Você está na página 1de 14

s í s i f o / r e v i s t a d e c i ê n c i a s d a e d u c a ç ã o · n .

º 7 · s e t / d e z 0 8 i s s n 1 6 4 6 ‑ 4 9 9 0

Outros artigos
As hipóteses nas Ciências Humanas —
considerações sobre a natureza, funções e
usos das hipóteses

José D’Assunção Barros


jose.assun@globo.com
Universidade Federal de Juiz de Fora (Juiz de Fora, Brasil) e Universidade Severino Sombra (USS) de Vassouras (Brasil)

Resumo:
Este artigo busca desenvolver uma reflexão acerca do uso de hipóteses nas
pesquisas científicas e na elaboração de textos nas Ciências Humanas. Busca‑se
apresentar, na primeira parte do texto, a natureza e importância das hipóteses
nas Ciências Sociais e Humanas, trazendo exemplos da História, Sociologia,
Urbanismo e outros campos do conhecimento. As hipóteses são discutidas como
recursos necessários para as ciências sociais e humanas que se baseiam em
problemas. Na seqüência do artigo, são pontuadas as funções das hipóteses
para cada pesquisa em particular, e para o Conhecimento Científico como um
todo. A principal intenção do artigo é trazer uma con‑ tribuição para alunos e
professores dos campos de conhecimento relacionados às ciências sociais e
humanas, oferecendo algumas sugestões práticas e meios para o entendimento e
o esclarecimento sobre como as hipóteses podem ser utilizadas nestes campos.
Para clarificar a explanação, o prin‑ cipal exemplo apresentado no texto refere‑se
a um problema histórico pertinente à Conquista da América, no século XVI,
buscando mostrar como, no campo das ciências humanas, um mesmo problema
pode ensejar muitas hipóteses de trabalho e diferentes soluções.

Palavras‑chave:
Hipótese, Ciências Humanas, Conhecimento científico, Ensino de metodologia.
Barros, José D’Assunção (2008). As hipóteses nas Ciências Humanas — considerações sobre a natu‑
reza, funções e usos das hipóteses. Sísifo. Revista de Ciências da Educação, 07, pp. 151-162.
Consultado em [mês, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

151
Uma das questões‑chave para o Ensino de próprio processo de investigação. Com a
Ciências So‑ ciais é levar o aluno a História, desde que ela assumiu o projeto de
compreender a interseção entre re‑ cursos ser uma ciência, não tem sido muito diferente,
teóricos e metodológicos, e sua aplicação e tam‑ pouco o é em ciências humanas
prática em uma Pesquisa. Aspectos como o diversificadas como a Sociologia, a
uso de Hipóteses nas Ciências Sociais não Antropologia, a Geografia, a Economia e
são fáceis de serem ensinados, a não ser já outras mais. Para dar o exemplo da História,
na prática direta de Pesquisa, de modo que essa neces‑ sidade de problematização foi se
todo esforço de sistematização que busque fazendo cada vez mais característica da
trazer exemplifi‑ cações que facilitem o historiografia ocidental — sobretudo
aprendizado destas interrelações mostra‑se a partir do século XX, quando se superou a
um contribucto importante para as Ciências da História Narrativa ou Descritiva do século XIX
Educação em sua dimensão mais prática e em favor de uma “História‑Problema”. Já não
operacio‑ nal. O presente artigo, além de existe maior sentido, para a historiografia
atender interesses volta‑ dos para o Ensino de profissional de hoje, no gesto de narrar
Metodologia Científica, dirige‑se em especial a simplesmente uma seqüência de
estes alunos que iniciam os caminhos de acontecimentos, ou de descrever certo
investigação em ciências sociais. Busca‑se, cenário histórico, se esta narrativa ou esta
mais particu‑ larmente, oferecer‑lhes elementos descrição não estiverem problematizadas.
para compreender e esclarecer aspectos Problematizar é lançar indagações, propor
pertinentes ao uso de Hipóteses nas Ciências articula‑ ções diversas, conectar, construir,
Sociais e Humanas (História, Sociologia, An‑ desconstruir, tentar enxergar de uma nova
tropologia, Geografia, Urbanismo e outras). maneira, e uma série de opera‑ ções que se
Começaremos por dizer que, em uma fazem incidir sobre o material coletado e os
pesquisa em modelo acadêmico, e em um dados apurados. Problematizar, nas suas
texto que se destine a apre‑ sentar os formulações mais irredutíveis, é levantar uma
resultados desta pesquisa, a Hipótese pode questão sobre algo que se constatou
de‑ sempenhar uma importância fundamental. empiricamente ou sobre uma realidade que se
Para sustentar esta proposição, vejamos, em impôs ao pesquisador.
primeiro lugar, de onde se origina a A formulação de hipóteses, no processo de
necessidade de utilização nas ciências investi‑ gação científica, é precisamente a
humanas. A investigação científica no segunda parte deste modo de operar
Ocidente, e não é dife‑ rente com as ciências inaugurado pela formulação de um problema.
sociais e humanas, tem se edifica‑ do Antes de tudo, a hipótese corresponde a uma
basicamente em torno da intenção de resolver resposta possível ao problema formulado — a
“pro‑ blemas” bem delineados, que grosso uma su‑ posição ou solução provisória
modo constituem o ponto de partida do mediante à qual a ima‑ ginação se antecipa ao
conhecimento, e que se destina a ser ao mesmo tempo em que são descar‑ tadas
ulteriormente verificada (para ser confirmada progressivamente as soluções inadequadas
ou rejeitada). A hipótese é na verdade um para o problema que se quer resolver.
recurso de que se vale o raciocínio humano Pode‑se dizer que a Hipótese é uma asserção
diante da necessidade de superar o impasse provi sória que, longe de ser uma proposição
produzido pela formulação de um problema e evidente por si mesma, pode ou não ser
diante do interesse em adquirir um conhe‑ verdadeira — e que, dentro de uma
cimento que ainda não se tem. É um fio elaboração científica, deve ser
condutor para o pensamento, através do qual necessariamente
se busca encontrar uma solução adequada,

