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Mariângela Toaldo2
Nilda Jacks3
1. Introdução
Este texto trata de um tema que pode parecer, à primeira vista, repisado, uma vez
que os conceitos e noções aqui abordados têm ampla circulação em pesquisas,
publicações e debates da área. Entretanto, a razão de propô-lo é corolário de uma
experiência vinculada a uma pesquisa empírica em desenvolvimento, que visa um
estudo comparativo nacional abordando a convergência midiática e as práticas juvenis
nas redes sociais4.
Ao adotarmos o enfoque do consumo cultural na perspectiva de Néstor García
Canclini, compreendendo, portanto, que o consumo midiático estava subentendido, o
debate foi deflagrado pelos membros de algumas equipes que compõem a rede de
pesquisadores5, construída para esta empreitada. Para algumas equipes6 a proposta
estava clara, para outras havia dúvidas sobre a adequação do conceito de consumo
cultural para pensar a relação com a mídia, outras preferiam a diferenciação entre
consumo cultural e midiático e algumas outras pontuaram as semelhanças entre
consumo cultural e recepção.
Diante de tamanha diversidade de compreensões (e incompreensões), buscamos
contemplar o debate e ajustamos o enfoque no consumo midiático, alterando inclusive
o título original do projeto7, fato que abriu uma nova frente de imprecisões. Isso porque
a bibliografia consultada, em geral, toma a expressão como uma noção sem acuidade
conceitual, nomeando vários processos: exposição aos meios, apropriação e/ou
1
Apresentado no GT Recepção: processos de interpretação, uso e consumo midiáticos. XXII Encontro
Anual da Compós, na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013.
Agradecemos as contribuições dos relatores Roseli Fígaro e Rafael Grohmann/ ECA-USP.
2
Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
3
Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul.
4
Jovem e Consumo Midiático em Tempo de Convergência/ CNPq 2011-2015, do qual esse livro é um dos
resultados.
5
Rede Brasil Conectado, em processo de formalização junto ao CNPq.
6
A Rede é composta de 27 equipes correspondendo as 26 capitais e Brasília. Além dessas, alguns estados
têm equipes para desenvolver pesquisa em cidades do interior.
7
Estava nomeado como um estudo de consumo cultural.
interpretação de conteúdos, tratamento de todas estas instâncias como uma questão
única ou em combinações que alternam tais práticas ou ainda outras.
Defendemos a necessidade de dar maior precisão à definição de consumo
cultural quando se trata da mídia, uma vez que ela tem suas particularidades, é um
campo no sentido “bourdiano”8, diferente, por exemplo, de outros campos como o da
arte e do mundo dos espetáculos, embora sejam cada vez mais intensamente permeados
por ela. A esse respeito já contamos com uma discussão, adiantada por Néstor García
Canclini (1993 e 2005), que aponta para a consideração de todos os âmbitos a que ele se
referiu, facetas parceladas pelas teorias do consumo, que serão pontuadas mais adiante.
Cabe, no entanto, considerar que mesmo assim sua proposta deixa lacunas em relação às
articulações entre tais teorias, o que não será o objetivo deste texto discutir.
Canclini identifica seis teorias que abarcam os diferentes aspectos implicados na
complexidade que envolve o fenômeno e que conduzem a um dimensionamento mais
integral de sua ocorrência. Nesse contexto, tratamos da definição de consumo midiático,
com a intenção de esclarecer o que lhe diz respeito e o caracteriza enquanto atividade.
Por fim, oferecemos uma possível distinção entre pesquisa de consumo midiático e de
recepção, cuja terminologia já vem sendo questionada diante do processo de
convergência midiática que embaralha os polos do produtor e receptor.
Outra questão que trazemos aqui é a pertinência de trabalhar articuladamente o
consumo midiático e a recepção como uma estratégia metodológica para chegar
primeiro ao conjunto de meios de comunicação que configura a relação da audiência
estudada com a mídia9. Nessa articulação, é possível contextualizar o processo de
recepção a partir do consumo midiático do receptor, o qual pertence a uma audiência10
ao se expor a determinado veículo de comunicação ou a um conjunto deles. Ao
processo social de configuração de audiências, em contraposição ao de midiatização,
Orozco (2011) propõe a noção de audienciação.
