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Resumo: Nas últimas décadas, os estudos de recepção vêm se dedicando ao entendimento dos
processos de produção de sentido e significação das audiências. Analisar a comunicação pela
instância da recepção, no entanto, esbarra em uma série de desafios, a começar por uma escolha
metodológica que dê conta deste imbricado processo que é o consumo de informação – em
especial o do consumo midiático. Nessa perspectiva desafiadora, este artigo propõe a utilização
do conceito de Contratos Comunicacionais, do francês Patrick Charaudeau, como opção
teórico-metodológica. Convergente ás premissas dos Estudos Culturais Latino Americanos e
similar aos pressupostos da Análise de Discurso, esta perspectiva analítica parte das formas de
linguagem e construção do discurso, com ênfase ao contexto da produção. A partir da
desconstrução do texto, a metodologia dos Contratos Comunicacionais permite não só
categorizar um produto midiático e seu público, com base nos processos de transformação e
transação da informação, como analisar as categorias isoladamente em contextos diferenciados.
Introdução
1
Artigo faz parte da coletânea “Natureza, Consumo e Sociedade”, no prelo pela Editora UFGO, organizada pelos
professores Dr. Hertz Wendell (PPGCOM-UFPR) e Dra. Sônia Mansano (PPGADM-UEL).
investigação interdisciplinar. Jacks e Escosteguy (2005), a partir de uma delimitação feita
anteriormente por Jacks (1996), destacam cinco tipos de abordagens teórico-metodológicas,
todas obedecendo um caráter mais qualitativo que quantitativo, construídas a partir do conceito
de hegemonia de Gramsci e dos Estudos Culturais britânicos, são elas: consumo cultural,
desenvolvida pro García Canclini, frentes culturais por Jorge González, recepção ativa
coordenada por Fuenzalida e Hermosila, enfoque do uso social dos meios por Jesús Martín
Barbero e o enfoque integral da audiência, proposta que é de sua autoria.
Para García Canclini (2005, p. 58-59), o ato de consumir envolve processos culturais
mais amplos, por meio dos quais se dá sentido e ordem à vida social e se constroem as
identidades. Consumir seria um “investimento afetivo” e não apenas um ato monetário, os bens
seriam “acessórios rituais”, dando sentido ao “fluxo simbólico”. Assim, “consumir é tornar
mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora". Nessa linha de raciocínio, o autor propõe
seis teorias que não devem ser pensadas isoladamente para se entender as práticas de consumo.
A primeira diz respeito à “reprodução da força de trabalho e da expansão do capital”, a segunda
é entendida como “lugar onde as classes e os grupos competem pela apropriação do produto
social”, a terceira enquanto “lugar de diferenciação social e distinção simbólica entre grupos”,
a quarta como “sistema de integração e comunicação”, a quinta como “cenário de objetivação
dos desejos” e a última como “processo ritual” (GARCÍA CANCLINI, 1992).
Nesse sentido, quando os indivíduos selecionam os bens e se apropriam deles, definem
o que consideram publicamente valioso, em uma mistura de representações e significações que
vão desde a apropriação do produto social e a distinção simbólica até a saciedade de desejos e
rituais por meio de um sistema integrado de comunicação que não necessariamente obedece a
uma lógica tradicional.
Cabe pensar que as novas práticas de consumo midiático acontecem dentro de uma
dimensão complexa e significativa do cotidiano. Nelas, cultura e identidade são conceitos
interligados. Assim, as transformações culturais que presenciamos nos últimos anos têm afetado
diretamente as identidades. Além disso, temos presenciado o aparecimento de novas formas de
identificação, agora mais distantes das concepções clássicas. Hall (2006) vai dizer que esse
debate não pode ser travado se deixarmos de lado as consequências trazidas pela modernidade:
de um lado, o processo de globalização e o surgimento e a difusão das novas tecnologias que
têm transformado estruturalmente as relações sociais; do outro, os processos de migração (livre
ou forçada) que põem em cena o debate sobre o mundo pós-colonial.
Desse modo, não apenas é levado em consideração o meio, mas a produção de conteúdos
e narrativas que possam se desdobrar em diversas plataformas e que, consequentemente,
modificam as formas pelos quais as pessoas se relacionam com o mundo por meio do consumo.
