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Mãe, mamas, mamíferas:

separando amor e trabalho nas perspectivas feministas


sobre aleitamento, amamentação e gênero

MARÍLIA MOSCHKOVICH

“Não é que as mulheres são mais mamíferas do que os homens, mãe?”


perguntei aos quatro ou cinco anos de idade, segundo ela, quando descobri que os
animais eram classificados em diferentes grupos e, nesse sistema, os seres humanos
ficavam no grupo dos mamíferos. Pois bem, se as mulheres tinham seios e
amamentavam, obviamente deviam ser “muito mais mamíferas” do que os homens.
Esse raciocínio aparentemente óbvio de uma criança de cinco anos de idade
também aparece refletido em espaços feministas e femininos nos quais discutimos
a amamentação, o aleitamento, o parto, o puerpério, a gestação e todo o complexo
universo ligado a esses processos físicos, emocionais e – por que não? – laborais. Se
as mulheres têm seios, se as mulheres têm útero e, portanto, a capacidade nominal
(por assim dizer) de parir, então é claro que essas seriam tarefas femininas por
excelência, sendo obrigação da sociedade valorizá-las e apoiá-las, “empoderando”
as mulheres que as exercem. No entanto, praticamente dois séculos de feminismo e
cerca de 50 anos de estudos feministas nas universidades nos mostram que a história
não é bem essa. Afinal, cada um dos pressupostos desse raciocínio – que pode ser
adequado a uma criança de 5 anos, mas definitivamente não é adequado para a
construção de uma política feminista sólida – foi, segue sendo e merece ser
questionado.

Afinal de contas, o que é um par de seios? O que é um útero? Até que ponto
esses órgãos e partes do corpo podem carregar em si mesmos certas conotações e
sistemas de valores e classificações, e até que ponto somos nós seres humanos que
atribuímos interpretações ao que o corpo é? O que define uma mulher? O que
significa definir “mulher” e “feminino” pelo corpo? Quais as implicações políticas
disso? Os debates feministas e o acúmulo coletivo de conhecimento dos estudos de
gênero, estudos feministas e estudos da mulher ao longo do século XX nos

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apresentam interessantes ferramentas para buscar essas respostas – como o próprio
conceito de gênero, a crítica ao binarismo da oposição entre natureza e cultura, e
novas formas de compreender o que é “trabalho” nesse contexto. Partindo destas
questões este texto pretende, como parte do “Tratado do especialista em cuidado
materno-infantil” do Instituto Mame Bem, apresentar algumas contribuições
centrais da teoria feminista e dos estudos de gênero, estabelecendo conexões com
a prática das trabalhadoras do ciclo gravídico-puerperal como consultoras de
amamentação, doulas, obstetrizes e outras.

O presente capítulo se divide em quatro seções. Partiremos juntas, na primeira


delas, de uma discussão inicial sobre o corpo e suas formas de classificação, de
maneira a acessar o sentido de observar o gênero como um sistema simbólico. Em
seguida, na segunda seção, faço uma explanação sobre as relações e tensões entre
normas – que mobilizam os sistemas simbólicos – e as práticas concretas das
pessoas, balizadas por essas normas. Apresento, então, na terceira, os conceitos de
gênero e matriz heterossexual como ferramentas da teoria feminista que nos
permitem desmontar os entendimentos do senso-comum sobre a relação entre o
corpo e a maneira como é simbolicamente produzido. Por fim, na quarta e última
seção, tomamos o ciclo gravídico-puerperal e a amamentação como fio condutor
para pensar a maneira como amor, natureza, trabalho e cultura se apresentam como
chaves do senso-comum para definir o que é e como devem ser tais processos.

O que é um seio? O que é uma mulher?