8
Jorge Gonzalez (1995) chama de campo da edição.
9
Essa entendida como a ambiência comunicacional massiva, por isto usada por nós sempre no singular,
pois se refere aos meios de comunicação em seu conjunto. Esse é o sentido em inglês – media – que é o
plural de medium. Ao usarmos no plural – mídias - como acontece majoritariamente em nossa área,
resulta em um duplo plural.
10
Não nos deteremos no debate sobre essa noção que já foi tratada em JACKS, ESCOSTEGUY (2005).
2. Consumo cultural11
Muitos autores têm discutido esta temática nas últimas décadas (Featherstone,
1995; Rocha, 1995; Barbosa, 2006; Baccega (org), 2008, entre outros), que para alguns,
entre eles Boaventura Souza Santos (1995), é uma das chaves para entender a sociedade
contemporânea, mas nenhum no cenário brasileiro da pesquisa em comunicação teve
repercussão maior do que Garcia Canclini, possivelmente porque apenas ele esboçou
um modelo para o enfrentamento da questão. Este esboço é potencialmente rico para
tornar-se um modelo concreto, do qual se esperaria que mostrasse os principais
elementos estruturais e processuais do fenômeno e as relações entre estes elementos.
Todo modelo tem uma função heurística na medida em que providencia uma maneira
simplificada de explicação mesmo de ideias complexas (McQuail, Windhal, 1993).
Em sua proposta, Canclini elenca seis teorias que considera mais significativas
sobre o debate em torno do consumo, assinalando suas contribuições e limitações para a
compreensão do tema. Ele o fez a partir da crítica a duas noções que considera centrais
para o estudo do consumo: a concepção naturalista de necessidades e a instrumentalista
dos bens. O autor assinala que não acredita na noção de necessidades naturais do ser
humano, pois elas são construídas social e culturalmente de maneira que certos objetos
são incorporados de tal forma às rotinas dos indivíduos, que se tornam naturalmente
necessários a eles e adquirem importância com o passar do tempo. Da mesma forma,
Canclini se refere à ideia de que os bens materiais (ou, pelo menos, alguns deles) são
produzidos a partir de uma proposta instrumentalista a fim de suprir as “necessidades”
mais básicas dos indivíduos – transporte, alimentação, vestuário, por exemplo.
Entretanto, até mesmo no que se refere a esses tipos de funções, o autor considera que
os produtos são pensados e produzidos para suprir as demandas de mercado e os desejos
construídos nos consumidores (em especial o de diferenciação) (CANCLINI, 1993).
Nas teorias que toma em consideração, o autor destaca vários fatores que aponta
como importantes para a compreensão mais exata da noção de consumo, extrapolando
as ideias de necessidades e instrumentalidade dos bens. As seis teorias, que em algumas
versões designa como modelos (CANCLINI, 1993, 2005), são resumidas por ele com as
seguintes assertivas: “o consumo como o lugar de reprodução da força de trabalho e de
expansão de capital”, “como o lugar onde as classes e os grupos competem pela
11
Canclini (2005), rebatendo as críticas, reconhece que todo o consumo é cultural, mas mesmo assim
enfatiza o cultural devido à autonomia alcançada pelos campos artísticos e intelectuais na modernidade,
livrando-se do controle do estado e da igreja.
apropriação do produto social”, “como lugar de diferenciação social e distinção
simbólica entre os grupos”, “como sistema de integração e comunicação”, “como
cenário de objetivação dos desejos”, “como processo ritual” (CANCLINI, 1993).
A partir de tais teorias/modelos, que apontam para aspectos parciais do
fenômeno, o autor propõe que o consumo cultural deve ser compreendido como “o
conjunto de processos de apropriação e usos de produtos nos quais o valor simbólico
prevalece sobre os valores de uso e de troca, ou onde ao menos estes últimos se
configuram subordinados à dimensão simbólica” (CANCLINI, 1993, p. 34).
