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Versão para uso tão somente no contexto da disciplina Filosofia da Ciência –

FAFIL-UFG, 2-2022, ministrada pelo Prof. Filipe Lazzeri.

Excerto do capítulo no livro: C. Laurenti & C. E. Lopes (Eds.), Pesquisas teóricas em


Análise do Comportamento. No prelo.

Filosofia e a Pesquisa Filosófica em Análise do Comportamento


Filipe Lazzeri

A Análise do Comportamento (AC) é uma tradição de pesquisa científica que possui


âmbitos de atividade teórica, experimental e de aplicação, que entram em relações de mútua
imbricação e apoio. O âmbito teórico abrange pesquisas de caráter histórico e filosófico,
dentre outras, que, embora amiúde andem juntas, possuem algumas características próprias.
Este capítulo é dedicado a uma caracterização das pesquisas filosóficas em AC.
Procederemos nele (seguindo o modo de estruturação dos demais capítulos da primeira parte
deste livro) começando com (1) uma explanação aproximativa da pesquisa teórica em AC,
incluindo exemplos desse tipo de pesquisa; passando em seguida a (2) uma indicação de sua
importância e (3) de alguns métodos filosóficos (alguns dos quais são aprofundados em parte
dos outros capítulos deste livro, como o de Lógica, “Elementos Introdutórios de Lógica:
Sobre Argumentos, Definições e Falácias”).
Pesquisa Filosófica, AC e Pesquisa Filosófica em AC
Neste primeiro momento, então, apresentaremos uma explanação aproximativa de
pesquisa Filosófica em AC. Para tanto, faz-se importante passarmos por uma caracterização
preliminar de pesquisa filosófica em geral – seus traços típicos, incluindo as áreas, subáreas e
tipos de temas da Filosofia –, bem como uma explanação do que consiste a própria AC. Isso
nos permitirá situar adequadamente o tipo de pesquisa aqui em tela. Dito isso, a melhor forma
de se compreender o que é uma pesquisa filosófica, e uma em AC em particular, é,
naturalmente, tendo contato com vários exemplos de como ela é feita (cf. Saunders et al.,
2007/2009, p. 11) e engajando-se em práticas filosóficas que compõem uma (cf. Appiah,
2003/2006, p. 14).
Temas Filosóficos e Sua Pesquisa: Aspectos Iniciais
Embora não haja inteiro consenso entre profissionais da Filosofia sobre como
caracterizar os problemas filosóficos, há alguns traços marcantes sobre os quais muitos/as
concordam. A seguir, destaco três deles.
Em primeiro lugar, problemas filosóficos são frequentemente tidos como (pelo menos
em significativa medida) problemas conceituais. Como coloca Blackburn (1999/2001): “[A]s
nossas ideias e conceitos podem ser comparadas com lentes através das quais vemos o
mundo. Em filosofia, são as próprias lentes que constituem o tema de estudo” (p. 15). Trata-
se de problemas de análise e exame de aspectos atinentes aos critérios que delimitam, ou que
devem delimitar, conceitos que nos são caros, ou que são reputados como tais em
determinadas teorias ou visões. Esses conceitos (categorias) têm um papel em nosso
entendimento do mundo, ou naquele de uma dada teoria, seja o mundo (realidade) tomado
como um todo, seja considerado em domínios específicos, como os domínios do fazer
científico e seus produtos, do fazer artístico e seus produtos, linguagem e regras de
inferência, moralidade, política, etc. Ou seja, os conceitos fundamentais figuram-se na
linguagem e nas interações comuns, e/ou científicas e/ou artísticas, desempenhando funções
na maneira como aqueles/as que os empregam interpretam a realidade; por exemplo, tomando
certas coisas como reais e outras não, e lhes associando certos traços. Além disso,
desempenham funções na maneira como aqueles/as que os empregam se posicionam diante
do que experienciam; e, de modo mais amplo, no modo como vivem. São conceitos tais que,
por exemplo, o próprio conceito de realidade, natureza, causalidade, verdade, conhecimento,
racionalidade, evidência, percepção, ação, liberdade, justiça, valor moral, virtude, e tantos
outros. Alguns se figuram ou adquirem um significado específico em determinadas teorias,
como, por exemplo, em Ciências da Vida, os conceitos de ser vivo, espécie biológica, função
biológica, seleção natural; em AC, as noções de contingência de reforço, comportamento
operante, controle, comportamento encoberto, seleção pelas consequências, armadilha de
reforço; em historiografia marxista, conceitos como os de luta de classes, trabalho, mais
valor, alienação, fetichismo, ideologia, etc.