Um seio é um seio. Um par de seios é um par de seios. Por que os associamos


a uma categoria particular de entendimento do mundo, o “feminino”? O que é, aliás,
o “feminino” e o que o define em última instância? Qual é a diferença entre
“feminino” e “mulher”? No que implica concretamente definirmos seios como
“femininos”? Ao mesmo tempo, como isso define o que é “feminino” ao definir
também que são femininos os seios? Que visão de mundo sustenta a dicotomia
feminino-masculino e que visão de mundo é sustentada por ela? Como isso nos afeta
enquanto mulheres, pessoas não-binárias, homens trans e outras pessoas que
nascem com seios?

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Nascer. Não é um acaso que a frase de maior impacto e circulação da obra “O
Segundo Sexo”, de Simone de Beauvoir (1949b; 1949a), seja “não se nasce mulher,
torna-se”. A obra é carregada de insights e análises poderosas, mas em geral essa é
a que foi sloganizada e a que fica. Há quem sequer se dê o trabalho de ler o texto
completo – e complexo – da filósofa francesa, publicado pela primeira vez em 1949,
com a sensação de que a densidade dessa curta frase basta para desenrolar novas
perspectivas sobre o ser mulher, o feminino e a forma social de sua produção.

“Não se nasce mulher, torna-se”. Nascer versus tornar-se. Nascer como fato
dado, como evidência objetiva pura de uma natureza imutável. Tornar-se como
construto cuidadosamente elaborado, cultivado, detalhado, praticado ao longo da
vida. Natureza versus Cultura, a contenda epistemológica fundante das ciências
sociais e humanidades na sua forma mais recente, configurada na virada do século
XIX para o XX. Na Europa, a partir do desenvolvimento da ciência moderna, dos
seus primórdios iluministas até seu impacto nas revoluções burguesas, a sociedade
e os fenômenos sociais eram explicados pela natureza, pelo clima, pela
disponibilidade de recursos naturais, pela religião, pela metafísica. Ciências naturais
e filosofia compunham o leque de abordagens possíveis para entender o mundo
segundo os princípios iluministas da razão, em oposição às explicações puramente
religiosas católicas ou protestantes.

Quando na segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século


XX as ciências sociais e humanidades são configuradas como parte do espaço
propriamente científico de produção de conhecimento, elas reivindicam para si
como objeto particular esses fenômenos sociais e designam, como parte
estruturante de sua epistemologia e método, que se explique a sociedade pela
própria sociedade. Nesse sentido, é que se abandona o “nasce” e se passa ao “torna-
se” como explicação para o mundo social. Explicar o mundo por meio do “nasce”
significava explicar o mundo pela natureza, pelo imutável, pelo fixo e eterno e
incontestável – afinal, era esse o sentido de “natureza” dentro da visão de mundo
da Europa moderna (soa familiar?). Explicar o mundo por meio do “torna-se”, pelo
contrário, era atribuir importância e centralidade às ações humanas e à agência dos
sujeitos humanos, criados e vivendo em sociedade. Essa virada de chave começou
muito antes de Beauvoir, é claro, como por exemplo, entre outros, com a proposta

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metodológica de Karl Marx sobre como observar o mundo (o materialismo histórico,
sempre dialético). Em “A ideologia alemã” (MARX et al., 2017), ao sistematizar suas
famosas “teses sobre Feuerbach”, o autor procurava se contrapor à escola filosófica
idealista, destacando o papel das ações humanas e dos processos históricos (sempre
mutantes justamente por serem inerentemente humanos) na produção concreta das
estruturas e dos fenômenos sociais.

Quando escreveu “O Segundo Sexo”, Beauvoir não pretendia escrever um


livro ou manifesto feminista. Buscava, segundo ela mesma, apenas realizar um
exercício teórico existencialista, investigando como a “mulher” era produzida
socialmente, a partir de um ponto de vista dessa escola de pensamento filosófico. O
livro foi publicado em 1949, mas Simone só se aproximou do movimento feminista
na década de 1960, reconhecendo então que havia, ainda que não intencionalmente,
oferecido poderosas ferramentas para esse movimento político. Mais tarde ela diria,
ainda, que se fosse reescrever o livro na maturidade, o teria escrito por um ponto de
vista materialista – evidenciando uma relação mais próxima ao final de sua vida com
o chamado feminismo materialista francês, que partia de chaves interpretativas do
marxismo para investigar as desigualdades entre homens e mulheres e a opressão e
subalternidade reservada às mulheres nas sociedades ditas ocidentais (ABREU,
2018; MOSCHKOVICH, 2018).

