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O QUE AINDA HÁ DE RECEPÇÃO NA

RECEPÇÃO? NOTAS SOBRE UM CAMPO


CARREGADO DE FUTURO
IS THERE ANY RECEPTION LEFT IN RECEPTION?
NOTES ON A FIELD LADEN WITH TOMORROW
QUE RESTA DE RECEPCIÓN EN LA RECEPCIÓN?
NOTAS ACERCA DE UN CAMPO CARGADO DE FUTURO

Laura Hastenpflug Wottrich


Publicitária, docente no Departamento de Comunicação da Faculdade de
16 Biblioteconomia e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Doutora pelo PPGCOM/UFRGS.

E-mail: laura.wottrich@ufrgs.br
RESUMO
O texto apresenta uma proposta de configuração dos estudos de recepção, em diálogo com
a tradição internacional, latino-americana e brasileira. Considera os estudos de recepção um
tipo de pesquisa empírica realizado no marco dos estudos culturais de audiência, cujo objeto
teórico central é a produção de sentido dos sujeitos, analisada a partir da comparação entre
suas interpretações e os discursos midiáticos, com atenção aos desdobramentos desse processo
no sistema social. Em que pesem as amplas transformações sociotécnicas atuais, considera essa
perspectiva de estudos, à moda de Navarro (2003), como um campo carregado de futuro.
PALAVRAS-CHAVE: ESTUDOS CULTURAIS, ESTUDOS DE RECEPÇÃO, PRODUÇÃO DE SENTIDO,
AMÉRICA LATINA.

ABSTRACT
The text presents a proposal for a configuration of reception studies in dialogue with the
international, Latin-American, and Brazilian traditions. It takes reception studies as a type
of empirical research developed within the framework of cultural studies’ audience research,
whose main theoretical object is to produce meaning and subjects, drawing its analysis on
the comparison between media discourses and their interpretations, paying heed to the
unfolding of such process in the social system. Regardless of the current broad sociotechnical
transformations, it considers this perspective of studies, in the fashion of Navarro (2003), as a
17
field loaded with future.
KEYWORDS: CULTURAL STUDIES, RECEPTION STUDIES, MEANING-MAKING, LATIN AMERICA.