Pesquisas filosóficas, nessa medida, dizem respeito a certos tipos de questões sobre
conceitos-chave em visões de mundo e teorias. Por extensão, tem-se também como parte de
seus objetos de estudo, isto é, parte dos problemas filosóficos, aqueles de estudo de diferentes
concepções a respeito desses conceitos. Os propósitos desses estudos incluem explicitar
pressupostos e implicações, desfazer confusões conceituais, comparar possíveis vantagens e
desvantagens, e fazer aprimoramento, defesa ou crítica delas.
Em segundo lugar, e correlatamente, é comum se sublinhar que os problemas
filosóficos são de ordem superior, no sentido de nível metateórico. Isto é, os problemas
filosóficos trazem à tona o escrutínio e debate sobre coisas que em grande medida são
admitidas no cotidiano, científico ou não, sem serem problematizadas ou conhecidas em seu
núcleo semântico e em suas implicações (por ex., Nagel, 1987/2001, p. 3; Saunders,
2007/2009, p. 16). Ao problematizá-las ou investigar suas nuanças e implicações, entramos
numa esfera de debate filosófico – na qual os/as filósofos/as profissionais se debruçam
sistematicamente. Pode-se dizer, trata-se de um exercício aprofundado de pensamento sobre
pensamentos – com efeito, a Filosofia coloca questões que atravessam o âmbito dos mais
diversos tipos de pensamento que podemos ter1 –, em um autoexame e/ou no exame de outras
visões. Um pensar sobre pensamentos disciplinado por técnicas relevantes e alguma
familiaridade com estudos prévios pertinentes, explicitando aspectos envolvidos nesses
pensamentos, avaliando as razões para se tê-los ou não, suas possíveis limitações e razões
para modificá-los, abandoná-los ou substituí-los por outros.
É nessa medida que aquele/a interessado/a em dedicar-se à Filosofia deve estar, em
alguma medida, disposto a lançar sementes de dúvidas sobre (o que não quer dizer
necessariamente negar) suas próprias convicções e de outros – convicções por vezes muito
caras, que podem influenciar seu modo de interpretar a realidade, ou determinados domínios
dela, e seu modo de viver. Deve, inclusive, estar animado em estudar ou conceber outras
formas de ver as coisas. Adquirindo uma compreensão mais aprofundada do que está
envolvido em seus compromissos anteriormente tácitos e mesmo amiúde inconscientes,
poderá tomar posicionamentos de defesa, objeção, ou suspensão do juízo a respeito, de forma
não ingênua, mas, sim, munida de algum nível maior de consciência (por ex., Laurenti et al.,
2020). Poder-se-ia perguntar se realmente vale a pena tocar em aspectos tão caros, ao que
poderíamos responder seguindo Appiah (2003/2006): “[M]uitos problemas que nos
incomodam na vida diária … só podem ser solucionados se nós primeiramente fizermos as
perguntas fundamentais que são a marca da filosofia. Filosofar, portanto, aumenta sua
capacidade de pensar sobre a vida que você leva e o que importa nela” (p. 15).
Em terceiro lugar, problemas filosóficos são frequentemente considerados como sendo
de resolução não empírica, isto é, que requer investigação por meio, eminentemente, de
exercício reflexivo e imaginativo, bem como a argumentação rigorosa, com base nos métodos
cabíveis (por ex., alguns oriundos da Lógica, que se ocupa de princípios de argumentação). A
imaginação criativa tem um papel importante no fazer filosófica, vale realçar, pois está
envolvida: na concepção de conceitos, hipóteses, teses e razões para estas; na avaliação de
definições e argumentos, buscando-se contraexemplos; na antecipação de objeções a
argumentos; e para por vezes na esfera do responder às objeções. Considerações empíricas
(por ex., experimentos, dados estatísticos) podem ajudar, em muitos casos, mas o papel da
1 Como coloca Audi (1982), “A Filosofia ocupa-se de questões em todas as dimensões da vida humana” (p. i).
reflexão, imaginação e argumentação se destacam (por ex., Blackburn, 1999/2001, pp. 13-14;
Murcho, 2008; Nagel, 1987/2001, p. 2).
