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A Mão na Massa da Criatividade Musical (prólogo)

A música proporciona uma janela aberta para o estudo dos fenômenos criativos. Como ativi-
dade social e coletiva, a prática musical coloca em funcionamento mecanismos de interação
social resultantes de processos evolutivos comuns a outras manifestações do fazer criativo hu-
mano. Como atividade individual, a criação musical requer e desenvolve os mecanismos cog-
nitivos e motores mais refinados encontrados entre os primatas. Por esses motivos, o estudo
da criatividade musical tem implicações em múltiplos âmbitos da pesquisa em criatividade.
Estranhamente, a conexão entre a pesquisa básica em criatividade e as práticas criativas em
música tem sido tênue, quase circunstancial. Psicólogos da área de criatividade – como Dean
Keith Simonton, Liane Gabora e Aaron Kozbelt – têm desenvolvido trabalhos focalizados em
música. No entanto, a falta de um diálogo permanente entre a pesquisa básica em criatividade
e a pesquisa musical dificulta – por um lado – a aplicação das teorias da criatividade geral em
música – e por outro – a utilização dos resultados criativos em música na validação e generaliza-
ção dos conceitos mais abrangentes para o estudo da criatividade. A coleção de artigos deste
volume é uma contribuição inicial no intuito de preencher esse vácuo. É interessante observar
que simultaneamente à publicação deste volume, Pamela Burnard (2012) também tenta uma
aproximação entre prática musical e pesquisa em criatividade desde a perspectiva educacional.

As perspectivas sobre criatividade e música discutidas pelos quinze autores dos sete artigos
deste volume não representam paradigmas consagrados ou aplicações de quadros teóricos
hegemônicos. Elas resultam do trabalho efetivo em pesquisa teórica e criação musical desenvol-
vido por músicos, educadores e cientistas da computação ao longo das últimas décadas. Uma
das características mais atraentes destes trabalhos é o seu modus operandi, que coloquialmente
é chamado de ‘mão na massa.’ Todos os artigos discutem e exemplificam resultados de expe-
riências práticas da criatividade aplicada. A utilização desses resultados abre perspectivas inte-
ressantes para elaborações teóricas e coloca em relevo algumas limitações no estado da arte da
pesquisa em criatividade musical. Outro aspecto comum a todas as propostas é a conceituação
da criatividade como construto multidimensional e dinâmico. Essa perspectiva oferece uma boa
contrapartida para as propostas teóricas recentes que sugerem metodologias múltiplas para o
estudo da criatividade (Mumford et al., 2011). Todos os artigos discutem aspectos do suporte
tecnológico para a criatividade, da prática musical e das implicações conceituais dessa prática.
No entanto, a ênfase muda de acordo com a aplicação específica e com o paradigma utilizado.

Em relação ao enquadramento conceitual, podemos agrupar os artigos segundo três enfo-


ques: acústico-instrumental, algorítmico e baseado em fatores humanos. O enfoque acústi-
co-instrumental aplica as técnicas e perspectivas vinculadas à prática musical instrumental. A
criatividade é entendida como uma ampliação das possibilidades criativas partindo das pos-
sibilidades dos instrumentos musicais e dos sistemas de representação do som instrumental
– incluindo o desenvolvimento e uso dos sistemas simbólicos fundamentados nas práticas
instrumentais (harmonia, contraponto, orquestração, notação embasada na prática comum).
Os enfoques algorítmicos colocam a ênfase no suporte tecnológico para a prática musical,
entendendo a criação musical como resultado do encontro entre agentes computacionais e
agentes humanos. Neste caso está é enfatizado o papel da tecnologia como fator de expan-
são das possibilidades criativas. Complementarmente, os enfoques embasados em fatores
humanos mantêm a infraestrutura tecnológica como elemento importante para a prática cria-
tiva mas colocam a ênfase nos aspectos vinculados à interação entre os agentes humanos.
