Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Sobre as origens do pensamento e da ação urbanísticas modernas, ver BENÉVOLO, Leonardo, As origens da
urbanística moderna, Lisboa, Editorial Presença/Livraria Martins Fontes, 1981, e CHOAY, Françoise, O urbanismo, São
Paulo, Editora Perspectiva, 1979.
2
segundo, código de uso, ocupação e parcelamento do solo para fins urbanos, o que não tem sido
feito, por diversos interesses em jogo, como veremos.
Essa vertente do urbanismo, que não punha em causa as raízes dos males existentes nas
cidades, teve uma aceitação crescente, embora combatida, como ocorre ainda hoje, por aqueles
que vêem nesses regulamentos administrativos um cerceamento do direito ao uso irrestrito da
propriedade imobiliária urbana.
Essa aceitação geral derivava, de um lado, e principalmente, do perigo do ressurgimento
cíclico de surtos epidêmicos, que colocavam em risco a vida tanto dos ricos como dos pobres. Por
outro lado, interessava aos empresários ter uma mão-de-obra produtiva e, por isso, sadia. Os
trabalhadores, por sua vez, reivindicando com força crescente e organizados em sindicatos,
uniam-se em federações, obtendo assim vitórias parciais em suas reivindicações, que incluíam,
em muitos casos, melhores condições habitacionais e controle dos aluguéis.
Em seguida, e muitas vezes simultaneamente a esse urbanismo sanitarista, começou a
surgir, em meados do século XVIII, nas grandes cidades européias e norte-americanas, uma
preocupação com a ampliação dos espaços abertos centrais, destinados a grandes manifestações
cívicas burguesas (praças e grandes avenidas) e que abrigassem, no seu entorno e na
perspectiva dos grandes eixos visuais criados, as edificações de caráter monumental, sede dos
poderes governamentais e civis mais importantes.
É um urbanismo que usa a monumentalidade como expressão da força da classe
burguesa dominante, retratada numa preocupação da ordenação do espaço urbano, através de
uma rede de avenidas de grande porte, terminando em, ou entremeadas de, grandes praças e
com um pano de fundo de edificações ordenadas.
Trata-se de um urbanismo estético-viário. O barão Haussman, em Paris, é o seu maior
expoente, e a "Étoile" (estrela) de avenidas tendo ao centro o Arco do Triunfo, sua maior
expressão.
Esse urbanismo estético-viário, nascido ao tempo das carruagens e dos bondes puxados a
burro, no final do século XIX, será, na primeira metade do século XX, extremamente funcional
para o surgimento e a implantação plena das cidades contemporâneas, dos veículos automotores:
o bonde elétrico, os ônibus, os caminhões e os próprios automóveis.
Graças a essas redes de avenidas, conjuntamente com uma legislação urbanística
restritiva do adensamento urbano, aliadas a redes de trens subterrâneos, foi possível modernizar
o uso das áreas centrais das velhas cidades européias, sem modificar-lhes a face externa da
organização do espaço urbano, herdada do século XIX e anteriores.
Concomitantemente ao urbanismo técnico-setorial, evoluiu na Europa um outro tipo de
urbanismo, globalizante e político. Esse urbanismo foi desenvolvido por pensadores que,
3
habitantes, proposta como modelo universal e antídoto para os males causados por uma
industrialização selvagem.
Na Inglaterra, as propostas de Howard tiveram e ainda têm imensa repercussão, por
razões que ainda não foram satisfatoriamente explicadas. A partir dessas idéias desenvolveu-se
um urbanismo de controle radical do desenvolvimento urbano, através da construção de,
inicialmente, pequenas cidades (como Welwin e Lechworth, de 32 mil habitantes cada) e, mais
tarde, de tamanho médio (como Cumbernauld, com 100 mil habitantes).
Finalmente, após a Segunda Guerra Mundial, foi feita uma tentativa de estancamento do
crescimento da metrópole inglesa, Londres, tanto através da implantação de um cinturão verde de
produção agrícola à sua volta e de uma rede de pequenas e médias cidades-satélites ao seu
redor como por uma busca de subdivisão do espaço urbano londrino em unidades de vizinhança,
tão auto-suficientes quanto possível. Tentava-se, assim, após a Segunda Guerra Mundial, dividir a
metrópole inglesa em pequenas cidades.