A título de ilustração, não é possível determinar, tendo-se por base apenas
experimentos e acumulação de observações, respostas a perguntas tais que “A realidade é
totalmente física?”; “O que significa um domínio de fenômenos se reduzir a outro?”; “Há
coisas que jazem para além da capacidade humana conhecer?”; “Como deveríamos entender
os contornos do fazer científico?”; “Sob que critérios havemos de acreditar ou não em uma
dada afirmação?”; “Qual seria um posicionamento plausível sobre choque de visões de
mundo?”. Como coloca Nagel (1987/2001): “A filosofia […] se faz pela simples indagação e
arguição, ensaiando ideias e imaginando possíveis argumentos contra elas, perguntando-nos
até que ponto nossos conceitos de fato funcionam” (p. 2). Já uma questão como “Por que tal e
tal espécie exibe o padrão de comportamento tal e tal?”, ou “Quais foram os determinantes
sociais que influenciaram a aceitação do pensamento tal e tal na comunidade científica tal e
tal no final do séc. XVIII?” é uma pergunta largamente empírica, no caso histórico-
sociológica, uma vez estabelecidos os pressupostos da teoria explicativa de base. Estes, com
efeito, não são empíricos, mas sim diretrizes-guia filosóficas, conforme explicaremos mais
adiante, e deles dependem as respostas a que uma dada teoria chega.
Quem abraça uma forma forte de naturalismo sobre problemas filosóficos, no entanto,
considera que eles são empíricos. O naturalismo filosófico numa forma moderada, por outro
lado, valoriza a consideração de dados empíricos em algumas das atividades do fazer
filosófico, e concorda que há certo grau de continuidade entre problemas filosóficos e
científicos, mas sem cair naquela consideração – largamente considerada equivocada – da
forma forte. Uma das razões pelas quais o naturalismo em sua forma forte é criticado aponta
para o caráter normativo de vários problemas filosóficos: o fato de que muitos deles
envolvem perguntas sobre posturas a adotarmos ou a evitarmos, isto é, sobre dever ou não
pensar algo ou adotar determinado rumo de ação, para além de perguntas sobre descrição de
aspectos da realidade.
Com base nos três traços destacados acima, podemos, em suma, caracterizar os
problemas filosóficos como problemas de visão de mundo. Em particular, problemas sobre os
compromissos ontológicos, epistemológicos, éticos e lógicos (além de derivados, como os
estéticos e políticos) que compõem visões de mundo, como veremos em seguida.
Tipicamente, eles envolvem a preocupação em desvendar-se quais são os compromissos de
uma dada visão de mundo, subjacente a uma dada teoria científica ou grupo de pessoas; como
esses compromissos se comparam com os de outra visão de mundo, já adotadas ou
imagináveis; quais compromissos adotar e por quais razões.
Temas filosóficos são (i) problemas filosóficos, (ii) abordagens (teorias, concepções)
articulados como respostas a eles ao longo da história e (iii) debates entre estas abordagens.
Ora, pesquisa filosófica é o estudo sistemático de temas filosóficos, assim entendidos. (Note-
se que, dada a caracterização inicial de problema filosófico, não se tem aqui circularidade.)
Por extensão, uma pesquisa filosófica é um estudo sistemático de questões de visão de mundo
– sobre compromissos ontológicos, epistemológicos, éticos e lógicos, conforme veremos –,
envolvendo o debate (que muitas vezes se configura como embate) de concepções diferentes
sobre um ou mais compromissos delas constitutivos.
Com o termo ‘sistemático’, tem-se em vista aqui sinalizar para o fato de que, em se
tratando de pesquisa, tem-se um estudo que envolve, pelo menos tipicamente, características
como as de ser pautado por metodologias e técnicas, incluindo o traquejo com conceitos
relevantes, levantamento e consideração de estudos prévios; e inserção numa comunidade de
outros/as estudiosos/as, com quem, em alguma medida, se tem conexões de diálogo dos
resultados e/ou na confecção destes. A reflexão sobre pensamentos que compõem visões de
mundo e teorias pode dar-se numa simples conversa, que às vezes pode ter influência numa
pesquisa filosófica. Mas a pesquisa mesma é algo mais duradouro e que possui
sistematicidade, no sentido descrito. O pensar sobre esses pensamentos que formam visões de
mundo pode se dar numa simples caminhada, mas, em geral, seria considerada uma ação
parte de uma pesquisa filosófica apenas no caso de ocorrer no contexto estendido de várias
ações semelhantes – um amplo agregado de ações de estudo – voltadas para os objetos do
estudo e com a referida sistematicidade. A seguir, reunimos elementos complementares dessa
explanação inicial.