RESUMEN
El texto presenta una propuesta de configuración de los estudios de recepción, en diálogo con la
tradición internacional, latinoamericana y brasileña. Considera los estudios de recepción como
un tipo de investigación empírica realizado en el marco de los estudios culturales de audiéncia,
cuyo objeto teórico central es la producción de sentido de los sujetos, analisada a partir de la
comparación entre sus interpretaciones y los discursos midiáticos, con atención a los desarrollos
de este proceso en el sistema social. Mientras las amplias transformaciones sociotecnicas atuales,
considera tal perspectiva de estudios, según Navarro (2003), como un campo cargado de futuro.
PALABRAS CLAVE: ESTÚDIOS CULTURALES, ESTÚDIOS DE RECEPCÍON, PRODUCCIÓN DE SENTIDO,
AMERICA LATINA.
1. Introdução por muitos autores para batizar como “estudos
Há mais de 20 anos, Guillermo Orozco Gó- de recepção” um conjunto tão heterogêneo de
mez postulava que “[...] el receptor no nace, sino investigações. Qual seria, então, uma denomina-
que se hace” (1994, p. 111). Sua afirmação, nessa ção possível? Quais são seus marcos epistemo-
conjuntura histórica, significava a defesa de uma lógicos e teóricos definidores? O que apresento
perspectiva de investigação que não toma o recep- a seguir perpassa essas questões, na tentativa de
tor como dado, mas entende que ele se forja con- contribuir para o desenvolvimento teórico dessa
tinuamente através de suas práticas situadas em perspectiva de estudos.
determinado contexto sociocultural. Práticas não
são atomizadas, individualizadas, mas tampouco 2. O desenvolvimento dos estudos
sucumbem às estruturas. Orozco, assim como de recepção
outros autores caros aos estudos de recepção na No desenvolvimento dos estudos de recepção
América Latina, defendia que a chave explicativa na América Latina, as preocupações fundantes
da relação das pessoas com a mídia estaria, en- das reflexões eram sobretudo políticas, o que
tão, nas diversas mediações que agregam sentido progressivamente foi se transmutando em in-
à experiência dos sujeitos com os meios. Daí que quietações teóricas sobre as abordagens usadas
podemos contextualizar a conhecida inflexão teó- nas pesquisas, para atualmente se converter em
rica que, de certa forma, sintetiza o pensamento uma discussão epistemológica sobre o próprio
de uma das principais referências da área, Jesus estatuto dos estudos (Wottrich, 2017). Não é de
Martín-Barbero, sobre os receptores. Ao invés de hoje, contudo, que se questiona a porosidade ex-
pensar como os meios atingem as pessoas, inda- plicativa do termo “recepção”, tomado ora como
gar sobre as relações que as pessoas estabelecem uma área que abriga toda a sorte de pesquisas de-
com os meios. Considerando a primeira afirma- dicadas aos receptores, ora como o processo no
ção de Orozco, poderíamos questionar então: qual atuam os sujeitos em relação à mídia. Esse
18 Como se constituem os receptores, a partir das problema, identificado há mais de uma década
relações que eles estabelecem com os meios? (Jacks, Escosteguy, 2005), prejudica o desenvol-
Essa pergunta, embora tenha sido muito de- vimento dos estudos, pois “[...] tudo ou quase
batida nos cenários acadêmicos latino-america- tudo que gire em torno dos receptores passa a
no e brasileiro desde então, não é de fácil reso- chamar-se de estudos de recepção, independente
lução. Isso porque esse “receptor que se faz” é do viés teórico implicado” (p. 110).
também construído pelas múltiplas narrativas As incertezas teóricas foram indubitavelmente
acadêmicas que surgiram para compreendê-lo. alargadas com as transformações sociotécnicas
São narrativas que, embora possuam ampla in- mais recentes. O desenvolvimento das tecnolo-
terlocução, de modo algum se fundem em uma gias de informação e comunicação — micropro-
única grande teoria. cessadores, computadores, redes de conexão a
A compreensão disso é plausível quando lem- internet — impulsiona transformações nas rela-
bramos o caráter contextual que marca os estu- ções historicamente forjadas entre sujeitos e mí-
dos de recepção latino-americanos: diferentes dia, ao mesmo tempo em que cria lastro para a
conjunturas sociais, culturais e econômicas sus- emergência de novas práticas.
citaram diversas elaborações teóricas, muitas ve- Nesse sentido, o processo de convergência mi-
zes relacionadas e, algumas vezes, bem distantes. diática (Jenkins, 2009) estimula, dentre outros
Daí se depreende o desconforto já demonstrado fenômenos, a liberação do polo emissor (Lemos,
2003), em que os sujeitos disputam o lugar de fala ção como as conhecemos devido à profusão dos
e a construção de narrativas com os meios. Isso dispositivos tecnológicos. Os dispositivos poten-
