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Hector Hoyos
Narrativas de cadáveres e a
teleologia da história da World
Literature1
Hector Hoyos2
Resumo: Este ensaio propõe o cadáver como telos viável para a recente ressurgência
da World Literature como paradigma crítico. O argumento é tripartite. Primeiramente,
caracteriza dois princípios centrais do paradigma existente: a profissão de um dinamismo
fechado em si mesmo e uma ausência implícita de finalidade. Em seguida, apoia-se em
Kristeva e exemplos de ficção latino-americana contemporânea, sobretudo 2666, de
Roberto Bolaño, para apresentar narrativas de cadáveres que acolhem o abjeto e reorientam
o exercício crítico à materialidade. Por último, as conclusões propõem uma pauta modesta
para um outro “World Literaturismo” que preze por uma materialidade abjeta acima de um
idealismo altivo.
Palavras-chave: Necropolítica. Novos materialismos. World Literature. Literatura latino-
americana contemporânea. Cadáveres.
1 "Corpse Narratives and the Teleology of World Literary History” foi publicado originalmente em inglês, na
revista Journal of World Literature 2 (2017): 63-79. Aparece pela primeira vez em português aqui, no Cadernos
de Letras, em tradução de Nelson Shuchmacher Endebo.
2 Hector Hoyos é Professor Associado e diretor da área de culturas ibéricas e latino-americanas na Division of
Literatures, Cultures, and Languages da Universidade de Stanford, sendo também diretor da área de Pensamento
e Literaturas Modernas da mesma instituição.
Cadernos de Letras UFF, Niterói, v.32, n.63, p.101-126, 2º semestre de 2021 101
DOI: http://dx.doi.org/10.22409/cadletrasuff.v32i62.51623
Cadernos de Letras UFF, Niterói, v.32, n.63, p.102-126, 2º semestre de 2021 102
Narrativas de cadáveres e a teleologia da história da World Literature
Hector Hoyos
3 Na formulação sucinta de Derrida (1991, p. 372), menos uma definição que uma ilustração: “A desconstrução
não consiste em passar de um conceito para outro, mas em modificar e em deslocar uma ordem conceitual
assim como a ordem não conceitual à qual se articula”.
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DOI: http://dx.doi.org/10.22409/cadletrasuff.v32i62.51623
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Hector Hoyos
4 A respeito da “igreja invisível” de Goethe em relação à World Literature, ver Damrosch (2003, p. 17). A respeito
das ideias religiosas de Goethe, consultei Walter Naumann.
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DOI: http://dx.doi.org/10.22409/cadletrasuff.v32i62.51623
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colaborações) e muito pouco no quê, a não ser que se entenda este último
por “tudo”. Ora, pauta tão irrestrita não tem como não sofrer com uma
versão ainda mais expansiva daquilo que Gerald Graff chamara, em
1986, de “buscar abrigo sob a cobertura em si (take cover in coverage)”.
Um tratamento tão abrangente dos fatos da literatura em escala global
permitiria que os estudiosos deixassem “passar batido”, sem exame, “a
teoria sobre a qual sua prática se sustenta”, nas palavras de Norman Foerster
citado por Graff (FOERSTER, apud GRAFF, 1986, p. 41). Em um sentido, a
World Literature pode ser infinita; noutro, completamente plana: ilimitada
quanto à cobertura, mas absolutamente limitada em termos de teoria e
referencialidade. Ademais, “tudo” aqui é uma impossibilidade lógica. Na
falta de um Aleph, o objeto imaginário de Borges, que mostra todos os
pontos no universo e todos os pontos de vista ao mesmo tempo, as coisas
se dão sucessivamente (HOYOS, 2015 p. 14-69). O elusivo quid da World
Literature seria, portanto, um trabalho infinitamente diverso no qual nós,
ainda assim, deveríamos nos empenhar imediatamente.
O fundamento dessa empreitada “hipergerativa” e paradoxal já
se fazia presente na citadíssima formulação de Goethe: “a época da Welt-
Literatur é iminente, e todos devemos empenhar-nos em apressar a sua
chegada” (GOETHE apud DAMROSCH, 2003, p. 19-20). Compare:
“Rápido! Godot vem vindo, temos que arrumar a casa!”. “Iminente” traduz
an der Zeit; “apressar”, beschleunigen. Ambas as palavras inequivocamente
evocam velocidade. Essa passagem, tantas vezes mencionada, permanece
opaca. Se a época é iminente, por que apressar sua chegada? “Todos
devemos empenhar-nos em apressar a sua chegada” dá a impressão de
uma convocação de uma massa crítica como “autovalidação”: decerto, se
quase todos se empenhassem, a época, em certo sentido, já teria chegado.