Para chegar na síntese de que “não se nasce mulher, torna-se”, Beauvoir


começa sua jornada em “O Segundo Sexo” justamente questionando o
entendimento do corpo, do sexo (lembrando que não havia conceito de gênero na
época), da dicotomia masculino-feminino, do dimorfismo sexual e do binarismo
sexual como fatos biológicos. Ela recorre a diversos exemplos da própria natureza,
contrapondo-os ao discurso corrente das ciências biológicas, evidenciando que a
maneira de classificar e entender o sexo e a sexuação como um processo binário,
dimórfico e baseado na dicotomia masculino-feminino é apenas um esquema falho
de interpretação do mundo. Algumas décadas antes, a antropóloga bissexual
Margaret Mead já havia proposto reflexões semelhantes na clássica etnografia “Sexo
e Temperamento” (MEAD, 1935). Ao investigar as variações no “temperamento”
masculino e feminino – ou seja, as expressões do que se entendia por masculinidade
e feminilidade – em diferentes povos na Papua Nova Guiné, Mead ofereceu pistas

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sólidas para questionar a justificativa biológica, hormonal e/ou corporal para as
diferenças e desigualdades entre homens e mulheres. Ao demonstrar que
características como a agressividade e docilidade, por exemplo, poderiam ser
consideradas típicas do masculino e do feminino respectivamente em uma certa
etnia enquanto o oposto ocorria na etnia vizinha, a autora explicitou que “feminino”
e “masculino” não são construções de ordem natural, corporal ou biológica, mas,
sim, de ordem simbólica – como viemos a chamar posteriormente –, particulares de
cada sociedade e tempo histórico, e estruturantes das práticas sociais.

Quer dizer, um seio, em si, não carrega sentido nenhum – nem mesmo o da
maternagem, o da maternidade, o da amamentação, já que sendo os humanos seres
dotados de cultura e de tecnologias sociais, a própria história da amamentação
evidencia como diferentes sociedades organizaram a tarefa de nutrir seus bebês, de
aleitar e de amamentar das mais variadas formas.

Sistemas simbólicos, normas e práticas

Isso significa que “masculino” e “feminino” são formas de classificar e


hierarquizar as pessoas a partir de um critério ligado à interpretação de seu corpo
(daí o questionamento também do dimorfismo sexual como um fato da natureza).
Na primeira metade do século XX o debate europeu opunha natureza e cultura como
as duas grandes chaves explicativas centrais para o mundo. Esse sistema de
oposições tampouco estava desligado de uma certa ideologia sexual: no esquema
europeu (ou de matriz europeia) de pensamento, a oposição natureza-cultura
também se associava à oposição feminino-masculino (ORTNER, 1979; BEAUVOIR,
1949a)., Desde suas bases teóricas mais incipientes, como o famoso texto de 1792
“Reivindicação dos direitos da mulher” de Mary Wollstonecraft (2018), o movimento
feminista – europeu de origem –questionou de maneira categórica essa associação.
Afinal, tal construção justificava a posição subalterna das mulheres na sociedade
europeia, mesmo em momentos de grandes avanços no pensamento social como
aquele da Revolução Francesa. O masculino era associado ao racional, à cabeça, à
cultura, à civilização, ao refinamento técnico e, portanto, também ao controle e a
condições adequadas para exercer o trabalho público de fazer política. O feminino,

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por outro lado, era associado ao emocional, ao coração, à natureza, ao primitivo, à
intuição e, portanto, visto como inadequado ao trabalho público de fazer política e,
a bem da verdade, inadequado a qualquer trabalho que escapasse da esfera
doméstica e da reprodução biológica ou social, típica dos trabalhos de cuidados
(como amamentar).