Isto significa que a definição proposta por Canclini não desconsidera o consumo
como “parte do ciclo de produção e circulação dos bens”, mas essa visão vai além das
noções de “compulsão consumista” (grifo do autor), de gostos e atitudes, e de
necessidades, muitas vezes, associadas às justificativas sobre o consumo. Por outro
lado, o autor reconhece que sua noção de consumo é desafiadora, pois a lógica
econômica valoriza em primeiro lugar a produção, depois a circulação e, só então, o
consumo dos bens, como o momento terminal do ciclo. Na sua visão, porém, o consumo
é a dimensão com mais condições de dar conta de aspectos não econômicos como
recepção, apropriação, audiências e usos, justamente porque o valor simbólico se
sobrepõe aos de uso e troca, especialmente quando se trata de consumo cultural.
Para Canclini, isso se dá porque o consumo não se limita à troca de mercadorias,
tornando-se parte de interações socioculturais mais complexas, produzidas em torno de
bens e objetos simbólicos que produzem significados, representam diferenciação,
compartilhamento, comunicam escolhas, posicionamentos da situação dos indivíduos no
mundo, satisfazem desejos. “Servem para enviar e receber mensagens” (CANCLINI,
2005, p. 70).
O autor inclui nessa definição desde os bens que possuem maior autonomia
como “o conhecimento universitário, as artes que circulam em museus, salas de
concerto e teatros” (CANCLINI, 2005, p. 34), até os produtos condicionados pela
pressão econômica neles envolvida – televisão, rádio, cinema, por exemplo – e aqueles
provenientes e dependentes de um sistema religioso – artesanatos, danças indígenas etc.
Esses bens culturais produzem desdobramentos heterogêneos, influenciados pelas
formações culturais e interesses de cada época, mas todos, de uma forma ou de outra,
funcionam para a reprodução cultural e social, para a construção de processos rituais,
servindo à integração e à comunicação, promovendo a diferenciação social, auxiliando
na objetivação de desejos, estimulando a reprodução da força de trabalho e a
apropriação do produto social (CANCLINI, 1993).
No conjunto destas dimensões identificadas por Canclini reside um dos
mecanismos que contribui para a construção de um universo simbólico inteligível, que
(re) afirme o que é social e cultural nas sociedades ocidentais e, ao mesmo tempo, pode
ser o mapa para desvendá-lo, embora neste caso seja necessária uma discussão
conceitual que articule estas dimensões apenas indicadas separadamente por ele. Esta
articulação é o que chamou de teoria sociocultural do consumo, a qual ainda não foi
suficientemente desenvolvida pelo autor.
Uma tentativa foi realizada por Rene Goellner em sua tese de doutorado (2007),
na qual explorou uma situação empírica para refletir sobre a dimensão teórica proposta
por Canclini, com a intenção de articular as seis teorias que resultaria na teoria
sociocultural do consumo, vislumbrada pelo autor. Tanto como aqui, ele assume que
quando Canclini se refere aos meios de comunicação, admitindo que estão mais
condicionados às pressões econômicas, ainda assim reconhece que eles têm o valor
simbólico sobrepujando o econômico. É a isto que estamos nos referindo,
especificamente de consumo midiático, quando nomeamos a relação das pessoas com a
mídia, tema que tratamos a seguir.
3. Consumo midiático
A contextualização feita por Canclini sobre consumo cultural permite pensar
sobre o consumo midiático como uma vertente dele, pois o autor deixa esse
entendimento muito claro quando se refere aos meios de comunicação, nomeando-os e
fazendo uma diferenciação a respeito da maior implicação econômica na produção
cultural midiática em relação às demais ofertas culturais.
Na tentativa de aproximar-nos desse tema, percebemos duas tendências em
grande parte dos estudos e autores consultados: análises sobre consumo e mídia e sobre
consumo midiático propriamente dito. Os primeiros seguem uma linha que enfoca o
papel da mídia no consumo e os últimos tratam do consumo do que é produzido pela
mídia, ou seja, seus produtos. Entretanto, poucos são os casos encontrados sobre uma
definição mais clara do que está sendo entendido como consumo midiático, qual é sua
especificidade, que relação tem com o consumo cultural e com a recepção midiática12.
