(indígena)
A propriedade do conceito
Uma maneira de situar este estudo sobre o pensamento dos povos nativos da
floresta amazônica — um ‘pensamento selvagem’ — é dizer que seus temas estão
radicados no estruturalismo, mas que seus problemas são, ao menos em parte,
outros, pois outros são os tempos, e outro o estado do conhecimento etnológico.
Digamos, então, que seu ponto de partida é o ponto de chegada de Lévi-Strauss, o
estado a que ele soube levar a etnologia americana. Por isso, pareceu-me
apropriado abrir este prólogo por uma conclusão — de Lévi-Strauss. Nas linhas
finais do posfácio a um volume recente de L’Homme, dedicado aos avanços na
teoria do parentesco, o decano do americanismo observa:
1
I. Daillant, D. Karadimas, A. Surralès, A.–C. Taylor. A menção de Lévi-Strauss aos
pesquisadores brasileiros alude às referências presentes nos artigos destes americanistas
franceses.
2
Penso no célebre argumento de O cru e o cozido: “No uso que fazemos do método,
seremos certamente acusados de interpretar e simplificar excessivamente. À parte o fato de
que, repita-se, não pensamos que todas as soluções propostas tenham o mesmo valor…
seria hipócrita não ir até o fim em nosso modo de pensar. Responderíamos, então, a nossos
criticos eventuais: que importa? Pois, se a finalidade última da antropologia é contribuir para
um melhor conhecimento do pensamento objetivado e de seus mecanismos, tanto faz, para
este livro, que seja o pensamento dos índios sul-americanos que tome forma sob a ação do
meu, ou o meu sob a ação do deles. O que importa é que o espírito humano, indiferente à
identidade de seus mensageiros ocasionais, manifeste uma estrutura cada vez mais
inteligível, à medida em que progride a operação duplamente reflexiva de dois pensamentos
agindo um sobre o outro, e dos quais ora um, ora outro, pode ser a mecha ou a fagulha de
cujo contato brotará sua comum iluminação” (L.–S. 1964: 21).
3
Resta que, entre essa ciência e essa filosofia, Lévi-Strauss sempre optou
pela primeira. Ela é o tema privilegiado, por exemplo, de O pensamento selvagem,
livro que procede a uma série de paralelos entre a ciência moderna e a ciência
primitiva, e que pode ser lido como uma espécie de ‘epistemologia do concreto’
(tomando-se ‘epistemologia’ no sentido francês). Já a filosofia selvagem
propriamente dita, enquanto atividade intelectual distinta da ciência, movida por
outras intenções e operando com outros objetos, recebeu um tratamento bem
3
A expressão “uma notável reviravolta” da passagem citada — no original, “un frappant
retour des choses” — não deixa de trazer à mente o título da resposta de seu autor, dois
anos antes, a um artigo que pretendia jogar-lhe contra Merleau-Ponty: “Voltas atrás”,
4
menos sistemático por parte do autor. No caso do livro citado, o lado ‘não-
científico’ dessa filosofia (seu pólo sacrificial antes que seu pólo totêmico, digamos)
vê-se assimilado à religião, dimensão que constitui, aos olhos de Lévi-Strauss, um
verdadeiro império do não-senso. Entre a ciência e a religião, em suma, o lugar da
filosofia selvagem na obra lévi-straussiana parece bastante instável.4
Há porém um momento, e largo, dessa obra no qual se pode entrever a
perspectiva de uma filosofia selvagem em particular: a dos povos indígenas
americanos. Refiro-me ao momento representado pelos quatro volumes das
Mitológicas e os três livros que as completam.5 Digo que se pode, apenas, entrevê-
la, porque tal perspectiva permanece em estado não-cristalizado, é uma
virtualidade difusa ou dispersa nas análises mitológicas empreendidas nesses
estudos. À parte certos motivos recorrentes — como o problema do contínuo e do
discreto que atravessa a tetralogia, ou as referências ao desequilíbrio dinâmico das
oposições acionadas pelos mitos —, a significação filosófica da mitologia americana
encontra-se como que imprensada entre, de um lado, a minuciosa contextualização
etnográfica do conteúdo das narrativas, e, de outro, a demonstração de seus
valores formais e de sua combinatória intertextual.
O propósito do presente livro é cristalizar essa perspectiva e atualizar essa
significação virtual. Trata-se de formular os problemas filosóficos adequados a
certos temas sociológicos e cosmológicos identificados nas Mitológicas, entre os
quais se encontram, para evocarmos a citação que abria este prólogo, a questão da
afinidade e o motivo da ‘predação’. É essencial que tais problemas encontrem apoio
na etnografia e permitam dar sentido a outras dimensões, não-discursivas ou não-
mitológicas, isto é, que sejam, eles próprios, problemas indígenas. Com efeito,
como observou Lévi-Strauss, é a filosofia ‘deles’, não a ‘nossa’, que está em cena,
ainda que seja preciso utilizar algo do vocabulário da segunda para poder falar da
primeira.
Ao tentar fazer isso, entretanto, estaremos necessariamente nos afastando
dos limites que Lévi-Strauss se impôs. Pois a relativa ausência de foco sobre a
filosofia ameríndia nas Mitológicas é o resultado de uma posição firmada de seu
autor, segundo a qual “os mitos não dizem nada capaz de nos instruir sobre a
ordem do mundo, a natureza do real, a origem do homem ou o seu destino” (L.–S
1971: 571; eu grifo). Em troca, prossegue ele, os mitos nos ensinam muito sobre
Retours en arrière (L.–S. 1998). Título ele próprio ambíguo, evocando tanto uma lamentável
regressão intelectual como uma recordação saudosa de personagens e debates do passado.
4
O que talvez reflita uma imagem tradicional da da filosofia não-selvagem, que faz dela uma
etapa evolutiva entre a Religião e a Ciência.
5
5
A via das máscaras, A oleira ciumenta e História de Lince.
6
Note-se que o último livro mitológico do autor, o História de Lince, é introduzido por uma
declaração que não deixa de destoar daquela de 1971, parecendo assumir a idéia de uma
filosofia especificamente ameríndia, distinta do, digamos, metabolismo basal do pensamento
selvagem: “[C]reio que é possível, hoje, recuar até a fonte filosófica e ética do dualismo
ameríndio” (1991: 16). Uma notável reviravolta?
6
Não seria assim a consciência que varia, mas o mundo. Ora, como veremos,
os mitos amazônicos ‘dizem’ exatamente isso. E vão mesmo adiante, pois a idéia
de um sujeito dotado de “faculdades constantes” a braços com uma diversidade
objetiva é generalizada, por eles, para além da espécie humana como personagem
e da história como palco. O que nos leva a especular que os mitos dizem, afinal,
algo de instrutivo, sobre a ordem do mundo e sobre o espírito humano. Esta,
então, nossa questão: antes que as “operações intelectuais” do pensamento
ameríndio, trata-se de tentar divisar a natureza das coisas que ele pensa, seus
objetos — isto é, seus conceitos —, e o mundo descrito por esses conceitos. Em
outras palavras, trata-se de prestar atenção ao que dizem os discursos amazônicos
sobre a ordem do mundo e a natureza do real, o que inclui o que eles dizem sobre
a sociedade e o espírito humanos: não indiretamente e como que à sua revelia, em
benefício de nossas filosofias do espírito humano, mas textualmente e como que
deliberadamente, para o governo filosófico dos povos que os enunciam. E o que
eles dizem — se preferir o leitor, o que eles ensinam — é que não há por que
escolher, pois não há como separar, entre a natureza do real e o espírito humano,
a ordem do mundo e o movimento da sociedade.
