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Xamanismo transversal: Lévi-Strauss e a cosmopolítica amazônica

Eduardo Viveiros de Castro


Museu Nacional, Rio de Janeiro

Convidado, em março recém-passado, a redigir uma apresentação ou um posfácio aos estudos


reunidos no presente volume, dei-me conta de que não teria tempo de ler, assimilar e fazer um
comentário à altura de textos tão densos. Antes que um escrito em posição de sobrevôo
metafórico à série, seria mais fácil contribuir com uma adição metonímica, lateral, a ela. A
alternativa que propus aos organizadores foi este artigo. Ele se origina em uma palestra feita em
outubro de 2007, no departamento de antropologia da Universidade de Cambridge. Eu ali
retomava observações já publicadas (Viveiros de Castro 2002a), embutindo-as em uma apreciação
mais atual e sobretudo mais enfática da importância do pensamento de Lévi-Strauss para o futuro
imediato da disciplina.

O texto a seguir foi reescrito em estilo indireto, dando livre curso aos micro-desenvolvimentos
feitos no bater das teclas, aqueles “cacos” providenciais que fazem com que, de tanto escrever o
mesmo artigo, acabemos por escrever um outro.

O palestra que eu inicialmente contava fazer intitulava-se “O Anti-Narciso: a idéia da antropologia


como ciência menor”. Seu propósito era caracterizar as tensões conceituais que atravessam e
constituem a antropologia contemporânea como tal. Mas como o projeto corria um certo risco de
auto-implosão, já que o menor descuido poderia transformá-lo em uma enfiada de bravatas bem
pouco anti-narcísicas a respeito da excêlencia das posições professadas, resolvi mudar-lhe o
nome, e parte do conteúdo, para “Xamanismo transversal: a forma e a força na cosmopolítica
amazônica”.1 Além de enganadoramente etnográfico, ele agora evocava menos alguma filosofia
“continental” exótica que um exemplar da mais pura antropologia social britânica: o título era
uma alusão ao artigo “Shamans, prophets, priests and pastors” de Stephen Hugh-Jones (1996),

1
O subtítulo remudado do presente artigo visa apenas enquadrá-lo no tom geral do livro; o conteúdo
permanece substancialmente o mesmo da palestra.
2

publicado no livro Shamanism, History and the State, organizado por Caroline Humphrey e
Nicholas Thomas. Estávamos, como já disse, em Cambridge.

A noção de um “xamanismo transversal” era pois uma provocação amigável a Hugh-Jones


(presente à palestra), especialista na etnologia do Noroeste amazônico2, que no artigo citado
avança uma distinção entre dois estilos de xamanismo na região, um que chamou “horizontal” e
outro “vertical”, distinção de possível validade não só para toda a Amazônia, como bem mais
além. Ela veio, com efeito, a ser utilizada com muito sucesso por Morten Pedersen em uma análise
das ontologias norte-asiáticas, a qual constituiu também, diga-se de passagem, a primeira tentativa
de extensão do conceito amazonista de perspectivismo a outras configurações cosmopolíticas.3
Foi a generalização de Pedersen que me despertou para o potencial analítico da distinção de
Hugh-Jones, ainda que o problema da determinação das dimensões “horizontais” e “verticais” das
estruturas cosmopolíticas indígenas me preocupe há bastante mais tempo; meu trabalho sobre os
sistemas de parentesco da Amazônia, por exemplo, interessa-se centralmente pelas relações entre
“hierarquia” e “reciprocidade”, para recordarmos os termos da questão tal como formulada em
dois artigos seminais de Lévi-Strauss (1944, 1956a/1958).4

