietário como base de cálculo do IPTU ou
ITR, conforme o caso.
Art. 24. O direito de preempção confere ao Poder Público Municipal preferência para aquisição de terreno
urbano objeto de alienação onerosa entre particulares.
Parágrafo único. Lei municipal, baseada no Plano Diretor, delimitará as áreas em que incidirá o direito de
preempção e fixará o prazo de vigência, que não será superior a dez anos.
Art. 25. O direito de preempção será exercido sempre que o Poder Público necessitar de áreas para:
I – execução de programas habitacionais;
II – criação de espaços públicos de lazer;
III – implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
IV – constituição de reserva fundiária;
V – ordenação e direcionamento da expansão urbana;
VI – criação de áreas de preservação ambiental ou paisagística;
VII – outras finalidades de interesse social ou de utilidade pública, definidas no Plano Diretor.
Art. 26. O proprietário deverá notificar sua intenção de alienar o terreno, indicando o preço desejado, para que o
município, no prazo de trinta dias, manifeste seu interesse em comprá-lo. Transcorrido esse prazo sem
manifestação, fica o proprietário tacitamente autorizado a realizar a alienação.
§ 1º Se o município discordar do preço constante da notificação, poderá requerer o arbitramento judicial, na
forma da lei civil;
§ 2º No arbitramento do preço será descontada a valorização decorrente de investimentos públicos na área, após
a data de publicação da lei a que se refere o parágrafo único do art. 24.
Art. 27. O proprietário urbano pode conceder a outro o direito de construir em seu terreno, por tempo
determinado ou indeterminado, mediante escritura pública devidamente inscrita no Registro de Imóveis.
Art. 29. O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre o imóvel, proporcionais à
ocupação.
Art. 30. A superfície só pode ser transmitida a herdeiros, gratuitamente, por morte do superficiário.
Art. 32. Extingue-se a superfície, antes de seu prazo final, se o superficiário der ao imóvel destinação diversa da
pactuada.
193
Parágrafo único. Extinta a superfície, o proprietário passará a ter o domínio pleno sobre o imóvel, realizadas as
compensações que a lei prevê.
Art. 33. A usucapião especial de que trata o art. 183 da Constituição Federal não incidirá nas áreas de domínio
público, nas de preservação ambiental e naquelas em que o Plano Diretor assim determinar.
Art. 34. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por populações de
baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, podem ser usucapidas
coletivamente, desde que os posseiros não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
Art. 35. A formação de estoque de terrenos edificáveis, de que trata o art. 16, inciso IV, letra a, far-se-á
mediante:
I – reserva de áreas, na forma do art. 41, inciso XVI;
II – preempção e desapropriações, inclusive a especial, previstas no art. 23;
III – doações em favor do Município, compras e outras formas admitidas em lei.
Art. 36. O Poder Executivo municipal instituirá estrutura administrativa para o sistema de planejamento urbano
local, com nível hierárquico capaz de assegurar a elaboração, implementação, fiscalização e avaliação do Plano
Diretor e a institucionalização do planejamento urbano como processo permanente.
§ 1º Compete ao sistema de planejamento urbano local, assegurada a participação das entidades legitimamente
representativas da população, definir e avaliar permanentemente as necessidades das comunidades locais em
relação aos equipamentos urbanos e comunitários.
§ 2º O Poder Executivo municipal manterá permanentemente disponíveis, a qualquer cidadão, todas as
informações pertinentes ao sistema de planejamento urbano local.
Art. 37. Durante o período de elaboração de programas de uso do solo ou de criação de área especial, o
Município poderá suspender a concessão de licença ou autorização, até três meses por decreto e até um ano
mediante lei.
CAPÍTULO IV
Plano Diretor
Art. 38. As cidades com mais de vinte mil habitantes terão obrigatoriamente Plano Diretor, instrumento básico
de aplicação local das diretrizes gerais da Política Urbana.
Art. 39. O Plano Diretor utilizará os instrumentos estatuídos nesta Lei para regular os processos de produção,
reprodução e uso do espaço urbano.
Art. 40. O processo de elaboração do Plano Diretor contemplará as seguintes etapas sucessivas:
I – definição dos problemas prioritários do desenvolvimento urbano local e dos objetivos e diretrizes para o seu
tratamento;
II – definição dos programas, normas e projetos a serem elaborados e implementados.
Parágrafo único. Aplica-se, para cada uma das etapas, o disposto no art. 48.
Art. 41. O Plano Diretor terá, devidamente adaptadas às peculiaridades locais, as seguintes diretrizes essenciais:
I – discriminar e delimitar as áreas urbanas e rurais;
II – definir as áreas urbanas e de expansão urbana, com vistas à localização da população e de suas atividades
num período subseqüente de dez anos;
III – vedar o parcelamento, para fins urbanos, nas áreas rurais;
IV – exigir que os projetos de conversão de áreas rurais em urbanas, na forma do Estatuto da Terra, sejam
previamente submetidos ao governo municipal e analisados à luz do Plano Diretor;
V – designar as unidades de conservação ambiental e outras áreas protegidas por lei, discriminando as de
preservação permanente, situadas na orla dos cursos d’água ou dos lagos, nas nascentes permanentes ou
temporárias, nas encostas, nas bordas de tabuleiros ou chapadas, e ainda nas áreas de drenagem das captações
utilizadas ou reservadas para fins de abastecimento de água potável e estabelecendo suas condições de utilização;
VI – exigir, para a aprovação de quaisquer projetos de mudança de uso do solo, alteração de índices de
aproveitamento, parcelamentos, remembramentos ou desmembramentos, prévia avaliação dos órgãos
competentes do Poder Público;
VII – exigir, para o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, a elaboração de estudo de
impacto ambiental e do respectivo relatório de impacto ambiental (Rima), bem como sua aprovação pelos órgãos
competentes do Poder Público, observada a legislação especifica;
194
VIII – regular a licença para construir, condicionando-a, no caso de grandes empreendimentos habitacionais,
industriais ou comerciais, à existência ou à programação de equipamentos urbanos e comunitários necessários ou,
ainda, ao compromisso de sua implantação pelos empresários interessados, no prazo máximo de dois anos;
IX – estabelecer a compensação ao proprietário de imóvel considerado pelo Poder Público como de interesse do
patrimônio natural, histórico, arqueológico, artístico ou paisagístico;
X – fixar os critérios para a efetivação de operações urbanas com vistas à permuta, pelo Poder Público com os
agentes privados, de usos ou índices de aproveitamento pela realização de obras públicas e execução de
equipamentos urbanos e comunitários,
XI – definir os critérios para autorização de parcelamento, desmembramento ou remembramento do solo para
fins urbanos;
XII – definir os critérios para autorização de implantação de equipamentos urbanos e comunitários e definir sua
forma de gestão;
XIII – definir tipo de uso, percentual de ocupação e índice de aproveitamento dos terrenos nas diversas áreas;
XIV –vedar a construção de moradias cujas áreas úteis não permitam o desenvolvimento condigno das atividades
familiares e que não sejam dotadas do equipamento sanitário mínimo para uma família de um casal e dois filhos,
bem como não sejam ligadas à rede de energia elétrica;
XV – estabelecer a qualificação dos agentes produtivos, encarregados das obras e, no caso de imóveis para
venda, os parâmetros de remuneração dos fatores, de modo a permitir:
a) fixação do prazo de cada obra, para obter a maior economicidade;
b) observância dos cronogramas da construção e de seus objetivos;
c) justo preço.
