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Resumo
Este artigo visa continuar uma reflexão sobre a receptividade da Antropologia Social ao
paradigma hermenêutico. Fez-se necessário apontar os contornos dos chamados “paradigmas
da ordem” que compõem a matriz disciplinar da Antropologia, bem como sua natureza e
interrelação, para enfocar o paradigma “histórico-cultural” (ou boasiano) como um veículo de
comunicação da noção de “compreensão” para os demais paradigmas da disciplina, bem como
para permitir uma revisão do programa etnográfico de Franz Boas.
Palavras-chave
Abstract
The goal of this article is to consider the receptivity of Social Anthropology to the
hermeneutical paradigm. It has been made necessary to point the limits, nature and
interrelation of the so called “order paradigms” that constitute the disciplinary matrix of
Anthropology in order to emphasize the “historic-cultural” paradigm (or boasian) as a vehicle
of communication of the “comprehension” notion towards the other paradigms of the
discipline as well as to allow a revision of the ethnographic program of Franz Boas.
Key-words
Introdução
Meu objetivo aqui é o de continuar a refletir sobre a receptividade geral da
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988, p. 92), principalmente no que tange aos esforços destes
1
paradigmas em orientar a elaboração de teorias do social.1 Os efeitos deste movimento
disciplinar da Antropologia. Optei por resgatar e explicitar os contornos dessa matriz - como
proposta por Cardoso de Oliveira (op. cit.) – de modo a entrever nesta os lugares que a
Ressalto que não pretendi revisar todos os paradigmas existentes ou sequer identificar
hermenêutico”, o que seria inviável diante da extensão e esforço que este trabalho alcançaria
ao tema proposto. A exemplo do que fez Cardoso de Oliveira (1988, p. 17) parti para a
Hermenêutica. Nesta busca, reconheci, e espero que nos coloquemos de acordo com relação a
este ponto, que o paradigma culturalista ou “histórico-cultural” (na Antropologia Social) pode
1
Ressalto que não é meu objetivo traçar as origens ou tradições de uma suposta “Antropologia Intepretativa
Estadunidense”. Minha proposta busca uma sintonia com os objetivos apresentados por Cardoso de Oliveira em
artigo publicado em 1988, intitulado: “A categoria de (des)ordem e a pós-modernidade da Antropologia”, no
qual lê-se: “A despeito de uma eventual condição pós-modena prevalecente, tenho procurado entender o
surgimento dessa ‘antropologia interpretativa’ examinando a receptividade da consciência hermenêutica pela
disciplina”. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988, p. 99) O artigo que ora se apresenta carece ainda de
considerações sobre em que medida a “sociologia compreensiva” proposta por Max Weber contribui para esta
receptividade no mesmo sentido que o “paradigma culturalista” em Antropologia. Me parece pertinente
reconhecer neste autor - mesmo que ele esteja posicionado paradigmaticamente na matriz de uma disciplina
distinta, a Sociologia - uma influência importante no processo de reconhecimento da “compreensão” como noção
central para a futura realização da assim chamada “Antropologia Interpretativa”. Isso quer dizer, ao menos
hipoteticamente, que as matrizes disciplinares não se constituem em isolamento. Para uma discussão pertinente
ao contexto da Sociologia, cf. artigo de Anthony Giddens, “Hermeneutics and Social Theory” (1984), no qual o
movimento hermenêutico se consolida entre aqueles sociólogos não partidários do “consenso ortodoxo”.
2
Dito de outro modo, o objetivo deste trabalho limita-se a revelar o lugar proeminente ocupado
considerando que a origem desta proeminência reside acima de tudo na tradição germânica
Admito, porém, duas limitações à plena realização desta proposta. Em primeiro lugar
é evidente que uma análise completa e consistente da tradição que informa o paradigma
“culturalista” deveria ser buscada em diálogo com autores representativos dos demais
paradigmas da Antropologia, bem como da Sociologia (cf. nota 01 mais acima), pois, como
menos não no plano das idéias). Em segundo lugar é preciso reconhecer que um olhar rápido
sobre as propostas e concepções metodológicas presentes nos trabalhos e artigos que cito mais
abaixo não são suficientes para revelar o movimento da idéia de compreensão na antropologia
ou na etnografia boasiana como um todo, pois percursos outros podem ter existido – além da
para nos colocarmos de acordo quanto à fecundidade de uma correlação ente os paradigmas
disciplina científica.
