Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
MARÍLIA MOSCHKOVICH
Afinal de contas, o que é um par de seios? O que é um útero? Até que ponto
esses órgãos e partes do corpo podem carregar em si mesmos certas conotações e
sistemas de valores e classificações, e até que ponto somos nós seres humanos que
atribuímos interpretações ao que o corpo é? O que define uma mulher? O que
significa definir “mulher” e “feminino” pelo corpo? Quais as implicações políticas
disso? Os debates feministas e o acúmulo coletivo de conhecimento dos estudos de
gênero, estudos feministas e estudos da mulher ao longo do século XX nos
“Não se nasce mulher, torna-se”. Nascer versus tornar-se. Nascer como fato
dado, como evidência objetiva pura de uma natureza imutável. Tornar-se como
construto cuidadosamente elaborado, cultivado, detalhado, praticado ao longo da
vida. Natureza versus Cultura, a contenda epistemológica fundante das ciências
sociais e humanidades na sua forma mais recente, configurada na virada do século
XIX para o XX. Na Europa, a partir do desenvolvimento da ciência moderna, dos
seus primórdios iluministas até seu impacto nas revoluções burguesas, a sociedade
e os fenômenos sociais eram explicados pela natureza, pelo clima, pela
disponibilidade de recursos naturais, pela religião, pela metafísica. Ciências naturais
e filosofia compunham o leque de abordagens possíveis para entender o mundo
segundo os princípios iluministas da razão, em oposição às explicações puramente
religiosas católicas ou protestantes.
Quer dizer, um seio, em si, não carrega sentido nenhum – nem mesmo o da
maternagem, o da maternidade, o da amamentação, já que sendo os humanos seres
dotados de cultura e de tecnologias sociais, a própria história da amamentação
evidencia como diferentes sociedades organizaram a tarefa de nutrir seus bebês, de
aleitar e de amamentar das mais variadas formas.
Muito se fala e se falou sobre “gênero” desde que esse conceito foi elaborado
pela primeira vez, em meados da década de 1970, no debate feminista anglófono.
Diferente de outras categorias (como “mulher” ou “direitos das mulheres”), o
conceito de gênero se originou de um debate que articulava a produção teórica e
científica às reivindicações e discussões do campo da política (MOSCHKOVICH,
2018). Herdeiro do debate filosófico pós-estruturalista, o conceito apareceu pela
primeira vez assim formulado no ensaio “Tráfico de mulheres: notas para um
economia política do sexo”, da antropóloga Gayle Rubin (RUBIN, 2017), publicado
pela primeira vez em 1975. No texto, Rubin discute as falhas e possibilidades
analíticas de três grandes cânones da teoria social que vinham sendo utilizados pelas
feministas estadunidenses na construção de uma teoria sobre a opressão das
mulheres: a obra marxista “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”
de Engels (2019), a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss (1963; 1969) e a
reinterpretação psicanalítica de Freud proposta por Jacques Lacan em seus
“Escritos” (1977). Ao examinar de que maneira cada uma dessas linhas teóricas
abordava a posição das mulheres e a desigualdade entre homens e mulheres, Rubin
elaborou a ideia de “sistema sexo/gênero”, um sistema simbólico que regularia
tanto categorias como “homem” e “mulher” quanto as relações de sexualidade (e
sobretudo heterossexualidade pressuposta) na produção de corpos e sujeitos.
Como bem explicado tanto por Scott (1989) quanto por Haraway (2004) em
suas amplas revisões bibliográficas sobre o conceito, essa primeira sistematização
operou um avanço epistemológico importante em relação às teorias feministas
anteriores. Mesmo com contribuições como a de Beauvoir (1949a; 1949b), já
discutida, que retiravam do universo natural e/ou biológico as explicações para a
maneira social de classificar e hierarquizar corpos e pessoas segundo seus corpos, a
teoria feminista em larga medida ainda se apoiava tanto sobre uma ideia de “sexo”
(ainda que entendido socialmente como é o caso de Beauvoir), quanto sobre uma
noção de que de alguma forma as categorias simbólicas do sistema de gênero
(homem, mulher, e outras) refletiam algo já dado pela natureza. Tanto a psicanálise,
quanto a linguística e a relação entre ambas foram cruciais na primeira metade do
século XX para que se pudesse pensar, então, o gênero como sistema simbólico e
Cabe dizer que toda sociedade tem um sistema de gênero. Ou melhor, toda
sociedade de que temos notícia e registro, hoje, nas ciências sociais e humanidades,
têm algum tipo de sistema de gênero – isto é, um sistema simbólico que organiza,
regula e produz a esfera da vida social que determina a produção e reprodução de
corpos e sujeitos no que diz respeito primordialmente à sexuação, sexualidade e
práticas sexuais ou, ainda, como quiseram Connell e Pearse (2015), à “arena
reprodutiva”. Esses sistemas variaram entre diferentes sociedades e épocas em toda
a história e as histórias da humanidade. Como no caso descrito por Mead, por
exemplo, ou ainda também na Antropologia nas reflexões de Clastres (2013) em “O
arco e o cesto” e Mauss (2003) em “As técnicas do corpo”. Não existe, nesse sentido,
para os seres humanos, um corpo destacado da cultura, um corpo anterior ao
discurso, uma natureza humana que não seja mediada pela atribuição de sentido
orientada pelos sistemas simbólicos que sustentam os pilares das estruturas sociais.
Como mencionado anteriormente, porém, esses sistemas simbólicos não se bastam
e não são suficientes sozinhos para determinar e desenhas as ações de todos os
indivíduos e grupos humanos, embora medeiem e balizem esses processos. É na
fratura entre norma e prática que existe a agência.
Uma pessoa com seios amamenta no seio um bebê, que repousa em seu colo
e dá sonoros gemidos de prazer. Podemos encerrar este ensaio a partir de um
exercício. Releia a primeira frase e faça um desenho completo da situação,
imaginando ou rabiscando um papel. Procure responder então as seguintes
perguntas: Quem é essa pessoa? Onde ela está? Agora, algumas perguntas talvez
um pouco mais difíceis: Quem pariu esse bebê? Essa pessoa é uma mulher? Essa
mulher é uma mãe? É a mãe dessa criança? Qual a cor da pele dela? Em que
momento histórico a cena foi imaginada? Sobretudo, e mais importante, a pergunta
que precisa ser repetida a cada uma das respostas dadas: por que você imaginou
assim?
Referências
BEAUVOIR, Simone De. Le Deuxième Sexe: Tome II. Paris: Editions Gallimard,
1949b. ISBN 2070161331.
LACAN, Jacques. Écrits: A selection. New York: Norton, 1977. xiv, 338. ISBN
9780393300475.
ORTNER, Sherry. Está a mulher para o homem assim como a natureza para a
cultura? In: DENICH, B.; ROSALDO, M. Z.; LAMPHERE, L.; ANKIER, C.;
GORENSTEIN, R. (Org.). A mulher, a cultura e a sociedade, Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1979. 254 p (Coleo O Mundo, hoje, v. 31), p. 95–120.
RUBIN, Gayle. Políticas do sexo. São Paulo: Ubu, 2017. 141 p. (Coleção
argonautas). ISBN 9788592886486.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação
e realidade, v. 16, n. 2, p. 19, 1989.