XVI – fixar limites mínimos e máximos para a reserva, pelo Poder Público, de áreas destinadas à ordenação do
território, à implantação dos equipamentos urbanos e comunitários, de acesso à moradia e nos projetos de
incorporação de novas áreas à estrutura urbana, imitindo-se o município em sua posse imediata;
XVII – vedar a construção de novas moradias em:
a) áreas de saturação urbana;
b) áreas de risco sanitário ou ambiental;
c) áreas reservadas para fins especiais;
d) áreas históricas ou naturais em deterioração ou impróprias para tal uso;
XVIII – implantar a unificação das bases cadastrais do município, de acordo com as normas estatísticas federais,
de modo a obter um referencial para fixação de tributos e ordenação do território.
Parágrafo único. Enquanto não for aprovado o Plano Diretor, o índice de aproveitamento máximo para
construção será de uma vez a área do terreno.
b) as prioridades para o desenvolvimento de rede de serviços públicos urbanos, observada a relação entre oferta
de serviço e local de moradia;
c) o sistema de operações e cobertura dos custos de habitação e transporte, na forma desta Lei;
d) a indicação dos agentes operadores dos equipamentos urbanos e comunitários e dos órgãos de gerenciamento.
§ 4º Os instrumentos de ação do Poder Público são os mencionados nesta Lei, acrescidos de outros que se
adaptem à realidade local; as sanções são igualmente previstas nesta lei, em outros diplomas legais que digam
respeito às atividades urbanas, além das disposições dos Códigos Civil e Penal.
§ 5º O Código de Obras e Edificações conterá;
a) as normas técnicas de construção individual ou coletiva, em condomínio horizontal ou vertical;
b) as exigências de natureza urbanística, espacial, ambiental e sanitária;
c) a destinação do imóvel a ser edificado e sua correlação com o uso previsto;
d) as condições para a concessão e os prazos de validade da licença para construir, os requisitos que caracterizam
o início, reinício e conclusão da obra e as condições para renovação da licença.
Art. 42. Para um melhor ordenamento da ocupação do território, o município poderá estabelecer, no Plano
Diretor, áreas especiais de:
I – urbanização preferencial;
II – renovação urbana;
III – urbanização restrita;
IV – regularização fundiária.
Art. 44. São áreas de renovação urbana as que se destinam à melhoria de condições urbanas deterioradas ou à
sua adequação às funções previstas no Plano Diretor.
Art. 45. São áreas de urbanização restrita as que apresentam uma, ou mais, das seguintes características:
I – vulnerabilidade a intempéries, calamidades e outras condições adversas, como deslocamentos geológicos e
movimentos aquáticos;
II – necessidade de preservação do patrimônio cultural, histórico, artístico, arqueológico e paisagístico;
III – necessidade de proteção aos mananciais, às praias e regiões lacustres e às margens de rios;
IV – necessidade de defesa do ambiente natural;
V – conveniência de conter os níveis de ocupação da área;
VI – implantação e operação de equipamentos de grande porte.
Art. 46. São áreas de regularização fundiária as habitadas por população de baixa renda e que devam, no
interesse social, ser objeto de ações visando à legalização da ocupação do solo e à regulamentação específica das
atividades urbanísticas, bem como da implantação prioritária de equipamentos urbanos e comunitários.
§ 1º Áreas públicas ocupadas há mais de dois anos por moradores não-proprietários de terreno ou habitação na
área do município, serão a eles transferidas para construção de moradia, respeitadas as exigências ambientais e
outras do Plano Diretor, inclusive com cláusula de inalienabilidade.
§ 2o O Poder Público agilizará os processos de transmissão legal dos atuais imóveis ocupados irregularmente,
pertencentes a proprietários privados.
§ 3º Será dada preferência, em qualquer caso, à regularização por meio de projetos integrados de vivência
urbana.
Art. 47. O Plano Diretor e os planos municipais de desenvolvimento serão elaborados pelo Poder Executivo do
Município e submetidos à apreciação da Câmara dos Vereadores, que os aprovará pelo voto de 2/3 de seus
membros, só podendo modificá-los com o mesmo quorum.
Art. 48. Na elaboração do Plano Diretor e dos programas e projetos dele decorrentes, o Poder Público
assegurará, mediante, inclusive, audiência pública, a ampla participação da população, por meio de associações
comunitárias, entidades profissionais, diretórios de partidos políticos, sindicatos e outras representações locais.