ocupa em cristalizar uma visão da natureza (ou SER) do pensamento antropológico através de
3
sobre os dados que deveriam informá-los deve ser encarado e contornado. Na verdade, é uma
relação de informação recíproca que deve existir entre dados e modelo. Quanto mais próximo
elementos que conformam e orientam esta modalidade do pensamento científico deve ser
fruto, portanto, de uma verdadeira etnografia e como tal refere-se sempre a um momento
Cardoso de Oliveira (1988) não foi feito com a pretensão de abrangê-lo em todas as suas
dimensões, mas sim de acessar sua lógica interna. Este modelo é obtido através de uma
que, para Thomas Kuhn paradigma e matriz são fundidos em um único conceito na sua
Não estamos diante de nenhum confronto entre percepções do que seja o pensamento
científico (como parece ocorrer entre as visões de Thomas Kuhn e Karl Popper – cf.
seja o paradigma, mas sim, diante de um desdobramento da noção de paradigma proposta por
caso, caberiam as perguntas: até onde a noção de paradigma desenvolvida para as “ciências
normais” pode vir a ser transferida (desdobrada) para as ciências sociais, como fez Cardoso de
Oliveira, principalmente quando esta noção é alvo de tantas interpretações nas ciências ditas
“rígidas” ou “duras? Nas palavras de Eckberg e Hill: “Por que então os sociólogos (e
antropólogos) parecem se sentir livres para dividir sua disciplina em várias e inconsistentes
4
perspectivas e chamar a estas divisões ‘paradigmas’?” (ECKBERG & HILL, 1980, p. 120 –
A noção de paradigma impõe alguns dilemas para quem tenta apreender a modalidade
ou natureza do pensamento das Ciências Sociais, bem como sua dinâmica. Poucas são as
disciplinas que podem dispor, como meta, da linguagem matemática para a proposição de
teoremas (como ocorre na Física, pensada aqui enquanto uma ciência rígida, com a equação
mesmo viável na mesma proporção, para todas as ciências, muito menos para as “flexíveis”.
estrutura do pensamento científico das ciências sociais nos mesmos moldes propostos por
Khun para as “ciências normais” não implicaria uma distorção do que seriam as primeiras,
bem como uma má interpretação da própria visão khuniana de ciência. Entretanto, o que
justamente a promoção de uma visão própria das ciências sociais inspirado na noção khuniana
irrefletido dos argumentos deste autor para compreender um objeto que reconhecemos ser de
um conjunto de paradigmas e não uma sucessão linear dos mesmos no tempo, Cardoso de
5
Oliveira não descarta a definição metafórica do paradigma como “quebra-cabeças” (puzzles).
Dito de outro modo, os paradigmas continuam sendo nas “ciências normais” e nas “ciências
idéias. Mais do que “paradigmas envolventes de uma disciplina como um todo”, o que
paradigma para ampliá-la em seguida através de uma segunda analogia. Nesse caso, o autor
Oliveira pretende dizer que há um “ar de familiaridade” entre eles, i.e., que os paradigmas
próprios para resolução de problemas que são insensíveis para dimensões do real que não
entram nos quadros de sua preocupação. Tratam-se de “pontos cegos” que são
complementados ou reduzidos pelos demais paradigmas que possuem eles próprios seus
criado pelos vários “pontos cegos” dos momentos metódicos dos demais paradigmas, fazendo
com que ele próprio se constitua como um momento “não-metódico” dos demais paradigmas.2
Há aqui uma relação complementar que engendra dois tipos de interpretação, como veremos
2
Esta interpretação parte de minhas anotações de aula no 2º semestre de 1999, quando o Prof. Roberto Cardoso
de Oliveira ministrou no Centro de Pós-Graduação e Pesquisa para América Latina e o Caribe – CEPPAC da
Universidade de Brasília, o curso intitulado “Epistemologia da Antropologia: A compreensão na construção da
teoria social”.
