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CURRÍCULO: TEORIA E PRÁTICA

CURRÍCULO: CAMPO, CONCEITO E


RELAÇÕES. ASPECTOS HISTÓRICOS,
CONTEXTUAIS E EDUCACIONAIS

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Olá!
Ao final desta aula, você será capaz de:

1. Conhecer os diferentes modos de conceber o conhecimento científico e distingui-lo do senso comum;

2. refletir sobre o conceito de campo e suas implicações socioeconômicas, históricas e políticas;

3. analisar o caminho de construção do campo e do objeto de estudo do currículo, suas contradições, tensões e

desafios;

4. compreender a importância das reflexões sobre as conceituações de currículo para os profissionais da

educação.

Os estudos curriculares representam um poderoso artefato para o movimento de observação, reflexão e

intervenção na dinâmica escolar.

O currículo escolar se constitui e se institui no conflitante campo dos debates que intensiona, compreender os

diversos "fazeres" e "pensares" que repercutem no interior da escola.

O professor não deve trabalhar com a ideia de currículo como sinônimo de um conjunto de conhecimentos

determinados a priori que se enquadram em disciplinas "cientificamente" predefinidas de delimitadoras de tudo

que será ou não vivido pelos estudantes, num dado espaço de tempo igualmente rígidos.

Nos referimos ao currículo como uma concepção que vai além de um desenho com poder de aprisionar e reduzir

os conhecimentos da cultura humana em modelos inflexíveis que devem ser transmitidos de geração a geração.

Acreditamos ser o currículo, um conjunto de ações que cooperam para a formação de humana em suas múltiplas

dimensões constitutivas.

Na verdade, o currículo imprime uma identidade à escola.

1 O que é saber científico? O que o diferencia do senso


comum?
"Contra o positivismo, que pára perante os fenômenos e diz:'Há apenas fatos', eu digo: 'Ao contrário, fatos é o

que não há;há apenas interpretações'." (Nietzsche) "A investigação científica não termina com os seus dados; ela

se inicia com eles. O produto final da ciência é uma teoria ou hipótese de trabalho e não os assim chamados

fatos" (G. H. Mead)

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Para começar nossa conversa sobre esse tema tão polêmico, que tal fazermos uma experiência? Conforme fez

Rubem Alves em seu livro Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras (1981), propomos que você olhe

para a figura ao lado com um olhar de pesquisa, de investigação... Mesmo que já tenha olhado para ela alguma

vez, experimente esse novo olhar.

Primeiramente, olhe para a figura de uma forma geral, sem se deter nos detalhes. O que você vê?

Agora, tente mudar o seu ângulo de visão: procure olhar a partir da direita, da esquerda, de cima e de baixo. Viu

algo diferente? Se você viu uma jovem, repentinamente verá uma idosa e vice-versa...

• Alguns passos para ver a jovem

O risquinho preto é um colar. Ele define o pescoço. Logo acima você encontra o maxilar da jovem, cujo

rosto está voltado para o fundo da figura, como se algo estivesse lá. Tanto que sua boca é invisível e a

gente vê apenas a pontinha do nariz e das pestanas.

• Alguns passos para ver a idosa

Transforme o risquinho preto em boca e o maxilar da jovem em nariz. Sua figura aparece de perfil, nariz

muito evidente, olhando para frente e para baixo.

Conseguiu, agora, perceber a transformação da imagem?

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Então, vamos refletir sobre essa experiência e entender qual a razão de iniciar nossa discussão sobre ciência com

ela...

Que relações você estabelece entre o tema de nossa aula e essa experiência? Anote suas hipóteses antes de

prosseguir.

Alguns aspectos envolvidos nessa experiência podem nos ajudar a estabelecer relações entre ela e o saber

científico e a refletir sobre a ciência.

No processo de observação e leitura desta imagem, o que podemos considerar como equivalente aos dados

(fatos?), ao cientista, ao conhecimento científico (teorias)?

Para dar continuidade à nossa reflexão, pense sobre essas perguntas:

• Durante a experiência, os dados (informações) mudaram ou permaneceram os mesmos?