O que vem a ser outra idéia muito complicada. Este livro consiste em seu
desenvolvimento, defesa e ilustração.
(…)
7
Formulação que recorda uma passagem de Les deux sources de la morale et de la religion:
“[A] estrutura do espírito permanecendo a mesma, a experiência adquirida pela gerações
sucessivas, depositada no meio social e devolvida por este meio a cada um de nós, deve
bastar para explicar por que não pensamos como o não-civilizado, por que o homem de
outrora diferia do homem atual. O espírito funciona do mesmo modo nos dois casos, mas ele
7
não se aplica, talvez, à mesma matéria, provavelmente porque a sociedade não tem, aqui a
lá, as mesmas necessidades” (Bergson [1932]: 107).
8
8
Nota terminológica. A variação entre os determinativos ‘amazônico’ e ‘indígena’, nas
páginas que seguem, não é rigorosa. Em certos momentos, ‘amazônico’ refere-se apenas
aos povos da floresta homônima; em outros, ele é uma sinédoque que designa todas as
culturas das chamadas ‘terras baixas’ da América do Sul; em outros, enfim, ele indica
apenas o foco principal do livro — ou os limites de minha ignorância etnográfica —, sem
implicar a exclusão de outros povos americanos. O pressuposto de base é a existência de
uma unidade histórico-cultural profunda de toda a América indígena.
9
Viveiros de Castro 1996a. O perspectivismo filosófico a que me refiro está associado
originalmente ao nome de Leibniz, mas se acha variamente presente em pensadores como
Nietzsche, Tarde, Whitehead e Deleuze; este último, como ficará claro, é minha referência
principal para o conceito.
9
10
Formulação que leva adiante uma sugestão do mesmo Simondon, quando recomendava
uma apreensão realista das relações e nominalista dos termos (op.cit.: 82), de modo a
compensar o viés inverso de nossa metafisica. A tese de Simondon sobre o processo de
individuação forneceu vários dos instrumentos utilizados neste livro.
11
Ou em qualquer outro contexto não-ocidental. A questão é levantada, e respondida
negativamente, por François Jullien a propósito da China, para cujo pensamento esse autor
reivindica, aliás, um mesmo “primado da relação” (Jullien & Marchaisse 2000: 12–13,
265–67, 308, 352) — e, convém recordar, um uso particularmente sofisticado da dualidade
(Jullien 1993).
12
Viveiros de Castro 1993a, 1996b. O capítulo @@ abaixo, onde se retoma a monadologia
de Tarde (e a de Whitehead), trata da preensão ontológica — conceito que hoje me parece
preferível ao de predação — como dinamismo característico da socialidade amazônica.
10
13
Veremos adiante o significado das noções wagnerianas de controle, convenção e
diferenciação.
14
Outro modo assimétrico de jogar esse jogo é o praticado pelos antropólogos ‘cognitivistas’
— mas também por autores como Ingold (2000), embora com os sinais invertidos. Se a
crítica de Wagner à comparação pseudo-relativista, de tipo ‘dois contra um’, visava a idéia
de que nós temos natureza e cultura, os selvagens tendo só cultura, quando passamos aos
especialistas na ‘natureza humana’ a distribuição muda: os selvagens são só natureza (suas
culturas exprimem imediata e diretamente as disposições cognitivas ou existenciais do Homo
sapiens), os ocidentais somos natureza e cultura (a ciência, a escrita, etc.). Para os
cognitivistas, essa cultura nos dá um acesso privilegiado à natureza das coisas, corrigindo as
ilusões (necessárias) inscritas evolucionariamente na constituição mental da espécie; para
Ingold, ao contrário, tal cultura é uma perversão que nos expulsa da morada do Ser,
compartilhada pelos demais humanos.
11
(…)
15
Para o conceito de plano de imanência, a que retornaremos, ver Deleuze & Guattari 1991:
38–59. Seria também possível pensar o contraste entre os dois sentidos de cultura em
Wagner nos termos da diferença entre Weltbild e Weltanschauung feita pelo ‘último’
Wittgenstein. A analogia entre os conceitos de Weltbild e de plano de imanência foi avançada
em um magnífico artigo de Bento Prado Jr (1998: 317-ss).
16
O recurso a tal ultima ratio é analisado por Bruno Latour em vários trabalhos recentes
(Latour 1996b, 1999, 2000). A cultura de Wagner, no sentido de “sistema total de
conceitualização” que inclui tanto a ‘cultura’ como a ‘natureza’, poderia corresponder ao que
Latour ([1991], 1999) chama de Constituição, embora possa ser igual ou talvez mais
adequadamente aproximada, na medida em que só existe como complexo de ação e
motivação atualizado em uma coletividade humana concreta, dos conceitos latourianos de
natureza-cultura e de coletivo. Latour e Wagner são duas influências capitais sobre este
livro; seus trabalhos (desenvolvidos de modo independente) mostram uma clara mas pouco
notada convergência, em particular Nous n’avons jamais été modernes (Latour [1991]) e
The invention of culture (Wagner 1981). Além disso, eles me parecem completar-se bastante
bem, com o primeiro sendo nitidamente mais forte quando se trata de descrever a
Constituição da modernidade, e o segundo, muito mais rico na caracterização dos regimes
ontológicos de tipo extra-moderno.
12
caso etnográfico, mas de um esforço para lhe dar consistência conceitual, isto é,
para situá-la em um campo problemático bem definido.
Para tanto, é necessário desenvolver a mútua implicação dos conceitos de
perspectivismo e de alteridade, e distingui-los inequivocamente de dois ‘falsos
amigos’ com os quais costumam ser confundidos. Trata-se de mostrar, de um lado,
como o perspectivismo indígena (uma ontologia da relação) pouco tem a ver com o
relativismo moderno (uma epistemologia do relativo), e, de outro, como a
alteridade amazônica (o Eu e o Outro como efeitos da relação-Outrem) resiste a
uma tradução no vocabulário da ‘intersubjetividade’ (o Eu e o Outro como
conteúdos da forma-Sujeito).
A distinção entre perspectivismo e relativismo já fora esboçada nos textos
reelaborados neste livro, e é aqui aprofundada; mas a ‘irredução’ do regime de
alteridade amazônico a um tipo de intersubjetivismo é algo cuja necessidade só se
me tornou clara recentemente, obrigando-me a rever algumas formulações, e
mesmo, como logo veremos, o próprio nome dessa relação que vou chamando
‘alteridade’. Tal revisão tem consequências para o conceito de perspectivismo, pois
permite evitar sua trivialização em uma forma de idealismo intersubjetivo ou de
construcionismo social. Mas ela se impôs, em primeiro lugar, em vista de um
melhor entendimento dos dispositivos de subjetivação indígena, e de uma
imaginação mais precisa das relações — ou melhor, da relação — referidas pela
etnologia americanista pelos termos de ‘troca’ e ‘reciprocidade’, ‘predação’ e
‘inimizade’.