152 sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza…
submetida a cuidadosos procedimentos de realizada, como no que se refere ao
verificação e demonstração. Constitui‑se em conhecimento científico de uma ma‑ neira
um dos elos do processo de argumentação ou geral. O “Quadro 1” enumera algumas destas
investigação (na pesquisa científica ela é fun‑ ções, organizando na parte sombreada
gerada a partir de um problema proposto e aquelas funções referentes a uma pesquisa
desenca‑ determinada ou ao seu Plane‑ jamento. Na
deia um processo de demonstração depois da parte não sombreada estão as funções que a
sua enun‑ ciação). É por isto que, Hipótese desempenha em relação ao
etimologicamente, a palavra “hi‑ pótese” desenvolvimento científico em geral.
significa literalmente “proposição subjacente”. Em primeiro lugar, a Hipótese estabelece
O que se “põe embaixo” é precisamente um uma “di‑ reção mais definida para a Pesquisa”
enunciado que será coberto por outros, ou por que está sendo re‑ alizada — seja fixando
uma série articula‑ da de enunciados, de modo finalidades relacionadas a etapas a serem
que a Hipótese desempenha o papel de uma cumpridas, seja implicando em procedimentos
espécie de fio condutor para a constru‑ ção do metodológicos específicos. Dito de outra
conhecimento. Apesar do seu caráter forma, ela possui uma “função norteadora”
provisório, a Hipótese tem sido a base da (1). Assim, em uma seqüência investigativa o
argumentação científica e desempenha uma pesquisador pode se valer de sucessivas
série de funções dentro da pesquisa e do hipóteses, descartando as que não subsistem
desenvolvimento do conhecimento científico, à demonstração ou as que não encontram
como se verá a seguir… apoio nas fon‑ tes ou na articulação de dados
empíricos. Cada hipótese formulada, por
vezes, pode pontuar uma etapa no en‑
AS FUNÇÕES DA HIPÓTESE NA PESQUISA frentamento do problema a ser solucionado,
da mesma forma em que cada hipótese irá
São várias as funções desempenhadas pela implicar em métodos específicos para a sua
Hipótese na Pesquisa Científica, tanto no que investigação.
se refere a uma pesquisa
específica que está sendo concretamente

Quadro 1
Funções da Hipótese na Pesquisa e no Conhecimento

Científico7. FUNÇÃO

UNIFICADORA

1. FUNÇÃO NORTEADORA ——————————————————

• Fixando finalidades relacionadas


Dar uma direção à Pesquisa
a etapas a serem cumpridas ——————————————————

durante a pesquisa. (inclusive através de generalizações constru‑


ídas a partir de “uniformidades empíricas”
• Implicando em procedimentos
que tenham sido eventualmente verificadas
metodoló‑ gicos específicos.
em pesquisas diversas)

2. FUNÇÃO
DELIMITADORA 6. FUNÇÃO
Organizar ou unificar MULTIPLICADORA
conhecimentos já adquiridos
Restringir o campo de PRINCIPAIS uma aplicabilidade
Pesquisa adaptada a outras
——————————————————
pesquisas
(a Hipótese ajuda a impor ——————————————————

um recorte ao Tema) (possibilitando, desta forma, o


avanço ou o enriquecimento do
conhecimento científico)

3. FUNÇÃO
4. FUNÇÃO ARGUMENTATIVA
INTERPRETATIVA
Desencadear inferências e
Propor uma possível 5. FUNÇÃO
solução
funcionar como pontos de
partida para deduções COMPLEMENTADORA
para o Problema investigado —————————————————— Preencher lacunas do
(encaminhamento do método
HIPÓTESES conhecimento
hipotético-dedutivo de raciocínio) ——————————————————

SUAS FUNÇÕES Se potencialmente (ao propor explicações provisórias)


generalizável, permitir

sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza… 153
Uma hipótese é norteadora precisamente está articula‑ da a algum dos aspectos do
porque arti‑ cula as diversas dimensões da tema, ou ela é irrelevante, ou o recorte
pesquisa, funcionando como um verdadeiro temático da Pesquisa não foi bem formulado
ponto nodal no qual se encontram o tema, a com relação ao que se pretendia verificar com
teoria, a metodologia e os materiais ou fon‑ tes a pesquisa. Por isto, para evitar as armadilhas
da pesquisa. Um bom teste para verificar se de investir em uma hipótese inútil,
estamos no caminho certo no que se refere à desarticulada, ou irrelevante — isto é, uma
formulação de hi‑ póteses é ir já associando hipótese que não irá cumprir adequadamente
cada hipótese aos seus pos‑ síveis a sua “função norte‑
procedimentos de verificação ou às adora” — uma excelente estratégia é organizar
metodologias a serem empregadas, aos imagina‑ riamente uma espécie de quadro
materiais a partir da qual esta verificação associando as hipóteses aos procedimentos
poderá ser empreendida, para além da sua metodológicos, fontes e aspectos teó‑ ricos
base teórica e da sua articulação com o tema. com ela relacionados. Digamos, por exemplo,
Bem en‑ tendido: se não existem fontes e que a sua pesquisa desenvolve‑se em torno
metodologias adequa‑ das para comprovar a de três ou quatro hipóteses, cada uma delas
hipótese, ela será inútil, pois não ultrapassará com os seus próprios procedi‑ mentos e
o estado de mera conjectura. Se não exis‑ tir possibilidades de documentação comprobató‑
uma articulação teórica, há também algo ria. O quadro de articulação das hipóteses
errado (no mínimo, é preciso definir todos os com os demais aspectos da pesquisa poderia
termos importantes ser algo assim:
incluídos nas hipóteses). Se a hipótese não

