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1. As visões conflitantes do que é o planejamento urbano

É aparentemente simples analisar e discutir o que é o planejamento urbano.


Tratar-se-ia simplesmente de ordenar as cidades e resolver seus problemas. Para isso,
seria suficiente listar esses problemas e, em seguida, definir uma ordem de prioridades na
implementação de sua solução. Finalmente, restaria implementá-las com técnicas adequadas,
dependendo dos recursos disponíveis. Por esse método, o bem comum seria finalmente
alcançado, desde que tal objetivo fosse perseguido honestamente.
Com relação aos problemas urbanos, podemos dizer que eles existem apenas por uma
falta de racionalidade e honestidade do governo ou dos cidadãos. A racionalidade seria alcançada
através de estudos sistemáticos, se rios e tão científicos quanto possível, que dissecariam os
problemas, indicando-lhes a melhor solução. Desse modo, a mera ignorância da realidade dos
fatos a ser superada através de análise sistemática seria a causa básica do estado caótico das
cidades.
Para os que encaram a questão urbana desse modo, a abordagem técnico-científica
representa uma solução; para tanto, é preciso reforçar, de um lado, os centros de pesquisa e, de
outro, os órgãos técnicos governamentais de decisão e implementação das políticas orientadoras
de soluções dos problemas das cidades, e excluir os desonestos do processo decisório.
Foi com objetivos próximos do acima citado que se desenvolveu na Europa e Estados
Unidos, desde o final do século passado, uma grande ação prática e teórica: o urbanismo técnico-
setorial.1 Este se propunha a ser um instrumento técnico de melhoria da racionalidade da
organização do espaço urbano e também das qualidades estéticas desse espaço, considerando
essas qualidades visuais como desvinculadas de qualquer determinação mais profunda da
organização social prevalecente. Foi esse tipo de urbanismo que obteve, na Europa e nos
Estados Unidos, aceitação das autoridades das cidades industrializadas em deterioração.
Inicialmente, a preocupação básica foi com as condições sanitárias dos bairros e das
habitações.
Esse urbanismo sanitarista produziu o saneamento de áreas inundáveis, insalubres, a
abertura de vias e vielas sanitárias no meio de quadras, a canalização dos esgotos e águas
pluviais, que, especialmente nos bairros operários, corriam no meio das ruas, produzindo surtos
epidêmicos, como o da varíola, do tifo, etc. Realizou também a reurbanização, com preocupações
de ordem sanitária, e, às vezes, sanitária e estética, de bairros inteiros e, principalmente, começou
a produzir lima legislação urbanística de orientação compulsória para a abertura de vias (os
arruamentos); a repartição das quadras formadas pelas vias (os loteamentos); o distanciamento
entre edificações, e entre essas e os limites dos lotes; e a definição do número de pavimentos de
uma edificação e sua altura (o gabarito de altura). Passou a existir uma preocupação com a
densidade máxima a ser permitida em cada lote, quadra e bairro, tendo em vista uma qualidade
ambiental de vida, traduzi da em termos de várias proporções. A primeira é a proporção medida
pelo número de metros quadrados de áreas abertas, livres de edificação, em relação ao espaço
urbano horizontal correspondente a essas áreas. A segunda é a proporção entre áreas verdes e
áreas construídas. A terceira é a proporção entre o espaço viário, em conjunto com a proporção
entre os modos de transporte utilizados (automóvel, ônibus, trem, metrô, etc.), e o número de
transeuntes, e volume de mercadorias a serem transportados gerados pelas atividades que
utilizam as edificações vizinhas a esse espaço viário e sistema de transportes. Com esse estudo,
desde o final do século passado, passou-se a se estabelecer normas legais, que se constituíram,
aos poucos, em códigos de regulamentos urbanísticos quanto às edificações e ao uso, à
ocupação e ao parcelamento do solo para fins urbanos e as políticas de transporte
correspondentes. Esses equivalem aos atuais códigos de obras, que abrangem tanto as normas
relativas às edificações quanto às do parcelamento do solo e do seu uso, ou seja, o zoneamento.
Por isso, deveriam ser separados em dois e denominados, o primeiro, código de edificações, e o

1
Sobre as origens do pensamento e da ação urbanísticas modernas, ver BENÉVOLO, Leonardo, As origens da
urbanística moderna, Lisboa, Editorial Presença/Livraria Martins Fontes, 1981, e CHOAY, Françoise, O urbanismo, São
Paulo, Editora Perspectiva, 1979.
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segundo, código de uso, ocupação e parcelamento do solo para fins urbanos, o que não tem sido
feito, por diversos interesses em jogo, como veremos.

Essa vertente do urbanismo, que não punha em causa as raízes dos males existentes nas
cidades, teve uma aceitação crescente, embora combatida, como ocorre ainda hoje, por aqueles
que vêem nesses regulamentos administrativos um cerceamento do direito ao uso irrestrito da
propriedade imobiliária urbana.
Essa aceitação geral derivava, de um lado, e principalmente, do perigo do ressurgimento
cíclico de surtos epidêmicos, que colocavam em risco a vida tanto dos ricos como dos pobres. Por
outro lado, interessava aos empresários ter uma mão-de-obra produtiva e, por isso, sadia. Os
trabalhadores, por sua vez, reivindicando com força crescente e organizados em sindicatos,
uniam-se em federações, obtendo assim vitórias parciais em suas reivindicações, que incluíam,
em muitos casos, melhores condições habitacionais e controle dos aluguéis.
Em seguida, e muitas vezes simultaneamente a esse urbanismo sanitarista, começou a
surgir, em meados do século XVIII, nas grandes cidades européias e norte-americanas, uma
preocupação com a ampliação dos espaços abertos centrais, destinados a grandes manifestações
cívicas burguesas (praças e grandes avenidas) e que abrigassem, no seu entorno e na
perspectiva dos grandes eixos visuais criados, as edificações de caráter monumental, sede dos
poderes governamentais e civis mais importantes.
É um urbanismo que usa a monumentalidade como expressão da força da classe
burguesa dominante, retratada numa preocupação da ordenação do espaço urbano, através de
uma rede de avenidas de grande porte, terminando em, ou entremeadas de, grandes praças e
com um pano de fundo de edificações ordenadas.
Trata-se de um urbanismo estético-viário. O barão Haussman, em Paris, é o seu maior
expoente, e a "Étoile" (estrela) de avenidas tendo ao centro o Arco do Triunfo, sua maior
expressão.
Esse urbanismo estético-viário, nascido ao tempo das carruagens e dos bondes puxados a
burro, no final do século XIX, será, na primeira metade do século XX, extremamente funcional
para o surgimento e a implantação plena das cidades contemporâneas, dos veículos automotores:
o bonde elétrico, os ônibus, os caminhões e os próprios automóveis.
Graças a essas redes de avenidas, conjuntamente com uma legislação urbanística
restritiva do adensamento urbano, aliadas a redes de trens subterrâneos, foi possível modernizar
o uso das áreas centrais das velhas cidades européias, sem modificar-lhes a face externa da
organização do espaço urbano, herdada do século XIX e anteriores.
Concomitantemente ao urbanismo técnico-setorial, evoluiu na Europa um outro tipo de
urbanismo, globalizante e político. Esse urbanismo foi desenvolvido por pensadores que,
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procurando analisar a sociedade como um todo, o faziam de forma simplificada, desembocando


em propostas de alteração radical da estrutura social e política, e ainda da organização da
sociedade no espaço geográfico. Propunham o que hoje denominamos de utopia.