A criatividade pode ser pensada como um fenômeno os trabalhos de Bello et alli (2013), McGlynn et alli (2013),
emergente da atividade humana. Apesar de que ainda não Pimenta et alli (2013) e Keller et alli (2013) tratam do suporte
existe uma definição consensual de criatividade, já foram para a criatividade que pode ser aproveitado por usuários
identificados dois requisitos comuns a todas as manifesta- leigos. Ou seja, a criatividade eminente – que é um requisito
ções criativas: a originalidade e a relevância (Amabile 1996; para os músicos experientes e que constitui o objetivo prin-
Gabora e Kaufman, 2010; Weisberg, 1993). Kozbelt et alli cipal dos trabalhos em música interativa (Wessel e Wright,
(2010) sugerem que a magnitude da criatividade pode ser 2002) – passa a ser um aspecto secundário da pesquisa.
separada em quatro categorias: criatividade mini, criativida- Em decorrência desse novo foco, a avaliação do suporte
de pequena, criatividade profissional e criatividade eminen- para a criatividade cotidiana precisa abranger variáveis que
te. Os fenômenos mais estudados são os da criatividade não estão necessariamente contempladas nos estudos que
eminente (ou Big-c). Nessa categoria estão as obras de focalizam a utilização de conceitos instrumentais.
arte e os resultados científicos publicados. As manifesta-
ções dessa magnitude demandam um nível relativamente Os modelos de criatividade musical podem ser agrupa-
alto de consenso social em relação à relevância do pro- dos de acordo com sua ênfase nas variáveis intrínsecas e
duto ou do processo criativo. A criatividade profissional extrínsecas à atividade criativa (Keller et al., 2011). Essas
(Pro-c) abrange os produtos e os processos decorrentes variáveis determinam a metodologia adotada na hora da
da atividade de criadores experientes, porém neste caso validação, portanto a compreensão do referencial teórico
os produtos não atingem o nível de reconhecimento neces- permite esclarecer as relações entre o modelo de criativi-
sário para tornar-se referência dentro do seu domínio de dade e a sua aplicação experimental. A partir da análise es-
conhecimento. A criatividade pequena (little-c) se manifesta trutural de oito modelos de criatividade musical, Keller et alli
em atividades e produtos cotidianos que não têm projeção (2011) sugerem três dimensões que podem ser extraídas
social mas que têm relevância no âmbito pessoal. A criativi- desses modelos: material (o que), procedimental (como) e
dade mini (mini-c) é constituída por processos internos que contextual (onde / quando). Dentro do campo musical, a
não têm necessariamente uma contrapartida material em maioria dos trabalhos sobre criatividade focaliza as dimen-
produtos criativos, mas que têm destaque nos aspectos sões materiais e procedimentais. Adotando a proposta de
pessoais vinculados aos processos criativos. Como vere- Shah et alli (2003), Collins (2005) sugere que os modelos
mos adiante, os conceitos discutidos na pesquisa em cria- de criatividade têm base nos produtos ou nos processos
tividade têm aplicação direta na prática musical. envolvidos no ato criativo. Os modelos baseados em pro-
dutos concentram-se na avaliação dos resultados com-
A relação entre criatividade mini – vinculada aos estados posicionais, evitando assim as complicações decorrentes
emocionais durante a prática musical – e a criatividade pe- do estudo de como esses resultados foram obtidos. Para
quena – que se manifesta necessariamente em algum tipo identificar as estratégias utilizadas pelos criadores durante
de produto sonoro – pode ter consequências importantes o ato de composição, Collins propõe a adoção de métodos
para o estudo da criatividade musical. Produtos ou proces- baseados em processos. Ele acha que esses estudos de-
sos musicais podem ser originais – como no caso de leigos vem ser longitudinais e minimamente invasivos, enfatizando
realizando atividades musicais criativas – e não preencher o a separação entre o pesquisador e o sujeito da pesquisa.