Art. 49. Será assegurada a participação popular, também, na discussão de projetos de impacto urbano e
ambiental e nos conselhos que se instituírem para fiscalizar a atuação das entidades municipais gestoras de
serviços públicos e equipamentos urbanos e comunitários.
196
Art. 50. Até a aprovação do Plano Diretor dependerão de leis a serem aprovadas pelo voto de 2/3 dos membros
da Câmara de Vereadores:
I – alterações de uso de solo nas áreas já parceladas;
II – criação de novas áreas de expansão urbana;
III – incorporação de novas áreas urbanas;
IV – projetos que, por sua dimensão e natureza, acarretem alterações significativas no espaço urbano.
Parágrafo único. Os municípios terão prazo de dois anos, a partir da promulgação desta Lei, para aprovar o
respectivo Plano Diretor.
Art. 51. O Prefeito Municipal responderá, pessoalmente, pelas distorções na aplicação do Plano Diretor, na
forma das leis penal e civil, inclusive por crime de responsabilidade.
Art. 52. Cabe ação de reclamação de direito, no exercício da cidadania, a qualquer munícipe ou suas
organizações de base, que se sentirem prejudicados por procedimentos que considerem danosos aos interesses
sócio-comunitários.
CAPÍTULO V
Equipamentos Urbanos e Comunitários
Art. 53. Constituem equipamentos urbanos e comunitários, para os efeitos desta Lei, os bens e meios destinados
a habitação, saneamento, transporte urbano, circulação, educação, saúde, consumo coletivo, segurança e lazer.
Art. 54. A União criará uma agência social de habitação, para gerenciar a política habitacional, com as
atribuições específicas de:
I – administrar contribuições públicas e privadas, de qualquer natureza, para os programas habitacionais;
II – definir prioridades de alocação de recursos bem como normas para sua aplicação em programas regionais e
locais de construção de moradia e outros equipamentos urbanos;
III – realizar estudos e oferecer aporte técnico aos programas habitacionais, quanto a materiais de construção e
outros insumos e economias de produção, necessários a tornar mais acessíveis os bens urbanos;
IV – eleger, designar e articular os agentes operadores do sistema habitacional, assegurando prioridade, nesta
ordem, a:
a) instituições estaduais ou municipais de habitação, bem como fundações;
b) cooperativas habitacionais e associações de moradores;
c) outras formas coletivas de construção;
d) empresas privadas, sob forma de administração de serviço;
V – gerenciar o Programa Nacional de Habitação Popular.
Parágrafo único. A agência social de habitação fixará contribuição compulsória com base nos lucros das
empresas, relativa a seus empregados, não proprietários de imóvel, podendo aplicá-los, quando necessário, a
fundo perdido, no Programa Nacional de Habitação Popular.
Art. 55. O município organizará e explorará o serviço de transporte urbano, conforme estabelece o art. 30, V, da
Constituição Federal, devendo para tanto:
I – instituir gerenciamento do sistema;
II – contratar, se conveniente, empresas operadoras, mediante remuneração baseada na quilometragem rodada;
III – instituir mecanismos que assegurem a reposição periódica da frota;
IV – assegurar gestão democrática do sistema, mediante participação comunitária no planejamento e no controle;
V – exigir participação das empresas na cobertura dos custos de manutenção do sistema;
VI – isentar empresas que mantenham serviço próprio de transporte coletivo que atenda às necessidades de
deslocamentos de seus trabalhadores;
VII – promover a integração dos diferentes meios de transporte, definindo as prioridades, a seleção de vias e as
economias de operação.
CAPÍTULO VI
Regiões Metropolitanas e Aglomerações Urbanas
Art. 56. Os Estados, mediante lei complementar à respectiva Constituição, instituirão regiões metropolitanas e
aglomerações urbanas, no âmbito de seu território, com vistas à realização do planejamento integrado, disciplina
do uso do solo e execução de funções públicas de interesse comum.
197
Art. 57. As regiões metropolitanas serão constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, um dos quais
será designado como Município Metropolitano e coordenará as ações administrativas, o planejamento conjunto e
a canalização dos recursos para os programas de interesse comum.
Art. 58. A região metropolitana será dirigida pelo Prefeito do Município Metropolitano, apoiado em decisões de
um Conselho Deliberativo, composto por delegados eleitos pelos municípios componentes.
Parágrafo único. As decisões do Conselho Deliberativo terão força dispositiva às unidades agregadas, no âmbito
de ação das organizações supramunicipais.
Art. 59. Os municípios membros das regiões metropolitanas ratearão, entre si, os custos de manutenção de seus
escritórios, na base de orçamento trimestral, apresentado pelo Prefeito e aprovado pelo Conselho Deliberativo.
Art. 60. A lei estadual de que trata o art. 54 acima incluirá, entre as funções das regiões metropolitanas, as
seguintes:
I – organização e estrutura de operação do agrupamento;
II – planejamento das atividades de interesse comum, tais como:
a) construção e operação de usinas elétricas;
b) abastecimento d’água e tratamento de detritos;
c) estradas vicinais e ligações ao sistema viário de maior porte;
d) transporte de pessoal e de cargas, de interesse intra-regional;
e) equipamentos comunitários de uso intermunicipal;
f) lazer e outras criações culturais;
III – planejamento conjunto do destino de bens comuns aos municípios limítrofes, como:
a) rios e outros cursos d’água;
b) recursos naturais renováveis;
c) sistema escolar e de saúde que extravase as fronteiras de um município;
d) outras dotações físicas, econômicas e culturais que sirvam a mais de uma comunidade urbana;
IV – gestão administrativa e financeira do conglomerado, esquema participativo das unidades e compromisso
irretratável de ação conjunta;
V – sistema de alocação de recursos coletivos e de prestação de contas.
Art. 61. A adesão do município à região metropolitana será autorizada pela Câmara de Vereadores de cada
unidade e implica:
I – compromisso de execução de sua parcela no planejamento conjunto e observância das prioridades aprovadas
por maioria do Conselho;
II – cooperação na escolha de prioridades, considerado o interesse público comum como prevalente sobre o
local;
III – contribuição para cobertura dos gastos comuns com o planejamento e assistência técnica.