Pesquisa Filosófica: Áreas, Sub-áreas e Tipos de Tema Filosófico
Vimos que pesquisas de caráter filosófico têm por objeto temas – problemas,
abordagens e debates – filosóficos, em sentido elucidado na seção anterior. Esses temas
podemos ser classificados, pelo menos de uma forma aproximada, como ontológicos,
epistemológicos, éticos e lógicos. A partir disso, tem-se quatro áreas mais gerais da Filosofia:
Ontologia, Epistemologia, Ética e (parte da) Lógica, numa classificação às vezes utilizada
(por ex., Murcho, 2003; Rosenberg & McIntyre, 2020, p. 2; Saunders et al., 2007/2009, pp.
13-16) e muito próxima de outras também utilizadas (por ex., Audi, 1982, pp. ii-iii elenca a
História da Filosofia como área geral junto àquelas quatro; Quinton, 1995/1998, não inclui a
Lógica ao lado das outras três).
Por sua vez, Filosofia da Ciência, Filosofia da Mente, Teoria da Ação, Filosofia
Política, Estética e assim por diante, nessa classificação, são entendidas como subáreas da
Filosofia: elas lidam com temas daquelas áreas mais gerais – temas ontológicos,
epistemológicos, éticos e lógicos –, relativamente a âmbitos que lhes dão nome. Ou seja, as
subáreas da Filosofia lidam com temas relativos a âmbitos mais específicos.
Por exemplo, na Filosofia da Ciência estão circunscritas temáticas ontológicas
(Ontologia ou Metafísica da Ciência), epistemológicas (Epistemologia da Ciência), éticas
(Ética da Ciência) e lógicas (Lógica da Ciência) sobre teorias e práticas científicas. A
Filosofia da Ciência, além disso, possui vários ramos, relativos a ciências específicas. Assim,
tem-se a Filosofia da Matemática, a Filosofia da Física, a Filosofia das Ciências da Vida
(Filosofia da Biologia), a Filosofia da Psicologia, a Filosofia das Ciências Sociais, dentre
outros. Esses próprios ramos, por seu turno, possuem sub-ramos, e dessa forma se chega à
Filosofia da Análise do Comportamento, entendendo-a como um sub-ramo da Filosofia da
Psicologia (veja-se Figura 1), ao lado de áreas como a Filosofia da Psicanálise e outras. Trata-
se de uma classificação simplificada, mas que se mostra bastante útil didaticamente para
situarmos as temáticas filosóficas.

Figura 1: Representação simplificada, mas didaticamente útil, das áreas e subáreas da


Filosofia.
Cabem algumas observações – fazemos cinco – complementares sobre a Figura 1.
Primeiro, destaco na Figura 1 um leque representativo de subáreas da Filosofia, mas algumas
ficam nela apenas implícitas, conforme sinalizado pelos três pontos verticais. Esse é o caso de
subáreas como Filosofia da Religião, Filosofia da História, Filosofia do Direito, Ética
Aplicada, Filosofia das Ciências Cognitivas, dentre outras.
Segundo, alguns/mas filósofos/as não concordariam totalmente com a escolha aqui
adotada daquelas quatro áreas mais gerais da Filosofia. Pode-se conceber, por exemplo, que a
Filosofia Política lida com temas ontológicos, epistemológicos, éticos e lógicos relativos ao
âmbito político, mas que ela também possui certos temas filosóficos de caráter sui generis,
irredutível àqueles quatro tipos de temas. Isso justificaria elencá-la como uma quinta área
geral. Com respeito a isso, cabe sublinhar não ser nosso objetivo aqui defender que uma área
como a Filosofia Política trate de problemas redutíveis a problemas relativos àquelas quatro
áreas destacadas como as mais gerais da Filosofia. Nosso propósito nesta seção é apresentar
uma classificação frequente e, em todo caso, didaticamente útil, por mais que alguns
pormenores dela possam ser vistos de forma alternativa.