requisito de relevância, ou seja, esses produtos ou proces-
sos não são socialmente úteis em todos os casos. Por outro Contrastando com a tendência geral dos estudos em cria-
lado, alguns resultados musicais podem ser considerados tividade musical, algumas propostas recentes têm aponta-
altamente relevantes – como no caso da interpretação tecni- do as limitações dos enfoques que excluem os aspectos
camente correta de uma partitura – porém não acrescentar contextuais como fatores centrais a serem considerados na
nada ao campo da criatividade musical. Para ser classifica- hora do desenho experimental (Burnard, 2012; Lima et al.,
da como criativa, a atividade musical precisa fornecer resul- 2012). A terceira dimensão sugerida por Keller et alli (2011)
tados originais e relevantes ou demonstrar a aplicação de – o contexto – abrange esses fatores externos e engloba
processos previamente inexistentes e musicalmente úteis. pelo menos duas variáveis relevantes: tempo e lugar. Dos
As manifestações da criatividade cotidiana são mais difíceis oito modelos discutidos por Keller et alli, o modelo proposto
de avaliar já que não apresentam resultados na forma de por Hickey (2003) é o único que inclui aspectos contextuais.
produtos criativos (no caso da criatividade mini) ou resulta- Se o objetivo é estudar as qualidades criativas de um pro-
dos consensualmente avaliados como sendo criativos (no duto composicional, isolar o produto do seu contexto não
caso da criatividade pequena). Por esse motivo, expressivi- parece ser a melhor estratégia. O contexto material e social
dade, emoção ou engajamento só recentemente têm sido – em termos ecocomposicionais, o nicho ecológico – pode
incorporados como fatores de destaque nas manifestações determinar a função e a dinâmica dos processos criativos
menores da criatividade. Alinhados com perspectivas re- envolvidos. Por exemplo, o que é criativo para ouvintes lei-
centes em pesquisa em interação humano-computador, gos pode não ser criativo para ouvintes experientes. O que
é criativo para as crianças pode ser irritante para os adul- computação ubíqua, com ênfase em aplicações de com-
tos. O que estimula a criatividade durante as atividades ex- putação musical: a metáfora time mapping ou marcação
ploratórias, pode atrapalhar os processos de refinamento, temporal. A metáfora utiliza a informação temporal disponí-
crítica e reflexão. Portanto, dependendo do contexto onde vel através do próprio som. Com o objetivo de realizar expe-
é realizada a atividade criativa e dependendo dos objetivos rimentos com usuários, foi implementado um protótipo em
específicos do agente, o procedimento experimental pode telefones celulares com suporte para o sistema operacional
afetar os resultados da avaliação subjetiva. Por esse motivo, livre Android: mixDroid. Os autores relatam os resultados de
para estabelecer comparações entre produtos e processos um experimento comparativo envolvendo seis usuários lei-
diversos, os métodos de avaliação da criatividade musical gos, confirmando a aplicabilidade da metáfora de marcação
precisam estar desvinculados das técnicas composicionais temporal nas atividades musicais em contexto pervasivo. É
e ao mesmo tempo devem levar em conta os fatores pesso- importante destacar que tanto a marcação temporal quanto
ais na hora da aferição. Neste caso, a técnica de avaliação a marcação espacial fazem uso do mecanismo cognitivo de
consensual (CAT – Amabile, 1996) apresenta limitações. ancoragem (anchoring) – isto é, as pistas perceptuais exis-
Para a sua aplicação em música, o protocolo CAT deman- tentes no ambiente ou introduzidas através do processo de
da a utilização de músicos experientes como avaliadores. A design são aproveitadas como suporte para os processos
menos que os avaliadores sejam os próprios sujeitos expe- cognitivos pelos agentes que realizam as atividades (Keller et
rimentais, o contexto social dos juízes será necessariamen- al., 2010). A perspectiva aberta pelo desenho de metáforas
te diferente do ambiente social dos compositores. Sendo de interação para atividades musicais ubíquas é que usu-
que CAT estabelece comparações entre produtos sonoros, ários sem treinamento específico em música tenham uma
as inferências sobre o contexto material só podem ser fei- porta de acesso para aplicações musicais da criatividade
tas através da análise das características desses produtos. pequena e da criatividade mini.