implica reordenamentos nas formas de relação cializam o fenômeno da interatividade e da con-
social, de expressar opinião e de dispor informa- vergência, estimulando a configuração de com-
ções em sociedade. Trata-se, pois, de uma nova petências culturais específicas, que são forjadas
forma de relação entre processos simbólicos e a partir das trocas comunicativas em sociedade.
modos de produção/distribuição de produtos e Ser receptor hoje relaciona-se a reordenamentos
serviços: “[...] um novo modo de produzir, con- culturais, sociais, econômicos. Por isso, seu es-
fusamente associado a um novo modo de comu- tatuto não se resume a uma situação específica e
nicar, transforma o conhecimento em uma força abarca diversos modos de estar: espectador, re-
produtiva direta” (Martín-Barbero, 2006, p. 54). ceptor ativo, receptor crítico, produtor e também
É, sobretudo, um cenário de trânsito, como enunciador.
bem pontua Orozco Gómez (2011, 2012, 2014),
marcado por mudanças substantivas nos modos 3. Situando os estudos de recepção no marco
de ação dos receptores. O autor dá pistas para co- dos estudos culturais de audiência
nhecer esse cenário, quando indica que o ponto Considero que os estudos de audiência podem
de inflexão das transformações não está em um ser genericamente categorizados a partir de qua-
esmaecimento das práticas dos receptores, mas tro tradições teóricas com distintos vieses episte-
em uma mudança qualitativa dos papéis exerci- mológicos: estudos dos efeitos, análise literária,
dos por eles. usos e gratificações e estudos culturais. No esco-
Os aparatos podem diminuir de tamanho, os po destes últimos, são alicerçados os estudos cul-
dispositivos podem tornar-se móveis, portáteis, turais de audiência, que situo em três vertentes:
mas as pessoas seguem interatuando com a in- consumo cultural, consumo midiático e recep-
formação e com o mundo através da mediação ção: (Figura pag.19)
das telas. É isso que as constitui como receptores. A proposição parte de Jensen e Rosengren 19
Se as telas se modificam, convergem, são também (1990), dada sua influência em solo brasilei-
forjadas novas formas de ação dos sujeitos fren- ro, como nos escritos de Lopes (1999) e Gomes
te a elas. Assim, é fundamental esclarecer que (2004), popularizada por Escosteguy e Jacks
“Sim, há mudanças, mas nem sempre ocorrem (2005) e retomada anos mais tarde por autores
mudanças” (Orozco Gómez, 2014, p. 82, tradu- diversos (Padilla et al., 2011; Cataño, 2012; Toal-
ção da autora), ou seja, novas práticas caminham do, Jacks, 2013; Schmitz, 2013; Sifuentes, 2014;
de braços dados com práticas conhecidas, em Jacks, Orozco Gómez; 2015).
movimentos de coexistência e de superposição: Jensen e Rosengren apresentaram cinco gran-
“[...] Modos de estar como audiência vão acu- des tradições de investigação que estudam a arti-
mulando-se e dependendo de vários elementos, culação entre os meios de comunicação de massa
manifestam-se de uma ou de outra maneira. Ou e seus públicos: (1) efeitos, (2) usos e gratifica-
seja, ser espectador, inclusive na internet, é per- ções, (3) análise literária, (4) estudos culturais e
feitamente possível como maneira de interatuar (5) análise de recepção. Para caracterizá-las, os
com esse dispositivo (Orozco Gómez, 2014, p. autores recorrem às suas matrizes históricas e
103, tradução da autora). peculiaridades baseadas em suas concepções so-
A partir disso, vê-se quão estreita torna-se a ló- bre a mensagem, sobre o sistema social (contex-
gica que decreta a falência das práticas de recep- to) e sobre os sujeitos. A partir disso, empreen-
Figura 1 – Proposta de configuração dos culturais e sociais mais amplos. Os receptores,
estudos de audiência por sua vez, seriam, então, agentes de produção
de sentido, cuja prática é somente compreendi-
da à luz do sistema sociocultural historicamente
constituído. Metodologicamente, isso leva a uma
análise que coteja o conteúdo das mensagens com
a interpretação dos sujeitos. Ao mesmo tempo
em que geram conhecimento empírico sobre os
públicos através de observações intensivas e de
questionários, “[...] a análise de recepção recorre
a métodos qualitativos quando devem comparar
aqueles dados que se referem aos públicos com
aqueles que se referem aos conteúdos” (Jensen,
Rosengren, 1990, p. 343).
É certo que o desenvolvimento dos estudos
de recepção brasileiros difere do apontado pe-
los autores no contexto nórdico. Aqui, embora
a mescla entre ciências sociais e análise literária
seja uma influência presente, a pesquisa brasilei-
ra travou amplo diálogo com a tradição latino-
-americana, cuja fonte epistemológica reside,
Fonte: Autora (2017) especialmente nas ciências sociais, com contri-
buições da economia política, filosofia e também