Esses sistemas de associação de categorias hierarquizadas, usados para


classificar os mais diversos elementos da realidade, funcionam com base em
representações e abstrações da realidade percebida, por um lado, e, ao mesmo
tempo, por outro, orientam as práticas sociais que determinam a realidade
perceptível e observável. Na primeira metade do século XX, a partir dos
desenvolvimentos filosóficos, psicanalíticos, antropológicos e da teoria social e
linguística em geral, passamos a entendê-los como sistemas simbólicos. Isso
significa muitas coisas, mas, dito de maneira simplificada para o propósito deste
texto, isso significa que quando observamos um corpo humano e classificamos suas
partes (braços, pernas, genitália, seios etc.), estamos realizando a operação mental
de aproximar aquilo que é observado de uma ideia geral que caiba nessas categorias.
Assim, observar um par de seios e nomeá-los como seios significa, por exemplo,
estabelecer uma relação entre aquilo que está sendo observado a uma ideia
representada da categoria “seios” – como se parecem, o que significam, etc. Junto
a esse ato de dar nome e classificar, se mobiliza uma série de categorias, conceitos
e atributos auxiliares: seios são macios, seios são femininos, seios servem para
amamentar etc. São esses sistemas de atributos, conceitos e categorias associados
que nos informam quase (ou não tão quase) inconscientemente como reagir a um
par de seios. Sentir tesão? Ternura? Vergonha? Vergonha do tesão? Tesão e ternura?

O sociólogo francês Pierre Bourdieu (2001) escreveu sobre esses sistemas


complexos que associavam diversos tipos de categorias ao binômio masculino-
feminino, de forma a compor uma visão de mundo. Em “A dominação masculina”
(BOURDIEU, 2001) ele dá alguns exemplos, de como outros pares de categorias
(como interno/externo, claro/escuro, úmido/seco) são associados de maneira
polarizada a masculino e feminino em diferentes sociedades. Segundo ele, essa
articulação dada no espaço simbólico configura uma visão de mundo. Como esses
sistemas simbólicos também distribuem poder de maneira desigual em sociedades

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que operam suas estruturas sobre desigualdades (como é o caso europeu e de
sociedades que foram colonialmente europeizadas como a nossa), há hierarquias
entre esses sistemas de categorias. Ele chama de “dominação masculina” o processo
operado pelo “nosso” sistema simbólico, pois nesse sistema todas as categorias
associadas ao masculino estariam posicionadas de forma hierarquicamente
superior, permitindo a quem é visto como “masculino” o acesso a posições de maior
poder. Para ele, a dominação masculina está em tudo, até naquilo que não é
diretamente ou explicitamente ligado à discussão sexual ou de gênero. Ou seja, as
regras, critério e normas que operam e articulam essas categorias extrapolam os
próprios sistemas de diferentes maneiras. O autor é enfático, ainda, em observar que
esses sistemas não existem, claro, em um vácuo. São operados constantemente
pelas práticas concretas das pessoas, que eles mesmos orientam. Dessa maneira é
que ele conclui que a dominação masculina depende, também, da prática subalterna
feminina em diferentes sentidos. É na dobradiça entre norma e prática, justamente,
que está a preciosidade de observar processos disputados, falhos e tensos como a
amamentação e os trabalhos de cuidado.

Os sistemas simbólicos se estruturam por meio de regras e critérios que


articulam e definem possibilidades para seus elementos – conceitos, categorias,
hierarquias etc. Chamamos de normas as definições positivas (no sentido de
posição, aqui como contrário de negativas, de negação) que orientam esses sistemas
e que, como consequência, orientam também as práticas sociais mediadas por eles.
As normas dadas em um sistema simbólico, por sua vez, não correspondem
exatamente e nem de maneira total às práticas sociais. Quer dizer, existe, sim, um
efeito da norma sobre a percepção das práticas, que naturaliza a norma como se ela
fosse uma representação completa das possibilidades de práticas sociais. No
entanto, as práticas concretas das pessoas e grupos de pessoas escapam com
frequência às normas, embora sejam sempre balizadas por elas de alguma maneira.
O caso do conceito de gênero e do conceito de “matriz heterossexual” ajuda a
entender essa dinâmica e desvendar de que maneira essa relação entre sistema
simbólico, normas e práticas opera em fenômenos como a amamentação,
explicando também como desigualdades são reproduzidas nesse processo.