A revisão se mostrou necessária, acima de tudo, para dissipar qualquer
conotação de transcendência que tenha alguma vez sido dada, pelo autor inclusive,
à idéia de ‘Outro’ no mundo amazônico: que os deuses araweté sejam outros, por
exemplo (Viveiros de Castro 1986), não significa que o Outro araweté seja Deus. A
alteridade é indubitavelmente um dispositivo transcendental do pensamento
indígena, mas não projeta nenhuma imagem do transcendente; trata-se, ao
contrário, da modalidade mesma de imanência desse pensamento.17 Ela é a versão
amazônica daquilo que Roy Wagner, em um contexto melanésio, chamou de
“mundo da humanidade imanente” (1981: 86-89), onde a ‘cultura’ é da ordem do
fato, e a ‘natureza’, do feito. Este mundo da humanidade imanente, advirta-se,
está nas antípodas de qualquer forma de humanismo, assim como o mundo da
17
Recordo a diferença, de origem kantiana, entre o ‘transcendental’ (cujo antônimo é
‘empírico’), que remete às condições de possibilidade da experiência, situando-se aquém
desta, e o ‘transcendente’ (cujo antônimo é ‘imanente’), que se refere ao que está além da
toda experiência possível, isto é, ao supra-sensível ou às coisas-em-si.
13
18
Esse comentário está publicado em apêndice a Logique du sens (Deleuze 1969a: 350–72;
ver também id. 1969b: 333–35, 360). O conceito de Outrem pertence à fase que se poderia
chamar de estruturalista da obra de Deleuze; mas ele é retomado, em termos praticamente
idênticos, em seu quase-último texto, Qu’est-ce que la philosophie? (Deleuze & Guattari
1991: 21–24, 49), e justamente como o primeiro exemplo do que vem a ser um conceito
filosófico.
19
“[O]utrem para mim introduz o signo do não-percebido naquilo que percebo,
determinando-me a apreender o que não percebo como perceptível para outrem” (Deleuze
1969a: 355).
20
Utilizo aqui e doravante o substantivo ‘(o) Eu’ (e o pronome oblíquo ‘mim’), com inicial
maiúscula, para traduzir o francês (le) Moi ou o inglês (the) Self, e a forma ‘(o) eu’, com
minúscula, para traduzir o francês ‘le Je’ ou o inglês ‘the I’. A noção deleuziana de Outrem
dá conta precisamente da diferença entre o eu e o Eu, o Je e o Moi, diferença esta tanto
externa (outrem sou eu para um outro Eu e vice-versa) como interna (o eu é um outro que o
Eu). Tais ‘questões pessoais’ terão importância na parte III do livro, quando discutiremos a
deixis cosmológica e seus pronomes.
14
21
Esse ‘ele’ que é Outrem não é uma pessoa, uma terceira pessoa diversa do eu e do tu, à
espera de sua vez no diálogo, mas também não é uma coisa, um ‘isso’ de que se fala.
Outrem seria mais bem a “quarta pessoa do singular” — situada, digamos assim, na terceira
margem do rio —, anterior ao jogo perspectivo dos pronomes pessoais (Deleuze ([1979]:
79).
22
A idéia de uma realidade própria do possível — o possível tomado como realidade
implicada em sua expressão — é o que Deleuze ([1966]: 96ss; 1969b: 269ss) chama, via
Bergson, de virtual, por oposição ao atual. A distinção entre os pares virtual/atual e
15
para os outros como para nós” (Deleuze & Guattari 1991: 24). A alteração está
para a alteridade como uma relação virtual implicada está para os termos atuais
em que ela se explica. A alteração não é dada; o dado é a alteridade: mas a
alteração é aquilo pelo qual o dado se dá como alteridade.25
Não há alteridade sem alteração. Abstraída da potência de alteração de que
procede, a alteridade se congela em uma ‘relação’ meramente formal, e
frequentemente degenera em uma taxonomia de oposições diacríticas entre
posições constituídas. No caso da antropologia amazônica, isso muitas vezes se
traduz em uma “sociologia verbal” (Calavia 1995: 249) de categorias de identidade
e de autodesignações coletivas — uma étimo-sociologia mais que uma etno-
sociologia —, e em uma cartografia estática de círculos de distância social, quando
não em análises ‘cognitivas’ que reduzem toda diferença a uma classificação, todo
pensamento a um reconhecimento, todo conceito a um taxon: triunfo do extensivo,
anulação total das diferenças de intensidade portadas pela alteração.
Alteração, então, designaria o ‘processo’ de atualização da alteridade que é
o efeito próprio de Outrem como relação a priori. Escrevo ‘processo’ entre aspas
porque não se trata, a rigor, de um processo, ou não se trata apenas disso: o
processo de atualização da alteridade se dobra de um contra-processo involutivo,
um devir, que contra-efetua a alteração por outros caminhos, como se verá na
parte II deste livro.
Alteração, enfim, porque essa palavra evoca uma noção capital da
metafísica ameríndia, a de transformação intensiva ou metamorfose, comentada na
parte III deste livro. A real relação entre Eu e Outro, no mundo indígena, não é a
oposição analítica ou a negação dialética, mas a metamorfose como alteração
ontológica. Tensão, preensão, alteração.
(…)
25
Isso parafraseia uma passagem de Deleuze: “A diferença não é o diverso. O diverso é o
dado. Mas a diferença é aquilo pelo qual o dado é dado. Aquilo pelo qual o dado é dado como
diverso” (1969b: 286).
18
26
Ética a Nicômaco, 1170 b 6.
27
Reencontro — este livro está cheio de reinvenções do alheio — exatamente tal formulação
em Manuela Carneiro da Cunha (1978: 93-94), a propósito da diferença entre o companheiro
(um ‘outro Eu’) e o amigo formal (um ‘eu-Outro’) dos Timbira, figuras que são os
esquematismos rituais, respectivamente, das posições de irmão e de cunhado. Esse último
par (ou antes, as idéias que eles encarnam) é discutido na parte II a seguir.
28
Seria possível formular o problema a partir de uma outra tradição ocidental fundadora —
por exemplo, da figura evangélica do Próximo, aquele que devemos ‘amar como a nós
mesmos’. A convergência entre essas duas imagens tão diferentes, o Amigo (a philia) e o
Próximo (a agapè), só é pertinente do ponto de vista de seu comum contraste com o regime
amazônico da alteridade.
19
29
Considerando-se que o Deus cristão é um híbrido greco-judaico, dir-se-ia (e Hegel deve
ter dito isso em algum lugar) que a parte que se interiorizou como Sujeito é a judaica, e a
que se exteriorizou como Natureza, a grega.
30
Considerações em parte inspiradas na história contada por Latour ([1991]: 50-53, passim)
sobre a “Constituição” dos modernos, e, pela mesma via, no livro de Funkenstein (1986)
sobre as relações entre teologia e imaginação científica na transição para a modernidade.
20
Deleuze lia em Tournier: não se trata aqui de saber o que é um mundo sem
outrem, mas o que é outrem em um mundo sem Deus. Não, note-se, um mundo
criado pela retirada catabática de Deus, como nosso mundo moderno, mas um
mundo incriado, na inexistência de uma divindade transcendente. Nesse regime de
alteração, o que garante a realidade para os sujeitos, que ‘percipiente’ virtual é
pressuposto para assegurar a transição entre os possíveis? Onde está Outrem,
como se distribuem — alteram-se e alternam-se — as posições do sujeito e do
objeto, do dado e do construído, da forma e do fundo?