• Se o que você viu foram os dados, e se considera que eles permaneceram estáveis, fixos,
então como viu duas figuras distintas?
• O que fez com que a figura se modificasse?

Pois é, você já deve ter concluído que o que apreendemos da realidade não depende apenas dos dados

disponíveis, mas da ação interpretativa do pesquisador, do observador.

Vimos, na aula anterior, que há pensamentos divergentes sobre a neutralidade da ciência. Na perspectiva

positivista, a teoria é entendida como uma descrição imparcial e objetiva dos fatos, da realidade. Na perspectiva

pós-estruturalista, hoje predominante na análise social e cultural, a teoria é entendida como uma produção, uma

criação da realidade, a partir do que é observado, pressuposto com o qual trabalharemos ao longo desse curso.

Nesta perspectiva, fazer ciência não é uma atividade neutra, imparcial. Nietzsche já problematizava essa questão

quando afirmou que não há fatos e sim interpretações...

O conhecimento científico envolve o foco do olhar do pesquisador, que é delimitado pelo contexto no qual o

saber é produzido. Seja nas ciências exatas, seja nas ciências sociais, o que vai ser estudado (olhado), como vai

ser estudado, com que finalidade, vai depender do contexto socioeconômico e político e das demandas em jogo.

Essas questões nos instigam a novas reflexões: se consideramos que tanto o saber científico como o saber não

científico, ao interpretarem a realidade, participam de sua produção, de sua invenção, o que distingue um do

outro? Qual a distinção entre conhecimento científico e senso comum?

Primeiramente, vamos partir da ideia de senso comum como todo conhecimento produzido pelos homens

/mulheres para explicar os fatos, fenômenos e situações do cotidiano, para responder às infinitas perguntas que

instigam e afligem a Humanidade. É aquilo que não é ciência.

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Mas você deve estar se perguntando se a Ciência não é exatamente o conhecimento produzido para explicar os

fatos, fenômenos e situações do cotidiano, para responder às infinitas perguntas que instigam e afligem a

Humanidade... Você tem razão.

Segundo Alves (1981) a ciência não é uma forma de conhecimento diferente do senso comum; é apenas uma

abordagem mais especializada, controlada e disciplinada desse conhecimento. O autor coloca em questão o mito

que se construiu sobre a ciência e a ideia de que o cientista é uma pessoa que pensa melhor que as outras, que

tem em suas mãos uma receita universalmente válida, válida para todos os casos, de que a sua palavra, por ser

especialista, vale mais.

Ao contrário, relativiza as diferenças e semelhanças entre esses dois tipos de saber.

O senso comum e a ciência são expressões da mesma necessidade básica, a necessidade de compreender o

mundo, a fim de viver melhor e sobreviver. E para aqueles que teriam a tendência de achar que o senso comum é

inferior à ciência, eu só gostaria de lembrar que, por dezenas de milhares de anos, os homens sobreviveram sem

coisa alguma que se assemelhasse à nossa ciência. (ALVES, 1981, p.16).

Para muitos autores, o que caracteriza o conhecimento científico e o distingue do saber não científico é sua

abordagem sistemática da realidade e do objeto a ser pesquisado, o que envolve, em geral: a seleção de um

problema; a formulação de perguntas ou questões que norteiam o olhar do pesquisador; a escolha da

metodologia de pesquisa; a seleção de referenciais teóricos; a coleta e análise de dados; o levantamento de

hipóteses; a elaboração de conclusões e de paradigmas; o levantamento de novas questões.

Ressaltamos que todos esses “passos” ou “etapas do fazer científico” são permeados por escolhas que não são

neutras, que são configuradas a partir do contexto no qual o conhecimento científico é produzido.

O olhar do pesquisador, portanto, reflete esse contexto, se direciona para um ou outro fragmento, um ou outro

dado, de acordo com o que é privilegiado, com o que é valorizado por ele, pela sociedade e pela própria ciência.

Assim, para os mesmos dados ou fatos, podem ser “vistas” ou “produzidas” diferentes configurações da

realidade. A “figura-imagem” da realidade pode assumir diferentes “formas”, dependendo do modo como a

olhamos e a analisamos, do que privilegiamos...