O caráter prático e factível dessas soluções tornou-as aceitáveis, aproximando os
urbanistas de origem antiurbana, utópico, daqueles de formação compartimentada: os urbanistas
técnico-setoriais.
O moderno planejamento das cidades inicia-se, pois, com essas duas visões do urbano,
desenvolvidas no início da Revolução Industrial: a técnico-setorial, fruto de uma ação prática
governamental sobre as cidades, e a globalizante, política, teorizadora e reformuladora das
instituições sociais.
Ainda dentro de um caráter predominantemente utópico, mas já buscando adequar-se à
sociedade industrial emergente, desenvolveu-se, também na Europa, no início deste século, uma
outra linha de urbanistas, que procurava conciliar o conceito de cidade pequena, entremeada de
muita área verde e lagos, com o conceito de grandes cidades industriais e de serviço como foi o
caso de Tony Garnier (†1948), Walter Gropius, na sua Bahaus na Alemanha (†1969), e Le
Corbusier (†1897-1969), na Suíça e França. Podem ser considerados urbanistas globalizantes
utópicos pró-industrialização e pró-urbanos.
Essa linha também ignorou por completo a existência das classes com seus interesses
conflitantes. Apesar de ter como objetivos atender a um ser humano abstrato, sem condições
sociais e culturais específicas, desenvolveu contribuições válidas para se pensar uma nova
tecnologia de produção e consumo do espaço urbano e as conseqüências estéticas e
paisagísticas para a sua organização.
Le Corbusier talvez tenha sido quem mais avançou nessa direção, propondo uma
arquitetura e urbanismo dos grandes centros urbanos e do industrialismo, onde procura combinar
áreas verdes e edificações verticais, visando uma alta densidade urbana, redutora dos custos de
urbanização, pela menor extensão da infra-estrutura e equipamentos urbanos.
Le Corbusier elaborou propostas para um homem médio, abstrato, dotado de uma
racionalidade que não se identifica com as racionalidades concretas dos homens inseridos
diferenciadamente nas estruturas histórico-sociais, que se transformam continuamente.
Brasília indiretamente, por intermédio do urbanista Lúcio Costa, e Chandighard (capital de
um Estado do Norte da Índia), diretamente saída de um plano urbano de Le Corbusier, foram os
frutos maiores desse urbanismo racionalista-progressista, de acordo com a classificação de
Choay. Já Belo Horizonte (1886) e Goiânia (1930) nasceram sob orientação do urbanismo
técnico-setorial, tanto sanitário como estético-viário.
Esse urbanismo culturalista, no entanto, não sabe lidar com as cidades existentes, a não
ser via demolição de bairros inteiros ou até de cidades inteiras, vistas como irracionais e
obsoletas.
Não é capa de captar a lógica da desordem urbana, escondida por detrás do caos urbano,
visível na deterioração ambiental; nas habitações miseráveis dos bairros pobres; na demolição e
reconstrução contínuas das partes mais antigas, perdendo-se, com isso, a memória histórica; na
falta crônica de uma infra-estrutura adequada, especialmente de transportes, sempre
congestionada em inúmeros pontos, etc.; como resultado básico da busca de propostas pelos
proprietários imobiliários de valorização produzida pelo esforço coletivo.
Como o urbanismo culturalista não é capaz de analisar e formular a lógica conflitante do
desenvolvimento urbano, não consegue tampouco propor alternativas que não sejam aquelas que,
supostamente, estariam acima dos interesses sociais em jogo: a mera reconstrução física do
espaço.
5
Nesse ponto ele se torna utópico, na medida em que, ingenuamente, propõe a correção de
distorções sociais por via da ordenação ou reordenação física do espaço, da mesma forma, mas
em versão diferente, que o urbanismo das cidades-jardins de Howard (embora, nesse caso,
propusessem a propriedade pública ao solo como antídoto aos ganhos especulativos).
Reconhece-se, hoje em dia, em amplos setores da sociedade, a necessidade de análises
mais abrangentes, globalizantes, que superam as visões particularizadas referidas, para que se
caminhe na direção de uma solução mais completa dos problemas que enfrentamos.