Para responder a tais questões, será preciso rediscutir os termos da
oposição clássica entre Natureza e Cultura, região objetiva e região subjetiva do
existente, de modo a discernir a diferença propriamente ontológica do pensamento
indígena face ao nosso. Este é o tema da parte III do livro: a disseminação de
Outrem pelas dobras do mundo, sua manifestação sob a forma de uma infinidade
potencial de sujeitos não-humanos, e, reciprocamente, a presença do humano
como imanência absoluta.
Em outras palavras, estaremos discutindo a variante ameríndia do que
Latour (1991: passim) chamou de “velha matriz antropológica” da humanidade, a
matriz que a velha antropologia chamava, como se sabe, de ‘animismo’. Pode-se
dizer que o animismo, para defini-lo sucintamente mediante os conceitos de uma
tradição que se imagina ‘desanimista’, é uma imagem do mundo onde o objeto é
um caso particular do sujeito, isto é, onde todo objeto é um sujeito em potência. O
animismo de que se tratará aqui, entretanto, conhece uma inflexão crucial. No
mundo amazônico, o Eu é um caso particular do Outro, pois ali a relação com o
outro, o ‘inimigo’, funda a relação consigo mesmo. Um animismo, portanto,
alterado, uma alteridade que se animiza na medida exata em que se inimiza —
alteração. Um ‘inimismo’, então: o perspectivismo indígena, ou o mundo por
outrem.
(…)
As regras do jogo
31
O fato de que o discurso do antropólogo consista canônica e literalmente em um texto tem
muitas implicações, que não cabe desenvolver aqui. Elas foram objeto de atenção exaustiva
por parte de correntes recentes de reflexão auto-antropológica. O mesmo se diga do fato de
22
das relações que constituem reciprocamente o sujeito que conhece e o sujeito que
ele conhece, e a causa de uma transformação (toda relação é uma transformação)
na constituição relacional de ambos:
que o discurso do nativo não seja, geralmente, um texto, e do fato de que ele tenha sido
frequentemente tratado como se o fosse.
32
Itálicos removidos. Traduzi por ‘conexão’ a palavra rapport, que Simondon distingue de
relation, ‘relação’: “podemos chamar de relação a disposição dos elementos de um sistema
que está além de uma simples visada arbitrária do espírito, e reservar o termo conexão para
uma relação arbitrária e fortuita… a relação seria uma conexão tão real e importante como
os próprios termos; poder-se-ia dizer, por conseguinte, que uma verdadeira relação entre
dois termos equivale, de fato, a uma conexão entre três termos” (id.: 66).
33
Veja-se M. Strathern 1987 para uma análise dos pressupostos relacionais desse efeito de
conhecimento. A autora argumenta que a relação do nativo com seu discurso não é, em
princípio, a mesma que a do antropólogo com o seu, e que tal diferença ao mesmo tempo
condiciona a relação entre os dois discursos e impõe limites a toda empresa de auto-
antropologia.
23
34
Elas são como pré-condições das perguntas feitas na seção anterior, sobre o regime de
Outrem no mundo de outrem.
24
35
Somos todos nativos, mas ninguém é nativo o tempo todo. Como recorda Lambek (1998:
113) em um comentário à noção de habitus e congêneres, “as práticas encorporadas são
realizadas por agentes capazes também de pensar contemplativamente: nada do que ‘não é
preciso dizer’ permanece não-dito para sempre” (nothing ‘goes without saying’ forever; a
alusão é a um artigo de M. Bloch [1992] cujo título fala do que ‘goes without saying’ para o
nativo, e que caberia ao antropólogo dizer em seu lugar). Pensar contemplativamente,
sublinhe-se, não significa pensar como pensam os antropólogos: as técnicas de reflexão
variam crucialmente. A antropologia reversa do nativo (o cargo cult melanésio, por exemplo;
Wagner 1981: 31–34) não é a auto-antropologia do antropólogo (Strathern 1987: 30–31):
uma antropologia simétrica feita do interior da tradição que gerou a antropologia não é
simétrica a uma antropologia simétrica feita de fora dela. A simetria não cancela a diferença,
pois a reciprocidade virtual de perspectivas em que penso aqui não é nenhuma ‘fusão de
horizontes’. Em suma, somos todos antropólogos, mas ninguém é antropólogo do mesmo
jeito: “está muito bem que Giddens afirme que ‘todos os atores sociais… são teóricos
sociais’, mas a frase é vazia se as técnicas de teorização têm pouca coisa em comum”
(Strathern, loc. cit.).
36
Via de regra, supõe-se que o nativo faz, sem saber o que faz, as duas coisas — a
raciocinação natural e a racionalização cultural —, em fases, registros ou situações diferentes
de sua vida. As ilusões do nativo são, acrescente-se, tidas por necessárias, no duplo sentido
de inevitáveis e úteis (são, dirão outros, evolucionariamente adaptativas). É tal necessidade
que define o ‘nativo’, e o distingue do ‘antropólogo’: este pode errar, mas aquele precisa se
iludir.
25
37
É assim que interpreto a declaração de Wagner (1981: 35): “Estudamos a cultura através
da cultura, e portanto as operações, sejam quais forem, que caracterizam nossa investigação
devem ser também propriedades gerais da cultura.” Isso poderia ser aproximado da
passagem de Le cru et le cuit supracitada (ver nota 2), onde Lévi-Strauss fala da relação de
determinação recíproca entre o pensamento do nativo e o pensamento do antropólogo
(1964: 21).
26
38
Ver, sobre isso, Jullien 1989: 312. Os problemas reais de outras culturas são problemas
apenas possíveis para a nossa; o papel da antropologia é o de dar a essa possibilidade
(lógica) o estatuto de virtualidade (ontológica), determinando — ou seja, construindo — sua
operação latente em nossa própria cultura.
39
Os nativos — aqueles que são o objeto deste livro — também são ‘animistas’, atribuindo
aos objetos sobre que pensam uma certa condição de sujeito. Mas, como veremos, seu
27
nativo e o que o antropólogo pensa que (e faz com o que) o nativo pensa, e são
esses dois pensamentos (ou fazeres) que se confrontam. Tal confronto não precisa
se resumir a uma mesma equivocidade de parte a parte — o equívoco nunca é o
mesmo, as partes não o sendo; de resto, quem definiria a adequada univocidade?
—, mas tampouco precisa se contentar em ser um diálogo edificante. O confronto
deve poder produzir a mútua implicação, a comum alteração dos discursos em
jogo, pois não se trata de chegar ao consenso, mas ao conceito.
Evoquei a distinção criticista entre o quid facti e o quid juris. Ela pareceu-me
útil porque o primeiro problema a resolver consistia nessa avaliação da pretensão
ao conhecimento implícita no discurso do antropólogo. Tal problema não é
cognitivo, ou seja, psicológico; não concerne à possibilidade empírica do
conhecimento de uma outra cultura.44 Ele é epistemológico, isto é, político. Ele diz
respeito à questão propriamente transcendental da legitimidade atribuída aos
discursos que entram em relação de conhecimento, e, em particular, às relações de
ordem que se decide estatuir entre estes discursos, que certamente não são inatas,
como tampouco o são seus pólos de enunciação. Ninguém nasce antropólogo, e
menos ainda, por curioso que pareça, nativo.45
(…)
missão, e assim por diante (ver, por exemplo, Moore 1999). Fiquemos com a
questão do objeto, que implica as demais. Seria ele a cultura, como na tradição
disciplinar americana? A organização social, como na tradição britânica? A natureza
humana, como na tradição francesa? O presente autor pensa que a resposta
adequada é: todas as respostas anteriores, e nenhuma delas. Cultura, sociedade e
natureza dão na mesma; tais noções não designam o objeto da antropologia, seu
assunto, mas sim seu problema, aquilo que ela justamente não pode assumir
(Latour 1991: 109-10, 130). Pois há uma ‘tradição’ a mais a levar em conta, aquela
que conta mais: a tradição do nativo.