Com o adjetivo “transversal”, entretanto, eu estava reintroduzindo de maneira não muito sutil a
mesma filosofia exótica que pretendia ter expurgado do título. O conceito de “transversalidade”,
como se sabe, pertence ao vocabulário de Gilles Deleuze e Félix Guattari.5 Ele designa um modo
de comunicação entre heterogêneos característico das multiplicidades intensivas ou rizomáticas,
aqueles sistemas acentrados e não-totalizáveis que povoaram as ontologias de diversas ciências ao
longo do século XX, vindo a consolidar-se, de maneira exemplar na filosofia de Deleuze, como
uma inovação metafísica importante em relação aos conceitos tradicionais de “objeto” ou
“entidade — inovação que ainda está longe de ter sido perfeitamente absorvida pelas disciplinas
humanas e sociais. Com a transversalidade eu estaria sugerindo uma linha de fuga (a “linha de
fuga” de Deleuze e Guattari é sempre uma transversal e uma tangente) em relação às coordenadas
cartesianas da distinção de Hugh-Jones. Mas tal linha de fuga não me afastava tanto assim, a bem

2
E um maiores conhecedores de Lévi-Strauss na antropologia britânica. Seu livro sobre a cosmologia e ritual
dos Barasana do Alto Vaupés (Hugh-Jones 1979) é uma aplicação pioneira da teoria das Mitológicas a um
estudo em profundidade de um povo amazônico.
3
Ver Pedersen 2001, Viveiros de Castro 1996/1998. Uma discussão coletiva sobre o perspectivismo na Ásia
Interior (Mongólia, Sibéria, Tibet) acaba de ser publicada em Pedersen, Empson & Humphrey (orgs.) 2007.
4
Ver Viveiros de Castro 2002b, 2002c, 2007.
5
Guattari 1972/2003; Deleuze 1979. Ver Bogue 2007 para uma apreciação recente.
3

dizer, de outras coordenadas, cantabrigianas essas: ao contrário, havia várias conexões parciais,
como qualquer leitor de Marilyn Strathern estaria (parcialmente, bem entendido) disposto a
admitir. Esse era um dos níveis conotativos da palestra, que possuía, entre outros, um caráter de
homenagem subtextual à grande antropóloga de Cambridge, aquela dentre todos os seus
contemporâneos que se mostrou mais capaz de assumir e levar à frente, de modo radicalmente
inovador, o autêntico espírito do estruturalismo.6 Os herdeiros de um pensamento nem sempre
estão onde se imagina.

Na introdução da fala, não pude deixar de fazer um resumo das intenções por trás do título
original, pois elas permaneciam atuantes, se bem que atenuadas, no texto apresentado. Elas
buscavam, primeiramente, indicar as transformações na antropologia correlatas à emergência, em
nossa paisagem intelectual geral, de toda uma família de ontologias planas,7 que pré-concebem ou
pressupõem o real como multiplicidade dinâmica imanente em estado de variação contínua, um
meta-sistema “longe do equilíbrio” — antes que como manifestação combinatória ou
implementação gramatical de princípios ou regras transcendentes —, e como relação
diferenciante, isto é, como síntese disjuntiva de heterogêneos — antes que como conjunção
dialética (“horizontal”) ou totalização hierárquica (“vertical”) de contrários.  Essa  concepção da
diferença transversal, que se constituiu progressivamente no interior de um movimento de relativo
refluxo da Linguagem enquanto macroparadigma antropológico, veio problematizar focalmente a
dupla oposição entre, por um lado, os “signos” e o “referentes” (a ordem lógica das razões e a
ordem material das causas), e, por outro lado, as “pessoas” e as “coisas” (a ordem social dos
sujeitos e a ordem natural dos objetos), procurando ao mesmo tempo evitar qualquer facilidade
reducionista. Do ponto de vista das periodizações que às vezes tomamos emprestadas de outras
disciplinas, pode-se dizer que a ontologia da diferença é “neo-barroca” (Kwa 2002), escapando
(transversalmente) à alternância pendular a que se costuma reduzir a história da antropologia, a
saber, aquela entre o atomismo mecanicista clássico (com a dicotomia indivíduo-sociedade que
lhe está associada) e o holismo organicista romântico (com sua poderosa dialética da natureza e
da cultura). Em outra escala temporal, essa ontologia será classificada como “pós-estruturalista”.8