Terceiro, diferentemente de autores como Audi (1982), não elenco a História da
Filosofia e seus sub-ramos – como Filosofia Antiga, Filosofia Clássica Chinesa, Filosofia
Medieval, Filosofia Moderna Contemporânea – como área geral da Filosofia, porque tais
podem ser entendidos como implícitos em cada uma das quatro áreas gerais distinguidas e
das sub-áreas da Filosofia. Ou seja, cada área geral e sub-área da Filosofia (como a Filosofia
da Mente, a Filosofia da Ciência, etc.) possui uma história, que costuma envolver debates que
remetam à época antiga e chegam à contemporânea. Observação análoga vale em relação a
tradições filosóficas, como filosofia aristotélica, filosofia kantiana, marxismo,
fenomenologia, existencialismo, etc., resguardadas as diferenças, como a de que, é claro,
muitas vezes se dão em períodos específicos (como o da Filosofia Contemporânea). Várias
pesquisas realizadas em diferentes ramos filosóficos são focadas inteira ou parcialmente na
história do tratamento de seus respectivos temas.
Há pesquisas de História da Filosofia que tomam por recorte períodos inteiros, ou
alguns/mas autores/as de um dado período, ou ainda tradições filosóficas (por ex.,
aristotélica, kantiana, fenomenológica, analítica), o que pode justificar a colocação da
História da Filosofia como uma sub-área. Com efeito, os três pontos verticais na Figura 1
permitem isso. Agora, se se considerar que na História da Filosofia há temas de caráter
próprio, irredutível aos quatro tipos gerais aqui distinguidos, naturalmente ela poderia ser
elencada uma das áreas gerais da Filosofia. Novamente, divergências sobre isso não afetam a
utilidade da classificação aqui adotada, que, ademais, de forma alguma pretende ser a única
didaticamente útil.
Quarto, as áreas e sub-áreas da Filosofia possuem múltiplas interfaces entre si. As
quatro áreas mais gerais se relacionam em diferentes direções, no sentido de que, por
exemplo, alguns temas epistemológicos podem ser entendidos como tendo ao mesmo tempo
uma dimensão ética, e alguns da Ética como tendo uma dimensão epistemológica; há alguns
temas de caráter ontológico em Epistemologia; etc. Além disso, algumas sub-áreas da
Filosofia possuem interfaces notáveis; por exemplo, a Filosofia da Mente, a Teoria da Ação e
a Filosofia da Psicologia, na medida em que problemas filosóficos sobre categorias
psicológicas (emoções, cognição, etc.) e a categoria de ação, respectivamente tratados nas
esferas da Filosofia da Mente e em Teoria da Ação, são importantes em Filosofia da
Psicologia (que, ademais, possui temáticas próprias). Portanto, uma representação mais
completa do território filosófico na Figura 1 requereria o uso de múltiplas flechas de mão
dupla entre suas áreas e subáreas; mas que aqui registro apenas nesta observação
complementar, porque do contrário sua compreensão gráfica poderia ficar comprometida.
Por fim, a qualificação ‘Filosófica’, na indicação da Lógica como área geral da
Filosofia na Figura 1, pretende dar conta do fato de que a Lógica contemporânea é um
empreendimento multidisciplinar, envolvendo notavelmente Filosofia, Matemática e
Computação. Muitos aspectos da Lógica trazem elementos indissociáveis dessas três áreas,
mas há também alguns que são de interesse apenas de cada uma delas.
Dito isso, quais são os traços associados aos temas ontológicos, epistemológicos,
éticos e lógicos (com a devida qualificação)? Os temas (problemas, abordagens e debates)
epistemológicos podem ser entendidos como aqueles metateóricos relacionados a conceitos
epistêmicos, enquanto envolvidos em nossos modos de interpretar e nos posicionar sobre
afirmações e negações de conhecimento, verdade e justificação de pensamentos (do ponto de
vista da busca de conhecimento ou entendimento); além de a outros aspectos da busca e
produção de entendimento e conhecimento – por exemplo, suas possíveis fontes, tais que
percepção, memória e testemunho –, tanto em âmbitos da vida comum como em âmbitos
teórico-investigativos.
Notoriamente, então, a Epistemologia (ou Teoria do Conhecimento) envolve temas
sobre o conceito de conhecimento e o de justificação epistêmica de pensamentos (justificação
no que concerne à busca de conhecimento ou entendimento). Por exemplo, nela se lida com
questões tais como “Quais são as formas de conhecimento e sob quais critérios elas
se dão?”; “Como as diferentes formas de conhecimento se relacionam entre si?”; “Qual o
alcance e o limite do conhecimento humano?”; “Quais critérios poderíamos ou deveríamos
utilizar para acreditar em algo, suspender o juízo a respeito ou rejeitá-lo?”; “Em que medida,
se de todo, nossos sentidos são confiáveis como fontes de conhecimento da realidade?