Admitamos, pois se há de começar por algum lugar, que a matéria
privilegiada da antropologia seja a socialidade humana, isto é, o que vamos
chamando de ‘relações sociais’; e aceitemos a ponderação de que a ‘cultura’, por
exemplo, não tem existência independente de sua atualização nessas relações.46
Resta, ponto importante, que tais relações variam no espaço e no tempo; e se a
cultura não existe fora de sua expressão relacional, então a variação relacional
também é variação cultural, ou, dito de outro modo, cultura é o nome que a
antropologia dá à variação relacional.
Mas essa variação relacional — não obrigaria ela a supormos um sujeito, um
substrato invariante do qual ela se predica? Questão sempre latente, e insistente
em sua suposta evidência. Questão, sobretudo, mal formulada. Pois o que varia
crucialmente não é o conteúdo das relações, mas sua idéia mesma: o que conta
como relação nesta ou naquela cultura. Não são as relações que variam, são as
variações que relacionam.47 E se assim é, então o substrato imaginado das
variações, a ‘natureza’ — para evocarmos o conceito caro à terceira grande tradição
antropológica —, mudaria completamente de função, ou melhor, deixaria de ser
uma substância e se tornaria uma verdadeira função. A natureza, humana ou geral,
deixaria de ser uma espécie de máximo denominador comum das culturas (máximo
que é um mínimo, uma humanitas minima), uma sorte de fundo de semelhança
obtido por cancelamento das diferenças entre elas a fim de constituir um sujeito
constante, um referente estável dos significados culturais variáveis (como se as
diferenças não fossem elas próprias igualmente naturais!). Ela passaria a ser algo
como um mínimo múltiplo comum das diferenças — maior que as culturas, não
menor que elas —, ou algo como a integral parcial das diferentes configurações
46
A ponderação é de Alfred Gell (1998: 4); ela poderia, é claro, aplicar-se igualmente à
‘natureza humana’.
47
O que parafraseia a fórmula de O totemismo hoje: não são as semelhanças que se
assemelham, mas as diferenças (Lévi-Strauss 1962a: 11).
30
48
Esse argumento é apenas aparentemente semelhante ao que Sperber (1982: cap. 2)
avança contra o relativismo. Pois esse autor não crê que as culturas sejam essencialmente
diversas: para ele, elas são exemplares contingentes de uma mesma natureza humana
substantiva. (Ver a crítica de Ingold [2000: 164] a Sperber, feita de outro ponto de vista,
mas compatível com o aqui adotado).
49
Sobre essas duas idéias de limite, uma de origem platônica e euclidiana, a outra de
origem arquimediana e estóica (que reaparece no cálculo infinitesimal do século XVII), ver
Deleuze 1981.
50
Ver, nessa direção, a argumentação fenomenológica de Mimica 1991: 34-38.
51
Veyne parafraseia inadvertidamente Evans-Pritchard, ao escrever, sobre essa condição
(universal) de prisioneiro de um bocal histórico (particular), que “quando não se vê o que
não se vê, não se vê sequer que não se vê” (op.cit.: 127; grifo meu para maior clareza).
31
Da concepção ao conceito
Isso tudo não quereria apenas dizer que o ponto de vista perseguido no livro é ‘o
ponto de vista do nativo’, como os antropólogos professam de longa data? De fato,
não há nada de particularmente original no ponto de vista aqui adotado; a
originalidade que conta é a do ponto de vista indígena, não a de meu comentário.
Mas, sobre a questão do objetivo ser o ponto de vista do nativo — a resposta é sim,
52
Estou aqui, obviamente, interpretando o ensaio de Veyne com um tanto de má-vontade.
Ele é bem mais rico (porque mais ambíguo) do que isso, extravazando o bocal da infeliz
32
antes da visão, ou antes, da divisão entre o visível (ou pensável) e o invisível (ou
pressuposto) que institui o horizonte de um pensamento. Segundo, porque tomar
as idéias como conceitos é recusar sua explicação em termos da noção
transcendente de contexto (ecológico, econômico, político etc.), em favor da noção
imanente de problema, de campo problemático onde as idéias estão implicadas.
Não se trata, por fim, de propor uma interpretação — uma hermenêutica, diria
Lévi-Strauss — do pensamento ameríndio, mas de realizar uma experimentação
com ele, e portanto com o nosso: “every understanding of another culture is an
experiment with one’s own” (Wagner 1981: 12).
Tomar as idéias indígenas como conceitos é afirmar uma intenção
antipsicologista, pois o que se visa é uma imagem de jure do pensamento,
irredutível à cognição empírica, ou à análise empírica da cognição feita em termos
psicológicos. A jurisdição do conceito é extraterritorial às faculdades cognitivas e
aos estados internos dos sujeitos: os conceitos são objetos ou eventos intelectuais,
não estados ou atributos mentais. Eles certamente ‘passam pela cabeça’ (ou, como
se diria em inglês, ‘cruzam a mente’): mas eles não ficam lá, e sobretudo, não
estão lá prontos — eles são inventados. Deixemos as coisas claras. Não acho que
os índios americanos cognizem diferentemente de nós, isto é, que seus processos
ou categorias ‘mentais’ sejam diferentes dos de quaisquer outros humanos. Não é o
caso de imaginar os índios como dotados de uma neurofisiologia peculiar, que
processaria diversamente o diverso. No que me concerne, penso que eles pensam
exatamente ‘como nós’; mas penso também que o que eles pensam, isto é, os
conceitos que eles se dão, as ‘descrições’ que eles produzem, são muito diferentes
dos nossos — e portanto que o mundo descrito por esses conceitos é muito diverso
do nosso.54 No que concerne aos índios, penso que eles pensam que todos os
humanos, e além destes, muitos outros sujeitos não-humanos, pensam exatamente
importante sobre o presente livro. Ver também Jullien 1989: 311-12, sobre as ‘ficções’
comparativas.
54
Respondendo aos críticos de sua análise da socialidade melanésia, que a acusam de negar
a existência de uma ‘natureza humana’ inclusiva dos povos daquela região, Marilyn Strathern
(1999b: 172) esclareceu: “[A] diferença que existe está no fato de que os modos pelos quais
os melanésios descrevem, dão conta da natureza humana, são radicalmente diferentes dos
nossos — e o ponto é que só temos acesso a descrições e explicações, só podemos trabalhar
com isso. Não há meio de eludir essa diferença. Então, não se pode dizer: muito bem, agora
entendi, é só uma questão de descrições diferentes, então passemos aos pontos em comum
entre nós e eles… pois a partir do momento em que entramos em comunicação, nós os
fazemos através dessas autodescrições. É essencial dar-se conta disso”. O ponto, com efeito,
é essencial. Ver também o que diz F. Jullien, sobre a diferença entre se afirmar a existência
de diferentes “modos de orientação no pensamento” e se afirmar a operação de “outras
lógicas” (in Jullien & Marchaisse 2000: 205–07).