Nesse sentido, e ainda dentro de uma visão do urbanismo técnico-setorial, deve-se
destacar, inicialmente, um esforço especial que está sendo realizado, através de um novo
instrumento de investigação social, desenvolvido durante a Segunda Guerra Mundial, para fins
militares, e, após ela, para fins militares e civis: análise sistêmica. A contribuição positiva, dada
pela análise de sistemas, em acionar as artes de um todo em um conjunto de elementos
interagentes, em vez de analisar isoladamente cada fator que causa problemas na sociedade. No
entanto, embora ambiciosa em seu escopo, a análise sistemática tem-se detido na escolha de
todos, que são na realidade muito particularizados, como, por exemplo, as análises de um setor
da estrutura das cidades, o de transportes urbanos, ou análises da ação de uma determinada
agência governamental sobre os problemas das cidades, como a Empresa de Urbanização de
São Paulo (Emurb-SP). Essa visão sistêmica, em muitos casos, restringe ainda mais o seu nível
de análise, como é o caso da organização interna dos serviços urbanos específicos, como o da
coleta de lixo, a distribuição de água, etc., visando sempre um objetivo que pode ser traduzido
pela expressão "otimização". A otimização é a preocupação com a eficiência dos serviços e não
com a eficácia na solução dos problemas envolvidos. Significa buscar atingir um determinado
objetivo de forma ótima, isto é, com o dispêndio mínimo de recursos humanos, financeiros e
tecnológicos. É importante destacar aqui que o objetivo a alcançar não é posto em discussão. Ele
é definido, politicamente, ao nível dos altos escalões governamentais ou, externamente, pelos
clientes que o contratam, ficando, portanto, fora do âmbito da sua análise. A otimização não
questiona os fins a serem atingidos e analisa apenas os meios de atingi-los. Assim, essa análise
fica impedida, pela sua própria-estrutura, de ter uma ampla visão crítica da realidade em questão.
No entanto, devemos reconhecer na análise sistêmica um esforço de globalização que tem
conseguido alguns resultados positivos, em termos de maior eficiência conseguida, como no
campo dos transportes urbanos nas grandes cidades.
Mas, se alguns êxitos têm sido alcançados pela análise sistêmica, ela e ainda bastante
parcial e, por isso mesmo, escapa-lhe a natureza conflitante da sociedade, unida e ao mesmo
tempo dividida pelos interesses de grupos e de classes sociais.
Destaquemos a seguir algumas contribuições de grande importância na análise científica
sobre a questão urbana.
Essas contribuições forneceram as bases teóricas para o desenvolvimento de um
urbanismo científico, isto é, nem utópico nem setorial.
Os autores mais importantes dessa contribuição ao pensamento sobre o urbano são os
alemães Engels (†1895) e Marx (†1883), que, analisando a formação e o desenvolvimento do
capitalismo como fator determinante na organização da sociedade, desenvolveram conceitos que
propiciaram o início da análise do processo de formação e desenvolvimento do espaço urbano de
um ângulo sócio-político global e estrutural. Mais do que uma análise generalizada e completa
desse processo, esses pensadores nos legaram alguns conceitos seminais: o da transformação
da terra em objetivo de relações mercantis (mercadoria), entrelaçadamente com o de renda da
terra, que se revelam, hoje em dia, tão importantes na compreensão dos problemas urbanos.
Esses conceitos foram desenvolvidos a partir das contribuições dos economistas fundadores da
economia como ciência, especialmente os fisiocratas e os ingleses Adam Smith e David Ricardo.
Engels, especialmente, deixou-nos ainda alguns textos, hoje clássicos, da análise do problema da
habitação, como o desenvolvido a propósito das péssimas condições habitacionais dos bairros
pobres de Manchester.
Os problemas urbanos, por serem considerados, pelo pensamento marxista, secundários
no processo de transformação das sociedades capitalistas, não merecem de seus seguidores, até
o início da década de 70, um esforço especial de análise. Paradoxalmente, por isso mesmo, até
cerca de quinze anos atrás, os marxistas deram aos problemas urbanos o mesmo tratamento do
urbanismo técnico-setorial, que é o da segmentação da realidade, sob o argumento de que não
eram parte das contradições básicas da sociedade capitalista.
6
2
Leia o artigo fundamental de Robert Park. "The City, suggestions for the investigation on human behavior in the urban
environment", in Sennet, Richard (ed.), Classic essays on the culture of cities, Nova York, Appleton - Century - Crofts,
1970, pp. 91-130.
3
Resumo dessa forma de analisar a cidade encontra-se em DELLA DONNE, Marcella, Teorias sobre a cidade, Lisboa,
Livraria Martins Fontes, 1983, pp. 39-47. Resumo crítico será encontrado em CASTELLS, Manuel, Problemas de
investigación en sociologia urbana, Madri, Siglo XXI, 1971, pp. 135-145.