No primeiro caso – consumo e mídia –, o sentido contemplado a esse respeito é
o de que “a mídia é o instrumento para nos persuadir a aumentar o nível e a intensidade
de nossas atividades de consumo” (SILVERSTONE, 2002, p. 156). Nessa perspectiva, a
mídia serve ao consumo, medeia-o, facilita-o. Apesar de o termo suscitar a noção de
mediação, de consumo estimulado pela mídia, o foco não é posto nos conteúdos
produzidos por ela, o que envolve a expressão consumo midiático, foco desse texto e,
sim, como dinamizadora do consumo de mercadorias produzidas pela indústria. Seu
principal agente seria a publicidade, mas não só.
No caso do consumo midiático, trata-se do consumo do que a mídia oferece: nos
grandes meios – televisão, rádio, jornal, revista, internet (sites, blogs, celulares, tablets),
outdoors, painéis – e nos produtos/conteúdos oferecidos por esses meios – novelas,
filmes, notícias, informações, entretenimento, moda, espetáculos, publicidade, entre
outros. Neste contexto, a oferta da mídia inclui também o próprio estímulo ao consumo,
que se dá tanto através da oferta de bens (comércio eletrônico, publicidade, o dito
merchandising, entre outros), quanto no que se referem às tendências, comportamentos,
novidades, identidades, fantasias, estímulos apresentados em seus conteúdos.
Consumir a mídia significa “o processo da prática de ver televisão enquanto
atividade” (MORLEY, 1996, p. 194), por exemplo, a maneira como se apropriam dela
(o que consomem – como a utilizam) e o contexto em que se envolvem com ela
(lugares, maneiras, rotinas). É claro, o autor cita televisão, mas poderia se referir ao
jornal, ao rádio, à internet entre tantos outros meios. Essa dimensão não enfatiza, porém,
a análise de respostas dos receptores aos conteúdos de um programa específico, nem as
consequências desse envolvimento com tal programa ou gênero (as influências dos
conteúdos midiáticos na vida dos indivíduos), o que era realizado pelos estudos dos
efeitos e, atualmente, em alguma medida, pelos estudos de recepção que buscam os
sentidos produzidos pelos receptores para os conteúdos midiáticos.
12
Em Meios e Audiências 2 (JACKS et alli, no prelo) foi verificado que nas teses e dissertações
apresentadas nos PPGs em Comunicação brasileiros entre 2000 e 2009, nas palavras-chave dos 209
trabalhos empíricos analisados, 28 citam o termo consumo, 2 citam consumo cultural, 91 usam a palavra
recepção e apenas 7 usam consumo e recepção associados. Os demais não fazem nenhuma referência a
esses conceitos.
As indagações a respeito do consumo midiático centram-se em torno de dois
eixos: como o contexto afeta a experiência da mídia? Como a experiência da mídia afeta
as percepções que o próprio indivíduo tem de si e do mundo? (SILVERSTONE, 2002).
Diferentemente do que pretendem os estudos de recepção. Estes, em geral, estão mais
preocupados com a relação estabelecida pelos receptores com determinados gêneros e
programas, na busca pela interpretação e produção de sentido para os conteúdos
emitidos, embora possam incluir as práticas midiáticas, para dar suporte às
interpretações, ou seja, a análise do consumo midiático do sujeito em estudo.
Para estabelecer essas diferenças seguimos a concepção de Klaus Jensen e Karl
Rosengren (1997, p. 343), que consideram a abordagem da recepção a que desenvolve:
estudo dos públicos e dos conteúdos (uma análise dos conteúdos por parte do público)
a partir de dados ao mesmo tempo qualitativos e empíricos. Ao mesmo tempo em que
produzem dados empíricos sobre o público através de observações intensivas e de
enquetes, as análises de recepção recorrem a métodos qualitativos quando devem
comparar aqueles dados que se referem aos públicos com aqueles que se referem aos
conteúdos. Seu objetivo imediato é apreender o processo de recepção antes de ver
como afeta os usos e os efeitos dos conteúdos midiáticos.
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