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Gênero e a matriz heterossexual

Muito se fala e se falou sobre “gênero” desde que esse conceito foi elaborado
pela primeira vez, em meados da década de 1970, no debate feminista anglófono.
Diferente de outras categorias (como “mulher” ou “direitos das mulheres”), o
conceito de gênero se originou de um debate que articulava a produção teórica e
científica às reivindicações e discussões do campo da política (MOSCHKOVICH,
2018). Herdeiro do debate filosófico pós-estruturalista, o conceito apareceu pela
primeira vez assim formulado no ensaio “Tráfico de mulheres: notas para um
economia política do sexo”, da antropóloga Gayle Rubin (RUBIN, 2017), publicado
pela primeira vez em 1975. No texto, Rubin discute as falhas e possibilidades
analíticas de três grandes cânones da teoria social que vinham sendo utilizados pelas
feministas estadunidenses na construção de uma teoria sobre a opressão das
mulheres: a obra marxista “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”
de Engels (2019), a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss (1963; 1969) e a
reinterpretação psicanalítica de Freud proposta por Jacques Lacan em seus
“Escritos” (1977). Ao examinar de que maneira cada uma dessas linhas teóricas
abordava a posição das mulheres e a desigualdade entre homens e mulheres, Rubin
elaborou a ideia de “sistema sexo/gênero”, um sistema simbólico que regularia
tanto categorias como “homem” e “mulher” quanto as relações de sexualidade (e
sobretudo heterossexualidade pressuposta) na produção de corpos e sujeitos.

Como bem explicado tanto por Scott (1989) quanto por Haraway (2004) em
suas amplas revisões bibliográficas sobre o conceito, essa primeira sistematização
operou um avanço epistemológico importante em relação às teorias feministas
anteriores. Mesmo com contribuições como a de Beauvoir (1949a; 1949b), já
discutida, que retiravam do universo natural e/ou biológico as explicações para a
maneira social de classificar e hierarquizar corpos e pessoas segundo seus corpos, a
teoria feminista em larga medida ainda se apoiava tanto sobre uma ideia de “sexo”
(ainda que entendido socialmente como é o caso de Beauvoir), quanto sobre uma
noção de que de alguma forma as categorias simbólicas do sistema de gênero
(homem, mulher, e outras) refletiam algo já dado pela natureza. Tanto a psicanálise,
quanto a linguística e a relação entre ambas foram cruciais na primeira metade do
século XX para que se pudesse pensar, então, o gênero como sistema simbólico e

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discurso – e, como tal, determinante para a própria atribuição de sentido da
realidade. Foi como se o conceito de gênero levasse à radicalidade a ideia de que
essa esfera da vida social devesse ser explicada sem mobilizar argumentos e
elementos do discurso biológico. Quer dizer, o conceito de gênero radicalizou a
noção de que nenhum sentido da sexualidade, da sexuação, do corpo sexual poderia
ser explicado a partir de fatos e pressuposições naturais, uma vez que as próprias
categorias discursivas da biologia (macho/fêmea, vagina/pênis, seios/peitoral, etc)
eram e são construções historicamente e culturalmente localizadas que só fazem
sentido dentro de uma visão de mundo particular de uma sociedade e uma época e,
portanto, também reproduzem o sistema de gênero no qual são baseadas. Ou seja,
categorias como “macho” e “fêmea” para classificar animais, plantas etc. seriam
necessariamente reproduções de um sistema simbólico no qual os sujeitos que
imputam essas categorias e as utilizam foram forjados.

