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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E

COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM LETRAS


Ensaio desenvolvido por Anelilde Maria de Lima Farias como requisito parcial no
processo avaliativo da disciplina de Epistemologia Linguística sob orientação do
Prof. Antônio Carlos Xavier

O LUGAR DA LINGUÍSTICA NUMA PERSPECTIVA DA CIÊNCIA PÓS-MODERNA

A discussão sobre a legitimidade do fazer científico tem acompanhado a


humanidade há séculos, nas mais diversas áreas do saber, inclusive na Linguística.
Sob essas inquietações, filósofos e historiadores científicos procuraram defender
suas visões categorizando as etapas e processos científicos, bem como, inserindo
suas perspectivas sobre o que, de fato, definiria uma prática ou saber como sendo
científico. Este ensaio se propõe a defender a legitimidade da Linguística enquanto
ciência, buscando identificar em que lugar a Linguística se encontraria hoje, tendo
em vista o deslocamento para visões científicas numa perspectiva pós-moderna.

É inevitável, entretanto, recorrer a alguns dados epistemológicos de uma


perspectiva mais positivista. Para efeito comparativo e de identificação
epistemológica, retomaremos a visão de Bachelard (1996), na sua apresentação de
como se constrói um espírito científico, afirmando que os olhares para a ciência se
modificam, à medida que se modificam as atitudes humanas no mundo. Como o
próprio Bachelard (1996, p. 9) postula, “as visões científicas nunca estão no mesmo
estágio de maturação”, portanto é pertinente reconhecer como se inscreve a
Linguística nessa perspectiva e qual sua contribuição.

Ademais, com a pretensão de olhar para o lugar da Linguística sob o


paradigma de uma ciência pós-moderna, evocaremos os postulados de Boaventura
de Souza Santos, em que será possível dialogar com os conceitos de ‘crises de
paradigmas’, ‘desdogmatização’ e a noção de ‘senso comum’, numa perspectiva de
dupla ruptura epistemológica.

O racionalismo defendido por Bachelard (1996), para quem o fazer científico


precisa estar dissociado de ideologias, de aspectos sociais ou culturais, com a
abstração em estágio de primazia da ciência, leva-nos a perceber uma
compatibilização com os estudos linguísticos suassureanos. Nessa perspectiva, é
possível entrelaçar essas concepções positivistas à corrente estruturalista da
linguística por meio de algumas indicações de Bachelard (1996, p.13) ao afirmar, por
exemplo, que “a abstração é um dever, o dever científico, a posse enfim purificada
do pensamento do mundo!”. E, nos postulados de Saussure, o fenômeno de
abstração da língua, permitiu o afastamento ‘necessário’ para o propósito de sua
investigação.

Evidentemente, a consolidação da Linguística enquanto ciência se deve a


algumas definições propostas por Saussure. O novo paradigma do teórico para os
estudos da língua, então, projetou-se com racionalismo, ainda que na esfera das
ciências sociais. Ao propor algumas dicotomias, fincava, assim, um objeto - a língua-
que poderia ser investigável, sem as afetações do caráter humano da linguagem.
Ilari (2007, p. 57), ao afirmar que “nenhuma outra escola linguística, até Saussure,
tinha afirmado com tanta força a separação entre dimensão individual e a dimensão
social do funcionamento da linguagem”, permite-nos compreender a relevância
dessa dicotomia e toda condução paradigmática para a formulação de um objeto
estável de investigação. E, não se pode negar que foi essa visão que introduziu a
Linguística como a ciência piloto das ciências humanas.

É possível identificar que Saussure estava em busca de um estudo que


permitisse a regularidade ao: entender a língua como um sistema, como um
conjunto de signos; ao defender os estudos sincrônicos em detrimentos dos fatos
diacrônicos; ao explorar os aspectos sintagmáticos, preterindo os aspectos
paradigmáticos da língua; e ao deslocar a fala da língua. Tem-se, nessas
concepções teórico-metodológicas, um condicionamento ao observável proposto
pelo positivismo da ciência moderna. No racionalismo de Bachelard (1996) só a
razão pode permitir a dinamização do conhecimento científico, fato fecundo nas
investigações estruturalistas da língua.