4
Ver os trabalhos básicos de Simmel e Weber in Sennet (1970), op. cit.
5
Excelente resumo das teorias econômicas com ênfase nas neoclássicas encontra-se no trabalho de DERYCKE,
Pierre-Henri, Economia y planiflcación urbanas, Madri, Instituto de Estudios de Administratión Local, 1983. pp. 69-407.
7
Em época mais recente vem se buscando aplicar o conceito de pólos urbanos, que formam
uma rede hierarquizada de cidades, à discussão das disparidades regionais e mesmo
disparidades internas das grandes cidades e metrópoles.
Também o padre dominicano Joseph Lebret, com seu grupo de estudos Economia e
Humanismo, com sede em Paris, atual Irfed, ampliou, no pós-guerra, o âmbito da análise,
colocando a questão da organização territorial, de um ângulo social, no centro da questão maior
do desenvolvimento regional e de um país.
O pensamento de Lebret aproximou-se assim rapidamente daqueles que buscavam
explicar o subdesenvolvimento de um país e as disparidades entre regiões de uma mesma nação,
procurando ao mesmo tempo encontrar modelos e métodos de ação que produzissem o
desenvolvimento regional e nacional, especialmente um grupo de economistas da Cepal -
Comissão Econômica para a América Latina, da ONU, em que se destaca o brasileiro Celso
Furtado.
No Brasil, e especialmente em Minas Gerais e São Paulo, tal simbiose intelectual continua
seu curso, ao mesmo tempo que um grupo de planejadores, mais ou menos heterogêneo,
originário dessa tradição teórica, procura incorporar em suas abordagens as análises das
contribuições das lutas operárias e, especialmente, dos movimentos sociais urbanos e rurais, nos
avanços e retrocessos da ação do Estado no campo e nas cidades.
A partir de poucos anos atrás, retomando a tradição das ciências sociais ligadas à
economia política, desenvolve-se uma análise que parece extremamente promissora para
instrumentalizar cientificamente aqueles interessados em atuar sobre as causas dos problemas
urbanos e não apenas sobre os seus efeitos.
Esses analistas desenvolveram a idéia de que o fenômeno propriamente urbano está no
surgimento de aglomerados humanos, que exigem para o seu funcionamento o desenvolvimento
de condições gerais para a produção e consumo das mercadorias em geral, tanto ao nível da rede
de cidades como ao nível intra-urbano.11 Essas condições gerais são mais facilmente visíveis
consubstanciadas na infra-estrutura de serviços urbanos, especialmente os de comunicação e de
transportes de pessoas e mercadorias. Também faz parte dessas condições gerais a legislação
urbanística controladora do uso e ocupação do solo, que, quando obedecida, garante, em um
primeiro momento, uma redução do nível de conflito social de interesses existentes, de modo a
evitar a ruptura da estrutura social, e em um segundo momento, a conquista de direitos sociais
das camadas sociais não hegemônicas, embora também possa ser apenas a consolidação legal
de privilégios de grupos sociais.
As regras definidoras do uso e exploração comercial dessa infra-estrutura coletiva também
fazem parte das condições gerais de produção e consumo como o é a concessão monopolística
realizada pelo Estado a empresas privadas ou empresas públicas, de certo modo privatizadas
pelo escasso controle que a sociedade como um todo conseguiu até hoje exercer sobre elas. A
produção e regulação dessas condições gerais é condicionante sine qua non da possibilidade do
uso produtivo do espaço regional urbano (o da rede de cidades) como do espaço intra-urbano (o
da estrutura física interna das cidades).
Embora historicamente as concessões para a exploração privada desses meios coletivos
ensejem abusos, dada sua importância estratégica no conjunto das cidades e mesmo da
sociedade, caminha-se mais rapidamente para se estabelecer um controle social sobre eles,
estatizando-se, isto é, passando a sua implantação e operação para a esfera do Estado. É claro
que, dependendo do grau de democracia que se conseguir implantar em determinada sociedade-
comunidade urbana, esse controle social e democrático será maior ou menor, ensejando menor
ou maior abuso dos responsáveis diretos por ela.
Mas são as regras definidoras do uso do solo urbano aquelas que apresentam um
interesse crucial para a análise dos conflitos ocorrentes nas cidades.