Para o caso das técnicas composicionais que utilizam ma-
teriais intimamente relacionados ao contexto, tais como o Dois dos estudos realizados por Bello et alli (2013) e o tra-
enfoque tradicional de Soundscape, esse tipo de análise balho com superfícies multitáteis de McGlynn et alli (2013)
pode ser suficiente. Mas para o caso de técnicas de or- também focalizam formas de interação que tendem a au-
ganização que visam a abstração, o produto sonoro tende mentar o acesso a manifestações da criatividade pequena
a ficar distanciado do seu contexto original dificultando o e mini. Bello et alli aplicam a análise de recorrências para
estudo das relações entre som e contexto. criar novos métodos de processamento sonoro e de in-
teração musical. Os diagramas de recorrências são ma-
Na tentativa de contornar as limitações dos métodos exis- trizes binárias que representam os padrões de repetição
tentes, Keller et alli (2013) propõem a adoção de técnicas em sequências de dados. Como aplicações para uso em
padronizadas de avaliação da criatividade. Em uma série síntese e processamento sonoro, os autores propõem dois
de estudos exploratórios com sujeitos leigos e músicos, foi tipos de interfaces: uma representação gráfica matricial e
testada a aplicabilidade da uma metáfora de interação para o mapeamento de parâmetros de mixagem utilizando re-
o suporte de atividades musicais ubíquas: a marcação es- tângulos. No primeiro modelo, o usuário pode controlar o
pacial. Durante o design de interação os autores aplicaram diagrama de recorrências clicando as diversas células da
estratégias de avaliação adaptando o índice de suporte à matriz para ativar ou desativar o processamento sonoro. O
criatividade (Creativity Support Index) para uso em ativida- segundo exemplo apresenta um método de mixagem de
des musicais ubíquas. O procedimento envolveu uma for- áudio representando o estado do diagrama de recorrências
ma específica de triangulação realizando estudos paralelos como um retângulo na interface: o eixo vertical correspon-
em atividades diversas envolvendo a mesma ferramenta de ao tempo da amostra sonora original, enquanto o eixo
musical: o Harpix. Segundo os autores, os resultados mos- horizontal representa a dimensão temporal da mixagem
traram que a marcação espacial é utilizável em atividades produzida. Ao desenhar um retângulo, o usuário define si-
de exploração e de criação de material sonoro por parte multaneamente a localização temporal e os parâmetros da
de leigos, mas a metáfora não forneceu bom suporte para operação de compressão-expansão da amostra original. A
a atividade de imitação. Demostrando de forma preliminar reprodução do áudio é cíclica. Portanto, o aplicativo permi-
a aplicabilidade da marcação espacial para sujeitos com te a criação de blocos retangulares de diversos tamanhos
treinamento musical, Keller et alli (2013) apresentam um para executar operações de cópia e de processamento de
exemplo de uso abrangendo um ciclo completo de criação áudio em tempo real. Esse mecanismo simples de inte-
musical: o minicomp Absoluts. ração que permite estabelecer relações complexas entre
materiais sonoros é consistente com as propostas desen-
Também dentro do novo campo de estudos da música volvidas por Pimenta et alli (2013) e Keller et alli (2013).