34
‘como eles’, mas que isso, longe de produzir (ou resultar de) uma convergência
referencial universal, é exatamente a razão das divergências de perspectiva.
A noção de conceito supõe uma imagem do pensamento como atividade
distinta da cognição, e como outra coisa que um sistema de representações. A
presente discussão do pensamento indígena, assim, não visa nem o saber indígena
e suas representações mais ou menos verdadeiras sobre o real — o ‘indigenous
knowledge’ hoje tão disputado no mercado global de representações —, nem a
cognição indígena e suas categorias mentais, cuja maior ou menor
representatividade, do ponto de vista das faculdades da espécie, as ciências do
espírito não se cansam de explorar. Nem representações, individuais ou coletivas,
racionais ou (‘aparentemente’) irracionais, que exprimiriam parcialmente estados
de coisas anteriores e exteriores a elas; nem categorias e processos cognitivos,
universais ou particulares, inatos ou adquiridos, que manifestariam propriedades de
uma coisa do mundo, seja ela a mente ou a sociedade — o objeto deste livro são os
conceitos indígenas, os mundos que eles constituem (mundos que assim os
exprimem), o fundo virtual de onde eles procedem e que eles pressupõem. Os
conceitos, ou seja: as idéias e os problemas da ‘razão’ indígena, não suas
categorias do ‘entendimento’.
Como terá ficado claro, a noção de conceito tem aqui um sentido bem
determinado. Tomar as idéias indígenas como conceitos significa tomá-las como
dotadas de uma significação propriamente filosófica, ou como potencialmente
capazes de um uso filosófico.
Decisão irresponsável, dir-se-á, tanto mais que não são só os índios que não
são filósofos, mas, sublinhe-se com força, tampouco o autor. Como aplicar, por
exemplo, a noção de conceito a um pensamento que, aparentemente, nunca achou
necessário debruçar-se sobre si mesmo, e que remeteria antes ao esquematismo
fluente e variegado do símbolo, da figura e da representação coletiva que à
arquitetura rigorosa da razão conceitual? Não existe um bem conhecido abismo
histórico e psicológico, uma “ruptura decisiva” entre a imaginação mítica pan-
humana e o universo da racionalidade helênico-ocidental (Vernant [1966]: 229)?
Entre a bricolagem do signo e a engenharia do conceito (Lévi-Strauss 1962b)?
Entre a transcendência paradigmática da Figura e a imanência sintagmática do
Conceito (Deleuze & Guattari 1991)? Entre uma economia intelectual de tipo
imagístico-monstrativa e outra de tipo doutrinal-demonstrativa (Whitehouse 2000)?
Bem, quanto a tudo isso, que é tributário mais ou menos direto de Hegel, tenho
35
algumas dúvidas.55 E antes disso, tenho meus motivos para falar em conceito. O
primeiro deles decorre da decisão de tomar as idéias indígenas como situadas no
mesmo plano que as idéias antropológicas.
A experiência proposta aqui, dizia eu acima, começa por afirmar a
equivalência de direito entre os discursos do antropólogo e do nativo, bem como a
condição mutuamente constituinte desses discursos, que só acedem como tais à
existência ao entrarem em relação de conhecimento. Os conceitos antropológicos
atualizam tal relação, e são por isso completamente relacionais, tanto em sua
expressão como em seu conteúdo. Eles não são, nem reflexos verídicos da cultura
do nativo (o sonho positivista), nem projeções ilusórias da cultura do antropólogo
(o pesadelo construcionista). O que eles refletem é uma certa relação de
inteligibilidade entre as duas culturas, e o que eles projetam são as duas culturas
como seus pressupostos imaginados. Eles operam, assim, um duplo
desenraizamento: são como vetores sempre a apontar para o outro lado, interfaces
transcontextuais cuja função é representar, no sentido diplomático do termo, o
outro no seio do mesmo, lá como cá.
Os conceitos antropológicos, em suma, são relativos porque são relacionais
— e eles são relacionais porque são relatores. Tal origem e função relacional
costuma vir marcada na ‘assinatura’ característica desses conceitos por uma
palavra estranha: mana, totem, kula, potlatch, tabu, gumsa/gumlao… Outros
conceitos, não menos autênticos, portam uma assinatura etimológica que evoca
antes as analogias entre a tradição cultural de onde emergiu a disciplina e as
tradições que são seu objeto: dom, sacrifício, parentesco, pessoa… Outros, enfim,
igualmente legítimos, são invenções vocabulares que procuram generalizar
dispositivos conceituais dos povos estudados — animismo, oposição segmentar,
troca restrita, cismogênese… —, ou, inversamente, desviam para o interior de uma
economia teórica específica certas noções difusas de nossa tradição — proibição do
incesto, gênero, símbolo, cultura… —, buscando universalizá-las.56
Vemos então que numerosos conceitos, problemas, entidades e agentes
propostos pelas teorias antropológicas se originam no esforço imaginativo das
sociedades mesmas que elas pretendem explicar. Não estaria aí a originalidade da
antropologia, nesta sinergia relacional entre as concepções e práticas provenientes
dos mundos do ‘sujeito’ e do ‘objeto’? Reconhecer isso ajudaria, entre outras
55
Dúvidas que coincidem parcialmente com as expressas por Jullien 1998, e que serão
desenvolvidas oportunamente.
56
Sobre a ‘assinatura’ das idéias filosóficas e científicas e o ‘batismo’ dos conceitos, ver
Deleuze & Guattari 1991: 13, 28–29.
36
57
Sobre a ‘não-filosofia’ — o plano de imanência ou a vida —, ver Deleuze & Guattari 1991:
43–44, 89, 105, 205–06, bem como todo o comentário de Prado Jr 1998.
38
Talvez em Lima…
Roy Wagner, desde seu The Invention of Culture, foi um dos primeiros antropólogos
que soube radicalizar a constatação de uma equivalência entre o antropólogo e o
nativo decorrente de sua comum condição cultural. Do fato de que a aproximação a
uma outra cultura só pode se fazer nos termos daquela do antropólogo, Wagner
conclui que o conhecimento antropológico define-se por sua “objetividade relativa”
(op.cit.: 2). Isso não significa uma objetividade deficiente, isto é, subjetiva ou
parcial, mas uma objetividade intrinsecamente relacional, como se depreende do
que segue:
Ou, como diria Deleuze: não se trata de afirmar a relatividade do verdadeiro, mas
sim a verdade do relativo. É digno de nota que Wagner associe a noção de relação
à de ponto de vista (os termos relacionados são pontos de vista), e que essa idéia
de uma verdade do relativo defina justamente o que Deleuze chama de
‘perspectivismo’. Veja-se, desde já, como o perspectivismo não é um relativismo —
afirmação de uma relatividade do verdadeiro —, mas um relacionalismo — a
verdade do relativo é a relação.58
Indaguei o que aconteceria se recusássemos a vantagem epistemológica do
discurso do antropólogo sobre o do nativo; se entendêssemos a relação de
conhecimento como suscitando uma modificação, necessariamente recíproca, nos
termos por ela relacionados, isto é, atualizados. Isso é o mesmo que perguntar: o
58
Sobre o contraste entre “relatividade do verdadeiro” e “verdade do relativo”, ver Deleuze
1988: 30, Deleuze & Guattari 1991: 123. Zourabichvili (1994: 55), comentando essas
passagens, fala em “perspectivismo não-relativista”, fórmula que, por coincidência, é a
mesma empregada por L.H. Lopes dos Santos a propósito de Wittgenstein — “um
perspectivismo sem relativismo” —, e referida por Prado Jr. (1998:320).