Porém, se tal patamar não for atingido, quem perde é o dinamismo.
Hospitalidade implica risco, incluindo aí a possibilidade de os convidados
não comparecerem — nesse caso, de eles não compartilharem a expectativa
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Cadáveres heróis
5 Mariano Siskind (2014) já argumentou, apoiando-se em Lacan e outros referentes psicanalíticos, que o desejo
pela mundanidade [worldliness] constitui uma força motriz para escritores latino-americanos. O corporal não
tem lugar central em seu argumento.
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do horror, termo usado por Kristeva para imbuir a história literária global
de uma renovada atenção à materialidade. Os intercâmbios literários
e culturais dados nos diversos lugares que povoam seus livros, finos ou
grossos, são centrados em corpos, e não só ideias, itinerantes. De fato, é
possível compreender toda a obra de Bolaño como permutações de três
elementos: sexo, literatura e viagem.6 Uma breve ilustração: considere o
ensandecido poeta que perambula pelo sudeste norte-americano em La
literatura nazi en América (BOLAÑO, 1996). Ele imagina um centenário
Ernst Jünger e uma nonagenária Leni Riefenstahl, praticamente cadáveres,
transando furiosamente: “ossos e tecido podre chocando-se e roçando um
no outro” (BOLAÑO, 2008a, p. 145). Trata-se de uma imagem lancinante,
um tanto agravada pelas proclividades fascistas da personagem —
lembretes, como as finíssimas botas do sapateiro vienense, da heteronomia
da literatura. O ponto aqui é que a World Literature não pode ser a respeito
de almas puras.
Em nenhum outro lugar na obra de Bolaño isso é mais visível do que
no conto “El retorno”, em Putas Asesinas (2001). Assim como Memórias
Póstumas de Brás Cubas, do mestre brasileiro Machado de Assis (1991),
a narrativa é um relato em primeira pessoa feito por um defunto. É, além
disso, uma história de necrofilia, e, acredite, uma história de amor: um
sujeito festeiro, cujo nome não conhecemos, sofre uma parada cardíaca
na pista de dança; seu fantasma testemunha seu corpo ser contrabandeado
do necrotério para uma mansão em Paris. Ali, Jean-Claude Villeneuve,
um célebre estilista, faz sexo com o corpo morto. O fantasma o confronta,
o estilista pede perdão, e o perdão é concedido. Ao fim do conto, os
contrabandistas voltam para buscar o cadáver. O narrador fantasma decide
permanecer na mansão, onde se torna confidente do solitário necrófilo,
que passa a maior parte do seu tempo falando consigo mesmo, sem
6 “Kafka comprendía que los viajes, el sexo y los libros son caminos que no llevan a ninguna parte, y que sin
embargo son caminos por los que hay que internarse y perderse” (BOLAÑO, 2003, p. 158).
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DOI: http://dx.doi.org/10.22409/cadletrasuff.v32i62.51623
7 “La loi du genre” é o título de uma comunicação apresentada por J. Derrida em julho de 1979, por ocasião de
um colóquio internacional sobre gênero, organizado em Estrasburgo pelas universidades de Estrasburgo e a
Johns Hopkins, de Baltimore.
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2008b, p.124)
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Cadernos de Letras UFF, Niterói, v.32, n.63, p.119-126, 2º semestre de 2021 119
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Materialismos transculturais
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DOI: http://dx.doi.org/10.22409/cadletrasuff.v32i62.51623
9 Nota do tradutor: aqui o autor ludicamente produz permutações fonéticas do termo “World Literature”: “war
literature” soa parecido, e significa “literatura de guerra”; assim como “worm literature”, que significa “literatura
de vermes”. “Iteratur” ecoa tanto o alemão em Weliteratur quanto a forma passiva indicativa em terceira pessoa
do verbo latino iterā́re.
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Errâncias como essas nos aproximam do real muito mais do que reificações
o fariam. A literatura latino-americana contemporânea, um campo de
estudos fascinante que cada vez mais recebe novos leitores globais por
intermédio de traduções cada vez melhores e mais oportunas, dá as provas.
Permitamos que as literaturas do mundo teorizem enquanto são teorizadas.
Temperemos a pressa de Goethe e sua teleologia do progresso com uma
imagem dialética, paradoxal, que Bolaño convoca em diversas ocasiões:
“los grandes cementerios a la velocidad de la luz”.
Referências
Cadernos de Letras UFF, Niterói, v.32, n.63, p.123-126, 2º semestre de 2021 123
DOI: http://dx.doi.org/10.22409/cadletrasuff.v32i62.51623
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Cadernos de Letras UFF, Niterói, v.32, n.63, p.125-126, 2º semestre de 2021 125
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