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'La Vie La Mort': um Seminário inédito de Derrida

Moysés Pinto Neto

1. O que pode interessar no pensamento de Derrida a um Workshop


de um grupo nomeado Materialismos onde se discute a fronteira entre
natureza e cultura? É justamente sobre esse ponto que tentarei abordar no
debate sobre esse seminário ainda não publicado na íntegra de Derrida.
Nele, o filósofo discute os trabalhos "A Lógica do Vivente", de François
Jacob, "O Conhecimento da Vida", de Canguilhem, a leitura de Heidegger
sobre Nietzsche e as relações entre pulsões de vida e morte em Freud. Em
detrimento de questões mais específicas da filosofia, como o debate
Heidegger/Nietzsche, privilegiarei o foco mais interdisciplinar da relação com
a biologia, puxando-a ao debate sobre as bordas entre natureza e cultura.
Evidentemente, levando em consideração que quero defender uma posição
materialista, o foco tem que ser a questão continuidade/descontinuidade,
focando na polêmica com a posição kantiana, que prevê a descontinuidade
total a partir da oposição necessidade/liberdade. Vou começar por uma breve
contextualização histórica para situar a posição de Derrida e, após,
desenvolver o diálogo que ele mantém com Jacob e Canguilhem. Se
possível, entrarei levemente nas searas de Nietzsche e Freud.

2. A filosofia de Derrida nasce no momento em que o anti-humanismo


começa a predominar na filosofia francesa. Para entender isso, vamos recuar
um pouco mais, até o início do século XX. No período anterior até os anos 30
e 40, predomina na França a tradição que eu chamaria de "epistemológica":
uma corrente que privilegia o diálogo com as ciências, herdeira do
pensamento cartesiano que atravessa o século XVIII com autores
enciclopédicos como Diderot e D'Alembert, até outros materialistas mais
heréticos como La Mettrie e o Marquês de Sade, e o século XIX com Auguste
Comte e o positivismo. No início do século XX, ela é representada por

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autores com Leon Brunschwicg e sobretudo Henri Bergson. Mais tarde,
seguida por autores como Bachelard, Canguilhem, Foucault, Deleuze até
Latour e Stengers, hoje em dia. Esses autores tentam pensar uma linha de
continuidade entre ciências e filosofia, fazendo das descobertas científicas
eventos transformadores das próprias categorias filosóficas. Veremos como
Derrida também é herdeiro dela em minutos. A partir dos anos 30, contudo,
essa tradição foi ofuscada com a recepção da fenomenologia na França, que
vira o tabuleiro em outra direção. A recepção de Husserl e Heidegger,
executada por filósofos como Emmanuel Levinas, Maurice Merleau-Ponty e
sobretudo a principal "estrela", Jean-Paul Sartre, direciona o pensamento
francês para uma direção mais existencial e humanista. A recepção,
curiosamente, passa por uma recuperação do pensamento de Hegel, até
então esquecido como "panlogismo" ou "panteísmo" do idealismo alemão,
seguindo uma caricatura comum que infelizmente era popular inclusive entre
filósofos importantes. Para tanto, contribuem três vozes: Jean Wahl,
Alexandre Kojève e Alexandre Koyré. Privilegiarei os dois primeiros aqui.
Wahl realiza a primeira recepção "existencial" do pensamento de Hegel,
privilegiando a temática da "consciência trágica" que trabalharia o
componente humano. Sua leitura, paradoxalmente, embora se aproprie de
Hegel, está muito mais próxima de Kierkegaard, da existência como ponto de
escape da totalização sistemática. Kojève, filósofo fundamental para o
pensamento de Bataille, Lacan, Blanchot e Sartre, para dar alguns exemplos,
coloca a "Fenomenologia do Espírito" no centro da filosofia hegeliana e a
"dialética do reconhecimento" no centro da fenomenologia. Além disso, ele
próprio assume sua leitura da fenomenologia como a fenomenologia de
Husserl, ou seja, no sentido contemporâneo da palavra, fazendo uma ponte
que Sartre e Lacan, por exemplo, aprofundarão, entre Hegel e Heidegger.