Inicialmente são os socialistas utópicos que, com Saint-Simon, Owen e Fourier,


preconizam a reordenação da sociedade em comunas auto-suficientes, com uma produção e
consumo de pequena escala, de organização basicamente artesanal, colocando-se assim, de um
modo geral, contra o avanço da tecnologia e da industrialização. Esses pensadores dão origem a
uma posição antiurbana e que se opõe à industrialização, embora, mais adiante, a posição
claramente antiurbana seja adotada por pensadores e urbanistas, denominados por Françoise
Choay de culturalistas.
Esses pensadores delineiam em suas propostas não apenas uma sociedade nova, mas
também o espaço físico que deveria abrigá-Ia.
Como na Inglaterra, na França e na Alemanha o processo de industrialização e
urbanização está mais avançado, é justamente nesses países que surgem as correntes socialistas
utópicas, como também o socialismo marxista. Este, criticando as posições de Proudhon, Saint-
Simon, Owen e Fourier, postula uma transformação radical da sociedade a partir da lógica de sua
transformação, gerada pelo próprio processo de urbanização e industrialização no bojo do
capitalismo. Esse processo levaria, de forma inexorável, a reforçar o poder da classe trabalhadora
e, conseqüentemente, a revolucionar a ordem burguesa capitalista, estabelecida na primeira etapa
desse amplo processo histórico. Após um período socialista de ditadura do proletariado ou do
trabalhador, ele desembocaria numa sociedade em que o Estado, destituído do seu papel de
aparelho de dominação de uma classe sobre a outra, seria reduzido à tarefa de simples
administrador de uma sociedade sem conflitos básicos, uma sociedade sem classes sociais
antagônicas.
Ligadas a essas linhas críticas do pensamento que foram surgindo nas sociedades da
vanguarda da transformação do capitalismo, aparecem várias correntes urbanísticas. De um lado,
um pensamento utópico ou abstrato que preconizava inicialmente uma marcha à ré na história,
voltando-se para uma organização comunitária, próxima à natureza; como aquelas dos primórdios
do processo civilizatório, a dos culturalistas. À medida que tal posição se mostrava inviável, pelo
avanço constante da industrialização-urbanização, seus seguidores iam propondo adaptações.
Dessas, talvez a mais importante tenha sido a do inglês Ebenezer Howard, que, na virada do
século XIX para o XX, publicou a sua proposta: Garden-citiesfor tomorrow. (Cidades-jardins para o
amanhã)
Nesse seu trabalho, Howard combinava a propriedade coletiva da terra com uma
organização produtiva agrícola e industrial de pequena escala, em uma cidade-jardim de 32 mil
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habitantes, proposta como modelo universal e antídoto para os males causados por uma
industrialização selvagem.
Na Inglaterra, as propostas de Howard tiveram e ainda têm imensa repercussão, por
razões que ainda não foram satisfatoriamente explicadas. A partir dessas idéias desenvolveu-se
um urbanismo de controle radical do desenvolvimento urbano, através da construção de,
inicialmente, pequenas cidades (como Welwin e Lechworth, de 32 mil habitantes cada) e, mais
tarde, de tamanho médio (como Cumbernauld, com 100 mil habitantes).
Finalmente, após a Segunda Guerra Mundial, foi feita uma tentativa de estancamento do
crescimento da metrópole inglesa, Londres, tanto através da implantação de um cinturão verde de
produção agrícola à sua volta e de uma rede de pequenas e médias cidades-satélites ao seu
redor como por uma busca de subdivisão do espaço urbano londrino em unidades de vizinhança,
tão auto-suficientes quanto possível. Tentava-se, assim, após a Segunda Guerra Mundial, dividir a
metrópole inglesa em pequenas cidades.
O caráter prático e factível dessas soluções tornou-as aceitáveis, aproximando os
urbanistas de origem antiurbana, utópico, daqueles de formação compartimentada: os urbanistas
técnico-setoriais.
O moderno planejamento das cidades inicia-se, pois, com essas duas visões do urbano,
desenvolvidas no início da Revolução Industrial: a técnico-setorial, fruto de uma ação prática
governamental sobre as cidades, e a globalizante, política, teorizadora e reformuladora das
instituições sociais.
Ainda dentro de um caráter predominantemente utópico, mas já buscando adequar-se à
sociedade industrial emergente, desenvolveu-se, também na Europa, no início deste século, uma
outra linha de urbanistas, que procurava conciliar o conceito de cidade pequena, entremeada de
muita área verde e lagos, com o conceito de grandes cidades industriais e de serviço como foi o
caso de Tony Garnier (†1948), Walter Gropius, na sua Bahaus na Alemanha (†1969), e Le
Corbusier (†1897-1969), na Suíça e França. Podem ser considerados urbanistas globalizantes
utópicos pró-industrialização e pró-urbanos.
Essa linha também ignorou por completo a existência das classes com seus interesses
conflitantes. Apesar de ter como objetivos atender a um ser humano abstrato, sem condições
sociais e culturais específicas, desenvolveu contribuições válidas para se pensar uma nova
tecnologia de produção e consumo do espaço urbano e as conseqüências estéticas e
paisagísticas para a sua organização.
Le Corbusier talvez tenha sido quem mais avançou nessa direção, propondo uma
arquitetura e urbanismo dos grandes centros urbanos e do industrialismo, onde procura combinar
áreas verdes e edificações verticais, visando uma alta densidade urbana, redutora dos custos de
urbanização, pela menor extensão da infra-estrutura e equipamentos urbanos.
Le Corbusier elaborou propostas para um homem médio, abstrato, dotado de uma
racionalidade que não se identifica com as racionalidades concretas dos homens inseridos
diferenciadamente nas estruturas histórico-sociais, que se transformam continuamente.
Brasília indiretamente, por intermédio do urbanista Lúcio Costa, e Chandighard (capital de
um Estado do Norte da Índia), diretamente saída de um plano urbano de Le Corbusier, foram os
frutos maiores desse urbanismo racionalista-progressista, de acordo com a classificação de
Choay. Já Belo Horizonte (1886) e Goiânia (1930) nasceram sob orientação do urbanismo