6
Como observou com argúcia Alfred Gell (1999: 31).
7
Para uma exposição desse conceito, ver DeLanda 2002. O leitor achará proveito em buscar na internet a
expressão “flat ontology”, que mostra uma interessante distribuição transdisciplinar.
8
Ver um primeiro esboço dessa reconstrução em Viveiros de Castro 2007.
4

O segundo objetivo era desenvolver o argumento de que as teorias antropológicas são versões das
práticas de conhecimento ou modos de descrição nativos, dispondo-se em continuidade com as
pragmáticas conceituais dos coletivos que estudamos. (Um aspecto notável da ontologia planar da
diferença acima evocada é a dissociação entre as noções de continuidade e de homogeneidade;
por isso, há muitas coisas que não se está dizendo quando se diz que o pensamento antropológico
é uma transformação contínua ou analógica do pensamento nativo.) Tratava-se de esboçar uma
“descrição performativa” das transformações do discurso da antropologia na origem da
interiorização reflexiva da condição transformacional da disciplina enquanto tal, isto é, o fato
(teórico) de que ela é uma anamorfose discursiva das etno-antropologias dos coletivos estudados.
Tomando como exemplo as noções amazonistas de “perspectivismo” e “multinaturalismo”, a
intenção era mostrar que os estilos de pensamento praticados pelos coletivos que estudamos são
a  força motriz da disciplina. Uma consideração aprofundada desses estilos e de suas implicações,
em especial do ponto de vista da elaboração de um conceito antropológico de conceito — um
dos objetivos que me parecem centrais para a consolidação de uma antropologia teoricamente
descolonizante (e não apenas retórica, ideológica ou institucionalmente descolonizada) —,
mostraria sua importância na gênese, ora em curso, de toda uma nova concepção da prática
antropológica. Um novo conceito de antropologia, em suma, para o qual a descrição das
condições de auto-determinação ontológica dos coletivos estudados — aquilo que Martin
Holbraad (2003) chamou com felicidade de “ontografia” comparativa — prevalece absolutamente
sobre a redução epistemocêntrica do pensamento humano (e não-humano) a um dispositivo de
recognição: a assimilação de todo pensar a um classificar, predicar, julgar e representar. Aceitar a
oportunidade e a relevância desta tarefa de “pensar outramente” (autrement, Foucault) sobre o
pensamento é comprometer-se com o projeto de  elaboração de uma teoria antropológica da
imaginação, sensível à criatividade e reflexividade inerentes à vida coletiva dos povos (humanos e
não-humanos).  

Assim, o propósito do título original era o de sugerir que a antropologia já está — ou “jamais
deixou de estar” — escrevendo os primeiros capítulos de um grande livro, que seria o seu Anti-
Édipo. Tal livro fictício se chamaria naturamente “Anti-Narciso” porque, se Édipo é o protagonista
do mito fundador da psicanálise, Narciso pode ser visto como o personagem de referência para
uma disciplina obcecada pela questão de determinar que atributo ou critério fundamental
distingue o sujeito do discurso antropológico de tudo aquilo que não é ele (nós), a saber, o não-
ocidental, o não-moderno ou o não-humano. Qual seria esse atributo, a causa e o signo daquilo
5

que nos torna assim tão especiais? — o capitalismo e a racionalidade, o individualismo e o