dem o necessário esforço em matizar as diferen- da psicologia (Cataño, 2012).
20 ças e similaridades entre uma e outra tradição, É através desse diálogo com o continente, cons-
discutindo suas implicações teóricas e também titutivo da tradição latino-americana, que realizo
metodológicas. outra proposta, de que a análise de recepção seja
A caracterização central das tradições se dá considerada uma vertente dos estudos culturais,
pelas disciplinas que as originaram. As ciências embora pesquisadores da área recusem o abrigo
sociais seriam o berço das tradições dos usos e dessa tradição (Escosteguy, 2001). Seguindo as
gratificações e dos efeitos, enquanto os estudos pistas de Ronsini (2004) e Gomes (2004), consi-
literários teriam originado os estudos culturais e dero a recepção um tipo de pesquisa qualitativa
a análise literária. A análise da recepção, por sua empírica realizada no marco desses estudos. Isso
vez, seria, então, uma mescla dessas duas disci- porque há mais confluências do que afluências
plinas, buscando superar suas deficiências, sen- entre as duas tradições.
do qualificada como “talvez, o desenvolvimento Embora essas diferenciações concretas mati-
mais recente dos estudos de audiência” (Jensen, zem as singularidades das tradições, em solo la-
Rosengren, 1990, p. 342), porque integraria o en- tino-americano, os estudos de recepção foram a
foque dado à mensagem, ao contexto e ao públi- face mais visível do desenvolvimento dos estudos
co, díspar nas outras perspectivas. culturais, imbuídos das inquietações epistemoló-
Para a recepção, as mensagens midiáticas não gicas que, à época, alavancavam o campo. As in-
se encerrariam em si, mas remeteriam a códigos tersecções entre as estruturas sociais e as práticas
culturais, caras à tradição dos estudos culturais, sintetiza o campo latino-americano dos estudos
transfiguraram-se, na América Latina, no debate de recepção de outra forma, em três principais
sobre a experiência do popular frente aos meios perspectivas: consumo cultural, multimediações
de comunicação massivos, tendo como pano de e uso social dos meios.
fundo a problemática do poder e da hegemonia, Os sistemas de informação ainda são parcos
tão pungente para o campo nos anos 80 (Escoste- para compreender a influência dessas verten-
guy, 2001), em movimentos de oposição às aná- tes na produção acadêmica da América Latina,
lises frankfurtianas, funcionalistas e semióticas. evidência que por si poderia elucidar alguns ca-
Embora o teor político das investigações tenha minhos adotados. Alguns indícios podem ser
arrefecido no decorrer das décadas, o pendor la- extraídos da obra “Análisis de Recepción em
tino-americano para a investigação das práticas América Latina: un recuento histórico con pers-
dos sujeitos se fortaleceu, originando, inclusive, pectivas al futuro” (Jacks et al., 2011), dedicada a
propostas teórico-metodológicas que hoje pos- tecer um panorama sobre o campo entre os anos
sibilitam reposicionar os estudos de recepção e 1990 e 2010.
discutir outras vertentes de estudo que dialogam Martín-Barbero é o autor mais citado, sintoma
com eles. da ressonância de suas reflexões no continente.
No debate teórico latino-americano, ganhou Em segundo lugar, estão as citações a Orozco
expressão a perspectiva que identificou cinco Gómez. García Canclini e Fuenzalida possuem
principais vertentes das pesquisas de audiência tímida expressão, e a perspectiva das frentes cul-
(Jacks, Escosteguy, 2005): consumo cultural, turais, relacionada a Jorge González, é mencio-
impulsionado pela proposição de Néstor García nada brevemente. A proposição das mediações,
Canclini; frentes culturais, modelo atrelado ao pelas mãos de Barbero ou de Orozco, é a que pa-
mexicano Jorge González; recepção ativa, gesta- rece ter mais se espraiado no campo acadêmico
da no âmbito do Ceneca (Centro de Indagación latino-americano. De fato, a teoria barberiana,
y Expresión Cultural y Artística); uso social dos em especial, é considerada “como o principal 21
meios, capitaneado por Martín-Barbero; e o mo- influxo que destravou um questionamento das
delo das multimediações, atrelado mais direta- teorias dominantes na pesquisa latino-america-
mente a Guillermo Orozco Gómez. As autoras na em comunicação” (Jacks, Escosteguy, 2005, p.
comentam que as perspectivas do consumo cul- 72), sendo central para o avanço das teorizações
tural e das frentes culturais não seriam propria- a partir dos anos 80. O enfoque de Orozco, por
mente vertentes dos estudos de recepção, visto sua vez, consolidou-se como modelo metodoló-
que se filiariam a uma tradição sociológica cujo gico para estudo das mediações na região.
objetivo reside em captar “uma determinada rea- No contexto brasileiro, em 2013, Jacks e Toaldo