técnico-setorial, tanto sanitário como estético-viário.
Esse urbanismo culturalista, no entanto, não sabe lidar com as cidades existentes, a não
ser via demolição de bairros inteiros ou até de cidades inteiras, vistas como irracionais e
obsoletas.
Não é capa de captar a lógica da desordem urbana, escondida por detrás do caos urbano,
visível na deterioração ambiental; nas habitações miseráveis dos bairros pobres; na demolição e
reconstrução contínuas das partes mais antigas, perdendo-se, com isso, a memória histórica; na
falta crônica de uma infra-estrutura adequada, especialmente de transportes, sempre
congestionada em inúmeros pontos, etc.; como resultado básico da busca de propostas pelos
proprietários imobiliários de valorização produzida pelo esforço coletivo.
Como o urbanismo culturalista não é capaz de analisar e formular a lógica conflitante do
desenvolvimento urbano, não consegue tampouco propor alternativas que não sejam aquelas que,
supostamente, estariam acima dos interesses sociais em jogo: a mera reconstrução física do
espaço.
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Nesse ponto ele se torna utópico, na medida em que, ingenuamente, propõe a correção de
distorções sociais por via da ordenação ou reordenação física do espaço, da mesma forma, mas
em versão diferente, que o urbanismo das cidades-jardins de Howard (embora, nesse caso,
propusessem a propriedade pública ao solo como antídoto aos ganhos especulativos).
Reconhece-se, hoje em dia, em amplos setores da sociedade, a necessidade de análises
mais abrangentes, globalizantes, que superam as visões particularizadas referidas, para que se
caminhe na direção de uma solução mais completa dos problemas que enfrentamos.
Nesse sentido, e ainda dentro de uma visão do urbanismo técnico-setorial, deve-se
destacar, inicialmente, um esforço especial que está sendo realizado, através de um novo
instrumento de investigação social, desenvolvido durante a Segunda Guerra Mundial, para fins
militares, e, após ela, para fins militares e civis: análise sistêmica. A contribuição positiva, dada
pela análise de sistemas, em acionar as artes de um todo em um conjunto de elementos
interagentes, em vez de analisar isoladamente cada fator que causa problemas na sociedade. No
entanto, embora ambiciosa em seu escopo, a análise sistemática tem-se detido na escolha de
todos, que são na realidade muito particularizados, como, por exemplo, as análises de um setor
da estrutura das cidades, o de transportes urbanos, ou análises da ação de uma determinada
agência governamental sobre os problemas das cidades, como a Empresa de Urbanização de
São Paulo (Emurb-SP). Essa visão sistêmica, em muitos casos, restringe ainda mais o seu nível
de análise, como é o caso da organização interna dos serviços urbanos específicos, como o da
coleta de lixo, a distribuição de água, etc., visando sempre um objetivo que pode ser traduzido
pela expressão "otimização". A otimização é a preocupação com a eficiência dos serviços e não
com a eficácia na solução dos problemas envolvidos. Significa buscar atingir um determinado
objetivo de forma ótima, isto é, com o dispêndio mínimo de recursos humanos, financeiros e
tecnológicos. É importante destacar aqui que o objetivo a alcançar não é posto em discussão. Ele
é definido, politicamente, ao nível dos altos escalões governamentais ou, externamente, pelos
clientes que o contratam, ficando, portanto, fora do âmbito da sua análise. A otimização não
questiona os fins a serem atingidos e analisa apenas os meios de atingi-los. Assim, essa análise
fica impedida, pela sua própria-estrutura, de ter uma ampla visão crítica da realidade em questão.
No entanto, devemos reconhecer na análise sistêmica um esforço de globalização que tem
conseguido alguns resultados positivos, em termos de maior eficiência conseguida, como no
campo dos transportes urbanos nas grandes cidades.
Mas, se alguns êxitos têm sido alcançados pela análise sistêmica, ela e ainda bastante
parcial e, por isso mesmo, escapa-lhe a natureza conflitante da sociedade, unida e ao mesmo
tempo dividida pelos interesses de grupos e de classes sociais.
Destaquemos a seguir algumas contribuições de grande importância na análise científica
sobre a questão urbana.
Essas contribuições forneceram as bases teóricas para o desenvolvimento de um
urbanismo científico, isto é, nem utópico nem setorial.
Os autores mais importantes dessa contribuição ao pensamento sobre o urbano são os
alemães Engels (†1895) e Marx (†1883), que, analisando a formação e o desenvolvimento do
capitalismo como fator determinante na organização da sociedade, desenvolveram conceitos que
propiciaram o início da análise do processo de formação e desenvolvimento do espaço urbano de
um ângulo sócio-político global e estrutural. Mais do que uma análise generalizada e completa
desse processo, esses pensadores nos legaram alguns conceitos seminais: o da transformação
da terra em objetivo de relações mercantis (mercadoria), entrelaçadamente com o de renda da
terra, que se revelam, hoje em dia, tão importantes na compreensão dos problemas urbanos.
Esses conceitos foram desenvolvidos a partir das contribuições dos economistas fundadores da
economia como ciência, especialmente os fisiocratas e os ingleses Adam Smith e David Ricardo.
Engels, especialmente, deixou-nos ainda alguns textos, hoje clássicos, da análise do problema da
habitação, como o desenvolvido a propósito das péssimas condições habitacionais dos bairros
pobres de Manchester.
Os problemas urbanos, por serem considerados, pelo pensamento marxista, secundários
no processo de transformação das sociedades capitalistas, não merecem de seus seguidores, até
o início da década de 70, um esforço especial de análise. Paradoxalmente, por isso mesmo, até
cerca de quinze anos atrás, os marxistas deram aos problemas urbanos o mesmo tratamento do
urbanismo técnico-setorial, que é o da segmentação da realidade, sob o argumento de que não
eram parte das contradições básicas da sociedade capitalista.
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Paralelamente ao pensamento marxista e sofrendo deste influência maior (na Europa) ou