Pensar o consumo midiático na contemporaneidade diz respeito, como já dito, em
compreender as estratégias de produção e recepção dos produtos de mídia. Nesse contexto, os
estudos de recepção partem de uma leitura comparativa dos discursos dos meios de
comunicação em uma perspectiva mais qualitativa, considerando o contexto social, político e
cultural na produção de sentido e significação, ou seja, os produtos midiáticos não são meros
meios de transmissão de informação, mas revelam significados culturais criados num
determinado período histórico e num determinado contexto social, econômico, cultural e
político. Esse viés analítico para os estudos de recepção já foi discutido por Fiske (1990, p.
156), quando o autor propôs uma linha de investigação denominada etnografia da audiência,
desenvolvida para conhecer, na prática, as conexões entre leitura e sociedade. A partir de então,
um conjunto de pesquisas entre elas, HOBSON, 1982; RADWAY, 1984; MORLEY, 1986;
GRAY, 1987 e 1992; DROTNER, 1998; TUFTE, 2000, demonstram a importância do contexto
da recepção, o cenário doméstico e cotidiano, na construção do sentido das mensagens.
Sendo assim, um dos principais objetivos das indústrias culturais está na capacidade de
criarem estratégias que fascinem a audiência e as capacitem a descobrir sua identidade nos
textos. Segundo Newcomb e Alley (1993), o produtor representa a mediação da ação, ou seja,
deve ser capaz de reunir diferentes componentes da experiência de mídia, estabelecendo uma
negociação com a audiência. Isso se dá na escolha do gênero, no discurso, no formato, nos
personagens, etc.
Martín Barbero, assim como Hall, também defende que o poder não está totalmente ao
lado do receptor, pois depende daquilo que se lê, não podendo o decodificador desligar-se dos
processos de produção, da economia de produção e do modo como os programas se organizam.
“Boa parte da recepção está de alguma forma, não programada, mas condicionada, organizada,
tocada, orientada pela produção, tanto em termos econômicos como em termos estéticos,
narrativos, semióticos”. (MARTÍN BARBERO, 1997, 56).
O raciocínio do autor francês segue uma lógica similar à das mediações, de Martín-
Barbero. Para ele, os aspectos que integram o processo comunicativo também não são fixos,
variam de acordo, por exemplo, com o meio de comunicação utilizado, e isso ocorre mesmo
quando o papel desse meio não é o de uma mera ferramenta de transferência da informação,
mas de um ambiente em que a troca acontece, influenciando-a, conforme propõem os estudos
de recepção.
A maneira como a instância midiática organiza a informação que será transmitida diz
muito a respeito da forma como o receptor é enxergado pelo produtor. A linguagem utilizada,
a caracterização das figuras que aparecerão em tela, a gestualidade e expressão corporal, entre
outros, auxiliam na construção da imagem pressuposta e na maioria das vezes estereotipada do
receptor. A partir das construções linguageiras2 da instância da produção, é possível discernir a
que público ele imagina que chegará com sua mensagem, em um processo complexo.
Por um lado, porque não se trata somente de transmitir saber, mas de se confrontar com
os acontecimentos que se produzem no mundo ou inteirar-se de sua existência, e de
construir, a esse respeito, um certo saber – e isso, num tratamento que depende da
maneira pela qual se constroem representações sobre o público; por outro lado, porque
o público não coincide totalmente com tais representações, não se deixando atrair nem
seduzir com facilidade, seguindo seus próprios movimentos de ideias, não sendo
apreendido facilmente (CHARAUDEAU, 2013, p. 72)
Ou seja, a produção não atua sozinha, especialmente quando se trata do contrato de
comunicação midiática. A enunciação contida num contrato de comunicação se dá com base na
junção de dados externos ao processo – correspondentes ao tipo de enunciação –, aos dados
internos, que se relacionam a espaços de comportamento linguageiros, enumerados pelo autor
conforme a tabela a seguir:
Fonte: Elaborado a partir das categorias sugeridas pelo autor (CHARAUDEAU, 2013, p. 68)
2
O termo “linguageiras” e “linguageiros”, frequentemente usado por Patrick Charaudeau em sua obra
Discurso das Mídias, é sinônimo de "referente à linguagem".
entre outros. Este conjunto de sujeitos formariam sua condição de identidade. Seu objetivo – o
de informar ao público – é a condição de finalidade, enquanto a maneira como se organiza em
torno das notícias, sua linha editorial e as estruturas linguageiras utilizadas compõem sua
condição de propósito. Por fim, o fato de ser exibido pela televisão, em um determinado canal,
que fornece ou não suporte para exibição em outras ferramentas, seria sua condição de
dispositivo.