11
No Brasil, trabalho pioneiro foi o de LAMPARELLI, Celso, “Nota introdutória a um objeto de estudo: o urbano", Revista
Fundap, 1981. Os trabalhos fundadores dessa visão encontram-se em LOJKINE, Jean, O Estado capitalista e a questão
urbana, São Paulo, Martins Fontes, 198 (1ª edição francesa). Le Marxisme, l'État et Ia question urbaine, Paris, PUF,
1977, e TOPALOV, Christian, La urbanización capitalista, México, Editorial Edicol, 1979. Ver ainda a compilação de
textos críticos de FORTI, Reginaldo, Marxismo e urbanismo e urbanismo capitalista, São Paulo, Livraria Edirora
Ciências Humanas, 1979, com textos selecionados de Lojkine, Topalov, Godard, Castells, Cervellati, Scannavini e
Cohen.
9
Quanto ao controle do uso e do abuso do solo urbano, o avanço tem sido mais lento. A
renda da terra, isto é, o valor que assumem os imóveis no mercado imobiliário capitalista,
depende de como o mercado está organizado. É conhecido pela teoria econômica o grau elevado
da não substitutividade da gleba ou do lote urbano, isto é, cada lote localizado no espaço intra-
urbano apresenta características próprias quanto às vantagens locacionais, sejam elas
paisagísticas (como a proximidade de uma praia, a encosta de um morro, a beira de um rio),
sejam decorrentes das características da distribuição das redes de infra-estrutura urbana,
especialmente a viária e de transporte.
Daí porque a avaliação de um imóvel depende de estudos aprofundados e específicos de
cada caso. Essa característica, a de difícil substitutividade, confere a cada lote urbano um caráter
monopolístico, isto é, dificulta a concorrência no mercado da terra urbana, tirando-lhe as bases do
postulado maior do capitalismo liberal: a livre competição.
Dependendo, básica, mas não exclusivamente, do valor da terra urbana, das vantagens
locacionais referidas, a implantação de infra-estrutura nas proximidades ou na frente de uma área,
a sua existência ou não passam a ser de enorme interesse para o seu proprietário. Assim, deixar
de vender uma área, no aguardo de uma infra-estrutura que será produzida publicamente, pode
passar a ser norma de comportamento entre os proprietários de terra e imóveis em geral, no
interior do espaço urbano ou na sua periferia rural imediata, na expectativa de crescimento da
cidade que lhe é próxima.
Esse fenômeno de ganho privado pelo proprietário de imóveis à custa de um investimento
da comunidade, através, inclusive, da ação estatal, é denominado especulação imobiliária.
Nos países do capitalismo avançado da Europa, especialmente na França12 e na Itália, o
debate sobre a justiça da apropriação privada desse valor produzido coletivamente desembocou,
em 1975 e 1977 respectivamente, na instituição de instrumentos fiscais que possibilitam, sem
garantir, o reto retorno dessa mais-valia comunitária para o seu bolso. Na França foi denominado
plafond légal de densité (o teto legal de densidade), e na Itália, normas para a edificabilidade. No
Brasil, essa versão francesa e italiana é chamada de "solo criado", na ocorrência da urbanização
com ou sem edificação vertical.
Na França, a preocupação básica convergiu para a necessidade de obrigar legalmente
quem criar solo acima de um índice de aproveitamento igual a 1,5, em Paris, e igual a 1,0 nas
demais cidades francesas a pagar um preço que compense o poder público, isto é, a
comunidade, das despesas que terá que gastar ao ampliar a infra-estrutura de serviços-urbanos,
áreas verdes e equipamentos comunitários (escolas, creches, etc), que a nova densidade
populacional decorrente do “solo criado” acima daqueles tetos iniciais vai exigir.
O zoneamento tradicional que pretende estabelecer os tetos máximos de acordo com a
infra-estrutura existente ou a implantar, continua prevalecendo, de modo que não se pode criar
solo acima desses tetos do zoneamento. Na Itália, o solo criado é cobrado de quem urbaniza
construindo prédios; horizontais e verticais, isto é, para qualquer coeficiente de aproveitamento do
terreno, desde a aprovação da lei nº 10 de 1975. Correspondentemente, na Itália, o Estado está
encarregado de colocar toda a infra-estrutura urbana.
