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A teoria em pesquisa:

o lugar e a importância
do referencial teórico na produção
em educação
Ester Buffa
Ufscar/PPGE-Uninove
São Paulo – SP [Brasil]
ester@power.ufscar.br

Este texto que é transcrição de minha fala no II Encontro de Pesquisa Discente, realizado, em 2005,
na Uninove, focaliza a importância do referencial teórico-metodológico na realização de pesquisas
educacionais. Iniciando pela distinção entre opinião e conhecimento, procura mostrar a necessida-
de de construção do objeto de investigação, as diretrizes teóricas gerais, as categorias de análise, os
procedimentos e as fontes de investigação. Estes pontos são abordados a partir de experiências de
pesquisa, sobretudo de instituições escolares.
Palavras-chave: Conhecimento. Pesquisa. Referencial teórico.

Cadernos de Pós-Graduação, São Paulo, v. 4, Educação, p. 33-38, 2005. 33


1 Introdução respeitadas por seu conhecimento e postura.
No entanto, a ciência é outra coisa: um con-
Gostaria de agradecer o convite para falar ceito, por exemplo, o de círculo, de triângulo
a respeito de uma questão que considero bas- ou de classe social, numa determinada teoria,
tante espinhosa e que sempre me preocupou. tem um só significado. O conceito não tem a
Muito do que direi, já foi abordado por meus riqueza de uma palavra poética, mas, em com-
colegas. Certamente, direi de um outro jeito, pensação, é rigoroso. Assim, a distinção entre
mas vocês verão que, no fundo, são variações conhecimento e opinião é fundamental para se
em torno de um mesmo tema. A primeira coi- entender o que é a pesquisa científica: é a pro-
sa que gostaria de abordar é o próprio conceito dução de um conhecimento a respeito de um
de pesquisa. É muito comum, alunos do ensi- objeto, conhecimento que deve ser rigoroso e
no fundamental e médio dizerem que o pro- que independa de quem o enunciou.
fessor mandou fazer uma pesquisa, como, por A construção do objeto de pesquisa – sua
exemplo, dizer quais os países que compõem delimitação no tempo e no espaço – é funda-
a América do Sul e suas respectivas capitais. mental. Para isso, é imprescindível começar
Eles procurarão tais informações em livros, por realizar um levantamento sobre o conhe-
em atlas, na internet. Pode-se afirmar, no sen- cimento produzido a respeito do objeto que se
tido do senso comum, que se trata de uma pes- pretende investigar. Esse levantamento, além
quisa, mas é uma pesquisa no sentido de uma de fornecer informações a respeito do que já se
busca, de uma procura por um conhecimento produziu sobre o tema, ainda indica aquilo que
que eu posso não ter, mas que já está produzi- precisa ser investigado. Nesta etapa do traba-
do, sedimentado. lho, penso que não há como fugir da história,
No caso da pós-graduação, quando se diz mesmo porque tentar resolver um problema
fazer uma pesquisa, o que se quer é produzir é verificar o que os homens fizeram até hoje
um conhecimento que ainda não existe. Esta para resolvê-lo. Se o objetivo é inventar uma
produção de conhecimento tem algumas ca- vacina contra a Aids, o que se precisa fazer, em
racterísticas que é preciso entender para não primeiro lugar, é verificar o que já foi feito, o
fazer uma coisa pensando que está fazendo que já foi tentado, o que deu certo, o que deu
outra. As palavras são polissêmicas, isto é, em nada. Por isso mesmo, não se pode che-
podem significar várias coisas, tais como as gar para uma pessoa qualquer e pedir-lhe que
palavras força, matéria, estrutura que, em di- apresente um objeto de pesquisa em física, se
ferentes ciências, significam coisas diferentes. ela não entende nada do assunto. Então, para
O conhecimento que se quer obter por meio construir um objeto de investigação, é neces-
da pesquisa é o científico, que é racional con- sário saber quais os conhecimentos existentes
ceitual, e difere da opinião, que remete sempre e o que ainda falta conhecer.
ao enunciador. O conhecimento conceitual é Na verdade, com isso, tentamos encontrar
autolegitimado, isto é, independe de quem o um nicho para nossas pesquisas. É certo que o
enunciou. As opiniões são muito importantes tema que nos atrai vem da nossa própria ex-
na nossa vida diária, sobretudo as de pessoas periência, daquilo que estudamos, das coisas
que conhecem o assunto, têm formação, são que observamos, mas o importante é que pos-