Esta estrutura de produção abarca o que Charaudeau trata como dados externos, que, no
processo comunicativo, complementam a ação dos dados internos, mais diretamente ligados ao
discurso. Tomando o mesmo exemplo, na organização da informação de um telejornal constrói-
se a figura do sujeito que detém a palavra a partir da maneira como este se comporta e se
posiciona, tendo influência seu histórico em atuações jornalísticas anteriores (espaço de
locução). Quando assume tal postura, esta figura que produz um discurso – que pode ser o
apresentador, por exemplo – se utiliza de recursos como a fala, a linguagem corporal e a própria
seleção e organização de notícias para construir sua identidade como uma autoridade em
determinado tópico e também para construir uma imagem de seu interlocutor.
A maneira como se direciona ao público alvo também indica com quem ele pretende
conversar – esta construção configura o espaço de relação. Se o telejornal é apresentado à
maneira tradicional, se os apresentadores se posicionam sentados ou em pé, se utilizam
linguagem formal ou coloquial, se oferecem claramente sua opinião ou se restringem aos fatos
de maneira mais objetiva, se tratam de assuntos gerais de uma localidade ou se são dedicados a
um único segmento – tudo isso compõe o espaço de tematização. É unindo estes dados da
situação de troca aos dados do discurso que se constrói o “quadro de referência” (Ibidem, p. 67)
de uma ação comunicativa.
1) Com quem fala: as ações do emissor auxiliam na compreensão de quem é este sujeito,
qual é seu status social e cultural, quais suas preferências de linguagem e imagem. A partir
desta categoria, é possível compreender a quem o meio de comunicação ou um produto
midiático, por exemplo, se direcionam ao desenrolar sua mensagem. Essa construção pode ser
realizada de maneira direta – quando o emissor se refere ao seu público nomeando-o
diretamente. Neste caso, pode estar diretamente ligada às categorias de nomeação e qualificação
do receptor quando, por exemplo, se autodenomina como “O melhor jornal do mundo
esportivo” ou “a sua revista de agronegócio”. Em situações como os exemplos fictícios citados,
a própria mídia expressa que quer falar com pessoas que se interessam por esportes ou pelo
universo do agronegócio. Se, ao longo de um determinado recorte, estes mesmos produtos, na
voz do apresentador ou do repórter, ou do editor e do locutor, entre outros, descrevem o receptor
em sua fala, a construção desta categoria se torna mais clara. Um apresentador de programa de
variedades semanal que vai ao ar do período da manhã e que comece sua atração dizendo: “A
senhora, que está agora pensando no que vai fazer de almoço...”, contribui de maneira mais
expressiva com a construção do perfil do receptor pretendo. Por outro lado, essa contribuição
pode ser feita de maneira mais indireta, quando o produto vai construindo este perfil de maneira
mais discreta – com a seleção de reportagens, de assuntos, de fontes, de figurino, de formato,
de trilha sonora, por exemplo.
Por meio da fala, das ações, das características da mensagem e do discurso, é possível
identificar cada um dos itens sugeridos, que compõem a negociação entre público e meio de
comunicação – o contrato assinado. E, ainda, perceber dentro de um objeto quais elementos que
se acomodam em cada um destes momentos e isolá-los do processo comunicativo. Isolados, é
possível descrevê-los e interpretá-los de acordo com o contexto – midiático ou, ainda, social –
em que estão inseridos. A interpretação do contrato de consumo midiático a partir destas
categorias permite que se compreenda o consumo a partir da produção e do receptor idealizado
por ela.
Considerações finais
Nesse sentido, parte da categorização de um produto midiático e seu público com base
nos processos de transformação e transação da informação, que podem contribuir para a
elaboração das seguintes categorias de transformação: 1) Identificação do emissor; 2)
Qualificação do emissor; 3) Narração e explicação das ações; 4) Justificativas pelas ações do
emissor. E de transação: 1) Com quem fala; 2) O que se quer que escute; 3) Que relação se quer
estabelecer. A partir do discurso – de fala, gestual, etc – presente na mensagem de um produto
midiático, estas categorias podem ser isoladas para, então, serem analisadas individualmente e
também dentro de seu contexto de produção e exibição.
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