cristianismo? a criação especial e a alma imortal, a neotenia e a corticalização, a cultura e a
linguagem, o trabalho e o desejo, o Dasein e a clareira, a meta-intencionalidade…? Pouco
importa, visto que o problema é o problema, isto é, a pergunta, que contém a forma da resposta: a
forma de um grande divisor. Mude-se o problema, mude-se a forma da resposta: contra os grandes
divisores, uma antropologia menor fará proliferar as pequenas multiplicidades — não o
“narcisismo das pequenas diferenças”, mas o anti-narcisismo das variações infinitesimais —;
contra os humanismos “terminados” ou finalizados, um “humanismo interminável” (Maniglier
2000), virtual-relacional, que registra o fim da “exceção humana” (Schaeffer 2007) e recusa a
constituição da humanidade em ordem à parte. Proliferar a multiplicidade, sublinho; pois não se
trata justamente de abolir a fronteira que une-separa signo e mundo, pessoas e coisas, “nós” e
“eles”, humanos e não-humanos — nenhuma facilidade reducionista, como eu disse; nenhum
monismo portátil —, mas de “irreduzi-la” (irréduction, Latour) e indefini-la, infletindo toda linha
divisória em uma curva infinitamente complexa; não se trata de apagar contornos, mas de dobrá-
los, adensá-los, enviesá-los, irisá-los e difractá-los (Derrida 2006: 73). A entrada, em suma, em um
regime de “cromatismo generalizado” (Deleuze & Guattari 1981: 123).

Os capítulos desse Anti-Narciso em progresso, argumentei, começaram a ser escritos por


antropólogos como Roy Wagner (a noção de uma antropologia reversa, a vertiginosa
fenomenologia semiótica do literal e do figurativo, o esboço visionário de um conceito etnológico
de conceito), Marilyn Strathern (a desconstrução-potenciação cruzada do feminismo e da
antropologia, as idéias-força de uma “estética indígena” e de uma “análise indígena” que formam
como que as duas partes de uma anticrítica melanésia da razão ocidental, a invenção de uma
prosa etnográfica efetivamente pós-malinowskiana) ou Bruno Latour (os conceitos trans-
ontológicos de coletivo e de ator-rede, a noção paradoxal de um “jamais-ter-sido” moderno, a
desmontagem da noção-estigma de “fetichismo”), a quem se vieram juntar, um pouco mais
recentemente, muitos outros colegas, que evitei, na palestra, e evito, aqui, nomear, uma vez que
seria impossível fazê-lo sem cometer injustiça, por omissão ou comissão.

Mas bem antes de todos os acima, nomeados ou não, já havia  Lévi-Strauss, o pensador que
avançou a definição anti-sociológica — anti-narcísica — da antropologia como constituindo a
“ciência social do observado” (L.-S. 1954/1958: 397), e que concebeu, simetricamente, suas
Mitológicas como sendo “o mito da mitologia” (1964: 20). Se Rousseau, no dizer do mesmo Lévi-
Strauss, deve ser visto como o fundador das ciências humanas, então Lévi-Strauss ele mesmo não
6

só refunda a antropologia, com o estruturalismo, como a “desfunda” virtualmente, ao mostrar o


caminho para um pós-estruturalismo, isto é, para uma antropologia da imanência. Lévi-Strauss,
precursor do pós-estruturalismo. Essa era a tese extravagante da palestra.

II

Após seus dez minutos de grandiloquência introdutória, a palestra começava aqui a se aproximar
de seu foco etnográfico, a atividade cosmoprática dos povos amazônicos. O tema era quase-
tipicamente amazônico — o xamanismo —, mas seu apelo era mais geral, pois se existem fatos
conceituais totais na antropologia, o xamanismo é um bom candidato ao cargo.  Ele me serviu
como ponto de apoio para a proposição dessa leitura menor, subtrativa ou “perversiva” do
estruturalismo, estilo de pensamento que entendo, recursivamente, como constituindo uma
transformação estrutural do pensamento amazônico.