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samos perceber qual é a situação real daquele deixar claras as diretrizes gerais do método
estudo, daquele tema na atualidade. Isso não que orienta a pesquisa, as categorias de aná-
significa que tenhamos de estudar tudo. Ao lise, os procedimentos e as fontes utilizadas.
contrário, é preciso circunscrever, delimitar o Para tornar tudo isso menos abstrato, gostaria
objeto. Nesse processo, já estamos elaborando de dar alguns exemplos de como temos reali-
o que se pode chamar, num sentido amplo, de zado nossas investigações no âmbito da his-
referencial teórico-metodológico. Hoje, já não tória da educação brasileira, particularmente
se aceita mais um dos preceitos propostos pelo da história e da filosofia das instituições es-
positivismo, o de que os dados falam por si. colares. Antes, porém, é preciso dizer alguma
Sabemos que não, que os dados não falam por palavras sobre o próprio desenvolvimento dos
si mesmos, eles falam desde que os interrogue- estudos históricos da educação, pelo menos
mos e, para fazê-lo, é necessário estar de pos- nos últimos 40 anos, para melhor situar nos-
se de algumas ferramentas que, em no nosso sas preocupações.
caso, são conceituais. Nos anos 1970, quando começou a pós-
Como a dissertação de mestrado é o pri- graduação no Brasil, estruturada em termos de
meiro exercício de fôlego do estudante em sua mestrado e doutorado (eu sou dessa geração), e
vida escolar e é diferente dos “trabalhos” que, mesmo nos anos 1980, os estudos e pesquisas
até então, elaborou, é preciso aprender como em educação, diferentemente do período ante-
se faz isso. Uma boa pista é verificar como rior, caracterizavam-se por uma preocupação
outros já fizeram o que se pretende realizar. metodológica que era a de estudar as relações
O mestrando já passou daquela fase de ler entre educação e sociedade, considerando-se
um texto apenas para conhecer as informa- a sociedade nos seus aspectos econômicos,
ções que ele contém, os conceitos que o au- políticos e sociais. Eram privilegiadas, então,
tor utiliza. Agora, é preciso perceber não só visões gerais, paradigmáticas, panorâmicas da
a casa pronta, mas também os andaimes da educação e da sociedade. Tentava-se compre-
construção, ou seja, tem de estar atento para ender as características fundamentais de uma
perceber como o autor realizou sua pesquisa, sociedade capitalista e, no caso da sociedade
de onde partiu, que passos deu, quais ferra- brasileira, capitalista periférica, o papel que aí
mentas usou. Esse é um excelente exercício era destinado à educação. Foi a época em que
para quem está começando a ser “aprendiz de se estudaram as chamadas teorias reproduti-
feiticeiro”. É muito comum que mestrandos, vistas que diferem entre si, mas que entendem
ao terminarem a dissertação, digam: “agora é que a escola, numa sociedade capitalista, re-
que seria bom começar”. Isso se deve ao fato produz as relações sociais dominantes. Havia
de terem adquirido conhecimento do assunto, também teorias que enfatizavam essa relação
que lhes permite, com muito mais clareza, sa- mostrando, porém, que ela não acontecia de
ber as questões que ainda estão descobertas e forma mecânica e unilateral. Se vocês lerem
como investigá-las. uma dissertação ou tese dos anos 1970, 1980,
Com relação ao referencial teórico-meto- será comum encontrar uma primeira parte em
dológico, de um modo muito simples, pode-se que o autor mostrava o que era uma sociedade
dizer que o autor da dissertação ou tese deve capitalista, as classes sociais fundamentais, o