Quadro 2
Tabela para registrar a articulação da Hipótese com outras dimensões da pesquisa
hipótese 1 Metodologias hipótese dialoga)
Fontes hipótese 2 a serem empregadas Articulações com o tema
a serem utilizadas hipótese 3 Articulações teóricas (ex: (ex: fatores levados em
na comprovação hipótese 4 conceitos com os quais a consideração)
América, um dos problemas mais intrigantes e
fascinan‑ tes que têm sido enfrentados pelos
historiadores é o de
tentar entender como impérios tão bem
organizados como o dos astecas e o dos
incas, habitados por milhões de nativos, foram
Mais adiante voltaremos a este quadro, derrotados por apenas algumas cente‑ nas de
exemplificando com uma situação concreta. soldados espanhóis em tão curto espaço de
Por ora, retornemos às múl‑ tiplas funções da tem‑ po e com tão aparente facilidade1.
Hipótese na pesquisa. Além de impor uma As hipóteses que têm sido propostas como
direção à pesquisa relacionando‑se respostas possíveis a este problema são
previamente aos procedimentos muitas, “indo desde a infe‑ rioridade do
metodológicos e recursos teóricos e do‑ armamento indígena (Las Casas), até as di‑
cumentais que serão empregados, as visões políticas no interior desses impérios
hipóteses cumprem a finalidade de “restringir (Bernal Díaz, Cieza de León); desde os erros
o campo de pesquisa”, impon‑ do um recorte de estratégia militar apon‑ tados para explicar
mais específico ao Tema. Neste sentido, a a derrota de Atahualpa em Cajamarca
hipótese possui uma “função delimitadora” (2). (Oviedo), até as sofisticadas explicações dos
Assim, por exemplo, estudar a Conquista da estudiosos modernos que consideram a
Amé‑ rica (processo histórico que se dá a derrota dos índios como conseqüência de sua
partir do século XVI com a expansão incapacidade de decodificar os sig‑ nos dos
espanhola e portuguesa através das grandes conquistadores (Todorov)” (Bruit, 1994, p. 18).
navegações) constitui uma temática muito Ora, a mera delimitação do problema acima
ampla, ou mesmo vaga. Para saltar da propos‑ to já impõe um primeiro recorte ao
condição insatisfa‑ tória do investigador que tema mais amplo da Conquista da América.
tem diante de si um panorama de inúmeras Com um problema formulado, o historiador
possibilidades — e entrar na condição de uma abandona esse universo ainda vago e am‑ plo
investigação concreta a se realizar — será que é a temática da Conquista da América
preciso delimitar dentro deste campo temático como um todo, e começa a se direcionar para
um sistema de problema e hipótese. Vejamos algo bem mais es‑ pecífico. Em seguida, a
alguns desdobramen‑ tos desta escolha de uma ou de algumas
exemplificação. Na História da Conquista da

154 sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza…
hipóteses combinadas como soluções verdade, conduziria o estudioso búlgaro a
provisórias ou como caminhos para a investigar aspectos relacionados ao
pesquisa delimitarão ainda mais o recorte imaginário, ao con‑
temático. Desta maneira, quando Todorov fronto entre as visões de mundo de
formulou a hipótese da rápida e dramática conquistadores e conquistados, aos sistemas
derrota dos nativos mexicanos como de signos em confronto. Da mesma forma,
conseqüência de sua “incapa‑ cidade de este recorte transversal no tema apontaria
decodificar os signos dos conquistadores” e para a possibilidade do uso de metodologias
de assimilar a alteridade radical com a qual se que dia‑
confron‑ logam com a lingüística, com a semiótica, com
taram diante da chegada dos espanhóis, a antro‑ pologia, ou mesmo com a psicanálise,
estava abrindo uma espécie de trilha em uma que são precisa‑ mente os campos de saber
floresta de possibilidades. Esta trilha, na que colocam em movimento
aspectos discursivos, simbólicos, ponto de vista dos conquistadores espanhóis,
comportamentais. Também a escolha das como é o caso das famosas “Cartas de
fontes, que deveriam incluir textos a partir dos Hernan Cortês ao rei de Castela”². Esta
quais fosse possível acessar tam‑ bém o combinação de fontes permitiria compreender
discurso dos nativos mexicanos, surgiu aqui mais de perto o “choque cultural” entre as
de maneira mais ou menos conseqüente — duas civili‑ zações, e as reações das partes
conduzindo envolvidas diante deste confronto (Todorov,
Todorov a examinar com especial atenção 1993).
fontes como aquelas que foram produzidas Articulando convenientemente os aspectos
pelos nativos astecas no período acima considerados, a iluminação de uma
imediatamente subseqüente à Conquista problematização pertinente à Conquista da
(relatos produzidos por astecas no período América, a partir de uma hi‑ pótese bem
imediata‑ colocada e inovadora, conduziu Todorov a
mente subseqüente à Conquista; Cantares produzir um dos mais interessantes livros
Mexicanos do período, entre outras fontes). sobre o assun‑ to escritos nos últimos tempos.
Por outro lado, era preciso confrontar estas A título de exemplifica‑ ção, poderia ser
fontes — representativas do ponto de vista elaborado para a Hipótese proposta por
asteca, embora em alguns casos com Todorov o seguinte quadro:
mediações — com fontes representativas do

Quadro 3
Articulação da hipótese de Todorov com outras dimensões da Pesquisa
sobretudo, pela incapaci‑conquistadores.
. Análise Semiótica
Hipóteses dade de os astecas Fontes
. Abordagem
assimilarem o “cho‑ que
A rápida e devastadora cultural” produzido no . Os Informantes de comparativa
sujeição de mi‑ lhões de confronto entre as duas Sahagun Articulações Teórica
astecas por apenas . Cantares Mexicanos .
civilizações, e pela sua Conceitos de
algumas centenas de incapacidade em Cartas de Hernán Cortês
. “choque cultural” .
conquistadores . Crónica de Bernál Díaz
decifrar os códigos dos “alteridade”
espanhóis explica-se, Metodologia
leituras produzidas na interação entre sujeito
e objeto de conhecimento.
UM PROBLEMA E SUAS DIVERSAS
HIPÓTESES