Estamos vivendo uma grande ilusão sistemática?”. Outros exemplos de conceitos epistêmicos
incluem: racionalidade; evidência empírica; conhecimento tradicional; epistemicídio;
conhecimento por testemunha; conhecimento perceptual; conhecimento a priori;
conhecimento indutivo; certeza; ignorância; virtude intelectual; etc.
Enquanto a Epistemologia (Teoria do Conhecimento) ocupa-se de temas gerais
relacionados ao conhecimento e conceitos epistêmicos correlatos, as sub-áreas da Filosofia
envolvem, em parte, problemas epistemológicos (além de ontológicos, éticos e lógicos) sobre
âmbitos mais específicos (ciência, política, educação, etc.). Nestes, a consideração das
especificidades do âmbito respectivo são centrais. Para ilustrar, tomemos o caso da Filosofia
da Ciência, na qual se insere como sub-ramo a Filosofia da Análise do Comportamento. Em
Filosofia da Ciência as temáticas epistemológicas dizem respeito, de modo fundamental, ao
fazer e aos produtos relativos ao conhecimento especificamente científico – seus contornos,
fontes, dinâmica e alcances – e à justificação epistêmica em relação a teorias científicas.
Trata-se de temáticas como aquelas em torno da demarcação entre ciência e não ciência, que
tem relação com a questão sobre o estatuto de afirmações ou reivindicações de conhecimento
científico; o tema da justificação de uma interpretação das teorias científicas como
verdadeiras, aproximadamente verdadeiras ou apenas instrumentalmente valiosas; sobre em
que sentido uma teoria científica pode ser melhor, ou representar um progresso epistêmico,
em relação a outra; a redutibilidade ou irredutibilidade interteórica; sobre como deve ser a
relação entre as teorias e valores sociais; etc.
Em ramos da Filosofia da Ciência, por sua vez, temos casos ainda mais específicos
dessas temáticas. Por exemplo, em Filosofia da Psicologia, trabalham-se questões tais como
aquela sobre “Em que sentido, se em algum, uma dada tradição de pesquisa psicológica é
melhor que outra?; “Quais são os compromissos epistemológicos assumidos, explícita ou
implicitamente, pela teoria psicológica tal e tal? O que ela pressupõe que seus métodos
podem alcançar?”; “Ela pressupõe uma descontinuidade com as ciências naturais? Por quais
razões? E está justificada em sua suposição?”; “O que ela pressupõe sobre nossa capacidade
introspectiva?”; “Como a teoria tal e tal se mostra guiada por tais e tais valores sociais? Ela
deveria ser guiada por outros? Deveria, ou mesmo poderia, manter neutralidade a respeito?”.
Cabe aqui uma observação: às vezes se identifica Filosofia da Ciência com
Epistemologia. No entanto, na verdade se trata de áreas diferentes. Como já salientado, a
Filosofia da Ciência envole não só problemas epistemológicos, mas também ontológicos,
éticos e lógicos da ciência. E, mais importante, a Epistemologia é uma área mais geral, no
sentido de que nem todas (mas apenas algumas) questões tratadas nela são sobre o âmbito das
ciências.
Temas ontológicos (classicamente chamados também de metafísicos), por sua vez, são
relativos às categorias gerais de itens que compõem, ou que se reputa compor, a realidade –
sua existência ou não, constituição e estrutura, em seus aspectos mais gerais. Inclui questões
tais como “Que tipos de coisas existem? Existem entidades individuais, propriedades e
relações? Se existem propriedades, de que forma elas existem? Tudo que tomamos como
coisas individuais – por exemplo, pessoas e artefatos – não seriam no fundo apenas agregados
de processos mais ou menos estáveis ou voláteis? Em que sentido algo mantém sua
identidade ao longo do tempo?”; “Tudo que existe é, em última instância, físico? O que
chamamos de biológico, psicológico, espiritual e social são todas categorias de itens físicos
da realidade, ou esta é composta também por outros tipos de substratos?”; “O que existe é
relativo ou depende da visão de mundo em que se insere?”.