Parágrafo único. A adesão do município é irretratável, pelo prazo do consórcio, e só pode ser revogada pelo voto
da Câmara Municipal, observado o mesmo quorum que autorizou a participação.
Art. 62. Aplicam-se às aglomerações urbanas, no que couber, os dispositivos sobre regiões metropolitanas.
Art. 63. Haverá obrigatória e significativa participação popular nos organismos gestores das regiões
metropolitanas e aglomerações urbanas, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno
exercício da cidadania.
TÍTULO III
Disposições Gerais
CAPÍTULO I
Do Conselho Nacional de Política Urbana
Art. 64. Fica o Poder Executivo autorizado a transformar o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano em
novo organismo, denominado Conselho Nacional de Política Urbana, com o objetivo de propor diretrizes de
política urbana e gerir o sistema nacional de cidades.
Art. 65. Para os fins de que trata o art. 64 desta Lei, o CNPU deverá:
I – manter estudos permanentes sobre o processo de urbanização, inclusive migrações internas;
II – acompanhar e avaliar a execução dos programas setoriais da agência social de habitação e, no que couber,
dos programas de saneamento, transporte urbano e meio ambiente;
198
Art. 66. Os recursos atualmente destinados ao CNDU passarão a integrar as dotações do CNPU.
Art. 67. É assegurada a participação popular no CNPU, por meio de delegados eleitos pelas associações
nacionais de representação de moradores e de entidades profissionais e de trabalhadores vinculadas à área, além
de representantes do empresariado urbano e do poder público, obedecidos aos seguintes critérios:
I – um terço dos membros constituirá a representação popular:
II – um terço dos membros representará o empresariado urbano;
III – um terço dos membros representará o Poder Público.
Parágrafo único. Todos os membros terão igualdade de voz e voto, e as decisões serão tomadas por maioria
qualificada.
Art. 68. O CNPU realizará estudos econômicos e sociológicos, referentes à remuneração dos fatores envolvidos
na indústria de construção civil, de modo a determinar parâmetros de renda imobiliária e de alienação de imóveis
urbanos.
Art. 69. Caberá igualmente ao CNPU emitir diretrizes gerais que orientem a fixação dos parâmetros de valores,
para fins tributários e a formação do preço de renovação das locações, com o objetivo de contrapor-se à
especulação imobiliária e outras formas de perversão das relações sociais de habitação.
CAPÍTULO II
Disposições Finais
Art. 70. Ficam revigorados no que não contrariarem os princípios da Constituição Federal e as diretrizes desta
Lei, os dispositivos referentes ao planejamento e gestão das atividades urbanas, notadamente a Lei nº 6.766, de
19 de dezembro de 1989 e a Lei nº 6.803, de 2 de julho de 1980.
ANEXO 6
Estatuto da Cidade
(Lei n° 10.257, de 10 de julho de 2001)
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
CAPÍTULO I
Diretrizes Gerais
Art. 1º Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição
Federal, será aplicado o previsto nesta Lei.
Parágrafo único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece
normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol
200
Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
II - gestão democrática por meio da participação da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e
acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano;
III - cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no
processo de urbanização, em atendimento ao interesse social;
IV - planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e
das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a
evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio
ambiente;
V - oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados
aos interesses e necessidades da população e às características locais;
VI - ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:
a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;
c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à
infra-estrutura urbana;
d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos
geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente;
e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não
utilização;
f) a deterioração das áreas urbanizadas;
g) a poluição e a degradação ambiental;
VII - integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o
desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência;
VIII - adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana
compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e
do território sob sua área de influência;
IX - justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização;
X - adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos
públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos
geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais;
XI - recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de
imóveis urbanos;
XII - proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do
patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico;
XIII - audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de
implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o
meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população;
XIV - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda
mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e
edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais;
201
CAPÍTULO II
Dos Instrumentos da Política Urbana
Seção I
Dos instrumentos em geral
Art. 4º Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:
I - planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento
econômico e social;
II - planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões;
III - planejamento municipal, em especial:
a) plano diretor;
b) disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;
c) zoneamento ambiental;
d) plano plurianual;
e) diretrizes orçamentárias e orçamento anual;
f) gestão orçamentária participativa;
g) planos, programas e projetos setoriais;
h) planos de desenvolvimento econômico e social;
IV - institutos tributários e financeiros:
a) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU;
b) contribuição de melhoria;
c) incentivos e benefícios fiscais e financeiros;
V - institutos jurídicos e políticos:
a) desapropriação;
b) servidão administrativa;
c) limitações administrativas;
d) tombamento de imóveis ou de mobiliário urbano;
e) instituição de unidades de conservação;
f) instituição de zonas especiais de interesse social;
g) concessão de direito real de uso;
202
§ 1º Os instrumentos mencionados neste artigo regem-se pela legislação que lhes é própria,
observado o disposto nesta Lei.
§ 2º Nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos por
órgãos ou entidades da Administração Pública com atuação específica nessa área, a concessão
de direito real de uso de imóveis públicos poderá ser contratada coletivamente.
§ 3º Os instrumentos previstos neste artigo que demandam dispêndio de recursos por parte do
Poder Público municipal devem ser objeto de controle social, garantida a participação de
comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil.
Seção II
Do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios
Art. 5º Lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar o
parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo urbano não edificado,
subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para implementação da
referida obrigação.
1° Considera-se subutilizado o imóvel:
I - cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação
dele decorrente;
II - (VETADO)
§ 2º O proprietário será notificado pelo Poder Executivo municipal para o cumprimento da
obrigação, devendo a notificação ser averbada no cartório de registro de imóveis.