Retomaremos como exemplificação o


problema da Con‑ quista da América. O
“Quadro 4” (na página seguinte) procura
O exemplo discutido nos oferece, certamente, esquematizar o problema proposto — o da su‑
um bom exemplo das funções “norteadora” e jeição de milhões de nativos meso‑americanos
“delimitadora” de uma hipótese de pesquisa. organi‑ zados em impérios desenvolvidos
Estas funções articulam‑se, naturalmente, como o dos astecas, em tão pouco espaço de
com a função básica da Hipótese que é a de tempo e para apenas algumas centenas de
“propor uma possível solução para o Problema conquistadores espanhóis.
investigado”, e que poderíamos denominar Pergunta‑se pelo fator ou pela combinação de
“função in‑ terpretativa” (3). A este respeito, é fato‑ res que teriam favorecido este
preciso lembrar que um problema científico, acontecimento, tão sig‑ nificativo para o
sobretudo na área das ciências humanas, destino subseqüente do continente. No
nem sempre apresenta uma única solução. quadro proposto, o Problema apresentado
Isto pode ocorrer com problemas matemáticos, ocupa a
mas não com estudos sociais que envolvem
complexas questões de interpretação e
sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza… 155
Quadro 4
A Conquista da América: Um problema e algumas hipótese

A sujeição
de impérios meso
americanos extremamente
organizados, habitados por
milhões de nativos, em tão
pouco espaço de tempo e por
apenas algumas centenas
de conquistadores
espanhóis,

7. Doenças trans‑
DEVEU-SE 1. Coragem, Determinação e Habilidade
dos espanhóis

2. Superioridade bélica
dos espanhóis parte de cima da imagem, enquanto a
parte de baixo, em sombreado,
corresponderá às diversas hipóteses
que se apresentam como soluções
satisfatórias para a questão imaginada,
ou ao menos como caminhos de
3. Superioridade dos investigação possíveis. Basta substituir
espanhóis em estratégia o segundo termo (depois das
militar
4. Divisões políticas reticências…) por qualquer das
no interior destes impérios alternativas propostas, ou por uma
que favoreceram ou foram
exploradas habilmente combinação de duas ou três das
pelos espanhóis alternati‑ vas propostas, e teremos
mitidas pelos espanhóis diversas possibilidades para o mesmo
para as quais os nativos não
possuíam capacidade de
problema. O círculo no topo enquadra o
resistência orgânica pro‑
blema proposto, que é também a
primeira parte de uma hipótese a ser
redigida. Por debaixo, são apresentadas
6. Choque cultural
entre espanhóis e meso
algumas respostas possíveis para o
americanos, que teria desfa‑ problema, que cons‑ tituem a segunda
vorecido estes últimos devido parte da redação proposta para a Hi‑
a uma menor capacidade de pótese a ser formulada. Assim, uma das
lidar com a alteridade
várias hipóteses indicadas no esquema
(a hipótese de Todorov a que já nos
referimos) poderia ser redigida da
seguinte forma:
5. Aspectos da mitologia
a sujeição de milhões de nativos
dos povos meso-americanos,
que favoreceram a identifi‑
meso‑americanos, orga‑ nizados em
cação os conquistadores impérios centralizados e desenvolvidos
espanhóis com deuses como o dos astecas, em curto espaço de
tempo e para apenas algumas centenas
de soldados espanhóis,… deveu‑se fun‑
damentalmente à dificuldade dos astecas fatores dominantes que o tornaram
em lidar com a alteridade e com o possí‑ vel. O próprio problema pode
choque cultural produzido pelo seu aparecer neste caso como o primeiro
contato com os conquistadores. termo da hipótese, e a solução
provisória ou resposta antecipada pode
Em diversas ocasiões uma hipótese corresponder ao termo sub‑ seqüente.
apresenta este tipo de formato Por ora, o aspecto importante a
redacional, particularmente as que ressaltar —
buscam compreender as relações entre
um acontecimento ou fe‑ nômeno e os