6
Parece-me apropriado observar, após estes esclarecimentos, a matriz disciplinar da
Antropologia propriamente dita, como proposta por Cardoso de Oliveira. Esta consiste de
representada por distintas “escolas” – que devem ser posicionadas lado a lado de modo a
tempo (uma perspectiva seria atemporal, “pois mesmo negando o tempo por ele se define” –
trata-se de uma perspectiva sincrônica -, e outra temporal ou histórica, quer dizer, diacrônica).
Esta disposição gera um diagrama que nos permite avaliar o lugar de pelo menos quatro
(4) (3)
Retirado de “Tempo e tradição: Interpretando a Antropologia”, de Roberto Cardoso de
Oliveira. Sobre o Pensamento Antropológico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1988, p.
16.
Como foi explicitado no início deste trabalho, mas que pode ser melhor visualizado
neste momento, pretendo elucidar o terceiro paradigma da matriz acima, reavaliando sua
fenômenos culturais e com a compreensão de suas particularidades. Tudo isso tem o objetivo
7
de elucidar o “paradigma histórico-cultural” como uma porta de acesso intercomunicativa do
atentemos para um aspecto particular da matriz acima. Trata-se do lugar central que os
paradigmas da matriz disciplinar dão aos conceitos de “estrutura” e “cultura”. Nesse sentido,
após uma (re)leitura orientada pelos argumentos e objetivos acima, exemplar para a
evolucionista britânica e por outro, como é o caso do próprio Boas, com a construção de um
novo quadro de referência para se pensar a diversidade cultural dos povos numa perspectiva
fenômenos sociais. Acredito que o escrutínio das idéias de Boas sobre o empreendimento
antropológico, através de sua proposta ou programa etnográfico, aponta para o modo pelo
paradigmas polivalentes.
8
Histórico-Cultural” estadunidense (cf. STOCKING JR., 1968 e BUNZL, 1996) representada
por Boas e seus alunos. Isto nos leva a re-conhecer a existência de uma dupla face da
antropologia boasiana, apontando ora para o geral, ora para o particular, ora para a explicação,
ora para a compreensão, ora para o estético, ora para o afetivo, sem nunca privilegiar
mas sim o pano de fundo desta proposta, ou melhor, seu avesso, sua trama ou costura interna,
Cardoso de Oliveira há quinze anos. Tais objetivos serão agora desenvolvidos através da
epistemologias distintas que se debruçam sobre um mesmo objeto, mas com objetivos
distintos.
encontram-se em seu texto: “The Study of Geography” (“O estudo da geografia”, original de
“The Study of Geography”, publicado em Science logo após Boas ter assumido suas
obrigações editoriais, quando ele era ainda otimista quanto a sua entrada na ciência
americana, foi a formulação máxima da visão científica que ele trouxera consigo da
Alemanha para os Estados Unidos. Tanto uma expressão de sua experiência enculturativa
(enculturative, no original) pessoal quanto de seu trabalho científico e reflexão
epistemológica anterior, tratava-se de uma justaposição mais do que uma síntese, legitimando
simultaneamente duas abordagens distintas da “verdade eterna”: de um lado, a busca pelo
universal, pelas leis científicas objetivas, válidas para todas as eras e todos os lugares; por
outro lado, um modo mais subjetivo de compreensão (understanding, no original), mais
próximo da arte do que das ciências físicas, o qual era expressado na apreciação das
particularidades do momento histórico e do lugar geográfico. (LISS, 1996, p. 182, tradução
livre e parêntesis CTS)
9
Liss não menciona que por trás da busca pela “verdade eterna” e da “apreciação das
(Erklären/Verstehen). Ela não situa, desse modo, o interesse pelo universal e pelas leis
científicas objetivas como um desejo originário no impulso de explicação. Por outro lado,