§ 3º A notificação far-se-á:
I - por funcionário do órgão competente do Poder Público municipal, ao proprietário do
imóvel ou, no caso de este ser pessoa jurídica, a quem tenha poderes de gerência geral ou
administração;
II - por edital quando frustrada, por três vezes, a tentativa de notificação na forma prevista
pelo inciso I.
§ 4º Os prazos a que se refere o caput não poderão ser inferiores a:
I - um ano, a partir da notificação, para que seja protocolado o projeto no órgão municipal
competente;
II - dois anos, a partir da aprovação do projeto, para iniciar as obras do empreendimento.
§ 5º Em empreendimentos de grande porte, em caráter excepcional, a lei municipal específica
a que se refere o caput poderá prever a conclusão em etapas, assegurando-se que o projeto
aprovado compreenda o empreendimento como um todo.
203
Art. 6º A transmissão do imóvel, por ato inter vivos ou causa mortis, posterior à data da
notificação, transfere as obrigações de parcelamento, edificação ou utilização previstas no art.
5º desta Lei, sem interrupção de quaisquer prazos.
Seção III
Do IPTU progressivo no tempo
Art. 7º Em caso de descumprimento das condições e dos prazos previstos na forma do caput
do art. 5º desta Lei, ou não sendo cumpridas as etapas previstas no § 5º do art. 5º desta Lei, o
Município procederá à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana
(IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos
consecutivos.
§ 1º O valor da alíquota a ser aplicado a cada ano será fixado na lei específica a que se refere o
caput do art. 5º desta Lei e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior,
respeitada a alíquota máxima de quinze por cento.
§ 2º Caso a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar não esteja atendida em cinco anos, o
Município manterá a cobrança pela alíquota máxima, até que se cumpra a referida obrigação,
garantida a prerrogativa prevista no art. 8º.
§ 3º É vedada a concessão de isenções ou de anistia relativas à tributação progressiva de que
trata este artigo.
Seção IV
Da desapropriação com pagamento em títulos
Art. 8º Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha
cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder
à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública.
§ 1º Os títulos da dívida pública terão prévia aprovação pelo Senado Federal e serão
resgatados no prazo de até dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, assegurados o
valor real da indenização e os juros legais de seis por cento ao ano.
§ 2º O valor real da indenização:
I - refletirá o valor da base de cálculo do IPTU, descontado o montante incorporado em função
de obras realizadas pelo Poder Público na área onde o mesmo se localiza após a notificação de
que trata o § 2º do art. 5º desta Lei;
II - não computará expectativas de ganhos, lucros cessantes e juros compensatórios.
§ 3º Os títulos de que trata este artigo não terão poder liberatório para pagamento de tributos.
§ 4º O Município procederá ao adequado aproveitamento do imóvel no prazo máximo de
cinco anos, contado a partir da sua incorporação ao patrimônio público.
§ 5º O aproveitamento do imóvel poderá ser efetivado diretamente pelo Poder Público ou por
meio de alienação ou concessão a terceiros, observando-se, nesses casos, o devido
procedimento licitatório.
§ 6º Ficam mantidas para o adquirente de imóvel nos termos do § 5° as mesmas obrigações de
parcelamento, edificação ou utilização previstas no art. 5° desta Lei.
Seção V
Da usucapião especial de imóvel urbano
Art. 9º Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta
metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua
moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro
imóvel urbano ou rural.
204
Art. 11. Na pendência da ação de usucapião especial urbana, ficarão sobrestadas quaisquer
outras ações, petitórias ou possessórias, que venham a ser propostas relativamente ao imóvel
usucapiendo.
Art. 12. São partes legítimas para a propositura da ação de usucapião especial urbana:
I - o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente;
II - os possuidores, em estado de composse;
III - como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente
constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos
representados.
§ 1º Na ação de usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público.
§ 2º O autor terá os benefícios da justiça e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante
o cartório de registro de imóveis.
Art. 13. A usucapião especial de imóvel urbano poderá ser invocada como matéria de defesa,
valendo a sentença que a reconhecer como título para registro no cartório de registro de
imóveis.
Art. 14. Na ação judicial de usucapião especial de imóvel urbano, o rito processual a ser
observado é o sumário.
Seção VI
Da concessão de uso especial para fins de moradia
Seção VII
Do direito de superfície
Art. 21. O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu
terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no
cartório de registro de imóveis.
§ 1º O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo
relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação
urbanística.
§ 2º A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa.
§ 3° O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que incidirem sobre a
propriedade superficiária, arcando, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação
efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do direito de superfície,
salvo disposição em contrário do contrato respectivo.
§ 4º O direito de superfície pode ser transferido a terceiros, obedecidos os termos do contrato
respectivo.
§ 5º Por morte do superficiário, os seus direitos transmitem-se a seus herdeiros.
Art. 24. Extinto o direito de superfície, o proprietário recuperará o pleno domínio do terreno,
bem como das acessões e benfeitorias introduzidas no imóvel, independentemente de
indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário no respectivo contrato.
§ 1º Antes do termo final do contrato, extinguir-se-á o direito de superfície se o superficiário
der ao terreno destinação diversa daquela para a qual for concedida.
§ 2º A extinção do direito de superfície será averbada no cartório de registro de imóveis.
Seção VIII
Do direito de preempção
Art. 25. O direito de preempção confere ao Poder Público municipal preferência para
aquisição de imóvel urbano objeto de alienação onerosa entre particulares.
§ 1º Lei municipal, baseada no plano diretor, delimitará as áreas em que incidirá o direito de
preempção e fixará prazo de vigência, não superior a cinco anos, renovável a partir de um ano
após o decurso do prazo inicial de vigência.
§ 2º O direito de preempção fica assegurado durante o prazo de vigência fixado na forma do §
1º, independentemente do número de alienações referentes ao mesmo imóvel.