ubíqua, o trabalho de Pimenta et alli (2013) investiga a apli- Como acontece no caso das metáforas de marcação tem-
cação de uma metáfora para interação em contextos de poral e espacial, existe uma correspondência direta entre
os elementos espaçotemporais do design de interação e ser combinados em interfaces expressivas para o controle
as manipulações realizadas no âmbito sonoro. Apesar de de parâmetros musicais. Além de dar suporte aos com-
que Bello et alli não relatam resultados colhidos em estudos ponentes básicos, o projeto tem o objetivo de fornecer
de uso, a relação estreita entre o mecanismo de interação e funções capazes de interpretar gestos mais complexos. A
o tipo de processamento – similar à estratégia aplicada no intenção é auxiliar o usuário a desenvolver seus repertórios
design do mixDroid – tem chances de aumentar a usabili- próprios de gestos. Finalmente, uma das aplicações das
dade por parte de usuários leigos. ferramentas implementadas no projeto SurfacePlayer é o
estudo e a avaliação de estratégias novas para o estudo do
Como mencionamos anteriormente, os aspectos da criati- mapeamento entre sons e gestos. Previamente ao trabalho
vidade mini – vinculados a emoção, expressividade, autoe- descrito por McGlynn et alli, os programadores tinham que
ficácia, motivação, entre outros estados internos relevantes lidar com dados extraídos diretamente do dispositivo, des-
para as atividades criativas – ainda têm sido pouco explo- crevendo, por exemplo, as coordenadas, velocidade e po-
rados no domínio musical. A maior parte da pesquisa em sições de cada ponto de controle. Codificar gestos simples
computação musical adota o enfoque acústico-instrumen- utilizando esses dados é um trabalho demorado e tedioso.
tal, com foco no desenvolvimento de instrumentos musicais A biblioteca SurfacePlayer dá suporte para uma varieda-
ou de formas de interação compatíveis com as manifesta- de de funções padronizadas que recebem dados TUIO. A
ções da criatividade profissional. Complementarmente, são partir dos eventos produzidos pelo usuário na superfície
aplicadas metáforas que reproduzem os aspectos visuais multitoque, o gesto é reconhecido e os dados relevantes
dos instrumentos eletrônicos utilizados no âmbito do estú- podem ser usados para o controle de processos de síntese
dio de produção sonora. McGlynn et alli (2013) agudamen- sonora em tempo real.
te apontam as armadilhas desse tipo de prática no design
de interação. Segundo eles, não é por acaso que novas Em relação à magnitude da criatividade enfocada pelos
interfaces tendem a gerar uma série de clichés nas práticas estudos incluídos neste volume, as discussões teóricas
composicionais e interpretativas. Entre esses, eles citam o de Souza e Faria (2013), Mary (2013) e Villavicencio et alli
uso indiscriminado de loops e de repetições literais de pa- (2013) lidam com aspectos da criatividade profissional e
drões e amostras, facilitados e encorajados pelo desenho eminente. Mary (2013) e Villavicencio et alli (2013) adotam o
típico do software de sequenciamento de áudio; a aplica- enfoque acústico-instrumental, propondo práticas criativas
ção em bloco de efeitos pré-programados; a reprodução que expandem o leque de possibilidades em composição
visual de meios mecânicos como o teclado ou as cordas eletroacústica e na improvisação livre com recursos eletrô-
dedilhadas. Segundo os autores, o conceito-chave é a me- nicos. Os dois textos utilizam conceitos de música acus-
táfora de interação. O uso de botões ou teclados gráficos mática reforçando o diálogo já existente entre perspectivas
não é metafórico, é simplesmente mimético. Enquanto esta composicionais que antes se mostravam incompatíveis (ver
mímese se caracteriza pelo mapeamento 1:1 entre contro- a proposta inicial de aproximação entre enfoques composi-
les e parâmetros, os movimentos gestuais podem ser inter- cionais em Barreiro e Keller, 2010), neste caso introduzindo
pretados de várias maneiras, gerando dados para múltiplos o espectralismo (Mary, 2013) e a prática de live electronics
parâmetros simultaneamente. Segundo McGlynn et alli, as na música acusmática (Villavicencio et al., 2013). Levando
metáforas vão além da simples mímese revelando as inten- a discussão para além das possibilidades instrumentais,
ções musicais do usuário. Souza e Faria defendem a visão de que a criatividade emi-
nente em música seria o produto do encontro entre mente e
McGlynn et alli (2013) fornecem uma primeira aproximação tecnologia. Em concordância com os resultados dos traba-
ao projeto SurfacePlayer, que tem por objetivo desenvol- lhos existentes em composição assistida por computador,
ver uma biblioteca completa de funções de alto nível para os autores postulam a ampliação da criatividade humana a
aplicações em dispositivos com superfície multitoque den- partir do desenvolvimento de ferramentas de suporte para
tro do ambiente de programação Processing. Provendo a prática composicional.