menor (nos EUA), desenvolveu-se uma análise sistemática e científica das questões urbanas.
No campo da geografia, especialmente na França, foram realizadas análises descritivas de
fundamental valia, tanto ao nível de formação de rede de cidades no território, como o conceito de
pólos de desenvolvimento (Perroux) e a teoria dos lugares centrais (Christaller), quanto ao nível
intra-urbano, do processo de estruturação do espaço interno das cidades (como a estruturação
intra-urbana em pólos de serviços também hierarquizados de Lebret, uma extensão da teoria de
Christaller).
No Campo da sociologia, devemos dar ênfase especial a dois esforços básicos. De um
lado, a partir das teorias macrossociais, buscou-se compreender o que de específico apresentam
as cidades, como o alemão Max Weber. De outra perspectiva teórica, temos os componentes da
chamada Escola de Chicago, que trabalharam especialmente de 1916 em diante, sendo seu
fundador Robert Park.2
Weber escreveu um trabalho de fundamental importância denominado A cidade, publicado
em 1905. Nele, em vez de descrever como as cidades poderiam levar a um sentido de solidão
(uma forma muito freqüente de ver as cidades pelos analistas antiurbanos), procura analisar em
que condições as cidades poderiam ter influências positivas e negativas na vida dos homens
comuns. Para ele, a cidade é um conjunto de relações sociais que encoraja a individualidade e a
inovação, sendo assim instrumento de transformação histórica. Weber destaca o papel das
cidades na passagem da sociedade antiga para a medieval, e desta para o capitalismo mercantil.
Os analistas da Escola de Chicago3 tentam compreender as cidades como sistemas
ecológicos humanos, à semelhança dos sistemas ecológicos que envolvem a interação dos seres
vivos e meio ambiente, em um processo competitivo pela sobrevivência.
Mais do que preocupados em explicar a evolução na forma espacial da cidade, queriam
conhecer, a partir dos trabalhos de Weber e também do psicólogo social alemão Simmel,4 quais
eram as forças não econômicas que trabalham para formar a cultura das cidades. O trabalho de
Park, publicado em 1916, A cidade: algumas sugestões para o estudo do comportamento humano
no ambiente urbano, transformou-se em um marco referencial para todos os estudos urbanos
desenvolvidos desde então na Europa e na América.
Os urbanistas da Escola de Chicago dedicaram-se a descrições das transformações mais
de caráter espacial que social.
Desenvolveram modelos descritivos, isto e, sem se preocupar em identificar suas causas,
da estrutura intra-urbana, como os de Burguess (estrutura dos círculos concêntricos de densidade
decrescente - 1923), o de Homer Hoyt (estrutura por setores a partir do ponto central, separando
classes sociais - 1939) e o de Harris e Ulman (da polarização em torno dos centros de serviços -
1945).
A sociologia urbana dedicou-se ainda ao estudo de comunidades específicas,
especialmente as das chamadas minorias raciais das cidades norte-americanas. As visões do
conjunto falharam, pois não apontavam explicações que interligassem as análises das questões
sociais ao nível urbano. Passou-se até a se questionar a possibilidade de existência de um
conhecimento específico sobre o urbano, que nada mais seria do que o suporte físico, o palco
neutro das ocorrências sociais, sem quaisquer outras implicações.
No campo da economia neoclássica,5 que ganhou grande impulso neste século, a teoria
que se procurou construir na análise da cidade desenvolveu-se com grandes dificuldades, peIa
necessidade inescapável de ter de introduzir as dimensões do tempo e do espaço em seus
modelos explicativos. Tropeçou ainda com o conceito de externalidade, que são os benefícios ou
malefícios que um produtor ou consumidor produz para seus vizinhos, mesmo não o desejando ou
não tendo essa consciência.