O que entendemos por campo científico? Podemos falar em teorias de currículo mesmo antes da

constituição do currículo como campo? A partir das reflexões feitas anteriormente, você teve a

oportunidade de relativizar a ideia de neutralidade científica, o que favorece o entendimento do que

é campo científico. Para analisarmos o que é campo científico, é necessário antes entender o conceito

de campo. É fundamental, também, compreender a vinculação desse conceito com a constituição da

sociedade moderna - a sua estrutura social e o papel das classes sociais em sua dinâmica - assim

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como com as formulações teóricas da Sociologia e suas contribuições para as reflexões e a

compreensão da relação sujeito-sociedade.

A constituição da sociedade moderna, cujo marco é a passagem das sociedades pré-capitalistas para as

sociedades capitalistas, envolve também a configuração de novos espaços e grupos sociais e disputas de poder,

nas quais estão em jogo os seus valores, suas regras e representações. Os estudos sociológicos buscam

compreender como essas lutas simbólicas se travam e qual o papel dos diferentes grupos sociais nessa disputa.

Dentre esses estudos, as formulações teóricas do sociólogo Pierre Bourdieu foram fundamentais no

entendimento dessas tensões e conflitos e na construção do conceito de campo. Para o autor, o campo pode ser

entendido como um espaço no qual dominantes e dominados - sejam indivíduos, grupos ou instituições - lutam

por impor suas representações, regras, ideias.

Assim, os campos têm regras próprias, particulares, e podem ser bastante diversos, como o da moda, da

literatura, das artes e da ciência, dentre outros. Partindo desses pressupostos, Bourdieu ressalta que o campo

científico é permeado por interesses e por lutas de poder, questionando a sua neutralidade.

O campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o

lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio

da autoridade científica definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou, se

quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e de agir

legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente

determinado (BOURDIEU, 1983, p.1).

Bourdieu evidencia que as lutas travadas no campo científico são lutas que transcendem o campo

epistemológico, do conhecimento. A luta de ideias é uma luta por poder, por prestígio, por hierarquia. Assim, o

campo cientifico é um espaço no qual os cientistas buscam a legitimação e a hegemonia de um corpo de ideias

sobre outros, pautados por interesses e que se relacionam com as lutas de poder travadas entre os grupos

sociais, revelando uma concepção e um posicionamento diante da realidade social. E qual a relação entre essa

discussão teórica e o tema da nossa aula: a origem do campo do currículo?

Essa discussão é muito importante para identificarmos como, na trajetória dos discursos sobre o currículo, este

vai se configurando como campo e que lutas de poder nele são travadas. Para alguns autores (Moreira e Silva,

1994; Macedo, 2007), o interesse pelo currículo é muito anterior à origem do currículo como campo.

“Mesmo antes de se constituir em objeto de estudo de uma especialização do conhecimento pedagógico, o

currículo sempre foi alvo da atenção de todos os que buscavam entender e organizar o processo educativo

escolar.” (MOREIRA E SILVA, 1994, p. 8-9).

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Ao analisar os primórdios dos discursos sobre o currículo, Macedo (2007) evidencia que desde a antiguidade

grega e romana verifica-se uma preocupação com um aspecto que, durante muito tempo, foi o foco das

discussões e teorizações sobre o currículo e que está presente até hoje: a organização dos conhecimentos, seja

através dos planos, seja através da distribuição dos conteúdos por disciplinas.

No texto A República e as Leis, de Platão, por exemplo, o currículo é definido como um plano de estudos, sendo

considerado por Macedo (2007) como uma inspiração do enfoque disciplinar que viria a seguir, e tomaria rumos

religiosos durante a Idade Média, para se solidificar como uma forte tendência, desde o Iluminismo até a

Modernidade.

Silva (2004, p. 21) destaca a Didactica magna, de Comenius (século VXII) como um exemplo de que “há

antecedentes na história da educação ocidental moderna, institucionalizada, de preocupações com a organização

da atividade educacional [...] e a questão do que ensinar.”

