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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Resenha crítica individual

Disciplina: IPSC26 (Psicologia da Família)

Professora: Vania Nora Bustamonte Dejo

Discente: Gabrielli Peixoto Carvalho (222217415)

Semestre- 2024.1

Texto- Dispositivo materno e processos de subjetivação: desafios para a psicologia


(Valeska Zanello)

Assim como diversas categorias que nos são dadas desde o nascimento, o papel da
maternidade aparece em nossa sociedade como um papel certo de ser cumprido e repleto de
pré-requisitos para a mulher. E é nesse sentido que Valeska Zanello, no texto referido, decide
nos expôr como esse papel não tem relação direta com o dito “natural” e sim com a
construção social, além de explicitar o quão adoecido é o sistema de imposição das tarefas
parentais às mulheres de maneira uniparental e trazer diversas perspectivas críticas desse
assunto.

A autora nos apresenta, inicialmente, um panorama histórico acerca da diferenciação


de gênero e os papéis impostos ao longo do tempo. Nesse sentido, ela mostra como a
diferenciação de gênero que nos é dada hoje nem sempre foi assim, e me chamou muita
atenção a ideia de que até o século XVII a sociedade se baseava em um gênero único, sendo a
mulher considerada uma espécie de “homem atrofiado” e em menor grau pela suposta
presença reduzida de calor.

Dessa forma, foi a consolidação do capitalismo que modificou esse cenário, trazendo
uma identidade social própria para a mulher. Assim, se deu o estabelecimento de uma notória
divisão dos espaços públicos e privados, em que os homens protagonizam os primeiros,
enquanto as mulheres se tornam detentoras das funções domésticas e maternas. Além de tal
marco histórico, a mudança que resultou na parentalidade focada na mãe contou ainda com a
influência de um novo olhar sobre a infância que emergiu no século XVIII.

Sobre isso, de acordo com a pesquisa (Lincoln et al., 2014), enquanto até essa época
educar crianças confundia-se com sua inclusão nas atividades da sociedade e nos espaços
públicos, a partir da Revolução Industrial e da consequente urbanização, inicia-se o processo
da família nuclear, em que justamente o papel da mulher será o de maternar e investir nessa
criança. Assim, enquanto em séculos anteriores as crianças eram tratadas como
“mini-adultos” e não precisavam ser protegidas por muito tempo, a “invenção” da infância é
que modifica esse contexto. É possível, inclusive, ver essa mudança nas obras de arte: a obra
“As meninas”, feita por Diego Velázquez em 1656, por exemplo, concebe crianças com trajes
e comportamentos adultos, enquanto, já em 1872, Hans Thomas pinta “Children’s
Roundelay”, em que as crianças aparecem brincando e vestindo trajes informais.

Figura 1

As meninas

Nota. Diego Velázquez, óleo sobre tela, localizado no Museu do Prado, Madrid,
Espanha.
Figura 2

Children’s Roundelay

Nota. Hans Thomas, óleo sobre tela, localizado no Museu Junge Kunsthalle,
Karlsruhe, Alemanha.

Nesse ínterim, nessa nova configuração de sociedade, Zanello destaca que a partir da
propagação da ideia de que a função da mãe era se sacrificar pela maternidade, o não amor
pelos filhos se torna uma anomalia. Tal condição foi primeiro sustentada por discursos
políticos, sociais e religiosos, mas tomou ainda mais força no início do século XX com a
maternidade científica. Ou seja, em um período no qual a ciência alcançava espaços globais
de reconhecimento, as palavras de médicos e especialistas começaram a constituir um
verdadeiro “guia para a maternidade”.

Em todas essas análises, a autora reforça uma das ideias principais do texto: a de que
a maternidade se deu através de uma construção social. Nesse viés, cabe pontuar ainda o
destaque que ela dá para a autora Judith Butler e suas ideias acerca de gênero, teorizadas no
final da década de 80, que melhor explica como esse caráter construído da maternidade se dá
também pelo fato de que a própria concepção de gênero é sustentada culturalmente. Para
Butler, as diferenças sexuais são construções de gêneros, baseados em performances que nos
são ensinadas desde o nascimento.