lugar geográfico”. Outro intérprete da obra de Boas, Matti Bunzl, parece ter sido mais
fenômenos sociais). Bunzl deixa bastante evidente em seu artigo o papel de Wilhelm
Alemanha, fazendo com que Erklären (explicação) se tornasse um aspecto central das
ciências da natureza e Verstehen (compreensão) se tornasse: “... o aspecto central das ciências
Verstehen também era um conceito central para Wilhelm Dilthey. Em 1883 ele
10
das ciências da natureza. A preocupação central de Dilthey residia na possibilidade da
“compreensão” servir como base para o conhecimento objetivo da condição humana, pois
somente por meio dela era possível ao intérprete “re-experenciar” (nachempfinden) a situação
histórica do autor (leia-se “outro”) através da empatia. Segundo Bunzl, Dilthey influenciou
Boas diretamente o que se evidencia pelas referências deste ao filósofo. (Cf. BUNZL, 1996,
p. 27)
entre Boas e a tradição intelectual germânica, porém uma leitura desatenta da nossa parte
consideração das questões formuladas pelo próprio Boas, por outro lado, elucidariam uma
Antropologia como pensada por Boas, diante não de duas tradições, mas de apenas uma com
uma dupla face. A Antropologia seria a ciência tanto da “natureza” (humana, em todos os
particularidades) Como questionou o autor em sua obra seminal: 1) “Seria o estudo dos
fenômenos por si mesmos iguais em valor à dedução de leis?”; e 2) “Seria o estudo de uma
série de fenômenos que possuem uma mera conexão subjetiva igual em valor às pesquisas
Como se pode notar tratam-se de questões preocupadas com a ordem subjetiva de duas
pesquisador.
Uma resposta (para as questões anteriores) pode apenas ser subjetiva, sendo uma confissão do
respondente para qual é mais querida para ele – seu sentimento pessoal frente aos fenômenos
que o cercam, ou sua inclinação para abstrações; caso ele prefira reconhecer a individualidade
11
na totalidade, ou a totalidade na individualidade. (BOAS, 1996 [1887], p. 14, tradução livre e
parêntesis CTS)
distintos, um para se referir às teorias gerais e comparativas (em busca de uma satisfação
estética, diria Boas) e outro para descrever os resultados empíricos e descritivos da ciência do
homem (guiado por sentimentos afetivos diante da particularidade dos fenômenos culturais),
caso não se percebesse por trás de ambos uma dupla interpretação dos fenômenos sociais e
culturais.
Oliveira elabora uma resposta aqueles que visavam exorcizar, através de uma leitura
mesmos entre “explicação e compreensão”. A meu ver esta alternativa guarda um “ar de
familiaridade” frente aos argumentos elaborados por Boas em termos de desejos “estéticos e
... seguindo aqui, Paul Ricoeur, quando este autor examina a relação dialética entre
compreensão e explicação em vários de seus escritos, (...) se considerarmos que o conceito de
interpretação é mais extenso – logicamente falando – que os de explicação e compreensão,
uma vez que os recobre, totalizando-os em uma única categoria cognitiva, verificaremos que
tanto a explicação como a compreensão passam a ter as funções de adjetivar a interpretação.
(...) Teríamos assim a interpretação explicativa e a interpretação compreensiva. Essas duas
modalidades de interpretação guardam em si uma relação dialética, isto é, de mútua ou
recíproca contaminação. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998, p. 96-97)
Diante desta distinção podemos observar a oposição proposta por Boas entre
“estético” e “afetivo” sob outro prisma e, fazendo o caminho de volta, constatar que a
12
métodos físicos e os históricos, em que os adeptos de cada um deles clamam ora pelo
mesmos ora pela investigação dos fenômenos particulares em detrimento das leis objetivas.