Nesse sentido é possível afirmar que o conceito de gênero propôs uma


inversão ou subversão no entendimento das caracterizações e nomeações do
discurso biológico: em vez de assumir que há uma verdade biológica ou natural
sobre os corpos e que as categorias humanas para classifica-los são atribuídas
posteriormente a partir dessa verdade e como seu reflexo, o conceito de gênero
entende que as categorias humanas articulada em sistemas simbólicos como o
sistema de gênero (o binômio masculino/feminino, por exemplo) orientam o olhar
para o corpo, o biológico, o natural, determinando de antemão suas categorias e
fazendo com que se enxergue e classifique e hierarquize corpos, objetos e pessoas
sempre a partir de suas categorias-matrizes. Dessa forma, categorias como “macho”
e “fêmea” reproduziriam as noções de “masculino” e “feminino” presentes no
sistema de gênero de sociedades ocidentais e colonialmente ocidentalizadas, da
mesma maneira como “homem” e “mulher” o fazem: a partir de um conjunto de
critérios do que cada uma dessas coisas seja, e da aproximação de fenômenos,
pessoas, corpos etc. desse delineamento que os critérios operam. Ou seja,
particularizando aquilo que era tomado pela construção simbólica ocidental e
ocidentalizada como supostamente universal, a operação teórica realizada na
construção do conceito de gênero permitiu um entendimento analítico complexo e
avançado sobre o que são, afinal, o que hoje entendemos como sistemas de gênero

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e, para além disso, quais as especificidades do sistema de gênero específico da
tradição ocidental moderna.

Cabe dizer que toda sociedade tem um sistema de gênero. Ou melhor, toda
sociedade de que temos notícia e registro, hoje, nas ciências sociais e humanidades,
têm algum tipo de sistema de gênero – isto é, um sistema simbólico que organiza,
regula e produz a esfera da vida social que determina a produção e reprodução de
corpos e sujeitos no que diz respeito primordialmente à sexuação, sexualidade e
práticas sexuais ou, ainda, como quiseram Connell e Pearse (2015), à “arena
reprodutiva”. Esses sistemas variaram entre diferentes sociedades e épocas em toda
a história e as histórias da humanidade. Como no caso descrito por Mead, por
exemplo, ou ainda também na Antropologia nas reflexões de Clastres (2013) em “O
arco e o cesto” e Mauss (2003) em “As técnicas do corpo”. Não existe, nesse sentido,
para os seres humanos, um corpo destacado da cultura, um corpo anterior ao
discurso, uma natureza humana que não seja mediada pela atribuição de sentido
orientada pelos sistemas simbólicos que sustentam os pilares das estruturas sociais.
Como mencionado anteriormente, porém, esses sistemas simbólicos não se bastam
e não são suficientes sozinhos para determinar e desenhas as ações de todos os
indivíduos e grupos humanos, embora medeiem e balizem esses processos. É na
fratura entre norma e prática que existe a agência.

O famoso trabalho de Butler (2006), “Problemas de Gênero”, sistematizou o


caso do sistema de gênero da tradição ocidental e conferiu a seu principal
mecanismo de funcionamento um nome específico: matriz heterossexual. Ao fazê-
lo, descreveu o conjunto de normas que opera o nosso gênero (e digo “nosso”
porque, mesmo sem que o Brasil possa ser chamado de ocidente e que esse seja um
conceito relativamente problemático, o colonialismo importou e impôs como
sistema de gênero aqui aquele da tradição ocidental ou, ainda, da tradição europeia
que se baliza por uma noção de Ocidente) permitindo uma visão analítica sobre as
mesmas. Como consequência, essa operação analítica facilitou e facilita também a
desnaturalização de tais normas, abrindo espaço para que se observe concretamente
as práticas das pessoas e grupos (e a maneira como tensionam a norma) e,
sobretudo, para que se imagine nesse não-normativo novas possibilidades e chaves
para enxergar, produzir e construir a sociedade.