39
59
A expressão “aparentemente irracional” é um eufemismo secular da antropologia, de
Andrew Lang ([1883], in Detienne 1981: 28) a Dan Sperber (1982).
60
Como professam as que poderíamos chamar ‘antropologias do bom senso’, no duplo
sentido do genitivo, como a de Obeyesekere (1992) contra Sahlins e a de LiPuma (1998)
contra Strathern.
61
As observações de Wittgenstein sobre o Golden Bough permanecem, a esse título,
completamente pertinentes. Entre outras: “Um símbolo religioso não se funda sobre
nenhuma opinião. E é somente em relação à opinião que se pode falar em erro”; “Creio que
o que caracteriza o homem primitivo é que ele não age a partir de opiniões (ao contrário,
40
mental, mas um efeito da relação entre os povos” — e o tipo mesmo do efeito que
não se pretende produzir aqui. A frase de Latour vem-me a calhar, pois trata-se
justamente de substituir, nas páginas que seguem, a linguagem do estado (ou
atitude) mental pela do efeito relacional, e não apenas para a “relação entre os
povos”.62
O animismo, por exemplo. O Vocabulário de Lalande, que não se mostra,
quanto a isso, muito destoante face a estudos psico-antropológicos recentes sobre
o tópico, define o animismo (s.v.) nestes exatos termos: como um “estado mental”.
Mas o animismo ameríndio pode ser tudo, menos isso. Ele é uma imagem do
pensamento, que reparte o fato e o direito, o que cabe de direito ao pensamento e
o que remete contingentemente aos estados de coisas; é, mais especificamente,
uma convenção de interpretação (Strathern 1999a: 239) que pressupõe a
personitude formal do que há a interpretar, fazendo assim do pensamento uma
atividade e um efeito da relação (‘social’) entre o pensador e o pensado. Seria
apropriado dizer que, por exemplo, o cartesianismo ou o jusnaturalismo são
estados mentais? O mesmo (não) se diga do animismo amazônico: ele não é um
estado mental dos sujeitos individuais, mas um dispositivo intelectual
transindividual, que toma, aliás, os ‘estados mentais’ dos seres do mundo como um
de seus objetos. Ele não é uma condição da mente do nativo, mas uma ‘teoria da
mente’ aplicada pelo nativo, um modo de resolver, ou melhor, de sequer colocar —
de deslocar — o problema eminentemente filosófico das ‘outras mentes’.
Se não se trata de descrever o pensamento indígena americano em termos
de crença, tampouco então é o caso de relacionar-se a ele sob o modo da crença —
seja sugerindo com benevolência seu ‘fundo de verdade’ alegórico (uma alegoria
social, como para os durkheimianos, ou natural, como para os ‘materialistas
culturais’), seja, pior ainda, imaginando que ele daria acesso à essência íntima e
última das coisas, detentor que seria de uma ciência esotérica infusa. “Uma
antropologia que … reduz o sentido [meaning] à crença, ao dogma e à certeza cai
Frazer)”; “O absurdo consiste aqui no fato de que Frazer apresenta tais idéias [sobre os ritos
da chuva etc.] como se esses povos tivessem uma representação completamente falsa (e
mesmo insensata) do curso da natureza, quando eles possuem apenas uma interpretação
estranha dos fenômenos. Isto é, se eles pusessem por escrito seu conhecimento da
natureza, ele não se distinguiria fundamentalmente do nosso. Apenas sua magia é outra”
(Wittgenstein [1930–48]: 15, 24, 27). Sua magia, ou, poderíamos dizer, seus conceitos.
62
Nota a desenvolver: distinguir entre uma concepção ‘ontológica’ de crença, como a de
Tarde (a crença como preensão), de uma concepção epistemológica, a crença como
representação falsa ou inverificável. O problema com teorias como a de Sperber é que esses
dois sentidos de ‘crença’ são confundidos, ou melhor, o segundo é contrabandeado para
dentro do primeiro: as crenças epistemologicamente falsas exigem uma explicação diferente
das crenças verdadeiras.
41
(…)
63
A exteriorização dessa condição especial e artificial, isto é, sua generalização e
naturalização, gera o equívoco clássico da antropologia: a eternidade formal do possível é
fantasmada sob o modo de uma não-contemporaneidade histórica entre o antropólogo e o
nativo — tem-se então a primitivização de Outrem, seu congelamento como objeto (do)
passado absoluto.
64
Isso para não mencionarmos o fato de que a cópula, nas línguas ameríndias, não costuma
ser marcada por um verbo. Outrossim, em certos casos análogos ao da equação entre
‘animais’ e ‘humanos’, o verbo envolvido não envolve a noção de ‘ser’, mas de ‘tornar-se’ ou
‘fazer-se estar’. Ver, por exemplo, a frase arquicélebre “Os Bororo somos araras vermelhas”,
cujo original em vernáculo, pa e-do nabure, deveria ser traduzido por “Nós viramos araras
[no ritual]” (Turner 1991: 136), ou, quem sabe melhor ainda, por algo como “nós
araramos”.
43
65
Alexiades cita seu interlocutor em espanhol — ‘Todos los animales son Ese Eja’. Note-se já
aqui uma primeira torção: ‘todos’ os animais (o etnógrafo mostra que há numerosas
exceções) não são ‘humanos’, e sim ‘Ese Eja’, etnônimo que pode ser traduzido como
‘pessoas humanas’, em oposição a ‘espíritos’ e a ‘estrangeiros’.
44
mundo, mas à relação dos enunciadores com seu próprio discurso. Tal relação é
mais diretamente explicitada nas antropologias ditas ‘simbolistas’, de tipo
semântico ou pragmático: enunciados como esse sobre os pecaris falam (ou
fazem), ‘na verdade’, algo sobre a sociedade, não sobre o que falam. Tais
enunciados não ensinariam nada sobre a ordem do mundo e a natureza do real,
portanto, nem para nós, nem para os índios. Levar a sério uma afirmação como “os
pecaris são humanos”, nesse caso, consistiria em mostrar como certos humanos
podem levá-la a sério, e mesmo acreditar nela, sem que se mostrem, com isso,
irracionais — e, naturalmente, sem que os pecaris se mostrem, por isso, humanos.
Salva-se o mundo: salvam-se os pecaris, salvam-se os nativos, e salva-se,
sobretudo, o antropólogo.
Essa solução não me satisfaz. Ao contrário, ela me incomoda
profundamente. Ela parece implicar que, para levar os índios a sério, quando
afirmam coisas como “os pecaris são humanos”, é preciso não acreditar no que eles
dizem, visto que, se o fizéssemos, não estaríamos nos levando a sério. É preciso
achar outra saída. Como não tenho espaço nem, sobretudo e evidentemente,
competência para repassar a vasta literatura filosófica sobre a gramática da crença,
a certeza, as atitudes proposicionais etc., apresento aqui apenas certas
considerações suscitadas, intuitiva mais que reflexivamente, por minha experiência
de etnógrafo.