Um grande número de modernos geógrafos (leia-se etnógrafos) tem sido educados como
historiadores, e eles devem tentar se por de acordo com os naturalistas (leia-se cientistas da
natureza) que, por sua vez, devem aprender a acomodar seus pontos de vista aqueles dos
historiadores. É evidente que uma resposta para essa questão fundamental sobre o valor da
ciência física e histórica só pode ser encontrada por uma investigação metódica de sua relação
uma frente a outra. (BOAS, 1996 [1887], p.11)
Stocking (1968) em trabalho intitulado: “Franz Boas and the Culture Concept in
Historical Perspective” (“Franz Boas e o conceito de cultura numa perspectiva histórica”) nos
substituindo-as pelo conceito de cultura. Stocking reconhece que a idéia de cultura atravessa
mudanças de significado em outras mentes além de Boas, e que seria esclarecedora uma
13
das condições de possibilidade para seu estabelecimento como conceito heurístico na
Antropologia.
definição clássica de cultura cunhada por E. Tylor, são eles: historicidade, pluralidade,
quando diz que Boas desempenhou um papel crucial na emergência e consolidação de uma
nova noção de cultura a partir destes elementos. Esta noção partiu de uma concepção ainda
baixos ou altos entre todos os povos, para uma percepção da cultura como um fenômeno
particular, próprio a cada um dos povos que a detém. Nesse movimento conceitual, Stocking
afirma:
sua extensão. Aproveito seu estudo seminal apenas para promover a tese de que a mudança
de significado do conceito de cultura promovida por Boas propiciou uma reavaliação dos
3
Vale lembrar que no estudo da receptividade da Antropologia à hermenêutica Cardoso de Oliveira (1988) aponta
três elementos que haviam sido domesticados pelos paradigmas da ordem e que foram reformulados pelo
paradigma hermenêutico, são eles: “a subjetividade que, liberada da coerção da objetividade, toma sua forma
socializada, assumindo-se como inter-subjetividade; o indivíduo, igualmente liberado das tentações do
psicologismo, toma sua forma personalizada (portanto o indivíduo socializado) e não teme assumir sua
individualidade; e a história, desvencilhada das peias naturalistas que a tornavam totalmente exterior ao sujeito
cognoscente, pois dela se esperava fosse objetiva, toma sua forma interiorizada e se assume como historicidade.
(Cardoso de Oliveira, 1988: 97) Estes três elementos estão contidos no pensamento boasiano, o que nos permite,
amparado em Stocking, identificar em Boas o precursor da receptividade da Antropologia ao paradigma
hermenêutico, justamente por ser ele um primeiro “agitador” dos paradigmas da ordem. Apesar de não ter
desempenhado esse papel radicalmente frente aos demais paradigmas com os quais conviveu [(1) e (2) da matriz
disciplinar acima], Boas desempenhou um importante papel de agente “desordeiro” frente ao “paradigma
evolucionista”, não presente na matriz.
14
interrogação das premissas e proposições da disciplina como vinha sendo pensada até então
Elias, 1997) já havia se consolidado na tradição intelectual de Boas que então carregava a
idéia de kultur como bildung. O que é confirmado por Liss (op. cit.):
...os interesses (de Boas) eram de fato marcadamente ecléticos e amplamente envolventes,
incluindo história e literatura, música e arte, assim como as ciências naturais. Essa amplitude
de formação (cultivation, no original) era consistente com o ideal educacional do Gymnasium
germânico, e que era epitomizado na palavra Bildung, significando “cultivação”, “formação”,
ou “educação” num sentido espiritual. Refletindo uma concepção idealista do
desenvolvimento humano, Bildung se referia ao processo pelo qual o indivíduo se formava
organicamente através da imersão afetiva no material de aprendizagem. (LISS, 1996, p.160,
tradução livre e parêntesis CTS)
fazendo com que o vejamos em primeiro lugar como um fieldworker (idem: 204).4 Vale a
principalmente através das considerações de Gadamer (1998), que cito aqui visando ampliar a
Assim, mesmo um olhar preliminar sobre a história lingüística de Bildung nos introduziria na
cadeia de idéias históricas que Hegel primeiro introduziu no interior da esfera da “primeira
filosofia”. De fato, Hegel trabalho bem o que é Bildung. Nós o seguimos, inicialmente. Ele
também viu que filosofia (e, nós podemos adicionar, as ciências humanas,
Geisteswissenschaften) “tem, no Bildung, sua condição de existência”. Porque o ser do Geist
(espírito) possui uma conexão essencial com a idéia de Bildung. (GADAMER, 1998,
p.12-13, tradução livre CTS)
4
Para um debate sobre o lugar da “compreensão” (Verstehen ou Understanding) na observação participante,
como procedimento principal da etnografia, cf. o texto de Michael Martin (1974) intitulado: “Understanding and
Participant Observation in Cultural and Social Anthropology” (“Compreensão e observação participante na
Antropologia Social e Cultural”). Organizado por Marcello Truzzi na obra: “Verstehen: Subjective
Understanding in the Social Science”. Massachusetts: Addison-Wesley. Neste trabalho de Martin há uma
sistematização dos tipos de envolvimento (empatia) que pode encetar o antropólogo durante o trabalho de campo
que visa em última instância a “compreensão de uma comunidade”. Martin deixa escapar, entretanto, a idéia de
empatia informada pelo conceito de bildung, reduzindo-a a idéia de “pôr-se no lugar no outro” (adoption sense)
ou “manejar os códigos de conduta do outro” (assimilation sense).