Ainda nessa perspectiva, Santos (1989, p. 22) afirma, por exemplo, que “o
positivismo lógico representa, assim, o apogeu da dogmatização, isto é, uma
concepção de ciência que vê nesta o aparelho privilegiado da representação do
mundo (...)”. Para atender a esse status, a língua foi caracterizada como
homogênea, autônoma, sistemática, colocando-se, reconhecidamente, em um lugar
de legitimidade científica, na medida em que se identificava com o “apogeu da
dogmatização”. Entretanto, foi necessário ir em busca de outras possibilidades nos
estudos linguísticos, considerando a efervescência que subjaz a linguagem humana.

A Linguística viveu – pode-se assim considerar – uma crise epistemológica,


em meados do século XX. Na visão de Santos (1989, p. 18), aproveitando-se de
alguns conceitos de Khun, “as crises de crescimento (...) revelam-se na insatisfação
perante métodos ou conceitos básicos(...)”. Viu-se, portanto, no desenvolvimento
dos estudos linguísticos, que a ausência do sujeito, a separação da ‘fala’ em relação
à ‘língua’, representava, minimamente, um estudo de incompletude sobre os fatos
linguísticos.

Surge, sob a égide de uma ruptura paradigmática, uma imperativa


necessidade de se investigar os fenômenos linguísticos fecundos por meio da fala.
Com a quebra do paradigma formal, surgem diferentes áreas como a
Sociolinguística, a Linguística Textual, a Análise do Discurso e outras tantas áreas
que consideram a língua uma prática social, e que inserem um sujeito investigável.
Sendo assim, acompanhar a evolução dos estudos da linguagem permite-nos
entender que subjazem a essa evolução algumas concepções de Santos (1989) no
reconhecimento de uma ciência pós-moderna, como a “desdogmatização” e a
ressignificação do “senso comum”. Essa concepção é definida por Marcuschi
(2008, p. 38) ao afirmar que “É no quadro da pragmática associada a postulados de
outras áreas que se mostra que a linguagem não é transparente e que as intenções
não são dados empíricos”. Instalam-se, então, caminhos que permitirão os estudos
linguísticos atenderem demandas humanas e sociais.

Não obstante algumas distinções observadas entre Estruturalismo e


Funcionalismo, em que aquela propõe um fazer científico mais positivista e este,
uma linha de “incomensurabilidade”, ou, como defende Santos (1989, p. 18),
“explicando os fenômenos pelas suas consequências”, pretende-se, na verdade,
observar como os estudos linguísticos progrediram por permitirem essa ampliação
epistemológica. Reitera-se, quanto a isso, a afirmativa de Santos (1989) ao defender
que o conhecimento científico se constrói por meio de diferentes práticas, mas não
necessariamente superiores umas às outras. Nesse ponto, já se defende um lugar
de consideração de relevância da língua como sistema, bem como de todas as
possibilidades investigativas a partir dele.
Quando se defende uma progressão da Linguística dentro desse quadro
epistemológico, entende-se um estudo da linguagem que atinge humanisticamente o
sujeito, conforme o paradigma da ciência pós-moderna e, assim, “temos de
perguntar pelo papel de todo conhecimento científico acumulado no enriquecimento
ou no empobrecimento prático de nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou
negativo da ciência para nossa felicidade.” (SANTOS, 2008, p. 18).

A Linguística, portanto, por meio de seus diferentes campos de investigação


se inscreve nessa “missão” de uma ciência a serviço dos utentes da linguagem em
todas as esferas sociais. Nas interações, por exemplo, Gomes de Matos (2002)
credita à linguística “múltiplas missões”, como permitir aos cidadãos uma
comunicação que gere paz. A sociolinguística, por sua vez, permite o fortalecimento
de identidade por meio da linguagem, na consciência defendida por Bagno (2013, p.
43) para quem “Reconhecer a heterogeneidade intrínseca de qualquer língua
humana junto com os mitos, preconceitos, representações e juízos de valor que
incidem sobre ela é um componente básico da educação linguística (...)”, ou seja,
a Linguística atua em práticas educativas, mobilizando comportamentos que
envolvem a linguagem. Vê-se, comparando com a visão de Santos (1989, p. 29) que
a ciência hoje está sob uma orientação das ciências sociais “porque nestas o
discurso científico dá sentido a uma realidade social, ela própria criadora de sentido
e de discurso.”