Voltando-se, mais uma vez, aos inícios da formação das grandes cidades na sociedade
industrial, é preciso mencionar uma outra vertente do urbanismo político não globalizante, mas
particularizante, que nasceu dos embates urbanos entre grupos de interesses, nos grandes
centros capitalistas, especialmente norte-americanos.
Neles, o sistema democrático vigente, logo no fim do século passado e no início deste,
colocou frente a frente, de um lado, o urbanismo setorial dos técnicos e, do outro, o urbanismo
globalizante dos políticos.
O domínio da máquina administrativa municipal por determinadas forças sociais para
alcançar objetivos políticos era muito importante, pois, senão se assegurasse aquele domínio, ele
ficaria nas mãos da "neutralidade científica" dos técnico-urbanistas.
A partir do conflito de interesses, gerado no bojo dessa luta entre técnicos e políticos, a
análise da evolução das relações das estruturas administrativas municipais com as estatais e
12
Ver uma análise das políticas territoriais desenvolvidas na França nas décadas de 60 e 70, que foram extremamente
criativas face às crises que foram enfrentadas, em DERYCKE (1983), op. cit., pp. 379-390. O autor destaca nessa
análise o papel desempenhado pela lei Galley (1975), que instituiu o plaford legal de densité ou o "solo criado", na
França, que será mais bem explicado nos capítulos 3 e 4.
10
federais, na briga pela repartição dos recursos públicos aplicados na solução da problemática
urbana, em conexão com a ação de grupos sociais, passou, pouco a pouco, nos EUA, a ser
preocupação de estudos de cientistas sociais, inclusive das finanças públicas, que, especialmente
através da citada Escola de Chicago, e sempre a posteriori dos fatos e sem procurar uma visão
mais geral desse processo social, procuram entender a natureza política dos interesses em jogo.
Nos EUA, essa nova corrente, desde os anos 60, vem se opondo à prática dos chamados
engenheiros sociais urbanos, como eram chamados os urbanistas técnico-setoriais, que, definindo
os problemas do pós-guerra - imigração, negro, explosão populacional e sua concentração nas
cidades, decadência física de edifícios nos bairros centrais, poluição do ar e da água -,
propunham, como solução, apenas ajustamentos da maquinaria legal e governamental e a
urbanização ou a reurbanização física.
Neste século, a atuação dos urbanistas técnico-setoriais especialmente, mas também dos
urbanistas políticos globalizantes, nos EUA e também, em certa medida, no Brasil, contrapunha-
se assim à atuação dos políticos. No entanto, os urbanistas técnico-setoriais, através de sua
postura adaptativa, pragmática, tendiam a se compor com os interesses dos políticos militantes,
interessados nas questões urbanas. Os urbanistas políticos globalizantes iam traduzindo cada vez
mais suas propostas em modelos de organização urbana, buscando o que supunham ser uma
visão geral das questões urbanas através de planos de organização da estrutura e tecido físico da
cidade como um todo: o Master Plan dos EUA e os planos diretores ou reguladores da tradição
latina e brasileira. Com a imagem de uma cidade futura que, supostamente, seria organizada de
uma forma perfeita, ou seja, a imagem de uma cidade ideal definida para um ano meta, dez ou
vinte anos no futuro, esses urbanistas seduziam boa parte da opinião pública. Essa sedução
advinha do uso de imagens de um equilíbrio urbano, de uma cidade ideal, não limitada apenas
aos aspectos físicos, mas que extrapolavam para aspectos humanos e sociais, prometendo uma
vida mais feliz e equilibrada, a partir de uma melhor organização física. Era como se os problemas
sociais e humanos nas cidades decorressem apenas ou fundamentalmente dos problemas
relativos à excessiva densidade populacional nos bairros centrais, do ambiente físico deteriorado,
da poluição ambiental, etc.
Se os urbanistas políticos globalizantes tendem a um urbanismo com grande dose de
ingenuidade, segundo a tradição do urbanismo utópico, os urbanistas técnico-setoriais, aliados
aos políticos, agindo segmentariamente em uma dada estrutura administrativa governamental,
também compartimentada, entram diretamente, sem rodeios, no jogo político da administração
pública. Sua atuação dá-se então, muitas vezes, de modo a aumentar a participação relativa de
um determinado setor público, como é o caso do setor viário ou do setor de serviços de
urbanização, no que se refere ao valor dos investimentos a eles destinados. Outras vezes, agem
no sentido de defender interesses imobiliários através do controle do valor de troca do solo, seja
pelos investimentos públicos, para isso judiciosamente localizados, seja pelas leis urbanísticas,
manejadas convenientemente para isso. Com essa atitude, deixam de lado preocupações com o
conjunto da cidade e, mais especialmente, com os problemas sociais existentes, destacando-se o
problema da habitação para a população mais pobre e seus equipamentos, como água, luz,
esgoto, escola, posto de saúde, áreas de lazer, como também a questão da qualidade de vida
para as classes médias urbanas.