Em duas passsagens das obras-chave de 1962, O totemismo hoje e O pensamento selvagem, que
representam o momento “estruturalista” do estruturalismo (ver adiante), Lévi-Strauss estabelece um
contraste paradigmático entre “totemismo” e “sacrifício”, que veio a assumir para mim um valor
que se poderia chamar de propriamente mítico, permitindo-me formular com mais clareza o que
eu percebia de modo confuso como sendo os limites da antropologia estrutural. Limites no sentido
tanto geométrico da palavra — o perímetro de jurisdição do método lévi-straussiano — como no
sentido matemático-dinâmico — o atrator para onde tendem certas virtualidades e contracorrentes
desse modelo. Essas duas passagens foram fundamentais, em particular, para minha
reinterpretação da etnografia amazônica à luz de uma pesquisa junto aos Araweté do médio Xingu
(Viveiros de Castro 1986/1992).

III

Se os Araweté dispõem de um xamanismo vigoroso, pouco têm, à primeira vista, que corresponda
à noção antropológica corrente de sacrifício. Eles não diferem, quanto a isso, da maioria dos
povos das terras baixas sul-americanas, onde se encontram ocasionalmente práticas que poderiam
7

talvez ser ditas de tipo sacrificial, mas que jamais atingem a elaboração manifesta, por exemplo,
nos sistemas religiosos das culturas andinas ou mesoamericanas.

Mas a questão não é saber se os Araweté são um exemplo adequado para um exame da noção de
sacrifício na América indígena, e sim se essa noção é adequada a eles e aos povos congêneres.
Mais geralmente, a questão é saber se a definição franco-sociológica de sacrifício (Hubert &
Mauss 1899), que continua a nos servir de referência, é rica o bastante para incluir de modo
pertinente (ou para excluir de modo significativo) o complexo do xamanismo sul-americano. Pois
a palavra “sacrifício”, nos raros momentos em que surge no discurso dos etnólogos da Amazônia,
vem quase sempre associada a esta outra, bem mais comum entre nós — “xamanismo”. 

A conexão entre a etnografia araweté e a noção de sacrifício, entretanto, não se impõe


diretamente a partir das práticas xamânicas desse povo, mas a partir de seu discurso escatológico.
A cosmologia dos Araweté reserva um lugar central ao canibalismo póstumo: as divindades
celestes (os Maï) devoram as almas dos mortos chegadas ao céu, como prelúdio à metamorfose
destas em seres imortais semelhantes a seus devoradores. Como argumentei em minha
monografia, esse canibalismo místico-funerário araweté é uma transformação, histórica e lógica,
do canibalismo bélico-sociológico dos Tupinambá que habitavam a costa brasileira no século XVI.

Talvez seja necessário recordar os traços gerais do complexo canibal dos Tupinambá. Em poucas
palavras, tratava-se de um sistema de captura, execução e devoração cerimonial de inimigos. Os
cativos de guerra, frequentemente tomados de povos de mesma língua e costumes que a dos
captores, podiam viver bastante tempo junto a estes, antes da morte em terreiro. Eles eram em
geral bem tratados, vivendo em liberdade vigiada enquanto se faziam os longos preparativos para
o grande cerimonial de execução; era costume dar-se-lhes mulheres do grupo como esposas —
eram portanto transformados em cunhados (“inimigo” e “cunhado” se diz em em tupi antigo com
a mesma palavra: tovajar). O ciclo ritual culminava com a execução solene do cativo, ato de valor
iniciatório e renomador para o oficiante, e com a devoração de seu corpo por todos os presentes,
anfitriões e convidados das aldeias aliadas, com a única exceção do oficiante-executor, que não
só não comia do cativo, como entrava em  reclusão funerária, isto é, em um período de luto.

A antropofagia ritual dos Tupinambá foi freqüentemente interpretada como uma forma de
sacrifício humano, seja no sentido figurativo da expressão, utilizada por alguns dos primeiros
cronistas e missionários, seja em um sentido conceitualmente preciso, como fez Florestan
8

Fernandes (1949/1963; 1952/1970), que aplicou  o esquema analítico de Hubert e Mauss aos
materiais quinhentistas. Para fazê-lo, entretanto, Florestan precisou postular algo que não se
encontrava nas fontes documentais: um destinatário do sacrifício, uma, em suas palavras,
“entidade sobrenatural”. Segundo ele, o sacrifício canibal tupinambá se dirigia aos espíritos dos
mortos do grupo, vingados e celebrados pela execução e devoração do cativo de guerra. 