206
Art. 26. O direito de preempção será exercido sempre que o Poder Público necessitar de áreas
para:
I - regularização fundiária;
II - execução de programas e projetos habitacionais de interesse social;
III - constituição de reserva fundiária;
IV - ordenamento e direcionamento da expansão urbana;
V - implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
VI - criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes;
VII - criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental;
VIII - proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico;
IX - (VETADO)
Parágrafo único. A lei municipal prevista no § 1º do art. 25 desta Lei deverá enquadrar cada
área em que incidirá o direito de preempção em uma ou mais das finalidades enumeradas por
este artigo.
Art. 27. O proprietário deverá notificar sua intenção de alienar o imóvel, para que o
Município, no prazo máximo de trinta dias, manifeste por escrito seu interesse em comprá-lo.
§ 1º À notificação mencionada no caput será anexada proposta de compra assinada por
terceiro interessado na aquisição do imóvel, da qual constarão preço, condições de pagamento
e prazo de validade.
§ 2º O Município fará publicar, em órgão oficial e em pelo menos um jornal local ou regional
de grande circulação, edital de aviso da notificação recebida nos termos do caput e da
intenção de aquisição do imóvel nas condições da proposta apresentada.
§ 3º Transcorrido o prazo mencionado no caput sem manifestação, fica o proprietário
autorizado a realizar a alienação para terceiros, nas condições da proposta apresentada.
§ 4º Concretizada a venda a terceiro, o proprietário fica obrigado a apresentar ao Município,
no prazo de trinta dias, cópia do instrumento público de alienação do imóvel.
§ 5º A alienação processada em condições diversas da proposta apresentada é nula de pleno
direito.
§ 6º Ocorrida a hipótese prevista no § 5º o Município poderá adquirir o imóvel pelo valor da
base de cálculo do IPTU ou pelo valor indicado na proposta apresentada, se este for inferior
àquele.
Seção IX
Da outorga onerosa do direito de construir
Art. 28. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido
acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada
pelo beneficiário.
§ 1º Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área edificável
e a área do terreno.
§ 2º O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para toda a zona
urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana.
§ 3º O plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de
aproveitamento, considerando a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e o
aumento de densidade esperado em cada área.
Art. 29. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais poderá ser permitida alteração de uso do
solo, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário.
Art. 30. Lei municipal específica estabelecerá as condições a serem observadas para a outorga
onerosa do direito de construir e de alteração de uso, determinando:
207
Art. 31. Os recursos auferidos com a adoção da outorga onerosa do direito de construir e de
alteração de uso serão aplicados com as finalidades previstas nos incisos I a IX do art. 26
desta Lei.
Seção X
Das operações urbanas consorciadas
Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para
aplicação de operações consorciadas.
§ 1º Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas
coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores,
usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área
transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental.
§ 2º Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre outras medidas:
I - a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e
subsolo, bem como alterações das normas edilícias, considerado o impacto ambiental delas
decorrente;
II - a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a
legislação vigente.
Art. 33. Da lei específica que aprovar a operação urbana consorciada constará o plano de
operação urbana consorciada, contendo, no mínimo:
I - definição da área a ser atingida;
II - programa básico de ocupação da área;
III - programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela
operação;
IV - finalidades da operação;
V - estudo prévio de impacto de vizinhança;
VI - contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores
privados em função da utilização dos benefícios previstos nos incisos I e II do § 2° do art. 32
desta Lei;
VII - forma de controle da operação, obrigatoriamente compartilhado com representação da
sociedade civil.
§ 1º Os recursos obtidos pelo Poder Público municipal na forma do inciso VI deste artigo
serão aplicados exclusivamente na própria operação urbana consorciada.
§ 2º A partir da aprovação da lei específica de que trata o caput, são nulas as licenças e
autorizações a cargo do Poder Público municipal expedidas em desacordo com o plano de
operação urbana consorciada.
Art. 34. A lei específica que aprovar a operação urbana consorciada poderá prever a emissão
pelo Município de quantidade determinada de certificados de potencial adicional de
construção, que serão alienados em leilão ou utilizados diretamente no pagamento das obras
necessárias à própria operação.
§ 1º Os certificados de potencial adicional de construção serão livremente negociados, mas
conversíveis em direito de construir unicamente na área objeto da operação.
§ 2º Apresentado pedido de licença para construir, o certificado de potencial adicional será
utilizado no pagamento da área de construção que supere os padrões estabelecidos pela
208
legislação de uso e ocupação do solo, até o limite fixado pela lei específica que aprovar a
operação urbana consorciada.
Seção XI
Da transferência do direito de construir
Art. 35. Lei municipal, baseada no plano diretor, poderá autorizar o proprietário de imóvel
urbano, privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública, o
direito de construir previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decorrente,
quando o referido imóvel for considerado necessário para fins de:
I - implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
II - preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental,
paisagístico, social ou cultural;
III - servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por
população de baixa renda e habitação de interesse social.
§ 1º A mesma faculdade poderá ser concedida ao proprietário que doar ao Poder Público seu
imóvel, ou parte dele, para os fins previstos nos incisos I a III do caput.
§ 2º A lei municipal referida no caput estabelecerá as condições relativas à aplicação da
transferência do direito de construir.
Seção XII
Do estudo de impacto de vizinhança
Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e negativos do
empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da população residente na área e
suas proximidades, incluindo a análise, no mínimo, das seguintes questões:
I - adensamento populacional;
II - equipamentos urbanos e comunitários;
III - uso e ocupação do solo;
IV - valorização imobiliária;
V - geração de tráfego e demanda por transporte público;
VI - ventilação e iluminação;
VII - paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.
Parágrafo único. Dar-se-á publicidade aos documentos integrantes do EIV, que ficarão
disponíveis para consulta, no órgão competente do Poder Público municipal, por qualquer
interessado.
Art. 38. A elaboração do EIV não substitui a elaboração e a aprovação de estudo prévio de
impacto ambiental (EIA), requeridas nos termos da legislação ambiental.
CAPÍTULO III
Do Plano Diretor
209
Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento
das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao
desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta
Lei.
Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de
desenvolvimento e expansão urbana.
§ 1º O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o
plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as
prioridades nele contidas.