lidade sobre o consumo cultural mais do que o propõem um novo recorte aos estudos empíricos
exame de práticas de recepção propriamente de audiência situados no marco dos estudos cul-
midiática” (p. 107). Ainda sobre isso, ponderam turais, cujo cerne reside no escopo de abrangên-
que o aporte barberiano não poderia ser tomado cia das análises. Apresentam três principais pers-
como uma teoria da recepção, mas, sim, como pectivas de estudo: consumo cultural, consumo
perspectiva que permite pensar o processo da midiático e recepção. O consumo cultural segue
comunicação como um todo, em consonância centralmente a proposta de Canclini (1996), em
às próprias reflexões de Martín-Barbero sobre que o consumo é compreendido a partir de seu
sua proposição. Mais atualmente, Cataño (2012) valor simbólico, superando uma visão instru-
mental da posse de bens. Em 2005, Jacks e Es- por um estudo de consumo midiático ou de con-
costeguy apontaram essa perspectiva como um sumo cultural. Por outra via, é possível realizar
dos desdobramentos da pesquisa de audiência na um estudo de consumo midiático que, em algum
América Latina, já com a ponderação de que a momento, se atenha à relação dos sujeitos com
proposta extrapolava a perspectiva da pesquisa determinados conteúdos midiáticos, combinan-
de recepção. O mesmo avaliam Toaldo e Jacks ao do-se a um estudo de recepção.
não vincularem o estudo de consumo cultural à Matizadas as constituições teóricas inerentes a
análise da mídia. cada proposta de classificação, abaixo são apro-
Voltado a isso, estaria o consumo midiático, fundadas as diferenças entre as três perspectivas
considerado uma vertente do consumo cultural, de estudo das audiências no marco dos estudos
com dois vieses centrais de análise: (1) a mídia culturais: (quadro pag.23)
como estimuladora do consumo dos bens ofer- Nos estudos de consumo cultural, a centralida-
tados pela indústria; e (2) o consumo de mídia de reside, sobretudo, nos sujeitos, na análise de
em si (dos diversos meios de comunicação), em seus modos de fruição em relação aos diversos
que se analisam os modos como esse consumo equipamentos culturais. Já para os estudos de
acontece e o contexto em que acontece. Esse tipo consumo midiático, as audiências e o contexto
de pesquisa não abarcaria, contudo, a análise do possuem igual centralidade, visto que compreen-
conteúdo de algum programa específico, o que dem os sujeitos em seus usos, mas também si-
fica a cargo dos estudos de recepção. Nas pala- tuam sua atividade no contexto em que ocorrem.
vras das autoras, os estudos de consumo midiá- Isso significa considerar a mídia em sua institu-
tico têm “[...] o foco direcionado para a relação cionalidade, enquanto sistema situado e consti-
com os meios e não com as mensagens, para usar tuído em um cenário empírico determinado.
uma imagem simplificada do processo” (Toaldo, Nos estudos de recepção, por sua vez, a cen-
Jacks, 2013, p. 8). tralidade está na relação entre os sujeitos e os
22 Os estudos de recepção, por sua vez, têm se- meios a partir de seus conteúdos: trata-se de uma
melhança à perspectiva da análise da recepção análise que necessariamente coteja a oferta dos
apresentada por Jensen e Rosengren no que tan- conteúdos midiáticos e as interpretações e/ou
ge à comparação entre os discursos midiáticos apropriações dos receptores.
e interpretações dos receptores, reafirmando-se Contudo, importa ressaltar que, se os estudos
como pesquisa qualitativa empírica de investi- de recepção não podem prescindir da dimensão
gação. O que diferencia o que proponho aqui é dos conteúdos, não necessariamente se restrin-
a maior atenção aos processos de produção de gem a ela: a partir do problema de pesquisa em
sentido dos receptores e de seus desdobramentos questão e do aparato teórico-metodológico mo-
no sistema social, entendendo que as práticas de bilizado, pode envolver aspectos na investigação
recepção não se vinculam somente aos gêneros sobre a apropriação dos sentidos das mensagens,
midiáticos, mas se forjam na relação com esse como as diferentes ritualidades que são aí forja-
sistema mais amplo. das e também nas matrizes culturais que atraves-
Uma das potencialidades da proposta está em sam essa relação sujeito/meios.
considerar essas perspectivas analíticas como Empiricamente, a análise do consumo cultu-
complementares. Ou seja, a realização de um es- ral seria focada mais nos diversos equipamentos
tudo de recepção pode por si atender aos objeti- culturais (cinemas, teatros, exposições, festivais);
vos de pesquisa, ou também pode ser antecedida a análise do consumo midiático, nos dispositivos
Quadro 1 - Diferenças entre as vertentes dos estudos culturais de audiência