156 sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza…
com relação à exemplificação que propomos mesmo no sé‑ culo XX, quando ocorreria uma
— é que inúmeros historiadores têm proposto crítica contumaz à His‑ tória dos Grandes
para o problema da Conquista da América Homens, esta hipótese ainda estaria sendo
diversas hipóteses, como estas ou outras, e, reformulada algumas vezes³.
ainda mais freqüentemente, combinações de Já a hipótese da “superioridade bélica” (2)
hipóteses que buscariam dar uma explicação — que em alguma medida deve entrar em
com‑ plexa ou multifatorial para o problema qualquer análise sobre a Conquista da
formulado. Para sustentar as hipóteses América — não poderia rigorosamente,
propostas, estes historiadores têm sozinha, explicar a rapidez do processo e a
desenvolvido argumentações diversificadas, intensidade da devastação, e nem tampouco
apoiando‑ o fato contundente de que os espanhóis
‑se em fontes diversas, analisando‑as com tiveram de enfrentar uma descomu‑ nal
metodologias variadas, e abordando o desproporção diante de milhões de astecas
problema a partir de quadros teóricos contra apenas algumas centenas de soldados
específicos. espanhóis. Essa hipótese, importante mas
A bem dizer a formulação de hipóteses não suficiente, dificilmente pode ser
explicativas diversas para o processo da convincente quando não articulada a outras,
Conquista da América co‑ meça a ocorrer já como por exemplo a hipótese indicada com o
desde a época dos acontecimentos. Bernal número “4”, e que postula que “divisões
Diaz, que acompanhou a expedição de Cortês, políticas no interior das sociedades astecas
dá o ponto de partida nas hipóteses que favoreceram ou foram exploradas ha‑ bilmente
procuram ex‑ plicar o sucesso da Conquista pelos espanhóis”. Aliás, existem nuances pos‑
em termos de uma extre‑ ma habilidade e síveis dentro desta mesma hipótese. Quando
coragem dos conquistadores espanhóis, o se diz que os espanhóis souberam explorar
que é compreensível, uma vez que este as divisões existentes nas sociedades
historiador e participante da expedição não mexicanas e as rivalidades recíprocas en‑ tre
poderia senão defender o ponto de vista dos alguns povos da região, coloca‑se os
conquistadores espanhóis. Bem mais tarde, conquistadores espanhóis no centro do palco,
no século XIX, veremos ressurgir como atores principais, e escreve‑se uma
vigorosamente esta hipótese que buscava história do ponto de vista europeu⁴.
essencialmente enaltecer os conquistadores, Quando se propõe que havia previamente
particularmente com o setor da histo‑ riografia uma guerra civil indígena que enfraquece o
que ficou conhecido como responsável por império asteca, e que daí surgem condições
produzir uma “História dos Grandes Homens” para os espanhóis impingirem sua
— essa história na qual os grandes dominação, desloca‑se o conquistador
personagens históricos eram os principais espanhol para uma espécie de papel
responsáveis pelos acontecimentos. As‑ sim, coadjuvante, e faz‑se dos astecas e seus
William Prescott, um historiador que escreve inimigos indígenas os atores centrais da
sobre a Conquista da América em 1843 trama. A história é contada do ponto de vista
(Prescott, 1909), iria atribuir o sucesso da asteca, e a chegada dos espanhóis entra
empresa da Conquista da América às como um acontecimento externo, e não o
façanhas de Cortês e de seus homens, e contrário⁵.
Já mencionamos a célebre hipótese de pode ser confirmado como afirmações
Todorov so‑ bre o choque cultural, que, indiscutíveis são determinados dados ou
embora impactante para as duas civilizações, enunciados empíricos, mas não as
teria favorecido no fim das contas os proposições problematizadas que relacionam
espanhóis, Afinal, os astecas até o momento ou interpretam estes dados empíricos⁶.
da chegada dos espanhóis à América não Em suma, vimos até aqui que as hipóteses
conheciam senão povos relativamente desempe‑ nham funções importantes para o
parecidos com eles mesmos. Já os espa‑ encaminhamento de uma pesquisa específica
nhóis, àquela altura de sua história, já a ser realizada. Elas cumprem
conheciam popu‑ lações muito distintas das simultaneamente os papéis norteador
populações européias, como as asiáticas, (servindo de guias à investigação), delimitador
africanas, islâmicas. Os espanhóis, por as‑ sim (recortando mais o objeto da investigação) e
dizer, tinham uma inegável experiência maior interpretativo (propondo soluções provisórias
com a alteridade. para um problema). Mas, para além disto, as
Possivelmente, nunca se chegará a uma hipóteses ainda desempenham dentro de um
explicação da Conquista da América que seja trabalho científico específico uma importante
considerada mais perti‑ nente do que todas as função argumen tativa (4).
outras. Na verdade, a elaboração do Assim, de acordo com o método de
conhecimento histórico consiste precisamente raciocínio “hipotético‑dedutivo”, as hipóteses
neste permanente re‑exame do passado com devem atuar como focos para o
base em deter‑ minadas fontes e a partir de desencadeamento de inferências — no
determinados pontos de vista. As hipóteses sentido de que das suas conseqüências vão
na História ou nas Ciências Sociais ser geradas novas proposições, e de que
dificilmente podem adquirir a aparência de estas mesmas proposições desdobradas da
verdades absolutas (se é que existem hipótese original também irão produzir novas
verdades deste tipo), porque há um espaço inferências. Esta formação de uma série
muito evidente de interpretação a ser pre‑ articula‑ da de enunciados, na qual cada um
enchido pelo historiador ou pelo sociólogo na vai precedendo a outros de maneira lógica,
sua refle‑ xão sobre problemas sociais do consiste no que se denomina
presente ou do passado. Em tempo: o que

sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza… 157
“demonstração”. É aliás esta “função constitui‑se em torno de uma indagação
argumentativa” da Hipótese o que autoriza acerca da dimensão social do suicídio,
seu sentido etimológico de “proposição examinando‑o não apenas como um evento
subjacente” — de proposição que se coloca individual, mas como um fenômeno social que
embaixo de outra. Toda hipótese apresenta se expressa através do indivíduo. Cumpre
grosso modo isto que podemos chamar de investigar as motivações e as im‑ plicações
uma “potência inferencial” (capacidade de dar suicídio para a experiência humana. Em pri‑
origem a outras proposições). É des‑ ta meiro lugar, apresenta‑se a hipótese de que o
potência inferencial das hipóteses, em suicídio é motivado por tensões e ansiedades
articulação às verificações empíricas, que vive não aliviadas (a). Depois é proposta uma
o discurso científico. hipótese que logo virá convergir para o
A “função argumentativa” da hipótese é problema: a “coesão social” de um grupo
desempe‑ nhada, por outro lado, não apenas a propor‑ ciona mecanismos para aliviar ou
partir dos desdo‑ bramentos de suas combater as tensões e ansiedades
conseqüências, mas também através da vivenciadas por alguns indivíduos (b). Em
articulação destes desdobramentos com seguida, aventa‑se a hipótese de que
outras hipó‑ teses, de modo que duas ou mais determinados tipos de grupos sociais
hipóteses combinadas também podem possuem maior coesão social do que outros
produzir novas inferências. Um exem‑ plo de (uma forma de religião em contraste com
articulação lógica de enunciados hipotéticos é outra, por exemplo) (c). Logo, será possível
apresentado na obra O Suicídio de Émile prever um índice menor de suicídios naqueles
Durkheim (Durkheim, 1999). O problema grupos de maior coesão social quando
comparados com o de menor coesão (d). complementadora (5). Notadamente para
Naturalmente que esta cadeia de períodos mais recuados do passado, quando
inferências a partir de hipóteses convergentes começam a escassear as fontes e as
foi sustentada nesta síntese abre‑ viada de informações disponíveis, o historiador pode
maneira exclusivamente argumentativa. Em ser conclamado a preencher estes silêncios e
uma pesquisa, a “demonstração lógica” deve vazios de documentação, até que a sua
vir imbricada com uma “verificação empírica”. interpretação provisória seja substituída por
Os suportes empíricos devem precisamente uma outra que tenha encontrado bases mais
sustentar cada uma das afirmações com seguras de sustentação. De igual maneira, o
dados concretos. Pode‑se, por exemplo, cientista social pode se valer de
propor um método qualquer para a procedimentos análogos para pre‑
mensuração de aspectos relativos à “coesão encher os silêncios sociais de seu próprio
social” em um tipo de grupo humano específi‑ tempo, ou as dificuldades de acesso a fontes
co (os membros de uma comunidade católica, e dados.
por exem‑ plo). Depois, quantifica‑se os Este papel desempenhado pela hipótese no
índices de suicídio neste grupo. Procede‑se sentido de preencher espaços vazios do
com as duas operações anteriores para um conhecimento não é estranho à Ciência de
outro tipo de grupo que produza uma uma maneira geral. Sabe‑se por exemplo da
comparação pertinente (os membros de uma existência dos intrigantes “buracos negros” do
comunidade protestante, por exemplo). O espaço cósmico, mas como não existem
confronto entre os índices obtidos para cada atualmente maiores possibilidades de
grupo, tanto os indicativos de “coesão social” compreender de forma fun‑ damentada estes
como os que se materializam em taxas de fenômenos astronômicos, ou de pro‑
suicídios, permitirão confirmar ou refutar a duzir experimentos para testar a natureza dos
idéia de que as suposições propos‑ “buracos negros”, os cientistas não raro
tas produzem efetivamente uma articulação formulam teorias provi‑ sórias sobre a questão.
pertinente (a hipótese articuladora de que a Especula‑se, também em forma de hipóteses,
“coesão social” é inversa‑ mente proporcional sobre a “origem do universo” (como na
à “quantidade de suicídios”). célebre teoria do Big Bang). As próprias
As três próximas funções a serem lacunas de co‑ nhecimento concernentes à
comentadas (Qua‑ dro 1, parte não “origem do Homem” têm gerado sucessivas
sombreada) correspondem ao papel da hipóteses na Ciência e na Religião: o homem
Hipótese não apenas dentro de uma única como criação direta de Deus (Gênesis), o ho‑
pesquisa to‑ mada isoladamente, mas dentro mem como descendente evolutivo do macaco
do conjunto maior da ciência. Falaremos por (Darwin), o homem como descendente de um
um lado da potencialidade de algumas “elo perdido” que teria dado origem
hipóteses para preencher lacunas do conheci‑ simultaneamente à ramificação huma‑ na e à
mento, e por outro lado de hipóteses que, por ramificação dos demais primatas (retificações
algumas razões, acabam fazendo uma na Teoria da Evolução), o homem como
interligação entre várias pesquisas — seja por pertencente a uma matriz evolutiva
desdobramento de suas possibi‑ lidades em independente da do macaco (pesqui‑ sas
outras pesquisas, seja por sua capacidade de recentes). Em cada um destes casos, uma
aglutinar séries de dados empíricos hipótese preenche um vazio gerado pela
produzidos por pesquisas diversas. inquietação diante das origens humanas.
Em primeiro lugar consideraremos que Outro tipo de hipóteses que transcendem o
hipóteses bem fundamentadas, mesmo que mero âm‑ bito da pesquisa onde foram
não possam ainda ser plenamente geradas refere‑se àquelas que, uma vez
comprovadas ou refutadas, podem apresen‑ propostas, revelam um potencial de “apli‑
tar a significativa função de “preencher lacunas cabilidade a outras pesquisas”. A hipótese
do conhe‑ cimento”. A hipótese tem neste vem aqui
sentido uma espécie de função