Assim, muito antes de o currículo se constituir um campo de estudos específico e especializado, os discursos

sobre o currículo estiveram presentes, explícita ou implicitamente, nos discursos educacionais e pedagógicos

formulados pelos atores que participam diretamente da ação educativa ou por teóricos das diferentes áreas ou

campos, como a Filosofia, Pedagogia, Psicologia e Sociologia. Essas diferentes ideias sobre o currículo

permearam as práticas educativas e contribuíram para a construção do campo do currículo.

2 Como se constituiu o campo do currículo?


Segundo Silva (2004) e Macedo (2007), a ideia de currículo mais difundida na modernidade, associada à

organização e método, embora já fosse “anunciada” anteriormente, se consolidou efetivamente no final século

XIX e início do século XX, nos Estados Unidos. Foi na literatura educacional americana desta época que o termo

“currículo” começou a ser designado como um campo especializado de estudos.

Para Silva (2004), a emergência do currículo como campo de estudo está diretamente relacionada a diversos

fatores, dentre os quais: a formação de corpo de especialistas sobre o currículo e a elaboração de um número

expressivo de estudos que se configuraram como teorias do currículo; a formação de disciplinas e

departamentos universitários; a institucionalização de setores especializados sobre currículo na burocracia

educacional do estado e o surgimento de revistas especializadas.

A origem do campo do currículo não ocorre por acaso nos Estados Unidos. Seu surgimento está relacionado às

demandas socioeconômicas e políticas da sociedade capitalista e à institucionalização da educação de massas,

marcante da sociedade estadunidense do início do século XX, e às condições a ela associadas.

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Estão entre essas condições: a formação de uma burocracia estatal encarregada dos negócios ligados à educação;

o estabelecimento da educação como um objeto próprio de estudo científico; a extensão da educação

escolarizada em níveis cada vez mais altos a segmentos cada vez maiores da população; as preocupações com a

manutenção de uma identidade nacional, como resultado das sucessivas ondas de imigração; o processo de

crescente industrialização e urbanização (SILVA, 2004, p. 22).

John Dewey é um dos precursores de uma utilização do termo currículo na literatura americana. Em seu livro

The child and the curriculum, escrito em 1902, com uma abordagem nitidamente inspirada nos ideários da

democracia liberal, Dewey defende a ideia de que os interesses e experiências das crianças e jovens deveriam ser

considerados no planejamento curricular, como elementos centrais do processo de ensino-aprendizagem.

Sua preocupação é a de que a escola, entendida como espaço de vivência e prática de princípios democráticos,

formasse sujeitos capazes de exercer um papel ativo na sociedade. Essas ideias progressistas de Dewey estavam

em dissonância com o discurso predominante da época, no qual a escola era vista, prioritariamente, como o local

no qual as novas gerações seriam preparadas para o mercado de trabalho. Talvez por essa razão o pensamento

de Dewey não tenha exercido tanta influência nos discursos pedagógicos americanos da época e na formação do

campo do currículo.

• The Curriculum

Para muitos autores, o livro The Curriculum, escrito por Bobbit em 1918, é considerado um marco no

estabelecimento do currículo como campo especializado de estudos. Nesse livro, o autor busca uma

aproximação dos objetivos educacionais ao modelo do mercado, da indústria. Dessa forma, o autor

defende a definição de metas (objetivos), métodos e formas de mensuração de habilidades, concebendo a

escola como uma instituição na qual se dá a preparação para o mundo do trabalho. Uma proposta

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claramente pautada em pressupostos da economia e permeada pela ideia de eficiência, que tem como

inspiração os princípios da administração formulados por Frederick Taylor.

• O ideário de Bobbit

O ideário de Bobbit, predominante na educação estadunidense no século XX, conferiu ao currículo um

estatuto mecânico, técnico. A concepção técnica de currículo se consolidou e se concretizou através dos

estudos de Ralph lyler (1949), nos quais associava a organização e desenvolvimento do currículo à busca

de respostas para quatro questões básicas: currículo; ensino; instrução e avaliação. As experiências da

Psicologia Experimental e da Psicologia Behaviorista, cujos principais representantes foram,

respectivamente, Thomdike e Skinner, também contribuíram para dar um caráter de cientificidade ao

controle e à mensuração da aprendizagem, através de padrões de comportamentos associados aos

objetivos.