Paralelamente, os urbanistas que estão procurando obter uma fundamentação técnica e
científica mais ampla e globalizante buscam nessa fundamentação apoio para uma atuação
política maior, mas muitos o fazem sem grande chance de sucesso, pelo caráter, em geral,
desligado da realidade social que caracterizam suas propostas. Entretanto, os urbanistas de
fundamentação técnica e científica mais estreita e setorizante atuam com grande realismo político,
conseguindo a implementação de suas propostas parciais.
A partir da década de 50 vemos surgir um novo urbanismo. Ele se caracteriza, nos países
centrais do capitalismo, por uma aguda visão da questão social, que se tornou claramente uma
questão urbana fundamental. Nos países de capitalismo periférico, ele se caracteriza pela
percepção de que a questão urbana continua estreitamente entrelaçada com a questão rural.
Nestes, o processo de migração campo-cidade continua em curso, e em alguns países, como no
Brasil, tal processo de urbanização já atingiu tais níveis que se pode afirmar que a questão urbana
torna-se, dia a dia, mais importante do que a agrária. Isso será discutido nos capítulos seguintes.
A visão instituída de intervenção planejada no processo de urbanização, ao nível
interurbano - o da rede das cidades - e ao nível intra-urbano - o do espaço interno das cidades -,
11
passou a adquirir uma nova dimensão conceitual: a de privilegiar determinados fatores como
fatores-chaves, fatores estruturais no processo de planejamento da desejada transformação das
questões urbanas.
Ao privilegiar a atuação sobre fatores estruturantes da realidade urbana, procura-se
escapar ao dilema da atuação, de um lado, sobre o todo da realidade das cidades, como se tentou
fazer nos planos integrados e de longo prazo, ou, de outro lado e alternativamente, sobre
aspectos parciais dessa mesma realidade, procurando transformações pequenas e incrementais,
porque seriam as únicas factíveis, técnica e politicamente.
A descoberta teórica e prática de um fator estruturante permite atuar sobre uma parcela da
realidade que possui o poder de modificar, através dele, um conjunto de grande amplitude da
realidade urbana e social.13
A visão de uma realidade estruturada a partir de fatores-chaves determinantes foi a grande
inovação que o pensamento desenvolvido nas culturas ocidentais trouxe, na esteira das
contribuições de Darwin (†1882), com a sua teoria explicativa da origem e evolução das espécies
animais, inclusive o ser humano, que privilegia como variável estruturante a luta pela
sobrevivência das espécies, frente a uma natureza agressiva e cambiante ao longo dos milênios
da história de vida em nosso planeta; de Marx (†1883), com a sua teoria de organização da
sociedade e do processo de sua transformação, da sociedade antiga escravocrata para a
sociedade feudal, e desta para o capitalismo, a partir da variável ou fator-chave, que é o
desenvolvimento das forças produtivas, que contrapõem, nos diferentes modos de produção, os
interesses do Capital e do trabalho; e de Freud (†1929), com a sua teoria da transformação dãs
personalidades individuais e coletivas a partir das relações entre a sexualidade, o emocional e os
modos de pensar, desde a fase pré-natal, na evolução de cada ser humano e dos grupos sociais
por ele constituídos.
Durante o século XX tais teorias se entrelaçam e se desenvolvem, passando a representar
ramos específicos de grande riqueza explicativa para os fenômenos que nos interessam mais de
perto.
Assim, no nível macrossocial, desenvolveu-se, nos últimos dois decênios, uma teoria de
dependência, cuja grande expressão no Brasil é Celso Furtado,14 que atribuiu o
subdesenvolvimento às relações de intercâmbio de importação e exportação de produtos, serviços
e capitais, entre os países periféricos capitalistas e os países em desenvolvimento centrais desse
sistema. Procurou-se, em seguida, explicar a macrocefalia na rede das cidades, isto é, uma rede
que apresenta algumas poucas e gigantescas cidades e um grande número de pequenas cidades
e poucas cidades médias, que ocorre freqüentemente nos países de capitalização periférica e
dependente, como resultado dessas relações externas estruturais.