Cabe notar que ‘metafísico’ é um termo às vezes utilizado de maneira pejorativa,
como se tudo que é metafísico fosse algo sobrenatural. No sentido técnico do termo, todavia,
não é isso que ele significa. Mesmo se pensarmos que não existem coisas sobrenaturais,
estaremos admitindo uma série de compromissos metafísicos, no sentido de compromissos
com a existência de certas coisas, com certas formas de entender sua natureza, sua
estruturação e relação com as outras coisas. Recomendamos evitar o uso pejorativo do termo,
pois, além de conotar equívocos sobre pesquisas filosóficas voltadas a temas metafísicos –
alimentando uma desprezável estigmatização –, acaba caindo numa atitude ingênua de se
pensar que não possui compromissos metafísicos em sua visão de mundo. Qualquer visão de
mundo, mesmo nas ciências contemporâneas, possui diretrizes metafísicas, no sentido de
diretrizes ontológicas.
Toda área da Filosofia lida em parte com alguns problemas ontológicos relacionados
ao seu âmbito específico. Para continuar a ilustração com a Filosofia da Ciência, o foco, no
caso, é em problemas ontológicos relacionados ao âmbito da ciência, a exemplo das questões
“O que é uma lei da natureza? Em que sentido existem, se de todo, leis da natureza? Seriam
elas apenas regras que governam o comportamento dos/as cientistas, e não padrões
extralinguísticos?”; “Como entender as relações de causa e efeito?”. Em ramos da Filosofia
da Ciência trabalham-se em parte com problemas ontológicos relacionados a domínios
investigativos específicos. Em Filosofia das Ciências da Vida, trabalham-se problemas tais
como “O que é uma espécia biológica? Como entender sua identidade ao longo do tempo?
São realidades construídas, ou, antes, realidades objetivas expressas, pelas taxonomias
biológicas?”; “O que significa uma característica ou evento biológico (por ex., um hormônio
ou órgão do corpo) ter uma função?”; “Fenômenos biológicos se reduzem a fenômenos
físico-químicos subjacentes?”. Em Filosofia da Psicologia, trabalham-se questões como “O
que são comportamentos? De onde advém seu caráter de ser dirigido a propósitos? Como os
comportamentos que chamamos de ações se relacionam com pensamentos? Estes são
redutíveis a comportamentos?”; “Como se relacionam os objetos de estudo da Psicologia com
os da Física, da Neurociência e das Ciências Sociais?”; “Em que sentido algo é uma
psicopatologia?”.
Temas éticos, por sua vez, resumidamente falando, concernem a abordagens sobre a
compreensão de valores e juízos morais, que são eminentemente normativos, como aqueles
sobre o certo e o errado, o bem e o mau, o justo e o injusto, seja nas esferas privadas ou nas
esferas públicas, de uns para com os outros, para com os outros animais e o planeta. A Ética
trabalha com problemas que vão desde aqueles sobre em que consistem os valores morais, se
eles são objetivos ou subjetivos, e se são (alguns ou todos) relativos a visões de mundo ou
comuns aos seres humanos; até problemas de ordem aplicada, relacionados a aborto,
eutanásia, agrotóxicos, crise climática, etc.
Em Filosofia da Ciência (para continuar com ela na ilustração de uma subárea da
Filosofia), tem-se a Ética da Ciência, que envolve debates sobre “Qual é o lugar dos valores
morais na dinâmica científica? Se estão presentes, quais papéis desempenham ou devem
desempenhar? É desejável que a ciência seja neutra entre diferentes perspectivas de valor
moral? Como podemos problematizar os vieses de gênero na ciência?”; “Pode-se – e se sim,
sob que condições e por quais razões – justificar moralmente o uso de animais em pesquisas
experimentais?”; dentre outros.
Por fim, temas lógicos, resumidamente, dizem respeito a métodos, princípios e
sistemas de inferência ou raciocínio, pressupostos inferenciais que embasam visões e teorias,
bem como maneiras de formalizar teorias. Em ramos da Filosofia da Ciência, questões tais
que “Como formalizar a teoria tal e tal? Ela compromete-se ou abre mão do princípio de
terceiro excluído? Quais são seus axiomas e como se relacionam com as explicações
propostas nela? Existe alguma inconsistência na teoria?”, ilustram problemas lógicos de
interesse filosófico.