acesso conveniente a dados de controle, eles esperam
que o projeto possibilite o desenvolvimento ágil de instru- A orquestração eletroacústica é inspirada na técnica ins-
mentos computacionais elegantes, expressivos e intuitivos. trumental, adicionando a riqueza dos timbres eletroacús-
Atualmente, SurfacePlayer fornece acesso simples a vários ticos ao controle dos parâmetros de difusão no espaço.
gestos multitáteis – toque simples, toque duplo, e toque Esta abordagem assume uma estética polifônica como
múltiplo com até dez dedos, incluindo movimentos dire- extensão do conceito de espaço polifônico. Mary (2013)
cionais em várias velocidades. Também permite determinar aborda três diferenças da orquestração electroacústica
a área de superfície, diâmetro, centroide, e perímetro de com a orquestração instrumental. A primeira diferença é
formas criadas na tela multitoque. Os exemplos distribuí- que o compositor cria sua própria paleta de sons em lugar
dos com a biblioteca ilustram como esses gestos podem de adotar os instrumentos acústicos como fonte sonora.
A segunda diferença é que o número de sons simultâne- para obter resultados grupais que sejam aceitos como
os não é limitado ao número de fontes sonoras, inclusive ‘estruturas formais abertas’, a proposta de improvisação
a limitação no número de canais da sessão de mixagem livre de Villavicencio et alli deve ser entendida como uma
pode ser evitada utilizando mixagens assíncronas, ou seja, manifestação da criatividade profissional. Nesse sentido, a
a técnica proposta visa a composição fora do tempo real. A proposta fica mais próxima da tradição estruturalista euro-
terceira diferença é que a posição espacial e o movimento peia das obras abertas das décadas de 1950 e 1960 do
dos sons podem ser determinados com precisão, dentro que dos desenvolvimentos minimalistas norte-americanos
dos limites técnicos do sistema de reprodução e conside- que adotaram a improvisação estruturada como principal
rando as limitações da resolução perceptiva em relação ao ferramenta de organização musical (conferir, por exemplo,
tipo de fonte sonora e as pistas de localização. Essas três a obra In C de Terry Riley (1964)).
características são comuns a outras perspectivas compo-
sicionais electroacústicas, sublinhando a forte influência da Já o trabalho de Souza e Faria (2013) visa o avanço nos
música acusmática neste enfoque composicional. De fato, conceitos de criatividade que dependem do suporte
a orquestração eletroacústica pode ser pensada como a computacional para sua existência, excluindo as práticas
aplicação do espectralismo na execução de obras acus- musicais focalizadas por Villavicencio e coautores que
máticas com suporte multicanal. É uma prática centrada no demandam colaboração em tempo real entre músicos e
âmbito do estúdio, realizada individualmente e voltada para dispositivos tecnológico. Os autores perguntam, “um pro-
a criação de produtos sonoros em suporte fixo. Portanto, grama de computador pode ser criativo? Ele pode compor
encaixa perfeitamente nos enfoques acústico-instrumen- uma música original?” Para responder essas perguntas,
tais que visam a ampliação da criatividade eminente. Souza e Faria adotam a proposta de Margaret Boden
(2003: 3) que sugere três mecanismos de criatividade com-
Também centrado no enfoque acústico-instrumental, mas putacional: combinatório, exploratório e transformativo. A
adotando uma perspectiva vinculada à tradição experimen- criatividade combinatória em relacionar ideias familiares de
talista, o trabalho de Villavicencio et alli (2013) focaliza o maneira inusual. A criatividade exploratória está presente
problema da estruturação formal na prática da improvisa- nos sistemas gerativos e evolucionários em que a avaliação
ção livre. Segundo os autores, a improvisação livre bus- (revisão ou julgamento) do que foi criado está embutida em
ca uma organização formal aberta e indeterminada, e ao regras pré-definidas. A criatividade transformativa envolve
mesmo tempo tenta manter a coerência do produto musi- a modificação ou rejeição de regras anteriormente aceitas
cal a partir da experiência musical de cada intérprete e da para um determinado estilo. Dentro do domínio musical,
