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Introdução

Vanda Bellard Freire

O propósito deste livro é dialogar com os leitores em torno de algumas


questões e tópicos referentes à pesquisa em música. Essas questões e tópicos
foram escolhidos por parecerem relevantes aos autores que procuram, assim,
compartilhar, por meio de seus textos, a experiência que têm acumulado na prática
de pesquisa e na orientação de pesquisas em música.
Como a prática musical é uma atividade estética, uma forma de expressão
poética, portanto intrinsecamente criativa, surge, por vezes, a dúvida sobre a
utilidade da pesquisa para a área de Música. A pesquisa pode, realmente, contribuir,
de alguma forma, para uma prática de natureza estética como a prática musical? Em
que medida o próprio fazer estético (interpretar, compor, reger) não é, ele mesmo,
uma atividade de pesquisa, já que esse fazer envolve buscas e decisões e se apoia
em um aparato técnico? Ensinar música é também um ato de pesquisar, já que
envolve sistematização de informações? A atividade de pesquisa é antagônica ou
incomparável à criatividade inerente a qualquer atividade artística?
Essas são algumas questões que músicos muitas vezes levantam e que
parecem pertinentes à primeira vista. No meio acadêmico, observamos que essas
questões, muitas vezes, estão ligadas não somente à desconfiança com a utilidade
da pesquisa para a área, mas também refletem preocupações com a avaliação
docente e a valoração atribuída pelas instituições a essas diferentes formas de
expressão e de geração de conhecimento, o que repercute na carreira dos
profissionais envolvidos, gerando conflitos. Ou seja, ao questionar a validade da
pesquisa na área, muitos músicos expressam uma reação à possível desvalorização
da prática musical, o que de fato não se sustenta, pois cada uma dessas esferas
tem significados e movimentos próprios, não devendo incidir sobre a valorização da
outra. O que se cria, então, são falsas polêmicas e polarizações equivocadas, que
em nada acrescentam ao conhecimento da área.
Considerando os argumentos acima, este livro não pretende abordar a
pesquisa em confronto ou como polarização oposta ao fazer musical. Ao contrário,
parte da concepção de que a pesquisa é uma atividade de investigação científica
destinada a gerar conhecimento novo, inclusive na área de música, a partir da
interação entre a prática musical e a reflexão teórica. Isto é, da pesquisa deve
resultar, como conclusão, uma nova interpretação, uma nova informação, uma nova
possibilidade metodológica etc. As conclusões de pesquisa devem propiciar, nessa
ótica, algum tipo de incidência e transformação na prática musical.
A pesquisa sobre música não é, portanto, uma atividade estética. É uma
atividade científica (ainda que debruçada sobre um objeto de natureza estética: a
música), seja ela de natureza predominantemente teórica ou metodológica, seja
voltada para a dimensão prática ou empírica. Consideramos, assim, que para refletir
melhor sobre pesquisa na área de música, é interessante, como ponto de partida,
considerar as peculiaridades do conhecimento científico e do conhecimento estético.
Inicialmente, é importante observar que nenhuma expressão artística pode
ser avaliada ou validada pela pesquisa. A arte se legitima por outros caminhos, por
outras lógicas. A pesquisa pode, contudo, refletir sobre a arte e sobre as práticas
relacionadas à arte, inclusive as de ensino. O retorno dessas reflexões construídas
pelas pesquisas sobre música ao fazer artístico certamente pode contribuir para uma
transformação qualitativa do artista e de suas práticas.
De qualquer forma, toda pesquisa surge de uma inquietação, um
questionamento ou conflito inicial, que leva à busca de respostas. Uma lacuna
percebida em uma área de conhecimento ou na compreensão de um fenômeno ou
uma discordância em relação ao que já está estabelecido são fontes geradoras de
perguntas, portanto são possíveis questões iniciais de pesquisa.
As questões geradoras de pesquisa já estão presentes na prática cotidiana de
músicos, seja qual for sua atuação (como docentes, intérpretes, compositores,
regentes). Ou seja, não há necessidade de “inventar” uma questão de pesquisa.
Certamente, nossas indagações cotidianas, seja na prática musical propriamente
dita, seja no ensino de música, já contêm, potencialmente, uma proposta de
pesquisa.
Luna (2002, p. 27) considera que toda pesquisa, seja qual for a abordagem
metodológica, necessita preencher três requisitos:
1) a existência de uma pergunta;
2) a elaboração (e descrição) de um conjunto de passos que permitam
obter a informação necessária para respondê-la;
3) a indicação do grau de confiabilidade na resposta obtida.
O primeiro requisito, citado pelo autor, refere-se, portanto, à questão que
origina a pesquisa, ou seja, pesquisa-se para responder a uma indagação. Cabe
aqui apontar uma diferença importante em relação à atividade artística, pois esta
não surge necessariamente de uma pergunta ou questão, mas de uma intenção
expressiva cuja resposta é de natureza estética, o que a distingue da atividade
científica.
O segundo requisito refere-se aos métodos (metodologia) a serem
empregados na construção da resposta à pergunta inicial. Outra diferença a apontar
em relação às atividades estéticas: não cabe, na atividade artística, a presença de
metodologia, na forma como é definida na área científica, embora a atividade
artística envolva a aplicação e o desenvolvimento de técnicas que permitam
alcançar o resultado expressivo pretendido.
Finalmente, o terceiro item refere-se ao grau de confiabilidade, o que não
deve ser confundido com a obtenção, pela pesquisa, de respostas verdadeiras ou
definitivas. A pesquisa é sempre uma aproximação da realidade, que deve ser
confiável por ser coerente e fundamentada, mas sempre passível de revisão ou de
questionamento (a “verdade” no que toca à arte advém de uma lógica própria, à qual
não cabe refutação nem comprovação, embora possamos não apreciar determinada
corrente estética ou determinada obra de arte).
Em outras palavras, é necessário haver um problema de pesquisa (o que
não significa uma hipótese formal), um procedimento que gere informação
relevante para a resposta e, finalmente, é preciso demonstrar que esta
informação decorre do procedimento empregado e que a resposta
produzida por ele não é apenas uma resposta possível como também é a
melhor, nas circunstâncias (o que inclui, certamente, o referencial teórico).
(LUNA, 2002, p. 27).