Vertentes dos Dimensão privilegiada


Objeto Objeto empírico
estudos culturais
teórico Sistema social
de audiência Mensagem Sujeito
(contexto)

Conteúdo das mensagens midiá-


Estudos de Produção ticas (gêneros midiáticos como
Central Central Menos central
recepção de sentido telenovela, publicidade, jornalis-
mo, entretenimento)

Estudos de consu- Dispositivos e aparatos da mídia


Usos Menos central Central Menos central
mo midiático (TV, rádio, celular, computador)

Estudos de consu- Equipamentos culturais (teatro,


Fruição Menos central Central Menos central
mo cultural cinema, exposições)

Fonte: Autora (2017)

e/ou aparatos em que o consumo de mídia se Assim, trata-se do sentido produzido pelos re-
materializa (TV, rádio, celular, computador); e ceptores a partir da relação que estabelecem com
o estudo da recepção, nas mensagens veiculadas as mensagens produzidas pela mídia. Essa pro-
pelos meios e através das múltiplas plataformas dução de sentidos é sempre contextualmente for-
(na forma de anúncios, reportagens, programas jada e matizada pelos modos como os receptores
de TV, seriados, etc.). estão inseridos no mundo.
Explicitar os objetos teóricos dos estudos foi o Os estudos de consumo midiático possuem
empreendimento mais difícil, visto que os limites maior interesse nos usos, entendidos como ope- 23
entre uma e outra perspectiva são muitas vezes rações realizadas a partir do contato com os
tênues, servindo para fins de sistematização. Os meios, “[...] e podem se valer de distintas ope-
estudos de recepção se centram especialmente rações: desde uma apropriação em que há re-
nos processos de produção de sentido, gerados manejo/reelaboração partindo de referências do
a partir do contato com as mensagens da mídia. próprio indivíduo, até imitações de modelos de
Concordo com Schmitz (2015, p. 270) quando comportamento/aparência midiatizados” (Sch-
pondera que a produção de sentido é condição mitz, 2015, p. 271). Dizendo de outro modo, se-
antecedente para quaisquer usos que se realizam ria pensar o que os sujeitos fazem com os meios
na relação com os meios. A autora resgata a afir- de comunicação, mas tomando distância de uma
mação de Martín-Barbero de que perspectiva dos usos e gratificações que se centra
sumariamente no que os indivíduos extraem da
[...] para poder falar do sentido da comuni- relação com os meios. Usos, no modo como co-
cação é preciso falar do sentido que a comuni- locado aqui, são uma lógica forjada pelos sujeitos
cação tem para as pessoas. O sentido é sempre a partir de uma rede de práticas e de relações cul-
a relação de um texto com uma situação, com turais, vinculadas a um contexto político e social
alguns enunciadores em um contexto tempo- (Grimson, Varela 1999).
ral e espacial (Martín-Barbero, 1990, p. 36). Assumo a ideia de fruição em diálogo com a
perspectiva da estética da recepção1, na qual nicativo para que seja bem realizado. Também é
a experiência de relação dos sujeitos com uma uma via para clarear o debate sobre as aproxi-
obra artística não tem como insumo inicial um mações entre perspectivas teóricas e abrangência
processo de interpretação de significados, mas dos estudos.
“A experiência primária de uma obra artística é Sigo a indicação de Lull (1992) sobre a esterili-
alcançada pela ‘compreensão fruidora e na frui- dade de uma “teoria geral das audiências”, imbuí-
ção compreensiva’, ou seja, pela entrada em sin- da em generalizar os sentidos das práticas sociais.
tonia com seu efeito estético” (Gomes, 2009, p. Isso porque a análise da relação dos sujeitos com
3). Desse modo, mais importante do que os pro- os meios sempre será cultural e historicamente
cessos de interpretação é a experiência estética forjada, e por isso relacionada a cada contexto