habilidade de adaptação contínua e síncrona ao contexto o primeiro grupo encara o problema da criatividade pelo
sonoro em evolução. Em oposição às práticas composi- viés da escrita instrumental tradicional, gerando símbolos
cionais individualistas, Villavicencio et alli sugerem que a musicais (de notas a partituras). Uma grande parte dos
atividade coletiva musical é uma experiência humana em algoritmos atuais de composição depende desses proce-
que a necessidade intrínseca de colaboração induz uma dimentos: possibilidades combinatórias, acaso, regras de
apreciação que não visa apenas o resultado sonoro esté- formação generalizadas a partir da análise de peças mo-
tico, mas coloca em destaque o processo sociogenético delo, formalizadas através de redes de transição e gramá-
que possibilita a criação musical. Os autores aplicam os ticas gerativas. O segundo grupo de algoritmos amplia o
conceitos retóricos de ética, lógica e decoro para tentar âmbito do primeiro grupo postulando modelos evolutivos
explicar a dinâmica que se estabelece entre os músicos ou sistêmicos. Nesse paradigma o processo criativo parte
na hora de enfrentar o trabalho de estruturação formal em de um estado inicial dado (ou gerado algoritmicamente). Os
tempo real. Na improvisação livre a estrutura formal acon- estados seguintes são calculados a partir de cada estado
tece entre o imprevisível e o indeterminado e é o resultado anterior. Os algoritmos da terceira categoria prescindem do
de um processo coletivo e interativo. Como resultado da conceito de nota como noção abstrata estruturante e ge-
dinâmica da interação síncrona, a continuidade temporal ram o material sonoro diretamente como forma de onda.
se estabelece de forma imprevisível por conta da falta de Segundo os autores, neste caso a composição algorítmica
um planejamento prévio. Os autores também propõem a pode ser entendida como técnica de síntese sonora, já que
aplicação dos conceitos Schaefferianos de objeto sonoro ambas operam no mesmo nível de estruturação.
e de escuta reduzida na prática instrumental, i.e., os sons
pensados simplesmente como sons – sons sem qualquer Souza e Faria tecem considerações provocativas em relação
tipo de representação ou contexto. Levando em conta as aos limites criativos do enfoque algorítmico. Por um lado,
exigências cognitivas e motoras da execução instrumen- eles apontam que em última instância os mecanismos de
tal, somadas à necessidade de conhecimentos técnicos avaliação da criatividade definem a magnitude criativa: se
para fundamentar as escolhas de parâmetros de manipu- qualquer fenômeno sonoro pode ser entendido como músi-
lação sonora, e adicionando o nível de interação exigido ca, então o computador já é capaz de realizar composições
acabadas e nossos programas são plenamente criativos. fatores humanos é mais recente dentro do campo musical,
Mas perguntam, para que desenvolver algoritmos se qual- e pode ser vinculado a formas de fazer musical que fogem
quer produto sonoro é, segundo esta definição, criativo? dos formatos adotados na música de concerto, seja esta
No outro extremo, eles sugerem que o enfoque algorítmico eletroacústica ou instrumental. Apesar de que enfoque ain-
poderia contribuir para mudar o próprio conceito de criati- da não está consolidado, podem ser identificadas algumas
vidade. Para os autores, a percepção da criatividade, hoje tendências: maior ênfase em aspectos da criatividade pe-
operante dentro dos domínios humanos, se executada por quena e mini; dissolução da compartimentação dos ato-
uma máquina poderá indicar uma criatividade que nós não res no processo criativo: participantes leigos podem virar
percebemos. Por exemplo, modulações sutis, relações in- músicos ou compositores, a criação musical é geralmente
trincadas, combinações complexas paralelas e sequenciais compartilhada; dissolução da separação entre produtos e
de eventos que fogem à capacidade de atenção e percep- processos musicais: o produto musical pode ser equivalen-
ção humana, poderiam se tornar acessíveis através das má- te à experiência criativa; maior ênfase nos aspectos sociais
quinas. Dessa forma os algoritmos poderiam contribuir para da prática musical.