15
Procurar a si próprio no outro, tornar-se em casa nele, é o movimento básico do espírito, o
qual ser é apenas retornar do que é outro para si mesmo. Daí todas as teorias de Bildung,
mesmo a aquisição de línguas estrangeiras e mundos conceituais, é meramente a continuação
do processo de Bildung o qual começa muito antes. (GADAMER, 1998, p.15, tradução livre
CTS)
Kwakiutl e Inuit, principalmente), com quem trabalhou por toda a vida, desde 1885 até sua
última viagem em 1930. Tratava-se de uma busca por empatia num sentido muito próximo ao
elaborado por Dilthey. Nas palavras de Boas: “Nossa consideração nos leva à conclusão que
a geografia (leia-se etnografia) é parte da cosmografia, e tem sua fonte no impulso afetivo, no
estadunidense.5 Seja como uma observação e registro sistemático, como uma descrição
obtido em colaboração com outras ciências, a etnografia aparece aqui como sendo uma
5
Me refiro aqui ao texto: “The Development of Ethnography as a Science” (“O desenvolvimento da Etnografia
como uma ciência”), presente na coletânea organizada por Cora Dubois.
16
Nota-se aqui os elementos identificados anteriormente como próprios da tradição
intelectual alemã, refiro-me ao uso do termo cultura no plural e equiparada à civilização, bem
precisam ser sempre universais para serem úteis à etnografia (idem, p. 493). Nesse sentido,
várias técnicas que evitem interpretações valorativas (etnocêntricas) por parte do etnógrafo
são sugeridas por Lowie (fazendo eco ao pensamento de Boas), sem que isso minimize a
(quando houver), abordagens estatísticas (sugeridas por antropólogos anteriores como Tylor e
sua estrutura (segundo proposta de Wilhelm Humboldt, cf. BUNZL, 1996), são exemplos das
homem com a natureza, dos homens entre si e do homem consigo mesmo (sua natureza
p. 04-05, cf. CODERE, 1966, p. xiii, tradução livre CTS) Nas palavras de Lowie (1953):
“... o etnógrafo lida com a totalidade da atividade humana socialmente determinada (...).6
O cientista individual não controla o segmento da realidade que ele escolheu como objeto
tradução livre CTS) A partir de uma concepção dinâmica de cultura, nenhum aspecto da
6
O trabalho de campo surge aqui como condição sem a qual as singularidades culturais entre as sociedades não
poderiam ser desvendadas. Era preciso um olhar aproximado, a closer investigation, ao invés de um hasty
glance. (cf. CODERE, 1966)
17
resultados de uma etnografia não se referem a uma enumeração pura e simples dos vários
aspectos da vida social, mas antes, a interconexão dos fenômenos culturais historicamente
associados e que são determinantes da particularidade de uma cultura; isto nos leva ao
segundo ponto.