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papel do estado, os conceitos de sociedade po- conceito de fonte foi ampliado, passando a in-
lítica e sociedade civil, para depois, numa se- cluir não apenas a legislação e o pensamento
gunda parte, tratar das questões educacionais. educacional de grandes educadores como se
Às vezes, acontecia, e estou falando das me- fazia outrora, mas, principalmente, cadernos
lhores teses, que as duas partes ficavam justa- de alunos, livros didáticos, impressos escola-
postas, e o referencial teórico pouco iluminava res, fotografias, plantas etc. Em suma, hoje há
os aspectos da educação que se queria investi- uma profusão de temas, de objetos de investi-
gar, ou seja, não conseguíamos usar o referen- gação, de fontes, de procedimentos metodoló-
cial teórico para compreender os dados empí- gicos. Os mais céticos afirmam que todas essas
ricos que tínhamos coletado. Para superar esse pesquisas têm revelado aspectos singulares de
impasse, muitos de nós foram (re)estudar os nossa escolarização, mas pouco têm contribu-
clássicos da filosofia: quem sabe, assim, com ído para uma compreensão mais adequada da
fundamentos mais sólidos, conseguiríamos totalidade da educação brasileira.
colocar o “guizo no gato”, ou seja, adotar um Paolo Nosella e eu também enveredamos
referencial teórico que fosse adequado para por essa linha de investigação mais pontual so-
compreender os dados empíricos. É preciso bre a escola, utilizando novas metodologias e
lembrar que a empiria não é todo o real, e sim referenciais, porém sem desprezar as conquis-
uma parte (importante) dele. tas anteriores. Assim, dedicamos bom tempo
A partir dos anos 1990, por uma série de a investigar a história e a filosofia de consa-
razões, entre as quais destaco o desencanto gradas instituições escolares da cidade de São
com o socialismo real, a influência da Escola Carlos, tais como a Escola Normal, a Escola
dos Annales, da nova história, da sociologia Industrial e a Escola de Engenharia de São
francesa, da nova sociologia inglesa, os estudos Carlos/USP. Para tanto, coletamos muitos da-
mais panorâmicos foram sendo deixados de dos empíricos sobre essas escolas, mas, dada
lado e os historiadores da educação preferiram nossa própria formação, não nos satisfizemos
privilegiar temas mais pontuais, circunscritos, apenas com uma história narrativa sobre um
singulares da escola que passou a ser encarada objeto particular, com o estudo do particular
de vários pontos de vista: da cultura escolar por si mesmo.
considerada também na sua materialidade, Assim, a questão do referencial teórico-
das disciplinas escolares, das práticas educa- metodológico aparecia com toda a força. Para o
tivas, das questões de gênero, de infância, dos estudo dessas instituições escolares, estabele-
ritos e cerimônias, das instituições escolares, cemos algumas diretrizes gerais que orientam
da arquitetura, da organização do espaço es- nossas investigações e que balizam as relações
colar etc. O aspecto positivo dessa pluralidade entre trabalho e educação, entre o estudo do
temática e epistemológica diz respeito à am- singular e do geral e referem-se, ainda, ao nos-
pliação das linhas de investigação, à diversifi- so intento de escrever uma história da escola
cação teórico-metodológica e à utilização das não apenas narrativa, mas também interpreta-
mais variadas fontes de pesquisa. Para reali- tiva. Como entender o enorme crescimento da
zar essas pesquisas, categorias, procedimen- demanda por educação infantil, se não enxer-
tos e fontes sofreram uma transformação. O garmos as transformações do mundo do tra-