2
Leia o artigo fundamental de Robert Park. "The City, suggestions for the investigation on human behavior in the urban
environment", in Sennet, Richard (ed.), Classic essays on the culture of cities, Nova York, Appleton - Century - Crofts,
1970, pp. 91-130.
3
Resumo dessa forma de analisar a cidade encontra-se em DELLA DONNE, Marcella, Teorias sobre a cidade, Lisboa,
Livraria Martins Fontes, 1983, pp. 39-47. Resumo crítico será encontrado em CASTELLS, Manuel, Problemas de
investigación en sociologia urbana, Madri, Siglo XXI, 1971, pp. 135-145.
4
Ver os trabalhos básicos de Simmel e Weber in Sennet (1970), op. cit.
5
Excelente resumo das teorias econômicas com ênfase nas neoclássicas encontra-se no trabalho de DERYCKE,
Pierre-Henri, Economia y planiflcación urbanas, Madri, Instituto de Estudios de Administratión Local, 1983. pp. 69-407.
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A teoria neoclássica tem dificuldade de introduzir o conceito de espaço e de tempo na


análise econômica, porque é usualmente desenvolvida a partir da óptica de uma firma ou de um
consumidor hipotéticos e genéricos, negligenciando o papel do Estado. Deve-se destacar, no
entanto, as contribuições básicas do alemão Von Thunen,6 propostas já em 1826, que permitem
entender melhor o papel da acessibilidade derivada dos sistemas de transporte na estruturação do
espaço, acrescida das derivações atuais dessa teoria, que estão sendo utilizadas para a análise
da melhor posição de uma empresa produtiva ou de um morador no território. Estuda-se a melhor
posição de um pólo industrial ou então de serviços, que, nesses casos, é geralmente um
estabelecimento de comércio, como os shopping centers. Deve-se ainda destacar a contribuição
de William Alonso, em 1964, na tentativa de explicar no interior do marco teórico da economia
funciona-lista ou neoclássica a localização residencial no espaço intra-urbano, em termos de uma
composição de custos de aluguel, refletindo qualidade ambiental e de transportes, no quadro da
atual economia urbana capitalista e competitiva, nos países desenvolvidos.
Uma interessante teoria, e que se aplica tanto a economias capitalistas como socialistas, é
aquela em que se explicam os diferentes tamanhos das cidades como resultado da necessária
especialização na prestação de serviços como os do comércio, os culturais, os de lazer, os
educacionais, de saúde, etc., decorrentes da base econômica desses serviços. Por exemplo, um
hospital especializado, para ser econômico, deve se situar em um lugar mais central que um posto
de saúde. A freqüência de demanda por cada um dos serviços, articulada aos custos da sua
produção, obriga à existência de uma hierarquia no tamanho das cidades desde a grande
metrópole até a vila; pela mesma razão, obriga ainda a existência de pólos urbanos
hierarquizados no interior do espaço das metrópoles, desde o centro metropolitano até o centro de
um bairro de 5 mil habitantes.
A essa teoria dos lugares centrais (Christaller - 1933-1966),7 como é conhecida, junta-se
aquela que procura compreender a base econômica das cidades (Tiebour - 1962)8 aplicando
conceitos utilizados na análise econômica regional e até nacional, como o do excedente produtivo
em relação ao mercado de consumo constituído pelos seus habitantes, tornando-se possível a
exportação para fora da cidade considerada, criando-se assim uma zona de influência de um
núcleo urbano.
Pode-se assim definir por esse tipo de análise a existência de uma produção urbana
realizada nas cidades, que é, em parte, consumi da pelo mercado, constituído por suas empresas,
seus cidadãos e seu governo, e, em parte, exportada para uma ou mais regiões. Os recursos
provenientes dessa exportação de capitais, mercadorias e serviços podem ser iguais, inferiores ou
superiores ao valor das mercadorias, serviços e capitais importados, caracterizando um balanço
de pagamentos urbanos, caracterizador, por sua vez, de saúde econômica e financeira do núcleo
considerado. A zona de econômica de uma cidade é aquela para onde se exporta e de onde se
importa.
Esses conceitos são úteis quando se discute se as cidades são grandes demais ou não, se
o custo de sua construção e utilização é ou não exagerado, pois permitem levar em consideração
não apenas o lado dos custos, mas também o dos benefícios econômicos. A técnica de análise
dos custos e benefícios para projetos específicos a serem implantados é uma contribuição válida
no nível setorial dada pela teoria neoclássica à compreensão das alternativas de decisão em
geral, inclusive quanto àquelas do planejamento urbano. Essa técnica é utilizada razoavelmente
apenas para os aspectos quantificáveis das questões envolvidas.9
No campo da economia neoclássica, a obra do economista francês François Perroux
(1955)10 desenvolve o conceito de pólo de crescimento a partir de uma indústria ou de um
complexo industrial, que teria o poder de desenvolver uma região e ordenar o seu território.
6
Ver DERYCKE (1983), op. cit., pp. 105-126
7
Ver DERYCKE (1983), op. cit., pp. 147-189, e DELLA DONNE, Marcella, op. cit., pp. 125-130.
8
Ver THOMPSON, Wilbur R., Un prefacio a Ia economia urbana, Gustavo Gili, 1982, pp. 2, 3, 27-30. Ver a análise
seminal de TlEBOUT, Charles M., "The community economic base study", Supplementary Paper nº 16, Committee for
Economic Development, Nova York, 1962, e BLUMENFELD, Hans, "The economic base of the metropolis", Journal of
lhe American Institute of Planners, Fall, 1955, pp. 114-132.
9
Uma discussão sobre a possibilidade de se definir um tamanho ótimo para as cidades encontra-se em DERYCKE
(1983), op. cit., pp. 213-239.
10
Ver PERROUX, François, "Nota sobre el concepto de 'polo de crescimiento’", in PERROUX, F., FRIEDMAN, J. e
TINBERGEN, J., "Los polos de desarrollo y Ia planificación nacional, urbana y regional", Buenos Aires, Ediciones Nueva
Visión, Fichas NV 16, 1973.
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Em época mais recente vem se buscando aplicar o conceito de pólos urbanos, que formam
uma rede hierarquizada de cidades, à discussão das disparidades regionais e mesmo
disparidades internas das grandes cidades e metrópoles.
Também o padre dominicano Joseph Lebret, com seu grupo de estudos Economia e
Humanismo, com sede em Paris, atual Irfed, ampliou, no pós-guerra, o âmbito da análise,
colocando a questão da organização territorial, de um ângulo social, no centro da questão maior
do desenvolvimento regional e de um país.
O pensamento de Lebret aproximou-se assim rapidamente daqueles que buscavam
explicar o subdesenvolvimento de um país e as disparidades entre regiões de uma mesma nação,
procurando ao mesmo tempo encontrar modelos e métodos de ação que produzissem o
desenvolvimento regional e nacional, especialmente um grupo de economistas da Cepal -
Comissão Econômica para a América Latina, da ONU, em que se destaca o brasileiro Celso
Furtado.
No Brasil, e especialmente em Minas Gerais e São Paulo, tal simbiose intelectual continua
seu curso, ao mesmo tempo que um grupo de planejadores, mais ou menos heterogêneo,
originário dessa tradição teórica, procura incorporar em suas abordagens as análises das
contribuições das lutas operárias e, especialmente, dos movimentos sociais urbanos e rurais, nos
avanços e retrocessos da ação do Estado no campo e nas cidades.
A partir de poucos anos atrás, retomando a tradição das ciências sociais ligadas à
economia política, desenvolve-se uma análise que parece extremamente promissora para
instrumentalizar cientificamente aqueles interessados em atuar sobre as causas dos problemas
urbanos e não apenas sobre os seus efeitos.
Esses analistas desenvolveram a idéia de que o fenômeno propriamente urbano está no
surgimento de aglomerados humanos, que exigem para o seu funcionamento o desenvolvimento
de condições gerais para a produção e consumo das mercadorias em geral, tanto ao nível da rede
de cidades como ao nível intra-urbano.11 Essas condições gerais são mais facilmente visíveis
consubstanciadas na infra-estrutura de serviços urbanos, especialmente os de comunicação e de
transportes de pessoas e mercadorias. Também faz parte dessas condições gerais a legislação
urbanística controladora do uso e ocupação do solo, que, quando obedecida, garante, em um
primeiro momento, uma redução do nível de conflito social de interesses existentes, de modo a
evitar a ruptura da estrutura social, e em um segundo momento, a conquista de direitos sociais
das camadas sociais não hegemônicas, embora também possa ser apenas a consolidação legal
de privilégios de grupos sociais.
As regras definidoras do uso e exploração comercial dessa infra-estrutura coletiva também
fazem parte das condições gerais de produção e consumo como o é a concessão monopolística
realizada pelo Estado a empresas privadas ou empresas públicas, de certo modo privatizadas
pelo escasso controle que a sociedade como um todo conseguiu até hoje exercer sobre elas. A
produção e regulação dessas condições gerais é condicionante sine qua non da possibilidade do
uso produtivo do espaço regional urbano (o da rede de cidades) como do espaço intra-urbano (o
da estrutura física interna das cidades).
Embora historicamente as concessões para a exploração privada desses meios coletivos
ensejem abusos, dada sua importância estratégica no conjunto das cidades e mesmo da
sociedade, caminha-se mais rapidamente para se estabelecer um controle social sobre eles,
estatizando-se, isto é, passando a sua implantação e operação para a esfera do Estado. É claro
que, dependendo do grau de democracia que se conseguir implantar em determinada sociedade-
comunidade urbana, esse controle social e democrático será maior ou menor, ensejando menor
ou maior abuso dos responsáveis diretos por ela.
Mas são as regras definidoras do uso do solo urbano aquelas que apresentam um
interesse crucial para a análise dos conflitos ocorrentes nas cidades.

11
No Brasil, trabalho pioneiro foi o de LAMPARELLI, Celso, “Nota introdutória a um objeto de estudo: o urbano", Revista
Fundap, 1981. Os trabalhos fundadores dessa visão encontram-se em LOJKINE, Jean, O Estado capitalista e a questão
urbana, São Paulo, Martins Fontes, 198 (1ª edição francesa). Le Marxisme, l'État et Ia question urbaine, Paris, PUF,
1977, e TOPALOV, Christian, La urbanización capitalista, México, Editorial Edicol, 1979. Ver ainda a compilação de
textos críticos de FORTI, Reginaldo, Marxismo e urbanismo e urbanismo capitalista, São Paulo, Livraria Edirora
Ciências Humanas, 1979, com textos selecionados de Lojkine, Topalov, Godard, Castells, Cervellati, Scannavini e
Cohen.
9