conhecimento etnográfico total das culturas relacionadas, logo que o estudo detalhado dos
costumes e instituições em relação à cultura de uma sociedade que a pratica deve se dar
o que vem a promover uma compreensão das causas históricas que levaram à
implementação de tais costumes e instituições, bem como aos processos psicológicos que
assegurar que registros textuais do conhecimento e discursos nativos estejam o mais livre
reside em objetivos que estão além de questões propriamente lingüísticas, na verdade: “...
o serviço que a língua nos presta é primeiramente de ordem prática – um meio de melhor
compreendermos os fenômenos etnológicos que em si mesmos não tem nada a ver com
problemas lingüísticos.” (BOAS, s/d, p. 52, tradução livre e sublinhado CTS) Em outras
Humboldt:
não nos nossos.” (BOAS, 1943a, p. 314, cf. CODERE, 1966, p. xviii, tradução livre e
sublinhado CTS)
associado às metas ambiciosas e nomotéticas propostas poderia vir a ser encarado como uma
acumulação exaustiva de fatos sobre fatos, traços culturais sobre traços culturais, onde o
etnógrafo seria pensado como tendo nenhuma ou quase nenhuma participação na seleção ou
no ordenamento do que estaria sendo observado, pois se tudo deve ser considerado em todas
sugerir justamente o oposto. No interior dos três pontos levantados acima, nota-se um
costumes e instituições à cultura total da sociedade, e esta à área geográfica em que está
Este mesmo esforço pode ser notado ainda em outro texto. Em “The limitations of the
artefatos produzidos pelo homem a partir de um único elemento concebido como universal,
19
i.e., a unidade psíquica da mente humana. Boas argumenta, ao seu modo, que os mesmos
fenômenos podem ter se originado em áreas distintas por diversas causas (argumento que se
tornará central em todo seu pensamento), logo que a mente humana é formada de tal modo
que tanto pode inventar espontaneamente quanto aceitar o que quer que se lhe ofereça.
(BOAS, 1973) Seus exemplos etnográficos sobre como tribos primitivas estão universalmente
divididas em clãs aos quais são atribuídos totens ou sobre como formas geométricas na arte
culturas têm sido alcançados por diferentes trajetos históricos de desenvolvimento, bem como
Nesse sentido, o papel da etnografia seria o de procurar fazer com que as causas para
sido efeito das mesmas causas. O método histórico subjacente a esta visão da etnografia
leis que governam a mudança dos estágios culturais (ou da civilização) como o propósito
último da disciplina, entretanto, o caminho pelo qual isto deve ser perseguido é adiado pela
promoção de uma história das culturas. Nas palavras de Bunzl (op. cit.):
... se o impulso afetivo e estético estavam ambos presentes através da carreira de Boas, a
busca por leis gerais encontrava-se sempre constrangida pelo desejo do cosmógrafo de
descrever e entender fenômenos individuais. Ao mesmo tempo em que ele nunca abandonou
completamente a busca por leis do comportamento humano, ele gradualmente se tornou
menos confiante em algum dia conseguir encontrá-las, e o corpo de seu trabalho implicou
amplamente em descrições detalhadas de particularidades ao invés de tentativas de
generalização. (cf. Stocking, 1968: 154-155; Kluckhohn & Prufer, 1959: 24-25). (BUNZL,
1996, p.18, tradução livre CTS)
20
Uma ênfase nas singularidades pertinentes à cada cultura acaba se constituindo na
marca da proposta boasiana mais do a que ênfase que ele também visava encontrar do que
diferenciação cultural (diferença que era pensada pelos evolucionistas como “atraso”,
“anterioridade” ou “estágio” de uma única “cultura humana” e que para Boas é alvo do desejo
França (Escola Sociológica Francesa) quanto na Inglaterra (Tylor, Frazer, Spencer etc.),
entretanto, é curioso notar que este sentido de “cultura” não tenha se disseminado, talvez isto
tenha ocorrido em virtude da maneira diferenciada como “ao longo da história, os alemães
vêem o comportamento alemão.” (ELIAS, 1997, p. 14) Tudo isso sugere hipoteticamente por
determinista, além de ressaltar uma preocupação com a individualidade (Geist) das culturas,
21
nos Estados Unidos, i.e., longe das disputas no campo científico de franceses, ingleses e
alemães quanto à representação de sua civilização. Por outro lado, sugere uma interessante
hipótese para pensarmos porque a “compreensão” não floresceu em paradigmas voltados para
a “estrutura”.