158 sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza…
desempenhar uma função multiplicadora (6). Quando se desenvolve para um estudo de
caso específico uma argumentação bem naturalmente válido no âmbito das cidades
fundamentada em torno de determi‑ nada tipicamente americanas da modernidade (mas
hipótese, provando‑se a sua pertinência, pode não no âmbito das cidades européias, por
ser que esta hipótese venha a se mostrar exemplo), e baseia‑ ‑se nos processos de
aplicável a outros estudos, beneficiando desta “etnic sucession” e da “residential invasion”. A
maneira outras pesquisas possíveis e o idéia básica é a de que a cidade organiza a
conhecimento científico de uma maneira população a partir de zonas concêntricas,
geral. Assim, ao desenvolver a hipótese da residindo a alta burguesia nos subúrbios
importância predominante do “choque periféricos, e neste caso a progressão social
cultural” na sujeição das so‑ evoluiria do centro para a periferia, de
ciedades astecas, Todorov abriu a maneira que cada grupo social vai
possibilidade de que a mesma hipótese fosse abandonando espa‑ ços mais próximos do
utilizada para compreender a sujeição da centro e conquistando os arredo‑ res mais
sociedade inca, empreendida por Pizarro na valorizados socialmente.
região do Peru, ou outras situações similares. O que Burgess fez, neste caso, foi construir
É claro que, para cada caso, devem ser — atra‑ vés da mediação de uma hipótese
respeitadas as singulari‑ dades, o que deve adequada — uma ge‑ neralização que
ficar como um lembrete importante relativo às enquadraria as várias “uniformidades
possibilidades de se importar uma hipótese de empíricas” percebidas. Dito de outra forma, o
um para outro campo de pesquisa. sociólo‑ go da Escola de Chicago tratou de
Por fim, uma última função das hipóteses é organizar a realidade sob a forma do que
que, em nível mais amplo, elas podem se pode ser chamado de um “tipo ideal
prestar à organização ou unificação de complexo”. Goode e Hatt (Goode & Hatt, 1968,
conhecimentos já adquiridos, inclusi‑ ve pp. 77‑ ‑83) alertam para o fato de que este
através de generalizações destinadas a tipo de hipótese não deve vir acompanhado
explicar certas “uniformidades empíricas” que da pretensão de generalizações absolutas,
tenham sido eventual‑ mente constatadas em devendo‑se deixar claro desde o início que o
pesquisas diversas. Falaremos aqui de uma padrão percebido a partir de uma dada
função unificadora (7). Pode se dar o caso em recorrência de casos verifica‑se em
que uma hipótese explicativa contribua para determinadas condições (e não em outras).
dar sentido seja a um certo conjunto de Por outro lado, Lakatos e Marconi (2000, p.
dados, seja a um conjunto de outras 149) assinalam de maneira bastante pertinente
hipóteses. Um exemplo poderá es‑ clarecer que o principal papel das hipóteses deste tipo
este uso das hipóteses explicativas. é o de “criar instrumentos e problemas para
Várias pesquisas sobre crescimento urbano, novas pesquisas”. As‑ sim, a hipótese dos
toman‑ do como campo de estudos as cidades “círculos concêntricos” proposta por Burgess
americanas, le‑ varam alguns estudiosos da teria dado origem a outras, como a dos
chamada Escola de Chicago e outros “círculos múltiplos” proposta por Harris e
sociólogos à percepção de um certo padrão de Ullman e a do “crescimento axial” proposta
crescimento das cidades, particularmente no por Hoyt. Foi a partir de transformações e
que con‑ cerne à distribuição da população retificações no modelo primordial proposto por
(Burgess, Park & McKenzie, 1925). Diante Burgess que os chamados “ecologistas so‑
das uniformidades empíricas percebidas, cioculturais”, como Hoyt (1939), propuseram a
alguns autores procuraram formular hipóte‑ imagem de uma cidade dividida em setores
ses que correlacionassem estes fenômenos — triangulares — como as fatias de um bolo —
entre eles Ernest Burgess, que elaborou a sua observando que em diversos ca‑ sos setores
célebre hipótese dos “círculos concêntricos”. triangulares inteiros perdem prestígio social à
Para sustentar sua hipótese original, medida que se aproximam da periferia.
Burgess idea‑ lizou seu famoso “ideograma de Já a Hipótese dos “núcleos múltiplos”, por
desenvolvimento ur‑ bano”, onde o outro lado, questiona a própria idéia de um
crescimento se verifica em torno de um “centro único”, o que corresponderia na
núcleo de pontos focais que se constitui verdade a um modelo de visua‑ lização que
predominan‑ temente pelas atividades nem sempre condiz com a vida urbana. As‑
comerciais e industriais. O esquema é sim, Harris e Ullman (1945) procuraram
assinalar a na‑ tureza compósita da cidade, “criadoras de sentido” que imprimem novos
que estaria fundada sobre núcleos significados a conhecimentos construídos a
diferenciados. Buscavam conciliar desta partir de pesquisas diversas. Neste sentido,
forma, contestando‑as no essencial, a idéia algumas hipóteses transcendem largamente o
original de Burgess acerca de uma evolução âmbito mais restrito de sua pesquisa singular,
concêntrica e a proposta de crescimento por e criam unidades maiores entre várias
fatias triangulares aventada por Hoyt. pesquisas produzidas. Não importa que em
Este exemplo pode nos ajudar a perceber um segundo momento estas hipóteses sejam
que as hipóteses também têm uma função substituídas por novas hipóteses. O
significativa como organizadoras, mesmo que importante é que através delas o conheci‑
provisórias, dos próprios dados empíricos mento científico pode transitar livremente,
produzidos através do conhecimento sendo reela‑ borado de maneira permanente.
científico. Funcionam, neste caso, como É precisamente quando determinadas
compartimen‑ tos que retêm de maneira hipóteses con‑ seguem reunir em conjuntos
organizada e coerente estes dados, ou como maiores e coerentes uma

sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza… 159
diversidade de fatos, uniformidades empíricas póteses ou de novos desdobramentos de
e resulta‑ dos obtidos em pesquisa — e hipóteses, ou através da transferência de
particularmente quando se mostrarem certos sistemas hipotéticos e conceituais para
sustentáveis ou válidas as relações propostas outros campos de aplicação (do campo
para estes fatos — que ocorre a formação de natural para o social, por exemplo).
uma teoria⁷. Partindo destas relações De resto, deve ser lembrado que um
propostas e das hipóteses pri‑ mordiais, são enunciado teó‑ rico deve ser considerado
deduzidas novas hipóteses, de modo que vai sempre em relação à teoria à qual ele se
sendo consolidada uma nova teoria (inclusive articula. Um enunciado que em um momento,
com a elaboração de novos conceitos, ou dentro de um determinado referencial
sempre que necessário). teórico, pode ser considerado uma hipótese,
Mais uma vez podemos citar o exemplo da em outro momento pode ser considerado uma
“Teoria da Origem das Espécies” de Charles lei, e em um terceiro momento ser encarado
Darwin. O que o naturalista inglês fez foi como uma conjectura. Assim, a hipótese da
precisamente reunir uma série de fatos e “seleção natural”, por exemplo, é considerada
dados construídos a partir da observação da lei dentro da “Teoria da Origem das Espécies”
natureza sob a orientação de algumas novas de Darwin, é con‑
hipóteses, como a da “luta das espécies” e a siderada um princípio que deve ser combinado
da “seleção natural”. Em seguida, sendo a outros fatores na “Teoria Sintética ou
validadas por um determinado se‑ tor de Moderna da Evolução”, e é considerada uma
cientistas as suas observações sistematizadas conjectura ou hipótese refutada na “Teoria do
(não sem enfrentar resistências), o conjunto Planejamento Bio‑molecular Inteligente” de
de hipóteses proposto saltou para o status de Michael Behe (Behe, 1997).
“teoria” — considerada aqui como um corpo Para além dos usos discutidos neste artigo
coerente de hipóteses e conceitos que acerca das hipóteses de pesquisa, que na
passam a constituir uma determinada visão prática historiográfica e sociológica adquirem
científi‑ ca do mundo. tanta relevância, o quadro de fun‑ ções atrás
Foi também o que fizeram os sociólogos da elaborado procurou destacar o papel decisivo
Escola de Chicago ao reunirem suas das hipóteses na Pesquisa Científica de um
hipóteses, deduções, e ex‑ plicações para modo geral — tanto no que se refere a um
certas uniformidades empíricas em uma teoria trabalho específico que se realiza (uma Tese,
da “Ecologia Urbana” — que por sinal tem ele‑ um texto argumentativo, um Pro‑
mentos de transposição para o campo social jeto de Pesquisa), como no que se refere a
de alguns aspectos da “Teoria da Origem das aspectos mais
Espécies” proposta por Darwin. Aqui se amplos do conhecimento. O enfoque nas
percebe que uma teoria pode dar origem a Ciências Hu‑ manas buscou trazer a este
outras, através da incorporação de novas hi‑ conjunto de observações as especificidades
da História, Sociologia e outros campos de sintonizadas com este ponto de vista são as
saber. crônicas de Bernal Díaz, que participou da
expedição de Cortês e publicou uma Historia
Verdadera de la Conquista de la Nueva
Notas Espana (1632). Para mais um apoio ao ponto
de vista asteca, pode‑se buscar os Cantares
1. Sobre isto, chama atenção Mexicanos, produzidos na mesma época
Fernández‑Armesto em seu artigo “Aztec’ (Bierhorst, 1985).
Auguries and Memories of Conquest of the 3. É o caso do livro de Hugh Thomas
México” (1992). Ver também Restall, 2006. intitulado Mon tezuma, Cortês e a Queda do
2. Entre as fontes produzidas pelos próprios Velho México, que — ao basear sua análise
astecas em momento próximo à Conquista em fontes espanholas, sem filtrar seu ponto de
estão, por exemplo, os depoimentos vista — termina por reforçar esta mesma
produzidos sobre a orientação do fran‑ ciscano hipótese de valorização da habilidade dos
Bernardino Sahagun, que em 1579 coordena a conquistadores como fator principal que
fei‑ tura em náuatl de uma primeira versão assegura a rapidez com que os espanhóis
destas fontes que ficaram conhecidas como submetem os astecas (Thomas, 1995).
Os Informantes de Sahagun. Estes relatos 4. Este é o ponto de vista transmitido por
foram publicados, e possuem, inclusive, tra‑ Bernal Díaz, quando aborda a questão da
dução em português (Leon‑Portilla, 1987). aliança dos espanhóis com povos indígenas
Cinco anos mais tarde, Sahagun produz uma inimigos dos astecas.
nova versão, retificando a anterior, na qual já 5. Esse é o ponto de vista, e o modo de
aparece um discurso menos autêntico de um narrar, que apa Esse é o ponto de vista, e o
ponto de vista estritamente asteca, o que deve modo de narrar, que apa‑ rece nos cantares
ser atribuído aos interesses franciscanos indígenas (Bierhorst, 1985). 6. Assim, é
naquele momento, bem articulados com indiscutível que milhões de nativos meso‑
setores espanhóis ligados à Con‑ quista (Sobre ‑americanos foram submetidos pelos
isto ver Cline, 1988). Portanto, as diferenças espanhóis nas pri‑ meiras décadas do século
entre uma e outra deixam rentrever aspectos XVI. Mas as razões e implica‑ ções deste fato
ideológicos produzidos na interação entre a serão sempre rediscutidas.
Igreja e a Coroa Espa‑ nhola. Também as 7. É neste sentido que Goode e Hatt
Cartas de Hernan Cortês ao Impera dor da afirmam que as hipóteses podem formar um
Espanha, relatórios que trazem o ponto de elo entre fatos e teorias (Goode & Hatt, 1968,
vista dos conquistadores, mereceram p. 74).
publicações (Cortez, 1996). Igualmente