Mais sobre a Noção de Visão de Mundo
Estamos agora em melhor condição de explanar a noção de visão de mundo, que é
frutífera na explanação do que são pesquisas filosóficas. Trata-se da maneira de se interpretar
o mundo e nossas experiências, em seus diferentes aspectos – físico, astronômico, biológico,
psicológico, político, econômico, etc. –, bem como os valores cognitivos e morais que
adotamos, seja individual ou comunitariamente. Envolvem os elementos ontológicos,
epistemológicos, éticos e lógicos pressupostos por um/a agente, ou por uma comunidade (por
ex., científica) de agentes.
Esses pressupostos que assumimos – consciente ou inconscientemente, de forma
introjetada ou crítica – e que constituem nossas visões de mundo estão intimamente
relacionadas à maneira como conduzimos e vivemos nossas vidas. No caso das comunidades
científicas, em particular, os elementos de visão de mundo ali compartilhados – seus
compromissos ontológicos, epistemológicos, éticos e lógicos – delineiam as práticas diversas
(ensino, pesquisa, etc.) do/a cientista.
Cada pessoa adquire, desde cedo (no útero materno), e vai tendo moldada e
modificada ao longo da vida, uma visão de mundo (um conjunto de ditames ontológicos,
epistemológicos, éticos e lógicos). Em AC, uma visão de mundo traduz-se num repertório
comportamental, isto é, regras e padrões comportamentais, verbais e não verbais. Ela vai
sendo gerado, incrementado e modificado pelas interações com os contextos e circunstâncias
em que nos situamos ao longo do tempo, em toda a complexidade física, biológica, social,
econômica e cultural desses contextos e circunstâncias: interação com os familiares, amigos,
instituições escolas e outras, sistema econômico, etc., que possuem várias imbricações.
Pode-se dizer que, em certo sentido, cada pessoa tem uma visão de mundo. Mas,
como tipicamente as visões de mundo são, em grande medida, partilhadas (muitos de seus
elementos ontológicos, epistemológicos, éticos ou lógicos) pelos indivíduos de uma mesma
comunidade, falamos também da visão de mundo da comunidade ou grupo em que nos
inserimos. Inclusive, a visão de mundo de quem forma a comunidade é largamente herdada e
tributária desta. Por isso, alguns/mas preferem o foco em visões de mundo em nível de
comunidade. No entanto, as experiências individuais de cada um/a levam à formação de
visões de mundo diferentes entre si – às vezes mais, outras menos, díspares. Choques entre
visões de mundo são frequentes. Acontecem, por exemplo, quando pessoas têm visões
sobremaneira díspares acerca do que existe, dos critérios de aceitação de pensamentos e do
que valorizar. Acontecem também entre teorias muito discrepantes num mesmo âmbito de
estudo, a ponto de serem consideradas por alguns (por ex., Feyerabend, 1975; Kuhn, 1970)
como incomensuráveis em determinados casos.
Outro traço típico das visões de mundo (intimamente conectado com a noção de
repertório comportamental) é serem largamente inconscientes. Mesmo as pessoas mais dadas
à reflexão não refletem a todo momento sobre os mais diversos aspectos de suas visões de
mundo. Porém, por meio de estudo, informações e vivências, podemos colocar em dúvida
aspectos delas (problematizá-los), compará-los, alterá-los, substituí-los ou fundamentá-los.
Em particular, por meio da reflexão filosófica, examinamos nossas e outras visões de mundo,
de maneira, por exemplo, a avaliarmos nosso modo de interpretar a realidade e de viver,
sobre o que deveríamos procurar mudar do contexto em que nos inserimos e em nós mesmos.
Uma visão de mundo é algo, estritamente falando, sempre em fluxo, não algo
estanque. Cada interação com o meio pode gerar modificações em aspectos da visão de
mundo, às vezes pequenas, outras vezes mais substantivas (cf. Quine, 1951).
É claro, uma metanálise como esta, acerca de aspectos gerais das visões de mundo,
parece ser, inevitavelmente, ela própria, situada em aspectos da visão de mundo de seu autor.
Ainda que procurando expressar alguns dos aspectos comuns a visões de mundo, me valho,
por exemplo, de termos que disponho do português. O fato de que nossas interpretações e
observações são permeadas de visão de mundo é conhecido na literatura em Filosofia da
Ciência como impregnação teórica.
Munidos da imagem aqui sugerida da Filosofia como um estudo de questões de visão
de mundo, passemos a uma breve caracterização da AC, para em seguida arrematarmos a
seção falando sobre as feições e o escopo das pesquisas filosóficas em AC.

[Excerto]

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