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ALBERTO CUPANI (UFSC)

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A INTERDISCIPLINARIDADE

1. Trata-se de assunto de (ainda) difícil definição. Tentativamente, poder-se-ia caracterizá-


la como o trabalho conjunto de pesquisadores previamente treinados em campos
disciplinares determinados. Um campo disciplinar, ou mais simplesmente uma
disciplina, evoca duas idéias: a de ordem (trabalho planificado) e a de especialidade
(restrição do âmbito cognitivo). A interdisciplinaridade implica numa alteração de
ambas as coisas.

2. Uma disciplina é, em sua forma madura, um campo de saber que implica um


“paradigma” (Kuhn), o qual define as questões que lhe são próprias (e as respostas
consideradas como aceitáveis), os métodos adequados para resolvê-las, os valores a
serem respeitados e as entidades tidas por reais (pressuposições ontológicas). É
decisivo para a existência de um “paradigma” (e uma disciplina), que haja
“exemplares”, vale dizer, modelos de problemas (ou conjuntos de problemas)
solucionados (como a teoria física de Newton para a ciência natural que ela inspirou).
Caberia aqui comentar que um dos problemas para o trabalho interdisciplinar no nosso
curso é a dificuldade para pôr-se de acordo sobre “exemplares”.

3. Note-se que um paradigma não constitui apenas um condicionamento da maneira de


“ver” o mundo. Implica também um modo de agir, de trabalhar. É um modo de “lidar”
com problemas e fenômenos. E, num paradigma, a linguagem tem uma importância
capital, por ser, ao mesmo tempo, o elemento estruturador do grupo e do “mundo” que
o grupo investiga.

4. Poder-se-ia perguntar se nas ciências humanas existem paradigmas como nas ciências
naturais. Prima facie não parecem existir, visto que nas ciências humanas não há
consensos teórico-metodológicos que se estendam a todos os pesquisadores. No entanto,
num certo sentido (amplo) dá-se algo parecido a um paradigma, na medida em que existe
em cada uma delas certa maneira comum de pensar e investigar, menos visível entre
disciplinas “próximas”, como a sociologia e a antropologia, porém talvez identificável
quando tomamos extremos de um possível “leque” disciplinar (entre psicologia e
história, v.gr.). Em todo caso, seja que os paradigmas não existam ou que existam em
forma muito difusa nas ciências humanas, isso permite levantar uma questão: a
inexistência (ou quase) de paradigmas, torna mais fácil ou mais difícil a
interdisciplinaridade? Por um lado, poder-se-ia pensar que a facilita (ao não haver
condicionamentos prévios fortes a superar). Por outro, que a dificulta, na medida em
que um trabalho inter-disciplinar suponha o hábito do trabalho disciplinar.

5. Quanto a possíveis motivos ou razões para que haja interdisciplinaridade, é possível


imaginar os seguintes: complexidade das questões ou dos fenômenos; comunidade de
uma questão a mais de uma disciplina; novidade da questão; conveniência de uma
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abordagem multi-disciplinar, e ainda insatisfação por abordagens prévias.1 Em todo


caso, parece-me que a interdisciplinaridade não pode surgir como propósito (“temos
que trabalhar interdisciplinarmente”), mas como necessidade sentida.

6. A intenção de interdisciplinaridade introduz algumas alterações na análise


epistemológica tradicional. Com efeito, esta última opera com o esquema: um sujeito
conhece um objeto apelando para determinados meios (incluindo neles, desde a
formulação em determinada linguagem até as pressuposições ontológicas, passando
pelas técnicas e valores). Pois bem: creio que a introdução da perspectiva
interdisciplinar altera as três noções do esquema tradicional. O sujeito do
conhecimento (tradicionalmente concebido como individual, se bem que representa a
rigor um membro de determinada comunidade) passa a ser agora, propriamente, a
comunidade de pesquisadores; os meios de conhecimento envolvem dificuldades
novas (como a de compatibilizar pressuposições ontológicas diversas, a de aprender a
“ver” diferentes “mundos”, a de lidar com noções que podem ser “incomensuráveis”...);
e o objeto de conhecimento, costumeiramente entendido como uma “perspectiva” ou
“aspecto”, teoricamente formulado ou “construído”, do mundo real, parece exigir agora
uma integração de perspectivas ou aspectos. No entanto, a simples utilização de esta
última expressão nos enfrenta com a questão do sentido que deva dar-se a uma tal
integração: ela constitui uma somatória, ou mais bem uma reorganização? E neste
último caso: uma reorganização entendida de que maneira? Podemos também refletir
sobre o seguinte: as palavras “perspectiva” e “aspecto” têm aqui um sentido obviamente
metafórico (como de resto acontece com a própria expressão interdisciplinaridade).
Serão elas realmente úteis (ou quem sabe enganosas) para conceber o objeto visado pela
pesquisa interdisciplinar?

7. Se a interdisciplinaridade parece difícil de definir, creio que ela não é tão difícil de
acontecer quando se trata de um objetivo prático. Projetos de arquitetos, engenheiros
e médicos envolvem amiúde uma combinação de perspectivas profissionais cuja função
e integração vêm sugeridas (se não ditadas) pela meta a alcançar. Contudo, a
interdisciplinaridade no campo teórico não parece impossível de acontecer. Penso em
questões da minha área, a Filosofia da Ciência, que vêm exigindo a colaboração do
filósofo, o historiador, o sociólogo e o psicólogo da ciência (como p. ex., a determinação
da racionalidade da ciência).

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Penso em casos como o da emergência da moderna ciência natural de base matemática. A ciência natural
medieval, aristotélica, era basicamente qualitativa, e não se admitia na época que a matemática (endereçada
a investigar objetos ideais) tivesse na física qualquer papel. Pode entender-se a ciência física moderna como
produto de um trabalho interdisciplinar resultante da insatisfação com a maneira tradicional de pesquisar, e
da percepção da conveniência de combinar certos traços da física tradicional com a matemática.

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