• A concepção técnica de currículo

Assim, a concepção técnica de currículo de Bobbit ganha mais corpo e sua proposta dá à educação uma

dimensão científica, torna "palpável" sua intenção de preparar para a atividade ocupacional adulta.

Como menciona Silva (2004, p. 24):

Tido o que era preciso fazer era mapear as habilidades necessárias para as diversas ocupações. Com um

mapa preciso dessas habilidades, era possível, então, organizar um currículo que permitisse sua

aprendizagem. A tarefa do especialista em currículo consistia, pois, em fazer o levantamento dessas

habilidades, desenvolver currículos que permitissem que essas habilidades fossem desenvolvidas e,

finalmente, planejar e elaborar instrumentos de medição que possibilitassem dizer com precisão se elas

foram aprendidas (SILVA, 2004, p. 24).

• Os discursos clássicos de currículo

As abordagens de Bobbit e de lyler, principais representantes das teorias tradicionais de currículo,

embora se diferenciem da abordagem democrática de Dewey, têm em comum uma intenção de romper

com os discursos clássicos de currículo, que foram dominantes até o final do século XIX, seja por

considerá-los inúteis para uma educação voltada para o mundo do trabalho, seja por fazerem uma crítica

ao seu distanciamento dos reais interesses e experiências dos alunos. As teorias tradicionais, que

imprimiram ao currículo um caráter eminentemente técnico, dominaram o cenário escolar e científico

durante grande parte do século XX, tendo grande repercussão e influência nas concepções de educação,

não só nos Estados Unidos, mas em diversos lugares do mundo.

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Somente na segunda metade do século XX, com o surgimento e consolidação da Sociologia como campo de saber

e da abordagem sociológica e crítica do currículo, as teorias tradicionais de currículo começam a ser

questionadas e surgem novas teorias para explicar e definir o currículo. A partir deste novo olhar, originam-se

novas concepções de currículo, as teorias críticas e pós-críticas de currículo, que aprofundaremos na próxima

aula. Vimos, até aqui, que nas teorias tradicionais, o currículo é visto por uma lente reducionista, hierárquica,

estruturalista e asséptica, na qual o fazer escolar se desvincula do contexto, se particulariza, se fragmenta. O

currículo - concebido como inocente, neutro, desinteressado fica reduzido à didática, aos processos de ensino-

aprendizagem, aos objetivos, metodologias e técnicas de ensino, às disciplinas. Seus teóricos não olham para o

contexto, para as relações entre conhecimento, sociedade e poder, não se interessam em fazer uma crítica ao

modelo educacional que privilegia os saberes dominantes, que atua na preservação e reprodução do status quo,

perpetuando as desigualdades sociais. Nas teorias críticas, há um deslocamento do olhar, que antes era focado

nos métodos e técnicas de ensino-aprendizagem, para as relações entre currículo, cultura e sociedade,

permeadas pela ideologia e pelo poder. Um olhar político e sociológico, no qual o fazer pedagógico assume uma

nova perspectiva, mais ampla, contextuai, na qual o currículo e os atos de currículo assumem uma dimensão

política, na medida em que são concebidos como centrais nos processos de exclusão social e de reprodução das

desigualdades e injustiças sociais das sociedades capitalistas que ocorrem na instituição escolar.

Nas teorias pós-críticas, o olhar se desloca para as relações entre o currículo e a formação de identidades e

subjetividades. O multiculturalismo está no centro das atenções dessas teorias. O interesse dessas teorias é

analisar como, através do currículo, são abordadas, forjadas, produzidas, perpetuadas ou problematizadas as

diferenças, sejam elas culturais, étnicas, raciais, de gênero, ou de qualquer tipo, e refletir sobre o papel do

currículo na constituição das identidades. Nessas teorias, também encontraremos pensamentos que questionam

a própria lógica disciplinar e os pressupostos científicos - como razão, verdade, teoria - que estão presentes no

conceito iluminista de currículo.