Essas duas contribuições deságuam em duas correntes: o


existencialismo e o neohegelianismo. Elas prevalecerão até os anos 60 com
a emergência do estruturalismo. O existencialismo, guiado por Sartre, fará
uma combinação entre o pensamento hegeliano-marxista e a fenomenologia
para construir um humanismo, fazendo da existência humana, na linha de
Kierkegaard, um ponto de escape da totalização. Sendo assim, a filiação

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kantiana é nítida ao separar natureza e humano, natureza mecânica ou
sistemática e humano "livre". Nessa corrente é possível ler Gabriel Marcel,
Jean Wahl, E. Levinas, o primeiro Merleau-Ponty. É contra esse humanismo
de viés kantiano que devemos ler, mais tarde, o "anti-humanismo" francês.
De outro lado, os neohegelianos, apoiados em Kojève, mantinham a mesma
fronteira entre natureza (mecânica, sem história) e humanidade (livre e
histórica), porém aos poucos ela própria foi se modificando. Foi no âmbito do
próprio pensamento hegeliano, portanto, que se construiram as bases do
anti-humanismo. O evento que deflagra isso foi a "Carta sobre o
Humanismo", de Martin Heidegger, que recusa identificar Dasein e realidade
humana e afirma a relação entre ontologia e o ser1. A partir disso, Jean
Hyppolite, até então mais próximo de Kojève, irá começar a deslocar a leitura
de Hegel do âmbito existencial e humano para o âmbito ontológico do ser,
ultrapassando a fenda que separava humanidade e natureza.

3. É, no entanto, sob o choque de um não-filósofo que o pensamento


francês irá se transformar totalmente: Claude Lévi-Strauss. Apoiado na
semiologia de Saussure e na linguística contemporânea de Jakobson e da
Escola de Copenhagen, Lévi-Strauss funda o estruturalismo como movimento
transversal que, a partir da etnologia, questiona o privilégio do humano,
fazendo do sujeito (personagem central do humanismo) um efeito da
estrutura.

Lévi-Strauss começa separando natureza e cultura, mas já com um


"escândalo": o tabu do incesto. Não se trata, portanto, daquilo que os
humanistas costumavam fazer: apresentar a universalidade, generalidade e
mecanicidade da natureza contra a particularidade, singularidade e
criatividade do humano. Nem, de outro lado, o que os "deterministas"
pregavam: mostrar a cultura e o humano como "epifenômeno" do

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Abstraí uma série de possíveis relações na formação do anti-humanista, desde a relação
entre Althusser e Marx, o pensamento de Bataille e do próprio Kojève etc.

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mecanicismo biológico2. A universalidade do "tabu do incesto" não é natureza
na cultura, mas cultura na natureza. Mais tarde, Lévi-Strauss irá admitir valor
apenas metodológico a essa separação, sempre agudizando as franjas que
ligam ambas até desaguar, nas Mitológicas, em uma combinação
perspectivista entre elas que inspira a antropologia atual no mais radical
questionamento da fronteira. O ponto de viragem do pensamento francês em
relação ao "humanismo" e à "filosofia do sujeito" pode ser localizado no
"Pensamento Selvagem", no qual Lévi-Strauss faz desabar a argumentação
sartreana que ainda era herdeira da "filosofia da história" marxista e do
humanismo kantiano. Mais tarde, autores como Althusser, Lacan, Barthes e
Foucault tratarão de fazer desabar o sujeito como centro da estrutura,
fazendo aquilo que ficou resumido da fórmula da "morte do autor".

4. Quando Jacques Derrida entra em cena, seu objetivo não é apenas


questionar a prevalência do sujeito na filosofia, mas igualmente o gap que
separa natureza e cultura ou natureza e humano. As temáticas são conexas:
a filosofia do sujeito nasce paralelo ao humanismo, sendo a síntese perfeita
de ambos o pensamento de Immanuel Kant. Assim como ocorre com
contemporâneos (Deleuze, Guattari, Lyotard, o próprio Foucault), trata-se de
radicalizar o movimento estruturalista para abdicar da posição de sujeito e do
privilégio do humano enquanto herança da metafísica clássica e da
ontoteologia. Em nível transcendental, do qual não falarei aqui, a forma como
Derrida reage a isso é propondo a escritura como originária, pensando tanto
a estrutura quanto o sujeito como condensações contingentes dessa escritura
diferencial. No entanto, isso envolveria outro caminho. Vou focar a questão
natureza/cultura.