Quanto ao controle do uso e do abuso do solo urbano, o avanço tem sido mais lento. A
renda da terra, isto é, o valor que assumem os imóveis no mercado imobiliário capitalista,
depende de como o mercado está organizado. É conhecido pela teoria econômica o grau elevado
da não substitutividade da gleba ou do lote urbano, isto é, cada lote localizado no espaço intra-
urbano apresenta características próprias quanto às vantagens locacionais, sejam elas
paisagísticas (como a proximidade de uma praia, a encosta de um morro, a beira de um rio),
sejam decorrentes das características da distribuição das redes de infra-estrutura urbana,
especialmente a viária e de transporte.
Daí porque a avaliação de um imóvel depende de estudos aprofundados e específicos de
cada caso. Essa característica, a de difícil substitutividade, confere a cada lote urbano um caráter
monopolístico, isto é, dificulta a concorrência no mercado da terra urbana, tirando-lhe as bases do
postulado maior do capitalismo liberal: a livre competição.
Dependendo, básica, mas não exclusivamente, do valor da terra urbana, das vantagens
locacionais referidas, a implantação de infra-estrutura nas proximidades ou na frente de uma área,
a sua existência ou não passam a ser de enorme interesse para o seu proprietário. Assim, deixar
de vender uma área, no aguardo de uma infra-estrutura que será produzida publicamente, pode
passar a ser norma de comportamento entre os proprietários de terra e imóveis em geral, no
interior do espaço urbano ou na sua periferia rural imediata, na expectativa de crescimento da
cidade que lhe é próxima.
Esse fenômeno de ganho privado pelo proprietário de imóveis à custa de um investimento
da comunidade, através, inclusive, da ação estatal, é denominado especulação imobiliária.
Nos países do capitalismo avançado da Europa, especialmente na França12 e na Itália, o
debate sobre a justiça da apropriação privada desse valor produzido coletivamente desembocou,
em 1975 e 1977 respectivamente, na instituição de instrumentos fiscais que possibilitam, sem
garantir, o reto retorno dessa mais-valia comunitária para o seu bolso. Na França foi denominado
plafond légal de densité (o teto legal de densidade), e na Itália, normas para a edificabilidade. No
Brasil, essa versão francesa e italiana é chamada de "solo criado", na ocorrência da urbanização
com ou sem edificação vertical.
Na França, a preocupação básica convergiu para a necessidade de obrigar legalmente
quem criar solo acima de um índice de aproveitamento igual a 1,5, em Paris, e igual a 1,0 nas
demais cidades francesas a pagar um preço que compense o poder público, isto é, a
comunidade, das despesas que terá que gastar ao ampliar a infra-estrutura de serviços-urbanos,
áreas verdes e equipamentos comunitários (escolas, creches, etc), que a nova densidade
populacional decorrente do “solo criado” acima daqueles tetos iniciais vai exigir.
O zoneamento tradicional que pretende estabelecer os tetos máximos de acordo com a
infra-estrutura existente ou a implantar, continua prevalecendo, de modo que não se pode criar
solo acima desses tetos do zoneamento. Na Itália, o solo criado é cobrado de quem urbaniza
construindo prédios; horizontais e verticais, isto é, para qualquer coeficiente de aproveitamento do
terreno, desde a aprovação da lei nº 10 de 1975. Correspondentemente, na Itália, o Estado está
encarregado de colocar toda a infra-estrutura urbana.
Voltando-se, mais uma vez, aos inícios da formação das grandes cidades na sociedade
industrial, é preciso mencionar uma outra vertente do urbanismo político não globalizante, mas
particularizante, que nasceu dos embates urbanos entre grupos de interesses, nos grandes
centros capitalistas, especialmente norte-americanos.
Neles, o sistema democrático vigente, logo no fim do século passado e no início deste,
colocou frente a frente, de um lado, o urbanismo setorial dos técnicos e, do outro, o urbanismo
globalizante dos políticos.
O domínio da máquina administrativa municipal por determinadas forças sociais para
alcançar objetivos políticos era muito importante, pois, senão se assegurasse aquele domínio, ele
ficaria nas mãos da "neutralidade científica" dos técnico-urbanistas.
A partir do conflito de interesses, gerado no bojo dessa luta entre técnicos e políticos, a
análise da evolução das relações das estruturas administrativas municipais com as estatais e

12
Ver uma análise das políticas territoriais desenvolvidas na França nas décadas de 60 e 70, que foram extremamente
criativas face às crises que foram enfrentadas, em DERYCKE (1983), op. cit., pp. 379-390. O autor destaca nessa
análise o papel desempenhado pela lei Galley (1975), que instituiu o plaford legal de densité ou o "solo criado", na
França, que será mais bem explicado nos capítulos 3 e 4.
10

federais, na briga pela repartição dos recursos públicos aplicados na solução da problemática
urbana, em conexão com a ação de grupos sociais, passou, pouco a pouco, nos EUA, a ser
preocupação de estudos de cientistas sociais, inclusive das finanças públicas, que, especialmente
através da citada Escola de Chicago, e sempre a posteriori dos fatos e sem procurar uma visão
mais geral desse processo social, procuram entender a natureza política dos interesses em jogo.
Nos EUA, essa nova corrente, desde os anos 60, vem se opondo à prática dos chamados
engenheiros sociais urbanos, como eram chamados os urbanistas técnico-setoriais, que, definindo
os problemas do pós-guerra - imigração, negro, explosão populacional e sua concentração nas
cidades, decadência física de edifícios nos bairros centrais, poluição do ar e da água -,
propunham, como solução, apenas ajustamentos da maquinaria legal e governamental e a
urbanização ou a reurbanização física.
Neste século, a atuação dos urbanistas técnico-setoriais especialmente, mas também dos
urbanistas políticos globalizantes, nos EUA e também, em certa medida, no Brasil, contrapunha-
se assim à atuação dos políticos. No entanto, os urbanistas técnico-setoriais, através de sua
postura adaptativa, pragmática, tendiam a se compor com os interesses dos políticos militantes,
interessados nas questões urbanas. Os urbanistas políticos globalizantes iam traduzindo cada vez
mais suas propostas em modelos de organização urbana, buscando o que supunham ser uma
visão geral das questões urbanas através de planos de organização da estrutura e tecido físico da
cidade como um todo: o Master Plan dos EUA e os planos diretores ou reguladores da tradição
latina e brasileira. Com a imagem de uma cidade futura que, supostamente, seria organizada de
uma forma perfeita, ou seja, a imagem de uma cidade ideal definida para um ano meta, dez ou
vinte anos no futuro, esses urbanistas seduziam boa parte da opinião pública. Essa sedução
advinha do uso de imagens de um equilíbrio urbano, de uma cidade ideal, não limitada apenas
aos aspectos físicos, mas que extrapolavam para aspectos humanos e sociais, prometendo uma
vida mais feliz e equilibrada, a partir de uma melhor organização física. Era como se os problemas
sociais e humanos nas cidades decorressem apenas ou fundamentalmente dos problemas
relativos à excessiva densidade populacional nos bairros centrais, do ambiente físico deteriorado,
da poluição ambiental, etc.
Se os urbanistas políticos globalizantes tendem a um urbanismo com grande dose de
ingenuidade, segundo a tradição do urbanismo utópico, os urbanistas técnico-setoriais, aliados
aos políticos, agindo segmentariamente em uma dada estrutura administrativa governamental,
também compartimentada, entram diretamente, sem rodeios, no jogo político da administração
pública. Sua atuação dá-se então, muitas vezes, de modo a aumentar a participação relativa de
um determinado setor público, como é o caso do setor viário ou do setor de serviços de
urbanização, no que se refere ao valor dos investimentos a eles destinados. Outras vezes, agem
no sentido de defender interesses imobiliários através do controle do valor de troca do solo, seja
pelos investimentos públicos, para isso judiciosamente localizados, seja pelas leis urbanísticas,
manejadas convenientemente para isso. Com essa atitude, deixam de lado preocupações com o
conjunto da cidade e, mais especialmente, com os problemas sociais existentes, destacando-se o
problema da habitação para a população mais pobre e seus equipamentos, como água, luz,
esgoto, escola, posto de saúde, áreas de lazer, como também a questão da qualidade de vida
para as classes médias urbanas.
Paralelamente, os urbanistas que estão procurando obter uma fundamentação técnica e
científica mais ampla e globalizante buscam nessa fundamentação apoio para uma atuação
política maior, mas muitos o fazem sem grande chance de sucesso, pelo caráter, em geral,
desligado da realidade social que caracterizam suas propostas. Entretanto, os urbanistas de
fundamentação técnica e científica mais estreita e setorizante atuam com grande realismo político,
conseguindo a implementação de suas propostas parciais.
A partir da década de 50 vemos surgir um novo urbanismo. Ele se caracteriza, nos países
centrais do capitalismo, por uma aguda visão da questão social, que se tornou claramente uma
questão urbana fundamental. Nos países de capitalismo periférico, ele se caracteriza pela
percepção de que a questão urbana continua estreitamente entrelaçada com a questão rural.
Nestes, o processo de migração campo-cidade continua em curso, e em alguns países, como no
Brasil, tal processo de urbanização já atingiu tais níveis que se pode afirmar que a questão urbana
torna-se, dia a dia, mais importante do que a agrária. Isso será discutido nos capítulos seguintes.
A visão instituída de intervenção planejada no processo de urbanização, ao nível
interurbano - o da rede das cidades - e ao nível intra-urbano - o do espaço interno das cidades -,
11