Sou antropólogo, não suinólogo. Os pecaris (ou, como disse Evans-Pritchard
a propósito dos Nuer, as vacas) não me interessam enormemente, os humanos
sim. Mas os pecaris interessam enormemente àqueles humanos que dizem que eles
são humanos. Portanto, a idéia de que os pecaris são humanos me interessa, a
mim também, porque ‘diz’ algo sobre os humanos que dizem isso. Mas não porque
ela diga algo que esses humanos não são capazes de dizer sozinhos, e sim porque,
nela, esses humanos estão dizendo algo não só sobre os pecaris, mas também
sobre o que é ser ‘humano’. (Por que os Nuer, ao contrário e por exemplo, não
dizem que o gado é humano?). Um enunciado como “os pecaris são humanos”, se
certamente revela — ao antropólogo — algo sobre o espírito humano, faz mais que
isso — para os índios: ele afirma algo sobre o conceito de humano. Ele afirma, inter
alia, que a noção de ‘espírito humano’, ou o conceito indígena de socialidade,
incluem em sua extensão os pecaris — o que, e este é o ponto, modifica
radicalmente a intensão destes conceitos relativamente aos nossos.
A crença do nativo ou a descrença do antropólogo não têm nada a fazer
aqui. Perguntar(-se) se o antropólogo deve acreditar no nativo é um category
mistake equivalente a indagar se o número dois é alto ou verde. Eis os primeiros
45
66
Não estou aqui me referindo ao problema da aquisição ontogenética de ‘conceitos’ ou
‘categorias’, no sentido que a psicologia cognitiva dá a estas palavras. A simultaneidade das
idéias de pecari, humano e de sua identidade (condicional e contextual) é, do ponto de vista
empírico, uma característica do pensamento dos adultos dessa cultura. Ainda que se
admitisse que as crianças começam por adquirir ou manifestar os ‘conceitos’ de pecari e de
humano antes de serem ensinadas que “os pecaris são humanos”, resta que os adultos,
quando agem ou argumentam com base nesta idéia, não reencenam em suas cabeças tal
suposta sequência cronológica, primeiro pensando nos humanos e nos pecaris, depois em
sua associação. Além disso e sobretudo, tal simultaneidade não é empírica, mas
transcendental: ela significa que a humanidade dos pecaris é um componente a priori da
idéia de pecari (e da idéia de humano).
46
67
O simbolismo de Sperber funciona um pouco como a razão kantiana, essa faculdade que
não pode deixar de pôr os problemas mesmos que ela não pode resolver. Semelhante
inspiração faz a teoria sperberiana muito mais devedora de Lévi-Strauss do que seu autor
estaria disposto a admitir: a semelhança, por exemplo, da ‘representação semiproposicional’
de Sperber com a noção lévi-straussiana do mana como ‘significante flutuante’ (ou: lá onde
estavam o cérebro e o discurso, o mundo e o real devem advir) é profunda, e ao mesmo
tempo profundamente recalcada.
68
Ilusão ‘necessária’, mas temporária. Como Lévi-Strauss, Sperber parece crer que a ‘cota’
de simbolismo ou de vacuidade referencial do pensamento humano diminui assintoticamente
com o progresso histórico da ciência. Curiosa crença milenarista no advento de uma
factualização absoluta das ‘crenças’… Esta sim é uma autêntica idéia reguladora da Razão.
48
importa no que é o caso, ao que interessa para a vida no que é o caso. O que vale
um pecari? Essa é a questão, literalmente, interessante.69
“Profundo: outra palavra para semiproposicional”, ironiza Sperber (1982:
173). Mas então caberia replicar — banal: outra palavra para proposicional.
Profundos, com efeito, os conceitos indígenas certamente o são, pois projetam um
fundo, um plano de imanência povoado de intensidades, ou, se o leitor prefere a
linguagem de Wittgenstein, um Weltbild quadrilhado por ‘pseudo-proposições’ de
base que ignoram e precedem a partilha entre o verdadeiro e o falso, “tecendo uma
rede que, lançada sobre o caos, pode lhe dar alguma consistência” (Prado Jr 1998:
317). Esse fundo é a “base sem fundamento” que não é nem racional/razoável nem
irracional/insensata, mas que “simplesmente está lá — como nossa vida” (Sobre a
certeza, § 59, in Prado Jr op.cit.: 319).
2. Os corpos dos índios. Meu colega Peter Gow narrou-me, cerca de um ano atrás,
a seguinte cena, presenciada em uma de suas estadas entre os Piro da Amazônia
peruana:
Uma professora da missão [na aldeia de] Santa Clara estava tentando convencer
uma mulher piro a preparar a comida de seu filho pequeno com água fervida. A
mulher replicou: “Se bebemos água fervida, contraímos diarréia”. A professora,
rindo com zombaria da resposta, explicou que a diarréia infantil comum é causada
justamente pela ingestão de água não-fervida. Sem se abalar, a mulher piro
respondeu: “Talvez para o povo de Lima isso seja verdade. Mas para nós, gente
nativa daqui, a água fervida dá diarréia. Nossos corpos são diferentes dos corpos
de vocês” (Gow, com.pess. 12/10/00).
O que pode o antropólogo fazer com essa resposta da mulher índia? Várias coisas.
Gow, por exemplo, teceu comentários argutos sobre a anedota, em um artigo em
preparação:
Este enunciado simples [“nossos corpos são diferentes”] captura com elegância o
que Viveiros de Castro [1996a] chamou de perspectivismo cosmológico, ou
multinaturalismo: o que distingue os diferentes tipos de gente são seus corpos, não
suas culturas. Deve-se notar, entretanto, que esse exemplo de cosmologia
perspectivista não foi obtido no curso de uma discussão esotérica sobre o mundo
oculto dos espíritos, mas em uma conversação em torno de preocupações
eminentemente práticas: o que causa a diarréia infantil? Seria tentador ver as
posições da professora e da mulher piro como representando duas cosmologias
distintas, o multiculturalismo e o multinaturalismo, e imaginar a conversa como um
choque de cosmologias ou culturas. Isto seria, penso, um engano. As duas
cosmologias/culturas, no caso, estão em contato já há muito tempo, sua
imbricação precede de muito os processos ontogenéticos através dos quais a
69
“As noções de importância, de necessidade, de interesse são mil vezes mais
determinantes que a noção de verdade. Não, de forma alguma, porque elas a substituam,
mas porque medem a verdade do que digo” (Deleuze [1990]: 177; ver Zourabichvili 1994:
26-27, 32 para a constância desse tema nietzscheano em Deleuze).
49
70
Ela reproduz, a quatro séculos de distância, exatamente o mesmo equívoco evocado por
Lévi-Strauss (1952, 1955) a propósito dos espanhóis e dos nativos das Antilhas, e que lhe
50
serviu para tirar a célebre conclusão: “O bárbaro é, antes de mais nada, aquele que crê na
barbárie”.
51
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London: Athlone.
71
Como advertia Gell (1998: 101) em um contexto semelhante, a magia não é uma física
equivocada, mas uma ‘meta-física’: “O engano de Frazer foi, por assim dizer, o de imaginar
que os praticantes da magia dispunham de uma teoria física não-standard, quando, na
verdade, ‘magia’ é aquilo que se tem quando se dispensa uma teoria física em vista de sua
redundância, e quando se busca apoio na idéia, em si mesmo perfeitamente praticável, de
que a explicação de qualquer evento dado (…) é que ele é causado intencionalmente”.
52
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