Quando Derrida publica "Da Gramatologia", em 1967, dois eventos


são fundamentais para a crítica ao estruturalismo que ele realiza: a
descoberta da estrutura do DNA por James Watson (1953) e a emergência
da cibernética (1948). O que ambos permitem pensar é como aquele âmbito

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Poderíamos localizar aqui o lugar de boa parte do "naturalismo" contemporâneo?
Naturalismo que, contudo, não transformou o conceito mecanicista de natureza.

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que a filosofia tradicionalmente tratava como invisível e intangível, o "virtual",
passa agora a, de algum modo, ser material. O DNA e a genética comprovam
que o âmbito biológico seria escritural, funcionando a partir de informações,
mensagens, traduções, interpretações, instruções, "erros" e assim por diante.
A cibernética e as práticas de informação contemporâneas, por outro lado,
apresentariam uma forma compreensiva que abrangeria não apenas o link
entre animais e humanos, mas inclusive entre natural e artificial, criando uma
linha de continuidade entre ser vivos e não-vivos a partir dos conceitos de
mensagem, informação e feedback. É sob esse impulso que Derrida irá
sempre questionar as oposições metafísicas, em especial nesse caso
aquelas entre humano e animal, humano e máquina e natureza e cultura.
Ainda fundamental para a construção desse pensamento foi a recepção da
obra do paleontólogo Andre Leroi-Gourhan, que constroi uma espécie de
história da organização dos seres vivos a partir de uma bio-tecno-economia
em que o conceito de "liberação de órgãos" ocupa o lugar prevalente. Por
exemplo, o que constitui o humano não é, como a teologia e mais tarde a
filosofia humanista de Jean-Jacques Rousseau costumam pensar, a "alma",
que Leroi-Gourhan chama do "preconceito cerebralista". É a partir da posição
vertical, conseguida pela liberação da mão (dentro de um longo processo
evolucionário do esqueleto), que o antropoide começa a manusear
ferramentas e, no jogo entre córtex e sílex, nasce o "espírito" humano. Em
outras palavras, o ser humano "nasce pelos pés", e não pelo cérebro, como a
metafísica e as religiões do Livro costumam pensar. A biologia (natural) e a
tecnologia (artificial) estão ligadas à cultura (humano) de forma indissolúvel
no pensamento de Leroi-Gourhan, herança que será permanente no
pensamento de Derrida.

4. Em La vie la mort, Derrida debate a temática, como diz o nome, não


apenas dessas duas palavras, mas também do espaçamento que as liga e
separa, desse lugar que poderíamos chamar de "dobradiça" (brisure) ou
mesmo "dobra" enquanto aquilo que liga e separa ao mesmo tempo, sem cair
na oposição dialética. O texto que inicia a análise é Lógica do Vivente,
traduzida como Lógica da Vida, de François Jacob. O que interessa,

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inicialmente, é o fenômeno da "textualização geral": Jacob mostra, em seu
livro, como a biologia contemporânea supera os preconceitos herdados da
filosofia cristã, que hipostasia a categoria do "vivo" a partir do "ser falante",
para pensar em termos de mensagem, informação, código e tradução. A
reprodução seria a característica dos sistemas vivos, espécie de "código
metateórico". Derrida irá começar aproximando as "instituições vivas" das
"instituições culturais", fazendo um paralelo inesperado entre François Jacob
e Pierre Bourdieu. É parte da dobradiça entre vivo e não-vivo que se
articulará a partir da noção, já utilizada em "Da Gramatologia", de programa.
Já Leroi-Gourhan dizia que a diferença entre humanos e demais animais se
dava entre dois tipos distintos de programação, o primeiro mais plástico que o
segundo. Para Jacob, o programa é aquilo que permite conciliar memória e
projeto a partir da herança genética, superando os problemas da teleologia e
do mecanicismo a partir de um equilíbrio entre ambos. A programação seria,
contudo, descontínua, dividida entre um sistema "suave" ou "poroso"
(cérebro, linguagem, pensamento) e sistema "fechado" ou "repetitivo"
(genético).

