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Trabalhar com Pombagira é se deparar, em um primeiro momento, no caso

com a imagem de uma mulher, no mínimo, “desconcertada”, se a tomamos a


partir dos processos ideológicos dominantes, que têm como base a
desigualdade entre os gêneros e, por conseguinte, concebe a mulher a partir
de um modelo uno de feminilidade, definindo previamente nossos
comportamentos e lugares que devemos ocupar, ou como afirma Beauvoir
([1945] 2006), nesta formação social, o homem é compreendido como o
essencial e a mulher como o inessencial. Em meio à Umbanda, entretanto,
Pombagira é entendida de modo diferente. Neste espaço, então, ela é pensada
como uma entidade feminina, forte, que não se submete ao masculino à
performance masculina patriarcal, responsável por tratar, em especial, a
respeito das questões ligadas ao feminino, não se restringindo às questões
relacionadas ao amor romântico, como sugere muitos já-ditos a seu respeito.
Pombagira, assim, dentro dos terreiros brasileiros “é transgressão, é liberdade,
é o feminino puro e indócil, é a sexualidade feminina que tanto assombra a
supremacia masculina” (NEVES, 2019, p. 40). Em outras palavras, tratar a
respeito dessa entidade religiosa de Pombagira é encontrar-se diante de uma
imagem distinta daquele modelo pré-concebido de mulher, podendo ser
compreendida como uma imagem de subversão, colocando em xeque a
imagem de mulher encontrada em nosso imaginário social. Interessou-nos,
então, compreender como se dá a discursivização de Pombagira dentro do
contexto da Umbanda, levando em consideração, em especial, o trabalho do
ideológico, responsável pelo(s) sentido(s) e, portanto, por fazer emergir outra
concepção do feminino em meio aos terreiros. Para isso, escolhemos cinco
pontos a elas dedicados – que são canções ritualísticas, no geral, compostas
em conjunto por indivíduos que integram a religião –, sobre os quais nos
debruçamos, buscando entender o feminino e suas lutas que se revelam
nessas materialidades. De tal modo, encontramos na Análise de Discurso com
filiação em Michel Pêcheux campo fecundo para compreender os movimentos
discursivos relacionados à imagem de Pombagira, o papel da ideologia no
tecer dos sentidos e, consequentemente, as memórias que vêm à tona nesses
dizeres.
Com base na conceituação de Pêcheux (1999, p 50) em que memória
está “inscrita em práticas sociais” e é ativada pelo historiador nos discursos
materializados, pôde-se resgatar alguns construtos de formação ideológica de
base patriarcalista nas canções ritualísticas. Em um dos versos da canção 1
“Arreda homem que aí vem a mulher!/ “Arreda homem que aí vem a mulher!”,
tem-se uma reposição da figura feminina numa reação direta às formações
ideológicas em que ‘o homem’ tem papel fulcral em todos os eventos sociais. O
emprego de um determinante definido em “a mulher” norteia, também, a
construção de um sentido em que se evoca a centralidade e relevância da
figura feminina, diferente da ausência desse determinante diante da palavra
“homem”. Como reforço reagente às imposições historicamente construídas,
emprega-se a forma verbal “arreda”, cuja força semântica recoloca esse
‘homem’ em um lugar social de inferioridade diante da mulher. Não se trata
aqui de determinar sentidos a palavras ou expressões no viés das discutidas
abordagens semânticas, trata-se, no entanto, do desencapsulamento das
representações que preenchem o vazio da opacidade própria da linguagem,
subtraídas das formações discursivas. Essa materialidade linguística, portanto,
corrobora a negociação, por meio de choque entre formações discursivas.
Segundo Pêcheux (1999, p 51), essa imagem – a materialidade discursiva -
serve como “operador de memória social”, não como uma ratificação de poder
masculino, mas como descontrução, por meio de “implícitos que estão
ausentes por sua presença”.
É sob essa orientação pecheuxtiana sobre memória, sobretudo sobre “a
perturbação na memória com o acontecimento novo” que este trabalho evoca,
à luz da Umbanda na figura da Pombagira, um material discursivo
historicamente relevante sobre a construção da imagem de poder feminino. As
análises realizadas neste trabalho, portanto, na medida em que reconstrói os
sentidos de uma forma proposta por Pêcheux(1999), permitem um
“distanciamento das evidências da proposição”- no caso, das canções -, não
com leviandade de interpretações, mas com resgate do que subjaz sócio-
historicamente nas interpelações de resistência do feminino. Essa leitura
permite, também, novos processos de repetição e regularização, em que um
discurso, possivelmente validado numa esfera religiosa, pode ultrapassar
esferas sociodiscursivas, em um entrecruzamento de diferentes formas de
resistência contra as sequelas do patriarcalismo. Uma memória que desliza de
lugares sociais, se configurando como “um espaço móvel, de disjunções, de
deslocamentos e retomadas, de conflitos, de regularização...” (Pêcheux, 1999,
p 56).
ARREDA HOMEM QUE AI VEM MULHER!

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