Ao nível da qualidade de vida mental nas grandes cidades, Georg Simmel (†1902) destaca
o fator básico do excesso de estímulos como causador do surgimento de uma carapaça
psicológica que envolve a personalidade dos habitantes urbanos nas metrópoles, insensibilizando-
os para uma vida mais criativa no campo das relações humanas e reduzindo-lhes a solidariedade
e a própria capacidade de expressão através das artes. Nessa mesma direção caminha Marcuse
(†1973),15 procurando entrelaçar de modo sistemático a análise marxista e a de Freud, mostrando
como as relações sociais conflitantes - e não o tamanho das cidades ou a densidade de ocupação
do espaço físico - contribuem para uma insensibilização alienante do homem face à própria
natureza humana.
Ao nível interno das cidades e privilegiando a análise dos interesses imobiliários com
ênfase nos interesses dos produtores, ou seja, do capital, com Harvey, Lojkine, Topalov,
13
Nos Estados Unidos desenvolveu-se o confronto entre essas duas correntes, gerando uma teoria do planejamento
que contrapõe, de um lado, os comprehensive planners, que tudo querem abarcar de forma ingênua, e os incremental
planners, que se contentam em dar pequenos passos corretivos. É interessante perceber as dificuldades do
pragmatismo anglo-saxão, ou seja, seu empirismo científico, sem superar tal oposição de posições para nós claramente
insuficientes. Ver FALUDI, Andreas (org.), A reader in planning theory, Oxford, Pergamon Prcss, 1ª ed., 1973,
especialmente pp. 113-217.
14
Ver FURTADO, Celso, Pequena introdução ao desenvolvimento: enfoque interdisciplinar, São Paulo, Nacional, 1980,
especialmente pp. 79-80.
15
Ver MARCUSE. Herbert. Na essay on liberation, Boston, Beacon Press, 1969, e A dimensão estética, São Paulo,
Perspectiva, 1981.
12
16
Ver resumo do pensamento neomarxista em DERYCKE (1983), op. cit., pp. 363-374. Veja também LOJKINE, Jean,
"Análise marxista do Estado", in Espaço e Debates, ano 1, nº 1, jan. 1981, São Paulo. Ver ainda HARVEY, David, A
justiça social e a cidade, especialmente o capítulo 5, "Valor de uso, valor de troca e a teoria do uso do solo urbano", São
Paulo, Hucitec, 1980. Ver também LIPIETZ, Alain, EI capital y su espacio, México, Siglo XXI, 1977.
17
O último livro de Manuel Castells sobre os movimentos sociais é o The city and the grass roots, Berkeley, University of
California Press, 1983. Uma discussão mais teórica encontra-se em City, class and power. Nova York. ST Martins press,
1978.
18
Ver em KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana, São Paulo, Paz e Terra, 1980, com base em estudos de formação
do espaço das cidades brasileiras, especialmente de São Paulo, análise de como a classe trabalhadora é vítima da
lógica da desordem. Um levantamento bibliográfico bastante completo comentado, sucinto, sobre os movimentos sociais
urbanos encontra-se em KOWARICK. Lúcio, "Movimentos urbanos no Brasil contemporâneo: uma análise da literatura",
Revista Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS, nº 3, vol. 1, fev. 87, pp. 38-50.
19
Essa perspectiva integradora está sendo buscada ainda por muito poucos. Ela se ressente das dificuldades de
integração metodológica entre os que desenvolvem a metodologia no âmbito da economia política, que tende a
privilegiar os interesses do capital, e a da sociologia e antropologia, que tende a enfatizar os interesses dos movimentos
sociais. O urbanismo ou planejamento urbano, que tem desenvolvido seu processo de análise a partir das questões
colocadas pela organização do território, em necessidade, pela tradição integradora de suas correntes progressistas, de
buscar apoio nos conjuntos das ciências sociais, que inclui, além das citadas, a ciência política, a geografia e a história,
voltadas para a explicação do fenômeno urbano. Essa ambição metodológica, que responde a necessidades concretas
de ação, é a dificuldade maior do planejador urbano com consciência política. É o nosso caso.
13