Outro ponto fundamental que se dá a partir de François Jacob: o texto


dos códigos do vivo não são "referentes" no sentido substancialista clássico,
eles provocam uma análise do vivo como texto. Assim, a consequência é que
a própria franja que separa ontológico e epistemológico cai: há textos sobre
textos, tradução de tradução, sem que o esquema tradicional possa recorrer
a um "modelo dos modelos". Isso se expressa no genitivo objetivo, mas
também subjetivo: lógica da vida, ou seja, lógica como efeito da vida, lógica
como derivação da vida. Longe da tradição que considera isso uma
"trivialidade", Derrida - como antes Hegel, Bachelard e Althusser - retira
significativas consequências dessa penetração mútua de campos tidos como
absolutamente heterogêneos. Jacob defendia uma espécie de "epistemologia
evolucionária", no qual as ideias faziam parte do quadro evolucionário geral.
Para Derrida, isso significa que não há "meta-texto", mas texto sobre texto,
rompendo a lógica do signo (significante significando significado que espelha
um referente) para se pensar que 'não há fora-textual', ou, em outros termos,

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há uma imanência aberta que se dobra sobre si mesma inclusive nas práticas
epistemológicas. Outra forma de dizer que tudo é tradução.

Destaco, finalmente, duas críticas de Derrida que são, contudo,


aprofundamentos do raciocínio de Jacob:

(a) a distinção entre "poroso" e "fechado" repete a distinção entre


natureza e cultura. O problema para Derrida estaria que Jacob
considera acidentes as transcrições "anormais", fazendo uso ainda da
velha lógica logocêntrica entre acidente e essência, necessidade e
contingência, apesar de todos os progressos que a ideia de programa
ganha em relação a ela. A contingência, assim, é integrada como pólo
inferior da oposição (suplemento), e não como possibilidade nunca
eliminável que revela uma dyferença originária da qual emergem o
normal e o anormal. Essa lógica que ultrapassa a divisão normal e
anormal é o que Derrida nomeia "gráfica do suplemento", na qual a
possibilidade do "monstro" é imanente ao próprio programa, sem ser
subordinada em uma hierarquia violenta3;

(b) a distinção entre "produção" e "reprodução", sendo a primeira


exclusiva do vivo. Para Derrida, toda produção é automaticamente
reprodução. Se fizermos a geneologia do conceito de produção, de
viés marxista, veremos como n'O Capital o conceito de produção está
ligado à produção humana, distinta da animal, na famosa comparação
entre o "pior arquiteto" e a "melhor abelha". Assim, esse conceito,
conectado com o de invenção, ainda traria a herança teológica da
criação ex nihilo, cortando o fio de relações que permite dizer que,
desde o início, toda criação é já repetição.

Essas questões, uma vez generalizadas, permitem rearticular o próprio


binômio vida e morte: a morte não é um suplemento externo da vida, ela é
um próprio efeito da vida enquanto sua condição de possibilidade e de
impossibilidade. Um suplemento que vem de dentro. Assim, para tentar

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Mais tarde, Derrida irá retomar essa questão a partir da "perversidade da natureza" em
Nietzsche, mostrando como os próprios fenômenos naturais "mentem", se "criptografam", e
assim por diante. Ou seja, a "cultura" está na natureza.

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explicar esse espaçamento la vie la mort: toda vida se constitui em reserva, a
partir de uma membrana que a separa do choque e dissipação entrópica no
meio, mas ela própria, vida, não pode se reproduzir sem que entre em
deiscência, isto é, morra a partir da sua disseminação no outro. Temos uma
espécie de equilíbrio precário, que em Derrida muitas vezes corresponde ao
termo "economia" e que poderíamos aproximar da ideia de "homeostase",
para que a vida se constitua; essa economia, no entanto, já é um efeito da
morte, uma vez que a vida é uma espécie da morte (a pulsação diferencial
que se faz e desfaz), e que, para viver e se reproduzir, apesar da proteção
que a contração inicial garante, precisa se lançar na morte, afetando qualquer
tipo de equilíbrio absoluto em uma identidade.