Ampliando as exemplificações das diferentes atuações da Linguística numa


visão pós-moderna da ciência, é possível evocar, também, os novos estudos
sociocognitivistas da linguagem. Sobre esse campo de estudo, Koch & Cunha-Lima
(2007, p. 255) compreendem “os fenômenos linguísticos em geral, e a linguagem em
particular, como fenômenos capazes de oferecer modelos de interação e da
construção de sentidos cognitivamente plausíveis (...)”. Posto de outra forma, os
estudos sociocognitivos permitem entrar na esfera humana onde todas as
realizações da linguagem acontecem: na cognição (ou na esfera cognitiva, do
pensamento, ou na esfera das elaborações mentais, ou na esfera dos fenômenos
mentais).

Já a Análise do Discurso, por enveredar pelo campo ideológico, não se torna


menos ciência, a despeito de alguns questionamentos sobre isso, pois, como afirma
Possenti (2007, p.357), a AD pode caminhar com todos os paradigmas
anteriormente legitimados, “mas o tratará rompendo com o que a linguística fez em
cada um deles”. Se os estudos sobre o discurso, sobre o sujeito e sua história
estremecem a rigidez dogmatizada dos estudos linguísticos, compactua, por outro
lado, com a legítima defesa das concepções de Souza Santos sobre ciência. Assim,
o trabalho com o discurso permitirá o envolvimento do senso comum, inserido nas
ciências sociais. Evidentemente, qualquer estudo que envolva a linguagem e suas
manifestações terá legitimidade científica, desde que atenda alguns requisitos
propostos por Santos (1989). Melhor dizendo, desde que dialogue com sua visão da
dupla ruptura epistemológica, numa busca por um equilíbrio entre os
desnivelamentos do senso comum, nas diferentes abordagens, não totalmente
desregrado, mas com possibilidades de permitir “emancipação e criatividade da
existência individual e social”.

A pujante necessidade de reflexões filosóficas e epistemológicas no meio


científico obviamente afeta o fazer científico da Linguística. Santos (2008, p.50)
entusiasticamente afirma que “chegamos ao final do século XX possuídos pelo
desejo desesperado de complementarmos o conhecimento das coisas, isto é, com o
conhecimento de nós próprios”. Essas posturas epistemológicas colocam a
Linguística, com todas as suas áreas atuais de investigação, em lugar de uma
ciência humanística. Os fatos linguísticos descritos e explorados não se encerram
em suas causas, mas são determinantes para os fins sociais aos quais se objetivam.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma


psicanálise do conhecimento. Tradução Estela dos Santos Abreu. – Rio de Janeiro:
Contraponto, 1996.
BAGNO, M. Sete erros aos quatro ventos: a variação linguística no ensino do
português. – São Paulo: Parábola Editorial, 2013.
GOMES DE MATOS, F. Comunicar para o bem: rumo à paz comunicativa. – São
Paulo: Editora Ave Maria, 2002.
ILARI. R. O Estruturalismo linguístico: alguns caminhos. In: Introdução à Linguística:
fundamentos epistemológicos. Volume 3. Mussalin& Bentes (org). 3 ed. – São Paulo:
Cortez, 2007
KOCH, I.V.; CUNHA-LIMA, M.L. Do Cognitivismo ao sociocognitivismo. In :
Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos. Volume 3. Mussalin& Bentes
(org). 3 ed. – São Paulo: Cortez, 2007
MARCUSCHI, L.A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. – São
Paulo: Parábola Editorial, 2008.
POSSENTI, S. In: Introdução à Linguística: fundamentos epistemológicos. Volume 3.
Mussalin& Bentes (org). 3 ed. – São Paulo: Cortez, 2007
SANTOS, B.S. Introdução a uma ciência pós-moderna - Rio de Janeiro: Graal, 1989.
____________. Um discurso sobre a ciência. 5ed – São Paulo: Cortez, 2008.

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