160 sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza…
Referências bibliográficas Sociedade. Rio de Janeiro: ANPHLAC,
pp. 15‑45.
Barros, José D’Assunção (2007). O Projeto de Burgess, E. W.; Park, E. & McKenzie, R. D.
Pesquisa em História. 4ª edição Petrópolis: (1925). The City. Chicago: University of
Editora Vozes. Behe, M. (1997). A Caixa Preta Chicago Press. Cline, S. (1988). Revision
de Darwin: o desafio da Bioquímica à Teoria Conquest History — Saha ). Revision Conquest
da Evolução. São Paulo: JZE. Díaz del Castillo, History — Saha‑ gun revise book II. In Jorge K.
Bernal (1632). Historia Verdadera de la Alva (org.), The Work of Bernardino Sahagun
Conquista de la Nueva España. México D. F.: — pioneer of etnographer of sixteenth -century
Edi‑ torial Pedro Robredo. aztec Mexico. Austin: Texas Univer Austin:
Bierhorst, J. (1985). Songs of Aztecs. Stanford: Texas Univer‑ sity Press, pp. 93‑106.
Stanford University Press. Cortez, H. (1996). A Conquista do México.
Bruit, H. (1994). O Trauma de uma Conquista Porto Alegre: LPM.
Anun‑ ciada. In P. Gebran & M. T. Lemos Durkheim, É. (1999). O Suicídio. São Paulo:
(orgs.), América Latina: Cultura, Estado e Martins Fontes.
Fernández‑Armesto, F. (1992). Aztec’ Auguries Schuster. Todorov, T. (1993). A Conquista da
and Memories of Conquest of the México. América — a ques tão do outro. São Paulo:
Renaissance Studies, 6 — 3, 4, Martins Fontes.
pp. 287‑305.
Goode, W & Hatt, P. K. (1968). Métodos em
Pesquisa So cial. São Paulo: Companhia
Editora Nacional. Harris, Ch. & Ullman, E. L.
(1945). The Nature of Cit‑ ies. Annales of
American Academy of Political and So cial
Science, CCLII. New York, pp. 15‑42.
Hoyt, H. Y. (1939). The Structure and Growth José D’Assunção Barros é Doutor em História Social
of Resi dencial Neighbourhoods in pela Uni‑ versidade Federal Fluminense (UFF).
American Cities. Washing‑ ton: U. S. Professor da Universi‑ dade Federal de Juiz de Fora
Government Printing Office. (Juiz de Fora, Brasil) e da Univer‑ sidade Severino
Lakatos, E. M. & Marconi, M. de A (2000). Sombra (USS) de Vassouras (Brasil). Entre as
Metodologia Científica. São Paulo: Atlas. obras mais recentes contam‑se os livros O Campo
León‑Portilla, M. (1987). A Visão dos Vencidos. da História (Petrópolis: Vozes, 2004), O Projeto de
Porto Alegre: LPM. Pesquisa em História (Petrópolis: Vozes, 2005) e
Merton, K. (1970). Sociologia: teoria e Cidade e História (Petrópolis: Vo‑ zes, 2007). O
estrutura. São Paulo: Mestre Jou. autor possui livro publicado na área de Metodo‑
Prescott, W. (1909). Conquest of México. logia Científica direcionada a História e Ciências
Londres: Dent. Restall, M. (2006). Sete Mitos Sociais, no qual discute aspectos relacionados a
da Conquista Espanhola. Rio de Janeiro: Pesquisa, tal como o que
Civilização Brasileira. é apresentado neste artigo (Petrópolis: Vozes,
2007).
Thomas, H. (1995). Montezuma, Cortês and
the Fall of Old Mexico. New York: Simon and

sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza… 161
162 sísifo 7 | josé d’assunção barros | as hipóteses nas ciências humanas considerações sobre a natureza…

Você também pode gostar