Em um determinado momento, Derrida trabalha essa questão


cibernética a partir de Jacob: a relação entre informação, matéria e energia
dentro de um sistema não permitirá isolar nenhum desses elementos. A
informação não vem de forma gratuita e transparente, como a metafísica
clássica previa, mas somente a partir de uma troca entre energia e
informação que altera o próprio sistema examinado, porque do contrário ele
seria cego. Sendo assim, nenhum modelo informacional pode escapar de
uma dinâmica, de uma agonística econômica das trocas. O conceito de
trocas, por isso, é o mais genérico, procurando-se então pensar essa
textualidade geral enquanto remarcação ou reinscrição desse equilíbrio de
trocas permanentes entre forma e força, rompendo também a própria
demarcação entre ontologia e epistemologia. Não há uma "meta-
textualidade" que comande essas relações, é na sua própria imanência de
traduções de traduções que se dá esse processo errante, texto sobre texto
sem meta-texto. Nessa textualidade geral, as bactérias não têm apenas uma
relação de "analogia" (relações de relações) com as usinas na sua forma
reprodutiva: usinas e bactérias são dobradiças do mesmo real-textual,
devendo-se articular isso em forma metonímica, não metafórica, para
relacionar o vivo e o não-vivo enquanto efeitos de uma diferencialidade geral
que possibilita tanto a entropia quanto a organização. Da mesma forma, por
exemplo, a "reprodutibilidade" do vivo e da "reprodutibilidade" das
instituições, no seu intuito de auto-conservação e ao mesmo tempo

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exposição ao outro que vem como exigência interna. O real, portanto, se
estende como textualidade aberta que se dobra de forma distinta, mas
sempre sob uma certa 'continuidade', do natural ao artificial (sem que a
imagem da linha seja igualmente adequada; talvez a linha seja o problema do
problema do contínuo/discreto).

5. Temos assim um sistema "auto-imune", aberto desde dentro, ou


seja, uma imanência aberta que precisa estar em relação com o outro (a
morte) para que se dê como vida, numa relação que não é de oposição. É
essa estrutura não-dialética que Derrida herda de Freud, trabalhando ao
mesmo tempo pulsão de vida e morte, vida que só se constitui como
economia da morte (contração, incorporação), mas que, no seu próprio
movimento vital (reprodução), precisa se lançar no outro (morte, saída de si,
entropia), sem que isso corresponda unicamente a uma teleologia
(reprodução, circularidade), mas igualmente num dispêndio sem reserva
(disseminação). Essa imagem, no entanto, contraria a metafísica tradicional
que herdamos: a imagem do Livro pronto e eterno das leis da natureza
escrita em linguagem matemática sujeito à decifração por um intelecto
transparente. Por meio de uma contestação dessa estrutura, em um
movimento de "generalização da biologia"4 (que Derrida expressa diversas
vezes ao afirmar que não é possível saber onde terminam as fronteiras da
biologia), o autor contrapõe a esse modelo do Livro a escritura, isto é, a
contínua historicidade do processo de escrita do real; em contraponto ao
idealismo platonista e a imagem de uma estrutura implícita do real, um
hipermaterialismo histórico (temporalizado) ou materialismo hiper-histórico da
plasticidade grafemática; em contraponto ao modelo da mathesis universalis,
uma história da organização em seu pulsar diferencial.

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Isso significa que a verdadeira revolução materialista não foi realizada por Marx, mas por
Darwin: a libertação de toda e qualquer arkhê ou telos eterno a partir da deriva evolucionária.
Apesar de Marx ter relacionado o trabalho epistemológico com o trabalho em geral, como
mostra bem Althusser, seu materialismo é limitado por ainda ser devedor de uma 'filosofia da
história': sendo assim, somente em Darwin, em um novo equilíbrio entre necessidade e
contingência, a filosofia verdadeiramente se fez materialismo histórico, antecipando todas as
"temporalizações" do século XX.

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