Conforme vimos no início desta aula, o olhar do pesquisador se direciona para um ou outro fragmento, um ou

outro "traço", de acordo com o que é privilegiado. Esses focos definem os enfoques teóricos e configuram formas

diferentes de ver, analisar e construir a realidade. Assim tem sido com o campo do currículo. Como ressalta

Macedo (2007", p.19), é necessário que os educadores saibam "[...] distinguir o campo e o objeto de estudo do

currículo como processos históricos, como processos de interesse formativo e ao mesmo tempo de

empoderamento político [...]".

As diferentes teorias que configuram diferentes "imagens" do currículo são formas particulares de entendê-lo e

concebê-lo. Conhecer essa pluralidade e multiplicidade é fundamental para os educadores, uma vez que eles

serão os "artesãos do currículo". A tomada de consciência do papel de cada uma dessas teorias na prática

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educativa é fundamental na formação docente para que os educadores possam utilizá-las reflexivamente como

referência na sua atividade profissional e possam atribuir à prática educativa sentidos coerentes com os sujeitos

que pretendem formar.

O que vem na próxima aula


Na próxima aula, você vai estudar:
• As distinções entre as teorias críticas e não críticas e suas implicações para a prática educativa;
• as contribuições das teorias críticas para a superação de concepções reducionistas e hierárquicas de
currículo;
• os contrastes, as convergências e possíveis interseções entre as teorias críticas e pós-críticas.

CONCLUSÃO
Nesta aula, você:
• Compreendeu que há diferentes formas de conceber a ciência e os conhecimentos científicos,
percebendo que a abordagem positivista difere da abordagem pós-estruturalista, pois a primeira entende
a teoria como uma descrição imparcial e objetiva dos fatos e da realidade, enquanto a segunda concebe a
teoria como uma produção, uma criação da realidade;
• aprendeu que os conceitos de campo e de campo científico, na abordagem sociológica de Bourdieu, se
constituem em espaços de luta, permeados pela disputa de poder e prestígio, que se relaciona com as
lutas simbólicas e concretas entre as classes sociais;
• analisou que os discursos sobre o currículo já estavam presentes na Grécia antiga e se manifestaram nos
discursos pedagógicos e em diferentes áreas do conhecimento, ao longo dos diferentes períodos
históricos, até o final do XIV, quando os estudos mais sistemáticos sobre o currículo, nos EUA, deram
origem ao campo de estudos do currículo e às teorias tradicionais de currículo, nas quais o enfoque foi
predominantemente técnico;
• refletiu sobre as diferentes nuances que as teorias do currículo foram assumindo, percebendo que as
teorias críticas e pós-críticas, constituídas a partir das contribuições da Sociologia, na segunda metade do
século XX, questionam os paradigmas das teorias tradicionais e direcionam os estudos para as relações
entre o currículo, o conhecimento, a cultura e a sociedade, tendo como ponto central a questão do poder;
• entendeu a importância de conhecer a pluralidade e multiplicidade da produção de discursos científicos
e não científicos sobre o currículo para a formação dos educadores como elementos fundamentais o
exercício consciente e comprometido da atividade docente.

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Referências
ALVES, R. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras. São Paulo: Brasiliense, 1981. ARAÚJO, F.M.de B.;

ALVES, E.M.; CRUZ, M.P. Algumas reflexões em torno dos conceitos de campo e de habitus na obra de Pierre

Bourdieu. Revista Perspectivas da Ciência e Tecnologia. v.1, n.1, jan-jun 2009.

BOURDIEU, P. O campo científico. In: Pierre Bourdieu: Sociologia. Coleção Grandes Cientistas, São Paulo: Ática,

1983. MACEDO, R. S. Currículo: Campo, conceito e pesquisa. Petrópolis: Vozes, 2007.

MOREIRA, A. E B.; SILVA, T. T. (Orgs.). Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 1994.

SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica,

2004

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