E é nesse sentido que Zanello apresenta a ideia de tecnologias de gênero, descrita


inicialmente por Teresa de Lauretis em 1984, que são os meios pelos quais, as expectativas de
performances atribuídas às mulheres, são sustentados, quer seja na mídia, ciência, crenças
populares ou qualquer meio de propagação. Assim, as tecnologias de gênero definem o
processo pelo qual nos subjetivamos em nossa sociedade, e para as mulheres se pautam em
dois dispositivos que ela conceitua como: dispositivo do amor e dispositivo materno.

O dispositivo do amor seria melhor definido pela ideia de que as mulheres são levadas
a construir suas identidades a partir do olhar do homem, em um sistema que a autora chama
de “Prateleira do Amor” (Zanello, 2023). Nesse sistema, as mulheres são objetificadas e
pressionadas a atingir padrões estéticos e comportamentais que às valorizem melhor nessa
“Prateleira”, além do fato de que fatores como raça, idade e presença ou não de deficiência,
por exemplo, são automaticamente fatores que contribuem para a posição predefinida que
elas ocupam. Com essa metáfora, portanto, Valeska pontua o quanto as mulheres são levadas
a competirem entre si, a anularem seus gostos pessoais em prol de opiniões masculinas e
ainda a vivenciarem esse contexto de vulnerabilidade, no qual a qualquer momento podem
ficar para trás nessa “Prateleira”.

O dispositivo materno, além de conversar com a expectativa amorosa de obter sucesso


matrimonial a partir da concepção de um filho, é ainda influenciado pelos diversos fatores
que permeiam esse discurso social da maternidade. Dessa forma, é notória a persistência
desse dispositivo, na medida que a escolha de não ter filhos, ou o não prazer pela
maternidade, por exemplo, constituem grandes estigmas sociais. É esperado da mulher, nesse
contexto, que sejam cuidadoras natas e que adotem a ideia de maternidade como uma
identidade natural do gênero, enquanto dos homens apenas se espera sucesso sexual e
laborativo (melhor descrito pelo Dispositivo da eficácia).

Assim, essa abordagem da autora me fez lembrar do filme “História de um


casamento” (Baumbach, 2019), cujo enredo se baseia na separação de um casal
heterossexual, culminada pela traição do homem e confilitos de interesses acerca de onde
cada um desejava morar. É nesse contexto que a personagem principal, Nicole, busca uma
advogada para o divórcio e em um dos diálogos é confrontada pela mesma, em um monólogo
que conversa muito com a ideia do que se espera de mulheres e homens, explicitada por
Zanello.

“Vou te interromper aqui. As pessoas não toleram mães que bebem demais, ou gritam
para os seus filhos ou se referem a eles como idiotas. Eu entendo, também faço isso.
Nós podemos aceitar um pai imperfeito, o conceito de um bom pai só foi inventado há
uns 30 anos. Antes era normal que os pais fossem calados, ausentes, pouco confiáveis
e egoístas. É claro que queremos que eles não sejam assim, mas no fundo nós os
aceitamos. Gostamos deles por suas imperfeições, mas as pessoas não toleram essas
mesmas coisas nas mães. É inaceitável em nível estrutural e espiritual. Porque a base
de nossa conversa judaico cristã é Maria, a mãe de Jesus, que é perfeita. Ela é uma
virgem que dá à luz, apoia incondicionalmente o filho e segura seu cadáver quando
ele morre. O pai sequer aparece.”

Ademais, outra reflexão importante trazida no texto é o papel da Psicologia nesse


assunto. Acerca disso, ela expõe como a insatisfação das mulheres no exercício da
maternidade foram (e continuam sendo, mesmo que de maneiras sutis) patologizadas nos
estudos psicológicos. Além disso, ela ressalta como a abordagem da responsabilidade
parental na área foi sempre muito voltada para a responsabilidade materna, que
consequentemente culminou em uma propagação de um sentimento de culpa.

