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Semestre- 2024.1
Assim como diversas categorias que nos são dadas desde o nascimento, o papel da
maternidade aparece em nossa sociedade como um papel certo de ser cumprido e repleto de
pré-requisitos para a mulher. E é nesse sentido que Valeska Zanello, no texto referido, decide
nos expôr como esse papel não tem relação direta com o dito “natural” e sim com a
construção social, além de explicitar o quão adoecido é o sistema de imposição das tarefas
parentais às mulheres de maneira uniparental e trazer diversas perspectivas críticas desse
assunto.
Dessa forma, foi a consolidação do capitalismo que modificou esse cenário, trazendo
uma identidade social própria para a mulher. Assim, se deu o estabelecimento de uma notória
divisão dos espaços públicos e privados, em que os homens protagonizam os primeiros,
enquanto as mulheres se tornam detentoras das funções domésticas e maternas. Além de tal
marco histórico, a mudança que resultou na parentalidade focada na mãe contou ainda com a
influência de um novo olhar sobre a infância que emergiu no século XVIII.
Sobre isso, de acordo com a pesquisa (Lincoln et al., 2014), enquanto até essa época
educar crianças confundia-se com sua inclusão nas atividades da sociedade e nos espaços
públicos, a partir da Revolução Industrial e da consequente urbanização, inicia-se o processo
da família nuclear, em que justamente o papel da mulher será o de maternar e investir nessa
criança. Assim, enquanto em séculos anteriores as crianças eram tratadas como
“mini-adultos” e não precisavam ser protegidas por muito tempo, a “invenção” da infância é
que modifica esse contexto. É possível, inclusive, ver essa mudança nas obras de arte: a obra
“As meninas”, feita por Diego Velázquez em 1656, por exemplo, concebe crianças com trajes
e comportamentos adultos, enquanto, já em 1872, Hans Thomas pinta “Children’s
Roundelay”, em que as crianças aparecem brincando e vestindo trajes informais.
Figura 1
As meninas
Nota. Diego Velázquez, óleo sobre tela, localizado no Museu do Prado, Madrid,
Espanha.
Figura 2
Children’s Roundelay
Nota. Hans Thomas, óleo sobre tela, localizado no Museu Junge Kunsthalle,
Karlsruhe, Alemanha.
Nesse ínterim, nessa nova configuração de sociedade, Zanello destaca que a partir da
propagação da ideia de que a função da mãe era se sacrificar pela maternidade, o não amor
pelos filhos se torna uma anomalia. Tal condição foi primeiro sustentada por discursos
políticos, sociais e religiosos, mas tomou ainda mais força no início do século XX com a
maternidade científica. Ou seja, em um período no qual a ciência alcançava espaços globais
de reconhecimento, as palavras de médicos e especialistas começaram a constituir um
verdadeiro “guia para a maternidade”.
Em todas essas análises, a autora reforça uma das ideias principais do texto: a de que
a maternidade se deu através de uma construção social. Nesse viés, cabe pontuar ainda o
destaque que ela dá para a autora Judith Butler e suas ideias acerca de gênero, teorizadas no
final da década de 80, que melhor explica como esse caráter construído da maternidade se dá
também pelo fato de que a própria concepção de gênero é sustentada culturalmente. Para
Butler, as diferenças sexuais são construções de gêneros, baseados em performances que nos
são ensinadas desde o nascimento.
O dispositivo do amor seria melhor definido pela ideia de que as mulheres são levadas
a construir suas identidades a partir do olhar do homem, em um sistema que a autora chama
de “Prateleira do Amor” (Zanello, 2023). Nesse sistema, as mulheres são objetificadas e
pressionadas a atingir padrões estéticos e comportamentais que às valorizem melhor nessa
“Prateleira”, além do fato de que fatores como raça, idade e presença ou não de deficiência,
por exemplo, são automaticamente fatores que contribuem para a posição predefinida que
elas ocupam. Com essa metáfora, portanto, Valeska pontua o quanto as mulheres são levadas
a competirem entre si, a anularem seus gostos pessoais em prol de opiniões masculinas e
ainda a vivenciarem esse contexto de vulnerabilidade, no qual a qualquer momento podem
ficar para trás nessa “Prateleira”.
“Vou te interromper aqui. As pessoas não toleram mães que bebem demais, ou gritam
para os seus filhos ou se referem a eles como idiotas. Eu entendo, também faço isso.
Nós podemos aceitar um pai imperfeito, o conceito de um bom pai só foi inventado há
uns 30 anos. Antes era normal que os pais fossem calados, ausentes, pouco confiáveis
e egoístas. É claro que queremos que eles não sejam assim, mas no fundo nós os
aceitamos. Gostamos deles por suas imperfeições, mas as pessoas não toleram essas
mesmas coisas nas mães. É inaceitável em nível estrutural e espiritual. Porque a base
de nossa conversa judaico cristã é Maria, a mãe de Jesus, que é perfeita. Ela é uma
virgem que dá à luz, apoia incondicionalmente o filho e segura seu cadáver quando
ele morre. O pai sequer aparece.”
Ela sugere, dessa maneira, que os estudos da Psicologia deveriam considerar mais: a
subjetividade dessas mulheres; os possíveis desprazeres que podem encontrar no exercício de
ter e criar uma criança; os efeitos psíquicos da maternidade idealizada nas mulheres e ainda
as diferentes interseccionalidades entre gênero, raça, classe e contextos culturais diversos
nessa experiência maternal.
Nesse sentido, cabe referenciar a série “Maid” (S. Metzler, 2021), que retrata muito
bem um cenário em que Alex, mãe de uma menina pequena, se vê desamparada após sofrer
violência doméstica do marido e não possuir nenhuma rede de apoio que pudesse acolher ela
e a sua filha. É nessa situação que a personagem parte em busca de abrigo e tenta ganhar
dinheiro através da prestação de serviços domésticos, encontrando diversos percalços no
caminho. A sobrecarga materna, nesse contexto, perpassa toda a vivência de Alex e sua filha,
na medida que ela é a única responsável pela criação da mesma. Assim, para além da
urgência de encontrar estratégias para sobreviver, a mãe é atravessada pela constante
preocupação de construir o futuro da criança.
Por fim, considero que Valeska Zanello apresenta um panorama histórico- contextual
e uma abordagem teórica de suas ideias de maneira impecável. Entender a maternidade como
construção social e compreender ainda as consequências dos dispositivos que as tecnologias
de gênero impõe às mulheres, com destaque para o dispositivo maternidade, é fundamental
para a promoção de mudanças sociais que visem a quebra desses mecanismos por vezes
adoecedores.
REFERÊNCIAS
Feijó, J. (2023, May 18). Mães solo no mercado de trabalho crescem 1,7 milhão em dez anos.
Portal FGV.
https://portal.fgv.br/artigos/maes-solo-mercado-trabalho-crescem-17-milhao-dez-anos
Lincoln, S., Silva, M., Bezerra, M., & Terezinha Féres Carneiro. (2014). A compreensão da
infância como construção sócio-histórica. Revista CES Psicología, 7(2), 126–137.
Lopes, B. A., e Lopes, B. A. (2020). Autismo, narrativas maternas e ativismo dos anos 1970 a
20081. Revista Brasileira de Educação Especial, 26(3), 511–526.
https://doi.org/10.1590/1980-54702020v26e0169
Zanello, V. (2023). A prateleira do amor: Sobre mulheres, homens e relações. Editora Appris.