passou a adquirir uma nova dimensão conceitual: a de privilegiar determinados fatores como
fatores-chaves, fatores estruturais no processo de planejamento da desejada transformação das
questões urbanas.
Ao privilegiar a atuação sobre fatores estruturantes da realidade urbana, procura-se
escapar ao dilema da atuação, de um lado, sobre o todo da realidade das cidades, como se tentou
fazer nos planos integrados e de longo prazo, ou, de outro lado e alternativamente, sobre
aspectos parciais dessa mesma realidade, procurando transformações pequenas e incrementais,
porque seriam as únicas factíveis, técnica e politicamente.
A descoberta teórica e prática de um fator estruturante permite atuar sobre uma parcela da
realidade que possui o poder de modificar, através dele, um conjunto de grande amplitude da
realidade urbana e social.13
A visão de uma realidade estruturada a partir de fatores-chaves determinantes foi a grande
inovação que o pensamento desenvolvido nas culturas ocidentais trouxe, na esteira das
contribuições de Darwin (†1882), com a sua teoria explicativa da origem e evolução das espécies
animais, inclusive o ser humano, que privilegia como variável estruturante a luta pela
sobrevivência das espécies, frente a uma natureza agressiva e cambiante ao longo dos milênios
da história de vida em nosso planeta; de Marx (†1883), com a sua teoria de organização da
sociedade e do processo de sua transformação, da sociedade antiga escravocrata para a
sociedade feudal, e desta para o capitalismo, a partir da variável ou fator-chave, que é o
desenvolvimento das forças produtivas, que contrapõem, nos diferentes modos de produção, os
interesses do Capital e do trabalho; e de Freud (†1929), com a sua teoria da transformação dãs
personalidades individuais e coletivas a partir das relações entre a sexualidade, o emocional e os
modos de pensar, desde a fase pré-natal, na evolução de cada ser humano e dos grupos sociais
por ele constituídos.
Durante o século XX tais teorias se entrelaçam e se desenvolvem, passando a representar
ramos específicos de grande riqueza explicativa para os fenômenos que nos interessam mais de
perto.
Assim, no nível macrossocial, desenvolveu-se, nos últimos dois decênios, uma teoria de
dependência, cuja grande expressão no Brasil é Celso Furtado,14 que atribuiu o
subdesenvolvimento às relações de intercâmbio de importação e exportação de produtos, serviços
e capitais, entre os países periféricos capitalistas e os países em desenvolvimento centrais desse
sistema. Procurou-se, em seguida, explicar a macrocefalia na rede das cidades, isto é, uma rede
que apresenta algumas poucas e gigantescas cidades e um grande número de pequenas cidades
e poucas cidades médias, que ocorre freqüentemente nos países de capitalização periférica e
dependente, como resultado dessas relações externas estruturais.
Ao nível da qualidade de vida mental nas grandes cidades, Georg Simmel (†1902) destaca
o fator básico do excesso de estímulos como causador do surgimento de uma carapaça
psicológica que envolve a personalidade dos habitantes urbanos nas metrópoles, insensibilizando-
os para uma vida mais criativa no campo das relações humanas e reduzindo-lhes a solidariedade
e a própria capacidade de expressão através das artes. Nessa mesma direção caminha Marcuse
(†1973),15 procurando entrelaçar de modo sistemático a análise marxista e a de Freud, mostrando
como as relações sociais conflitantes - e não o tamanho das cidades ou a densidade de ocupação
do espaço físico - contribuem para uma insensibilização alienante do homem face à própria
natureza humana.
Ao nível interno das cidades e privilegiando a análise dos interesses imobiliários com
ênfase nos interesses dos produtores, ou seja, do capital, com Harvey, Lojkine, Topalov,

13
Nos Estados Unidos desenvolveu-se o confronto entre essas duas correntes, gerando uma teoria do planejamento
que contrapõe, de um lado, os comprehensive planners, que tudo querem abarcar de forma ingênua, e os incremental
planners, que se contentam em dar pequenos passos corretivos. É interessante perceber as dificuldades do
pragmatismo anglo-saxão, ou seja, seu empirismo científico, sem superar tal oposição de posições para nós claramente
insuficientes. Ver FALUDI, Andreas (org.), A reader in planning theory, Oxford, Pergamon Prcss, 1ª ed., 1973,
especialmente pp. 113-217.
14
Ver FURTADO, Celso, Pequena introdução ao desenvolvimento: enfoque interdisciplinar, São Paulo, Nacional, 1980,
especialmente pp. 79-80.
15
Ver MARCUSE. Herbert. Na essay on liberation, Boston, Beacon Press, 1969, e A dimensão estética, São Paulo,
Perspectiva, 1981.
12