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balho em nossa sociedade que levou mulheres, Em seguida, é preciso “arrumar” a profu-
também as da classe média, a trabalhar fora de são dos dados empíricos; para isso, o estabele-
casa, restringindo a família ao plano conjugal, cimento de categorias de análise é fundamen-
e a conseqüente necessidade de uma institui- tal. De fato, categorias aglutinam informações
ção que se ocupasse das crianças pequenas? e permitem uma análise mais apropriada.
Quando apenas as mães mais pobres trabalha- Inspirados no livro de André Petitat, intitu-
vam, foram criadas as creches. Depois, surgiu lado Produção da escola, produção da sociedade,
a pré-escola e, mais recentemente, fala-se em temos utilizado as categorias de espaço, tem-
educação da criança de zero a seis anos. Tudo po, saberes escolares, professores e alunos e a
isso reflete as transformações do trabalho e da administração do poder na escola. Essas ca-
sociedade. tegorias têm-nos permitido dar conta da pro-
Da mesma forma, tínhamos de enfren- fusão dos dados empíricos de realidades tão
tar o debate entre visões paradigmáticas e as complexas como as escolas.
descrições do singular. Nestes tempos difíceis, Finalmente, umas duas ou três palavras
sobre as fontes de investigação. É claro que
marcados pelo individualismo, pelo subjetivis-
essas fontes a serem utilizadas dependem do
mo, pela perda de confiança na razão humana
referencial, das categorias estabelecidas. Para
como capaz de compreender e, menos ainda,
a concepção positivista de história, a fonte, por
de transformar a realidade, é possível entender
excelência, é o documento escrito: a história se
por que muitos intelectuais desistem de uma
faz com documentos; onde não há documentos
compreensão mais global da sociedade e pri-
não há história. Hoje, com a proposta de novos
vilegiem aspectos particulares. Sintoma disso
objetos de investigação, novos enfoques, novas
parece ser o uso excessivo, nos trabalhos aca-
metodologias, o conceito de fonte foi ampliado.
dêmicos, da expressão olhar: o meu olhar, o
Assim, em nossas investigações, além da legis-
seu olhar, o que significa que todos os olhares
lação e das idéias pedagógicas predominantes,
são possíveis, são bons, são equivalentes, são
temos utilizado, principalmente, currículos
pertinentes. É preciso lembrar que, nesse caso, dos cursos e programas das disciplinas, livro
a palavra olhar significa, na verdade, opinião, de ouro, de matrícula, impressos, fotografias,
a que já me referi no início. Quando estuda- entrevistas que nos permitam recompor o cli-
mos a Escola Normal de São Carlos, pudemos ma da escola. Nas pesquisas sobre arquitetura
verificar que ela apresenta certas característi- e educação, realizadas em parceria com o ar-
cas específicas que a diferem das outras, mas quiteto e professor Gelson de Almeida Pinto,
constatamos que há muitos traços comuns a ao procedermos à leitura arquitetônica e peda-
outras escolas normais do período. Criadas gógica dos edifícios escolares, utilizamos como
para formar professores, essas escolas privile- fontes não só a legislação e documentos, mas
giavam outros objetivos de acordo com a clien- também jornais, cadernos, fotografias, plan-
tela que recebiam: as moças bem-nascidas, por tas, croquis, perspectivas, maquetes etc., en-
exemplo, adquiriam, no curso, o ornamento contradas nas próprias escolas ou nos órgãos
cultural do dote matrimonial e não, necessa- responsáveis pela guarda e conservação desse
riamente, seriam professoras. material. Muito obrigada pela atenção.

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The theory in researching: the place Referência
and the importance of the theoretical
referential in educational production É o único autor e obra citados no texto.
Confirmar informação em azul.
Beginning by the distinction between the PETITAT, André. Produção da escola, produção da
opinion and the knowledge this paper is a sociedade. Porto alegre: Artes Médicas, 1994. ???
transcription of mine speech by the time of
the II Encontro de Pesquisa Discente per-
formed in the year of 2005 at the Centro
Universitário Nove de Julho (Uninove) and
it focuses the importance of the theoretical-
methodological referential for accomplishing
educational researches. Therein it tries to
show the need of constructing the aim for
the investigation, the general theoretical li-
nes, the category analysis, the proceedings
and the source of investigation. These points
are broached from practical researches main-
ly from scholastics institutions.
Key words: Knowledge. Research.
Theoretical referential.

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