Luna (2002) considera que há um falso conflito entre as tendências metodológicas,


como as abordagens “qualitativas” e “quantitativas”, e considera que seria mais
relevante congregar diferentes contribuições metodológicas. O posicionamento de
Luna (2002) tem muitos adeptos, mas não encontra unanimidade na área de
pesquisa, o que não tira a legitimidade de suas posições.
Santos Filho e Gamboa (2002) concordam com o posicionamento de Luna
(2002) e denunciam como falso o conflito quantidade-qualidade, no que concerne à
metodologia científica, na medida em que tal posição, segundo eles, hipertrofia o
nível técnico-instrumental da pesquisa. Ou seja, eles consideram que a abordagem
desses temas, centrada na polarização entre quantidade-qualidade, termina por
supervalorizar a operacionalização da pesquisa, que fica caracterizada, através
dessa polarização, apenas em termos dos métodos que emprega, como
quantitativos e qualitativos. Assim, ficam de fora outras dimensões que envolvem a
pesquisa, como a epistemológica, isto é, a esfera conceitual e filosófica que existe
“por trás” dos métodos de pesquisa.
Assim, esses autores propõem outras formas de analisar a questão,
procurando priorizar categorias epistemológicas, relativas à natureza do
conhecimento envolvido, tais como objetividade, subjetividade, cientificidade,
verdade etc. Procuram também ressaltar outras possibilidades de abordagem
científica, minimizando, assim, a polarização reducionista que reside, segundo eles,
na focalização de apenas dois posicionamentos: qualidade e quantidade.
Freire e Cavazzoti (2007) também se alinham com essa posição de Gamboa
e Santos Filho (2002), ao darem ênfase aos conceitos de “objetividade” e
“subjetividade” na caracterização das principais vertentes de pesquisa, sem valorizar
a dicotomia entre quantidade e qualidade. Os autores identificam como tendências
predominantemente objetivistas aquelas derivadas do pensamento positivista (entre
as quais citam o sistemismo, o funcionalismo, o estruturalismo) e como
predominantemente subjetivas aquelas relacionadas ao pensamento dialético e
fenomenológico.
Este livro parte do princípio de que existem diferenças conceituais
importantes entre as diferentes vertentes metodológicas (sem atribuir uma
conotação valorativa a essas diferenças) e pretende se debruçar, mais
especificamente, sobre a pesquisa comumente designada como qualitativa, cuja
aplicação à área de música (ou a qualquer modalidade de arte) parece, aos autores,
particularmente interessante. A proposta é a de enfatizar o tratamento da questão no
que se refere à ênfase que a pesquisa qualitativa dá à subjetividade, aqui entendida
como perspectiva subjetiva, simultaneamente individual e social, já que a
perspectiva individual é condicionada culturalmente, sendo construída na interação
das diversas subjetividades individuais na cultura.
Não se pretende, assim, desconhecer ou desqualificar qualquer outra
abordagem metodológica de pesquisa, mas enfatizar uma linha de abordagem com
a qual os autores deste livro particularmente se identificam, pela seguinte razão
principal: a natureza estética do objeto de pesquisa (a música, no presente caso, e
as práticas a ela correlatas, como o ensino de música), podem suscitar, com grande
frequência, questões que muito se beneficiam com uma abordagem qualitativa.

Referência

FREIRE, V. B. Introdução. In: FREIRE, V. B. (org.). Horizontes da Pesquisa em


Música. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010. p. 9-12.

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