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Segundo a autora, a matriz heterossexual é um conjunto de normas que opera
em três dimensões, sempre organizadas pelo binarismo, e por uma pressuposição
de continuidade e obrigatoriedade entre cada uma delas. A primeira dimensão é a
dimensão da classificação genital dos corpos; a segunda, a dimensão da identidade
de gênero; a terceira, a dimensão das práticas sexuais. O esquema a seguir ilustra Comentado [MM1]: A imagem abaixo é uma lousa de
aula minha apenas para a edição entender do que se trata
em linhas gerais a organização dessas normas. o esquema. Se possível, gostaria de discutir a
possibilidade de encomendar para a designer ou
ilustradora da editora uma versão bonitinha. Posso fazer
um croqui mais enxuto para isso e explicar/revisar/etc. a
produção para a editora não ficar sobrecarregada.

Como é possível observar no esquema, em amarelo, as práticas e experiências


concretas das pessoas frequentemente não são abarcadas pela norma (em preto).
Assim, no que diz respeito à classificação genital, por exemplo, temos cada vez mais
pesquisas apontando para a existência de pessoas intersexo. No que tange às
identidades de gênero, expressão de gênero e reconhecimento das mesmas, temos
mulheres e homens trans, travestis, pessoas não binárias e outras identidades não
abarcadas pela norma que prevê apenas as categorias “homem” e “mulher”. Quanto
às práticas e desejos sexuais, esfera em que apenas a heterossexualidade
monossexual está prevista, há lésbicas e gays, também monossexuais, e bissexuais
e outros grupos não-monossexuais (MOSCHKOVICH, 2020a).

Esse modelo normativo foi carregado no processo colonial para diferentes


partes do mundo, suplantando por meio da violência outras diversas possibilidades
e experiências de gênero. Essa dinâmica, porém, não foi e nem seria capaz de
suprimir completamente as experiências não-previstas pela norma ou, ainda, que
recusam e tensionam a norma (MOSCHKOVICH, 2020a). O espaço para agir se dá
justamente nessa quebra e, se o objetivo deste texto é pensar as práticas de apoio à

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amamentação e o trabalho de amamentar no Brasil contemporâneo, no século XXI,
é fundamental termos reconstruído essa dimensão teórica de maneira a sempre
observar essa fratura entre norma e práticas sociais, para que seja possível pensar
quem são as pessoas que amamentam, e que processos sociais, culturais, históricos,
raciais e de gênero vivem. É nesse interstício, herdeiro da colonização, que o Brasil
e as pessoas lactantes brasileiras – assim como os bebês lactentes – se localizam.

Amor e natureza; trabalho e cultura

Uma pessoa com seios amamenta no seio um bebê, que repousa em seu colo
e dá sonoros gemidos de prazer. Podemos encerrar este ensaio a partir de um
exercício. Releia a primeira frase e faça um desenho completo da situação,
imaginando ou rabiscando um papel. Procure responder então as seguintes
perguntas: Quem é essa pessoa? Onde ela está? Agora, algumas perguntas talvez
um pouco mais difíceis: Quem pariu esse bebê? Essa pessoa é uma mulher? Essa
mulher é uma mãe? É a mãe dessa criança? Qual a cor da pele dela? Em que
momento histórico a cena foi imaginada? Sobretudo, e mais importante, a pergunta
que precisa ser repetida a cada uma das respostas dadas: por que você imaginou
assim?

A cena da amamentação é em geral uma abstração bastante normativa –


conjugamos ali quase todas as normas dos sistemas de gênero e parentesco que nos
orientam. A pessoa tem seios, portanto é uma mulher (cisgeneridade); a criança foi
parida por aquela mulher (associação automática entre maternidade, parir,
amamentar); a mulher é branca e o bebê também é branco (racismo estrutural e
ideologia colonial, que invisibiliza o trabalho escravizado das amas de leite em nossa
história); a pessoa é jovem (etarismo); e assim por diante. Por que você imaginou
assim? Por que imaginamos assim?