Na reinterpretação do canibalismo tupi-guarani proposta em minha monografia sobre os Araweté,


contestei a idéia de que entidades sobrenaturais estivessem necessariamente envolvidas, e que sua
presença e propiciação fossem a causa final do rito. É verdade que, precisamente no caso araweté,
encontravam-se de fato “entidades sobrenaturais” no papel de pólo ativo da relação canibal. Mas,
em minha leitura do canibalismo escatológico desse povo por via do canibalismo sociológico
tupinambá, tal condição sobrenatural dos devoradores não tinha maior importância. Meu
argumento era que as divindades araweté (ou melhor, dos Araweté, visto que os Maï não são
“Araweté”, em mais de um sentido) ocupavam o lugar que, no rito tupinambá, era ocupado pelo
grupo em função de sujeito — o grupo do matador, que devorava o cativo —, ao passo que o
lugar de objeto do sacrifício, o cativo do rito tupinambá, era ocupado pelos mortos araweté. Os
viventes araweté, por fim, ocupariam o lugar de co-sujeito que, nos Tupinambá, era ocupado pelo
grupo inimigo, aquele de onde a vítima era extraída. A transformação, em suma, que canibalismo
divino araweté efetuava sobre o canibalismo humano tupinambá não dizia respeito ao conteúdo
simbólico dessa prática, a seu estatuto ontológico ou a sua função social, mas a um deslocamento
pragmático, uma torsão ou translação de perspectiva que afetava os valores e as funções de
“sujeito” e de “objeto”, de “meio” e de “fim”, de “si” e de “outrem”. 

Vim, em seguida, a concluir que essa idéia de uma mudança coordenada de pontos de vistas fazia
mais que descrever apenas a relação entre versões araweté e tupinambá do motivo canibal. Ela
apontava para uma propriedade distintiva do canibalismo tupi ele próprio enquanto esquema
actancial. Vim portanto a defini-lo como um processo de transmutação de perspectivas, onde o
“eu” se determina como “outro” pelo ato mesmo de incorporar este outro, que por sua vez se
torna um “eu”, mas sempre no outro, enquanto “dentro do outro”. Tal definição pretendia resolver
uma questão simples porém insistente: o quê, do inimigo, era realmente devorado? Não podia ser
sua matéria ou “substância”, visto que se tratava de um canibalismo ritual, em que a ingestão da
carne da vítima, em termos quantitativos, era insignificante; ademais, são raras e inconclusivas as
evidências de quaisquer virtudes físicas ou metafisicas atribuídas ao corpo dos inimigos. Só podia,
portanto, ser sua posição, isto é, sua relação ao devorador, por outras palavras, sua condição de
9

inimigo. O canibalismo, e o tipo de guerra indígena a ele associado, implicava, sustentei, um


movimento fundamental de auto-determinação recíproca pelo ponto de vista do inimigo.

Com essa tese eu estava, evidentemente, avançando uma interpretação perversa, quero dizer,
reversa — em sentido análogo mas não idêntico à da antropologia reversa de Roy Wagner — do
preceito malinowskiano clássico. Se o antropólogo malinowskiano descreve a vida como ela é,
the hold life has, do “ponto de vista do nativo”, o antropófago nativo assume como condição vital
de auto-descrição a preensão do ponto de vista do inimigo. A antropofagia como antropologia.9