A autora traz, ainda, como a teorização etiológica de diversas psicopatologias infantis


consideraram a mãe como causa primária, e a título de exemplo há a ideia de
“Mãe-geladeira” (Lopes & Lopes, 2020), propagada por Leo Kanner (1949), e utilizada para
caracterizar mães de autistas, culpabilizando-as pelo desenvolvimento de tal transtorno
infantil em seus filhos. Tal ideia foi responsável pelo estigma que perpassa até hoje a
maternidade de pessoas neurodivergentes e reflete um dos desserviços de teorias psicológicas
para a vivência de mães em todo o mundo.

Ela sugere, dessa maneira, que os estudos da Psicologia deveriam considerar mais: a
subjetividade dessas mulheres; os possíveis desprazeres que podem encontrar no exercício de
ter e criar uma criança; os efeitos psíquicos da maternidade idealizada nas mulheres e ainda
as diferentes interseccionalidades entre gênero, raça, classe e contextos culturais diversos
nessa experiência maternal.

Nesse sentido, cabe referenciar a série “Maid” (S. Metzler, 2021), que retrata muito
bem um cenário em que Alex, mãe de uma menina pequena, se vê desamparada após sofrer
violência doméstica do marido e não possuir nenhuma rede de apoio que pudesse acolher ela
e a sua filha. É nessa situação que a personagem parte em busca de abrigo e tenta ganhar
dinheiro através da prestação de serviços domésticos, encontrando diversos percalços no
caminho. A sobrecarga materna, nesse contexto, perpassa toda a vivência de Alex e sua filha,
na medida que ela é a única responsável pela criação da mesma. Assim, para além da
urgência de encontrar estratégias para sobreviver, a mãe é atravessada pela constante
preocupação de construir o futuro da criança.

Dessa maneira, apesar da série retratar um contexto norte-americano, a temática traz à


tona a realidade de muitas mulheres no mundo todo, inclusive em larga escala no Brasil.
Segundo dados do IBGE (Feijó, 2023), quase 15% dos lares brasileiros são chefiados por mãe
solo, sendo inclusive 90% mulheres negras e 72% sem rede de apoio próxima. É nesse
sentido que os contextos socioeconômicos, étnicos e culturais devem ser levados em conta
quando se fala da maternidade, como bem exposto pela autora em seu texto.

Por fim, considero que Valeska Zanello apresenta um panorama histórico- contextual
e uma abordagem teórica de suas ideias de maneira impecável. Entender a maternidade como
construção social e compreender ainda as consequências dos dispositivos que as tecnologias
de gênero impõe às mulheres, com destaque para o dispositivo maternidade, é fundamental
para a promoção de mudanças sociais que visem a quebra desses mecanismos por vezes
adoecedores.

REFERÊNCIAS

Baumbach, N. (Diretor). (2019). História de um casamento. Netflix.

Feijó, J. (2023, May 18). Mães solo no mercado de trabalho crescem 1,7 milhão em dez anos.
Portal FGV.
https://portal.fgv.br/artigos/maes-solo-mercado-trabalho-crescem-17-milhao-dez-anos

Lincoln, S., Silva, M., Bezerra, M., & Terezinha Féres Carneiro. (2014). A compreensão da
infância como construção sócio-histórica. Revista CES Psicología, 7(2), 126–137.

Lopes, B. A., e Lopes, B. A. (2020). Autismo, narrativas maternas e ativismo dos anos 1970 a
20081. Revista Brasileira de Educação Especial, 26(3), 511–526.
https://doi.org/10.1590/1980-54702020v26e0169

S. Metzler, M. (Diretora). (2021). Maid. Netflix.

Thoma, H. (1872). Roundelay Children. In Google Arts & Culture.


https://artsandculture.google.com/asset/fQGhGlAfmdzhMg

Velázquez, D. (1656). As Meninas. In BBC News.


https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyx1p7p9753o.amp
Zanello, V. (2020). Saúde mental, gênero e dispositivos: Cultura e processos de subjetivação.
Editora Appris.

Zanello, V. (2023). A prateleira do amor: Sobre mulheres, homens e relações. Editora Appris.

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