Preteceille, Sipietz e outros.16 reformam-se categorias clássicas da economia política, como a de


renda da terra, desenvolvida posteriormente por Marx. Essa variável-chave explicaria a
transferência de renda entre classes e grupos sociais e seria essencial no esclarecimento das
questões relativas à organização da sociedade no espaço territorial. Explicaria ainda as
contradições de interesses no processo de transformação da sociedade feudal para a capitalista e
de evolução desta até a fase atual do capitalismo industrial e monopolista, nos países centrais, e
as estruturas heterogêneas, onde várias etapas capitalistas se entrelaçam nos países
dependentes e periféricos desse sistema, como no Brasil,
Ainda no nível interno das cidades, procura-se nas ciências sociais destacar certos níveis
da realidade como aqueles em que a sociedade se revela e se estrutura de uma forma nova. É o
caso da análise da suposta marginalidade urbana; ao contrário de ser marginal à sociedade, ela é
parte de sua estrutura que se apresenta claramente nas favelas, cortiços e situações de miséria
no interior das cidades. Este é o caso também da recente e inconclusa análise do novo papel
político dos movimentos sociais urbanos tanto nos países centrais do capitalismo (pesquisa
liderada nestes últimos quinze anos por Castells)17 como nos dependentes, inclusive o Brasil
(análise esta que muitos estão desenvolvendo, como Kowarick,18 Jacobi, Moisés, Carlos Nelson
Santos, Blay, Bom Duki, Gohn e outros).
O trabalho do teórico social espanhol Manuel Castells merece uma citação à parte, pelo
esforço de integração que realiza. De um lado, Castells analisa exaustivamente a importante
contribuição da sociologia urbana norte-americana de fundo empiricista, especialmente a
desenvolvida a partir da demografia e a já citada ecologia urbana da Escola de Chicago. Por outro
lado, Castells procura integrar a esse pensamento empiricista, que dá grande ênfase ao
levantamento dos dados da realidade, o pensamento neomarxista. Este privilegia a cidade como
espaço onde se coloca, de forma cada vez mais cruciante, a questão do consumo coletivo, isto é,
das habitações, das redes de serviços urbanos, etc., no quadro da transformação do capitalismo,
sobretudo no presente período da afirmação das grandes empresas multinacionais. Em sua
análise, Castells procura, no quadro do capitalismo monopolista, compreender o papel crescente
dos movimentos sociais urbanos como parte dos conflitos entre os interesses das diferentes
classes, estamentos e grupos sociais nas sociedades capitalistas contemporâneas, inclusive as
do capitalismo periférico.
Há ainda, além das análises que privilegiam os interesses do capital, e em essencial do
capital imobiliário como a de Topalov e as que valorizam a perspectiva dos movimentos sociais
como as de Castells, as tentativas de análise que buscam interligar as análises dos interesses
imobiliários relacionados à renda da terra, isto é, à valorização imobiliária constante, conjugada ao
processo de produção e consumo do espaço urbano periférico e derivada do processo maior de
desenvolvimento do capitalismo periférico e dependente, com as análises dos movimentos sociais
urbanos em seu processo político reivindicatório e a resposta dos grupos dominantes através do
clientelismo como prática política como a que buscamos aqui desenvolver.19

16
Ver resumo do pensamento neomarxista em DERYCKE (1983), op. cit., pp. 363-374. Veja também LOJKINE, Jean,
"Análise marxista do Estado", in Espaço e Debates, ano 1, nº 1, jan. 1981, São Paulo. Ver ainda HARVEY, David, A
justiça social e a cidade, especialmente o capítulo 5, "Valor de uso, valor de troca e a teoria do uso do solo urbano", São
Paulo, Hucitec, 1980. Ver também LIPIETZ, Alain, EI capital y su espacio, México, Siglo XXI, 1977.
17
O último livro de Manuel Castells sobre os movimentos sociais é o The city and the grass roots, Berkeley, University of
California Press, 1983. Uma discussão mais teórica encontra-se em City, class and power. Nova York. ST Martins press,
1978.
18
Ver em KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana, São Paulo, Paz e Terra, 1980, com base em estudos de formação
do espaço das cidades brasileiras, especialmente de São Paulo, análise de como a classe trabalhadora é vítima da
lógica da desordem. Um levantamento bibliográfico bastante completo comentado, sucinto, sobre os movimentos sociais
urbanos encontra-se em KOWARICK. Lúcio, "Movimentos urbanos no Brasil contemporâneo: uma análise da literatura",
Revista Brasileira de Ciências Sociais, ANPOCS, nº 3, vol. 1, fev. 87, pp. 38-50.
19
Essa perspectiva integradora está sendo buscada ainda por muito poucos. Ela se ressente das dificuldades de
integração metodológica entre os que desenvolvem a metodologia no âmbito da economia política, que tende a
privilegiar os interesses do capital, e a da sociologia e antropologia, que tende a enfatizar os interesses dos movimentos
sociais. O urbanismo ou planejamento urbano, que tem desenvolvido seu processo de análise a partir das questões
colocadas pela organização do território, em necessidade, pela tradição integradora de suas correntes progressistas, de
buscar apoio nos conjuntos das ciências sociais, que inclui, além das citadas, a ciência política, a geografia e a história,
voltadas para a explicação do fenômeno urbano. Essa ambição metodológica, que responde a necessidades concretas
de ação, é a dificuldade maior do planejador urbano com consciência política. É o nosso caso.
13

No nível mais específico do planejamento urbano, o enfoque estrutural desenvolveu-se a


partir do reconhecimento do papel estruturante do sistema viário e, mais especialmente, do papel
específico desempenhado por cada um dos meios de transporte como o maior gerador de renda
diferencial. Inicialmente, esse papel foi desempenhado pelo trem, depois pelo bonde e o metrô e,
em seguida, pelo automóvel e ônibus, tanto nos países centrais como os periféricos do
capitalismo. O metrô aparece recentemente como solução em alguns países centrais e periféricos,
como o Brasil.
Esse reconhecimento do papel central da oferta de acessibilidade através da construção
de vias e sistemas de transporte ocorreu desde os primórdios do urbanismo técnico, na fase que
denominamos estético-viária, mas que foi sempre sobretudo viária, por ser o problema viário
maior que o estético. Percebemos atualmente a importância dessa condição social, constituída
pelos sistemas de transporte e comunicação. Se de um lado ela corresponde à condição essencial
da aglomeração no espaço, de outro é (e por isso mesmo) a qualidade mais importante, qual seja,
a acessibilidade na geração das vantagens locacionais diferenciadas no espaço, que, por sua vez,
define de forma importante as condições geradoras da renda diferencial urbana, que é a
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