a definição da criatividade como participantes na avaliação
dos processos e dos produtos criativos.
Agradecimentos
O presente volume sintetiza os resultados do trabalho de
múltiplos grupos de pesquisa atuantes no campo musical A edição deste volume foi parcialmente apoiada pelas
na América do Sul, na América do Norte e na Europa e agências CNPq e Capes. Os membros do comitê edito-
constitui a primeira iniciativa de diálogo acadêmico entre rial realizaram um trabalho exaustivo de revisão do material
pesquisadores lusofalantes e hispanofalantes com interes- submetido. Agradecemos a sua cooperação e solidarieda-
ses comuns na área de criatividade. Os resultados apre- de na realização deste projeto.
sentados serviram como ponto de partida para a reflexão
teórica e colocaram em evidência várias limitações meto- Damián Keller
dológicas nos estudos atuais sobre criatividade musical. Núcleo Amazônico de Pesquisa Musical - NAP
Primeiro, fica evidente pelas referências utilizadas nestes dkeller@ccrma.stanford.edu
trabalhos que é necessário um diálogo mais estreito entre
teoria e prática: a produção teórica sobre criatividade geral Referencias
precisa considerar os resultados experimentais obtidos no
domínio musical e o desenho de experimentos musicais Amabile, T. 1996. Creativity in Context. Boulder, CO:
precisa estar embasado nos conceitos formulados no cam- Westview Press. (ISBN: 9780813330341.)
po mais amplo da criatividade. Segundo, para aumentar as
chances de validar os resultados de estudos múltiplos, os Bello, J. P., Cho, T. & Forsyth, J. 2013. Análisis
métodos de coleta de dados no domínio musical precisam Automático de Señales Musicales y la Creatividad
levar em conta a diversidade de tipos de prática criativa, Musical. In D. Keller & D. Quaranta (Eds.), Sonic Ideas,
abrangendo métodos síncronos e assíncronos, individuais Año 5 No.10 Criatividade Musical / Creatividad Musical,
e grupais. Terceiro, o desenvolvimento do suporte tecno- (pp. 35-45), México, Morelia: CMMAS.
lógico para a criatividade tem que considerar a magnitude
dos resultados visados e as dimensões materiais, sociais e Boden, M. 2003. The Creative Mind: Myths and
procedimentais dos processos criativos. Os três enfoques Mechanisms. New York, NY: Routledge. (ISBN:
representados neste volume – acústico-instrumental, algo- 9780415314527.)
rítmico e baseado em fatores humanos – preenchem nichos
conceituais e metodológicos diferentes. Pelos resultados Burnard, P. 2012. Musical Creativities in Real World
apresentados nos sete artigos, o enfoque acústico-instru- Practice. Oxford, UK: Oxford University Press. (ISBN:
mental estaria vinculado às práticas próximas à tradição 9780199583942.)
europeia de concerto e visa, portanto, atingir produtos per-
tencentes aos níveis de criatividade profissional e eminen- Collins, D. 2005. A synthesis process model of creative
te. O enfoque algorítmico se identifica com as tendências thinking in music composition. Psychology of Music 33
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como parceiros na criação e se aproximam das propostas
que colocam a ênfase no desenvolvimento de mecanismos Gabora, L. & Kaufman, S. 2010. Evolutionary perspec-
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