§ 2º O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo.
§ 3º A lei que instituir o plano diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos.
§ 4º No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os
Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão:
I - a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de
associações representativas dos vários segmentos da comunidade;
II - a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;
III - o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações produzidos.
§ 5º (VETADO)
CAPÍTULO IV
Da Gestão Democrática da Cidade
Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utilizados, entre outros, os
seguintes instrumentos:
I - órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal;
II -debates, audiências e consultas públicas;
III - conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e
municipal;
210
Art. 44. No âmbito municipal, a gestão orçamentária participativa de que trata a alínea f do
inciso III do art. 4º desta Lei incluirá a realização de debates, audiências e consultas públicas
sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento
anual, como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal.
Art. 45. Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão
obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos
vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o
pleno exercício da cidadania.
CAPÍTULO V
Disposições Gerais
Art. 46. O Poder Público municipal poderá facultar ao proprietário de área atingida pela
obrigação de que trata o caput do art. 5º desta Lei, a requerimento deste, o estabelecimento de
consórcio imobiliário como forma de viabilização financeira do aproveitamento do imóvel.
§ 1º Considera-se consórcio imobiliário a forma de viabilização de planos de urbanização ou
edificação por meio da qual o proprietário transfere ao Poder Público municipal seu imóvel e,
após a realização das obras, recebe, como pagamento, unidades imobiliárias devidamente
urbanizadas ou edificadas.
§ 2º O valor das unidades imobiliárias a serem entregues ao proprietário será correspondente
ao valor do imóvel antes da execução das obras, observado o disposto no § 2° do art. 8º desta
Lei.
Art. 47. Os tributos sobre imóveis urbanos, assim como as tarifas relativas a serviços públicos
urbanos, serão diferenciados em função do interesse social.
Art. 48. Nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidos
por órgãos ou entidades da Administração Pública com atuação específica nessa área, os
contratos de concessão de direito real de uso de imóveis públicos:
I - terão, para todos os fins de direito, caráter de escritura pública, não se aplicando o disposto
no inciso II do art. 134 do Código Civil;
II - constituirão título de aceitação obrigatória em garantia de contratos de financiamentos
habitacionais.
Art. 49. Os Estados e Municípios terão o prazo de noventa dias, a partir da entrada em vigor
desta Lei, para fixar prazos, por lei, para a expedição de diretrizes de empreendimentos
urbanísticos, aprovação de projetos de parcelamento e de edificação, realização de vistorias e
expedição de termo de verificação e conclusão de obras.
Parágrafo único. Não sendo cumprida a determinação do caput, fica estabelecido o prazo de
sessenta dias para a realização de cada um dos referidos atos administrativos, que valerá até
que os Estados e Municípios disponham em lei de forma diversa.
Art. 50. Os Municípios que estejam enquadrados na obrigação prevista nos incisos I e II do
art. 41 desta Lei, que não tenham plano diretor aprovado na data de entrada em vigor desta
Lei, deverão aprová-lo no prazo de cinco anos.
211
Art. 51. Para os efeitos desta Lei, aplicam-se ao Distrito Federal e ao Governador do Distrito
Federal as disposições relativas, respectivamente, a Município e a Prefeito.
Art. 52. Sem prejuízo da punição de outros agentes públicos envolvidos e da aplicação de
outras sanções cabíveis, o Prefeito incorre em improbidade administrativa, nos termos da Lei
n° 8.429, de 2 de junho de 1992, quando:
I - (VETADO)
II - deixar de proceder, no prazo de cinco anos, o adequado aproveitamento do imóvel
incorporado ao patrimônio público, conforme o disposto no § 4º do art. 8°desta Lei;
III - utilizar áreas obtidas por meio do direito de preempção em desacordo com o disposto no
art. 26 desta Lei;
IV - aplicar os recursos auferidos com a outorga onerosa do direito de construir e de alteração
de uso em desacordo com o previsto no art. 31 desta Lei;
V - aplicar os recursos auferidos com operações consorciadas em desacordo com o previsto no
§ 1º do art. 33 desta Lei;
VI - impedir ou deixar de garantir os requisitos contidos nos incisos I a III do § 4º do art. 40
desta Lei;
VII - deixar de tomar as providências necessárias para garantir a observância do disposto no §
3º do art. 40 e no art. 50 desta Lei;
VIII - adquirir imóvel objeto de direito de preempção, nos termos dos arts. 25 a 27 desta Lei,
pelo valor da proposta apresentada, se este for, comprovadamente, superior ao de mercado.
Art. 53. O art. 1º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, passa a vigorar acrescido de novo
inciso III, renumerando o atual inciso III e os subseqüentes:
"Art. 1º
................................................................................
III - à ordem urbanística;
.................................................." (NR)
Art. 54. O art. 4º da Lei n° 7.347, de 1985, passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 4° Poderá ser ajuizada ação cautelar para os fins desta Lei, objetivando, inclusive, evitar
o dano ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem urbanística ou aos bens e direitos de valor
artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (VETADO)." (NR)
Art. 55. O art. 167, inciso I, item 28, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterado
pela Lei n° 6.216, de 30 de junho de 1975, passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 167.
................................................................................
I-
................................................................................
.28) das sentenças declaratórias de usucapião, independente da regularidade do parcelamento
do solo ou da edificação;
.................................................." (NR)
Art. 56. O art. 167, inciso I, da Lei nº 6.015, de 1973, passa a vigorar acrescido dos seguintes
itens 37, 38 e 39:
212
"Art. 167.
................................................................................
I-
................................................................................
37) dos termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso especial
para fins de moradia, independente da regularidade do parcelamento do solo ou da edificação;
38) (VETADO)
39) da constituição do direito de superfície de imóvel urbano;" (NR)
Art. 57. O art. 167, inciso II, da Lei n° 6.015, de 1973, passa a vigorar acrescido dos seguintes
itens 18, 19 e 20:
"Art.167.
................................................................................
II -
................................................................................