O apoio etnográfico imediato para essa idéia foram as canções de guerra araweté, onde o
matador, por meio de um jogo deítico-anafórico complexo, fala de si mesmo do ponto de vista de
seu inimigo morto: a vítima, que é o sujeito do canto, fala dos Araweté que matou, e fala de seu
matador — que é quem “fala”, isto é, quem canta a fala do inimigo morto — como se ele fora um
inimigo. Através de seu inimigo, o matador araweté vê-se ou põe-se como inimigo, “enquanto”
inimigo. Tal interpretação do canibalismo levou-me a qualificar a imagem tupi da pessoa de
“perspectivista” alguns anos antes que Tânia Stolze Lima e eu conspirássemos o conceito de
perspectivismo cosmológico e começássemos a verificar sua vasta disseminação na América
indígena.10

Foi, assim, menos pelo xamanismo que pela guerra e pelo canibalismo que vim a me defrontar
inicialmente com o problema do sacrifício. Ora, se a definição maussiana parecia-me inadequada,
a noção proposta por Lévi-Strauss em sua discussão do totemismo, ao contrário, parecia-me lançar
uma nova luz sobre a antropofagia ritual tupi. 

IV

O contraste entre “totemismo” e “sacrifício” apresenta-se inicialmente sob a forma de uma


oposição ortogonal entre os sistemas totem e manido dos Ojibwa, traçada no primeiro capítulo de

9
Ou, no humor feroz de Oswald de Andrade — a odontologia como ontologia…
10
Ver Lima 1995/2005; 1996; Viveiros de Castro 1996/1998.
10

O totemismo hoje (L.-S. 1962a: 32).11 No cap. VIII de O pensamento selvagem a oposição é
generalizada, rediagramatizada (L.-S. 1962b: 298), e sistematizada nos termos seguintes: 

1. O totemismo postula uma homologia entre duas séries paralelas (espécies naturais e grupos
sociais), estabelecendo uma correlação formal e reversível entre dois sistemas de diferenças
globalmente isomórficas;

2. O sacrifício postula uma só série, contínua e orientada, ao longo da qual se efetua uma
mediação real e irreversível entre dois termos polares e não-homólogos (humanos e divindades),
cuja contigüidade deve ser estabelecida por identificações ou aproximações analógicas sucessivas;

3. O sacrifício é metonímico, o totemismo metafórico; o primeiro é um “sistema técnico de


operações”, o segundo um “sistema interpretativo de referências”; o primeiro é da ordem da
parole; o segundo, da langue. 

Pode-se concluir, dessa caracterização, que o sacrifício atualiza processos de um tipo, à primeira
vista, distinto das equivalências de proporcionalidade presentes no totemismo e nos demais
“sistemas de transformação” analisados em O pensamento selvagem. As transformações lógicas do
totemismo estabelecem-se entre termos que têm suas posições recíprocas modificadas por
permutações, inversões, quiasmas e outras redistribuições combinatórias e extensivas — o
totemismo é uma tópica da descontinuidade. As transformações sacrificiais, ao contrário, acionam
relações intensivas que modificam a natureza dos próprio termos, pois “fazem passar” algo entre
eles: a transformação, aqui, é menos uma permutação que uma transdução (para usarmos o
vocabulário de Gilbert Simondon) — ela lança mão de uma energética do contínuo. Se o objetivo
do totemismo é estabelecer uma semelhança entre duas séries de diferenças dadas cada qual por
seu lado, o propósito do sacrifício é diferenciar internamente dois pólos pressupostos como auto-
semelhantes, ao induzir/transduzir uma zona ou momento de indiscernibilidade entre eles.
Recorrendo a uma alegoria matemática, diríamos que o modelo das transformações estruturais do
totemismo é a análise combinatória, ao passo que o instrumento necessário para explorar o “reino
da continuidade” (a expressão é de Lévi-Strauss) estabelecido pelas metamorfoses intensivas do

11
Oposição, aliás, que inverte o contraste de Hugh-Jones entre xamanismo horizontal e vertical, do ponto
de vista dos valores atribuídos aos eixos das ordenadas e das abcissas nos respectivos “diagramas” (a
distinção de Hugh-Jones é na verdade construída verbalmente, sem representação gráfica).

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