Além do sistema de gênero e da matriz heterossexual, há outros sistemas


simbólicos e estruturas sociais operando para que a amamentação aconteça em
cada caso particular à sua maneira, e para que pensemos nela muitas vezes de forma
dissociada da realidade concreta de quem está à nossa frente. As próprias categorias
que organizam nossa visão de mundo não estão pouco implicadas nas estruturas

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desiguais que as produzem – raça, gênero, classe, e outras. Essas formas de assumir
verdades olhando pouco para a concretude do caso e muito para a abstração das
categorias frequentemente nos impedem de efetivamente contribuir com o processo
do outro, muitas vezes promovendo inclusive ambientes violentos. Assumir que uma
mulher gestante seja automaticamente mãe, por exemplo, pode ser uma forma de
ignorar a existência das gestações de substituição (no Brasil, a “barriga solidária”).
Assumir que uma pessoa gestante seja uma mulher e assim tratar a gestação e o
debate sobre a gestação e o ciclo gravídico-puerperal é reproduzir uma estrutura de
violência transfóbica para com pais trans grávidos e pessoas não-binárias gestantes.
As mulheres são mais mamíferas do que os homens? Que mulheres? Que homens?

Nesse sistema, as noções de “natureza” e de “amor” (MOSCHKOVICH, 2020b)


parecem desempenhar uma função particularmente útil à manutenção da norma
desigual que invisibiliza, invalida, deslegitima e oprime, produzindo violências
sistêmicas contra as pessoas e grupos cujas vivências e expressões ameaçam sua
continuidade. O amor, por exemplo, torna invisível e pouco reconhecido o trabalho
de cuidar, incluindo a amamentação aí (FEDERICI, 2019). A natureza é mobilizada
para justificar que essas tarefas sejam sempre executadas por um grupo – as
mulheres, ou o polo feminino do sistema de gênero –, ao mesmo tempo definindo
como parte do grupo quem as executa, tornando assim invisíveis e intoleráveis
quaisquer configurações não previstas e aceitáveis nesse esquema
(MOSCHKOVICH, 2020b).

O que significa, nesse sentido, pensar um trabalho como o trabalho de


amamentar, como um destino e vocação natural de quem tem seios ou, pior ainda,
das mulheres (assumindo aí que todas as mulheres tenham seios e que todos os
seres humanos com seios sejam mulheres)? O que significa, em termos de
construção de uma política feminista – e em termos de construção de boas práticas
de apoio à amamentação – recuperar o argumento corporal e biológico como utopia
(propondo, por exemplo, que esses trabalhos sejam tipicamente femininos e que,
portanto, sua valorização, consagração etc. que nos levaria a algum tipo de
igualdade)?

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Ao contrário do que essas pressuposições (infelizmente ainda bastante
difundidas no feminismo e nos espaços de atenção à maternidade, à parentalidade,
ao ciclo gravídico-puerperal e à amamentação) evocam, a saída possível parece
estar justamente na possibilidade de uma visão analítica sobre o tema. Sem moral,
sem moralismos, sem amor, sem natureza. Trabalho e cultura. Amamentar é, afinal
de contas, uma tarefa. Se é uma tarefa, pode ser compartilhada e construída
coletivamente por pessoas diversas. Pode e deve ser aprendida, discutida,
disputada, pensada, refletida, reorganizada. Amamentar não é e nem deveria ser
uma questão de amor (o que não equivale a dizer que o amor deva ser suprimido ou
o afeto impedido), mas, em primeiro lugar, uma tarefa entre as diversas formas de
trabalhos de cuidados que a chegada de um novo membro na sociedade exige. Um
trabalho compartilhado e compartilhável em diferentes instâncias; planejado,
refletido, orientado, apoiado, e carregado de suas próprias contradições. Ninguém
é mais mamífero do que ninguém, afinal, já que a questão é menos sobre quem tem
seios ou não, e mais sobre o fato de que todos já precisamos de seio um dia e, se
aqui estamos, é porque alguma tecnologia coletiva permitiu que isso ocorresse
(MOSCHKOVICH, 2020b). Nos cabe pensar para adiante, então, que tecnologias são
essas e como podemos compartilhar e participar de sua produção e execução.

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