18) da notificação para parcelamento, edificação ou utilização compulsórios de imóvel
urbano;
19) da extinção da concessão de uso especial para fins de moradia;
20) da extinção do direito de superfície do imóvel urbano." (NR)
Art. 58. Esta Lei entra em vigor após decorridos noventa dias de sua publicação.
213
ANEXO 7
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 62 da Constituição, adota a
seguinte Medida Provisória, com força de lei:
CAPÍTULO I
Da Concessão de Uso Especial
Art 1o. Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem
oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o
para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao
bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel
urbano ou rural.
§ 1o A concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma gratuita ao homem ou à mulher,
ou a ambos, independentemente do estado civil.
214
§ 2o O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo concessionário mais de uma vez.
§ 3o Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, na posse de seu antecessor, desde
que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.
Art 2o. Nos imóveis de que trata o art. 1o, com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, que, até 30 de
junho de 2001, estavam ocupados por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos,
ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por possuidor, a
concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma coletiva, desde que os possuidores não
sejam proprietários ou concessionários, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu
antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2o Na concessão de uso especial de que trata este artigo, será atribuída igual fração ideal de terreno a cada
possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre
os ocupantes, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 3o. A fração ideal atribuída a cada possuidor não poderá ser superior a duzentos e cinqüenta metros quadrados.
Art. 3o. Será garantida a opção de exercer os direitos de que tratam os arts. 1o e 2o também aos ocupantes,
regularmente inscritos, de imóveis públicos, com até duzentos e cinqüenta metros quadrados, da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que estejam situados em área urbana, na forma do regulamento.
Art. 4o. No caso de a ocupação acarretar risco à vida ou à saúde dos ocupantes, o Poder Público garantirá ao
possuidor o exercício do direito de que tratam os arts. 1o e 2o em outro local.
Art. 5o. É facultado ao Poder Público assegurar o exercício do direito de que tratam os arts. 1o e 2o em outro local
na hipótese de ocupação de imóvel:
I - de uso comum do povo;
II - destinado a projeto de urbanização;
III - de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais;
IV - reservado à construção de represas e obras congêneres; ou
V - situado em via de comunicação.
Art 6o. O título de concessão de uso especial para fins de moradia será obtido pela via administrativa perante o
órgão competente da Administração Pública ou, em caso de recusa ou omissão deste, pela via judicial.
§ 1o A Administração Pública terá o prazo máximo de doze meses para decidir o pedido, contado da data de seu
protocolo.
§ 2o Na hipótese de bem imóvel da União ou dos Estados, o interessado deverá instruir o requerimento de
concessão de uso especial para fins de moradia com certidão expedida pelo Poder Público municipal, que ateste a
localização do imóvel em área urbana e a sua destinação para moradia do ocupante ou de sua família.
§ 3o Em caso de ação judicial, a concessão de uso especial para fins de moradia será declarada pelo juiz,
mediante sentença.
§ 4o O título conferido por via administrativa ou por sentença judicial servirá para efeito de registro no cartório
de registro de imóveis.
Art. 7o. O direito de concessão de uso especial para fins de moradia é transferível por ato inter vivos ou causa
mortis.
Art. 8o. O direito à concessão de uso especial para fins de moradia extingue-se no caso de:
I - o concessionário dar ao imóvel destinação diversa da moradia para si ou para sua família; ou
II - o concessionário adquirir a propriedade ou a concessão de uso de outro imóvel urbano ou rural.
Parágrafo único. A extinção de que trata este artigo será averbada no cartório de registro de imóveis, por meio de
declaração do Poder Público concedente.
Art. 9o. É facultado ao Poder Público competente dar autorização de uso àquele que, até 30 de junho de 2001,
possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinqüenta metros quadrados
de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para fins comerciais.
§ 1o A autorização de uso de que trata este artigo será conferida de forma gratuita.
§ 2o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu
antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 3o Aplica-se à autorização de uso prevista no caput deste artigo, no que couber, o disposto nos arts. 4o e 5o
desta Medida Provisória.
215
CAPÍTULO II
Do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano
Art. 10 Fica criado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano - CNDU, órgão deliberativo e consultivo,
integrante da estrutura da Presidência da República, com as seguintes competências:
I - propor diretrizes, instrumentos, normas e prioridades da política nacional de desenvolvimento urbano;
II - acompanhar e avaliar a implementação da política nacional de desenvolvimento urbano, em especial as
políticas de habitação, de saneamento básico e de transportes urbanos, e recomendar as providências necessárias
ao cumprimento de seus objetivos;
III - propor a edição de normas gerais de direito urbanístico e manifestar-se sobre propostas de alteração da
legislação pertinente ao desenvolvimento urbano;
IV - emitir orientações e recomendações sobre a aplicação da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, e dos
demais atos normativos relacionados ao desenvolvimento urbano;
V - promover a cooperação entre os governos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e a
sociedade civil na formulação e execução da política nacional de desenvolvimento urbano; e
VI - elaborar o regimento interno.
Art. 11 O CNDU é composto por seu Presidente, pelo Plenário e por uma Secretaria-Executiva, cujas atribuições
serão definidas em decreto.
Parágrafo único. O CNDU poderá instituir comitês técnicos de assessoramento, na forma do regimento interno.
Art. 12 O Presidente da República disporá sobre a estrutura do CNDU, a composição do seu Plenário e a
designação dos membros e suplentes do Conselho e dos seus comitês técnicos.
Art. 14 As funções de membro do CNDU e dos comitês técnicos serão consideradas prestação de relevante
interesse público e a ausência ao trabalho delas decorrente será abonada e computada como jornada efetiva de
trabalho, para todos os efeitos legais.
CAPÍTULO III
Das Disposições Finais
Art. 15 O inciso I do art. 167 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, passa a vigorar com as seguintes
alterações:
"I –
..........................................................
28) das sentenças declaratórias de usucapião;
..........................................................
37) dos termos administrativos ou das sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia;
..........................................................
40) do contrato de concessão de direito real de uso de imóvel público." (NR)