método da Etnologia”, 1920), Boas retoma suas questões de método e esclarece o que tem
Em primeiro lugar, todo o problema da história cultural aparece para nós como um problema
histórico. Para se entender a história é necessário conhecer não apenas como as coisas são,
mas como elas vieram a ser o que são. (...) É verdadeiro, claro, que nós nunca esperamos
obter dados incontrovertidos relativos à sequência cronológica dos eventos, mas certas
direções amplas podem ser acertadas com um alto grau de probabilidade, mesmo de certeza.
Tão logo quanto esses métodos são aplicados, as sociedades primitivas perdem sua
aparência de absoluta estabilidade como são concebidas pelo estudante que as conhece apenas
num dado período de tempo. Todas as formas culturais aparecem, ao invés disso, num
constante estado de fluxo e sujeita à modificações fundamentais. (BOAS, 1973, p. 95,
tradução livre CTS)
se impôs desde as primeiras experiências etnográficas de Boas como uma questão premente
parece ter sido recebida como um projeto intelectual no mínimo ambicioso para a
Brevemente, portanto, o método que nós tentamos desenvolver é baseado no estudo das
mudanças dinâmicas de uma sociedade que podem ser observadas no momento presente. Nós
retraímos a tentativa de resolver problemas fundamentais acerca do desenvolvimento geral da
civilização até que tenhamos nos tornado aptos a desemaranhar os processos que estão se
passando sob nossos olhos. (BOAS, 1973, p. 96, tradução livre CTS)
22
Esta perspectiva encontra-se profundamente enraizada na tradição humboldtiana da
Antropologia germânica como nos foi apresentada por Bunzl (op. cit.). Este autor,
intelectual alemã, porém, o que nos parece mais pertinente, refere-se a uma visão dinâmica de
cultura aí colocada. Esta encontra-se num fluxo e transformação constante que deve ser
historicidade da cultura. Segundo Bunzl: “Alinhado com seus esforços como um “salvage
(BUNZL, 1996, p. 48-49, tradução livre CTS) Entretanto, é preciso reconhecer com Cardoso
de Oliveira que:
que formas culturais são resultantes de processos históricos e que a difusão de traços e
movimento dialético entre passado e presente via etnógrafo (cf. BOAS, 1966).
Este movimento nos faz reportar a Gadamer para quem a tradição se constitui no
excedente de sentido presente no texto (ou obra de arte) envolvendo as próprias intenções do
autor. É a tradição que permite uma abertura do texto. No uso da história promovido por
23
Boas, percebe-se o propósito de se alcançar a subjetividade da cultura pela tradição através de
antropologia boasiana implica na elaboração de algumas ressalvas para que não se pense que
Boas à uma tradição intelectual alemã de “dupla face” (isto é, estética e afetiva, explicativa e
Os escritos de Boas deixam uma imagem clara sobre quais seriam os objetivos do
trabalho etnológico e etnográfico. A idéia de que a etnografia deveria ser o registro escrito de
um modo de vida alheio aquele do etnógrafo, não sendo omitido nenhum aspecto, por mais
subjetividade, do irrefletido da cultura do outro, que somente poderia ser alcançada por
métodos comparativos (estéticos) assim como pelo excedente de sentido que escapa aos
métodos objetivos de observação, registro e descrição dos fenômenos sociais. Trata-se uma
compreensão via empatia e bildung, alcançado na e pela experiência de campo. Tudo isso
quer dizer que caso não possamos considerar a antropologia de Boas uma “Antropologia
Bibliografia
-----. Race, Language and Culture. New York: The Free Press, 1966.
24
-----. “The Limitations of the Comparative Method in Anthropology”; “The Methods of
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