dos sujeitos com os equipamentos culturais com empírico em sua especificidade. A partir disso,
os quais travam contato. Um estudo de consumo considero que as teorias da recepção, do consumo
cultural centraria suas preocupações em investi- midiático e do consumo cultural são, na verdade,
gar, então, como se dá essa experiência das pes- teorias da cultura, acionadas para compreender as
soas na sua relação com museus, teatros, exposi- relações entre os sujeitos e a mídia em seus distin-
ções e demais ofertas culturais. tos graus de abrangência, situadas em diferentes
É importante ponderar que essas classificações contextos. Desse modo, as perspectivas trazidas
não são sumárias, ou seja, um estudo de recep- por Jacks e Escosteguy (2005) para as pesquisas
ção pode tranquilamente ocupar-se dos usos, de audiência na América Latina (consumo cultu-
investigando como a produção de sentido escoa ral, mediações, multimediações, frentes culturais
para a elaboração de diferentes modos de fazer, e recepção ativa) podem ser acionadas tanto para
de táticas cotidianas (De Certeau, 1998). De ou- um estudo de recepção, quanto para um estudo de
tra forma, um estudo de consumo midiático pode consumo midiático ou cultural. Tudo (ou quase
dar atenção aos processos de produção de sentido tudo) depende do problema que a pesquisa se pro-
24 que antecedem aos usos (Schmitz, 2015). A deli- põe a responder.
mitação acima deve ser entendida menos como Por fim, mas longe de prometer qualquer res-
cânones conceituais e mais a partir de ênfases, de posta definitiva, cabe retornar à pergunta que
preocupações. intitula o texto, sobre o que há de recepção na re-
cepção. Retomando Caletti (1980), Jacks (2015,
4. Considerações finais p. 247) considera que hoje podemos, sim, afir-
As classificações são sempre tentativas de or- mar que “a recepção já não alcança”, mas com
ganizar uma realidade empírica dinâmica, mui- um sentido distinto do postulado pelo autor,
tas vezes à prova de qualquer sistematização. No visto que “[...] o entendimento dos processos e
entanto, considero válido o intento no momen- das práticas comunicativas ganhou ainda maior
to em que clareia a diferenciação entre os tipos complexidade, pois na atualidade os conteúdos
de estudo (de consumo cultural, midiático e de de novas e velhas mídias se tornaram híbridos,
recepção) a partir de sua amplitude de análise. reconfigurando a relação entre as tecnologias, in-
Auxilia, desse modo, a dimensionar o horizon- dústria, mercados, gêneros e públicos”.
te de expectativas que devemos ter em relação a Defendo a potencialidade hermenêutica da
um estudo de recepção, que não necessariamente abordagem da recepção, compreendendo o re-
precisa debruçar-se sobre todo o processo comu- ceptor como o sujeito que produz sentido a par-
1 Para maior detalhamento, consultar Mostaço (2008). tir das relações que estabelece com os produtos
midiáticos, nos mais diferentes contextos, e re- Um cenário que pode ser também enfrentado na
cepção como uma das perspectivas de estudo conjunção com outras perspectivas (do consu-
com competência para investigar esse proces- mo midiático, cultural), como proposto no tex-
so a partir de suas matrizes históricas, sociais e to. Enfim, a recepção, no contexto dos estudos
culturais, em uma análise qualitativa e empírica. culturais de audiência, torna-se uma escolha vi-
A recepção não se limita a uma forma cultural gorosa para enfrentar a complexidade empírica
midiática específica, assim como pode abranger atual. Parafraseando Navarro (2003), uma pers-
uma multiplicidade de papéis dos receptores. pectiva carregada de futuro.

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