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Faculdade de Direito
Rio de Janeiro - RJ
2023
1. INTRODUÇÃO
Neste trabalho, estudaremos o texto “Mãe, Maria nunca existiu! Me chama de João?”,
que se volta às experiências de famílias de crianças que vivem conflitos identitários com as
normas de gênero, analisando o caso etnográfico de uma família das camadas médias de
Pernambuco no curso de processos de medicalização em torno do diagnóstico de Disforia de
Gênero na Infância.
Assim, o objetivo deste trabalho é refletir sobre as condições sociais e culturais em que
gênero se tornou binário e como esse binarismo é prejudicial para a vida de pessoas que
vivem fora dele principalmente em grupos sociais mais vulneráveis como crianças e
adolescentes, e trazer explicações e práticas das ciências médico-psi como uma possibilidade
de intervenção.
Gênero, por sua vez, representa os papéis e expectativas atribuídos socialmente aos
indivíduos com base no sexo que foi atribuído a esse individuo quando ele nasceu. Nesse viés,
a UNICEF (Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para a Infância), define
gênero como o relacionamento da pessoa com o seu próprio corpo, salientando que tem
pessoas que não se identificam com o gênero atribuído na infância, o que gera um conflito
interno.
Por ser algo socialmente construído, um gênero específico não é algo inerente à nenhum
sexo, e sim algo inato de cada indivíduo. Portanto, o gênero imposto socialmente a um
indivíduo pode não corresponder ao sexo biológico. Nesse raciocínio, de acordo com a
ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) define gênero como “Profunda e
sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não
corresponder ao sexo atribuído no nascimento”. De acordo com eles, essa não
correspondência pode ser dada por senso pessoal do corpo e outras expressões de gênero,
como vestimenta, modo de falar e maneirismos.
Nos anos 1950, ocorreu uma crise na lógica da diferença sexual. Surgiu a chamada
farmacopornografia (PRECIADO , 2014), que envolveu a interseção entre farmacologia e
sexualidade. A partir desse período, o biopoder tomou outras proporções e o corpo passou a
ser regulado em níveis microcelulares, e órgãos sexuais e fluidos passaram a ser gerenciados.
Isso significava que as questões de identidade de gênero e sexualidade estavam cada vez mais
sujeitas a medicalização e regulação estatal.
Uma das contribuições mais notáveis de Mead foi sua observação de que as diferenças
de gênero e os papéis sociais atribuídos a meninos e meninas não são inerentes ou naturais,
mas sim produtos da cultura. Ela observou que meninas que são esperadas desde muito nova a
deixar a infância de lado e assumir papéis no ambiente doméstico resistem a essa transição, se
rebelando contra as tarefas domésticas e as expectativas culturais que lhes são impostas nesse
processo de socialização. Para Mead, isso comprova que as diferenças de gênero não são
determinadas biologicamente, mas são construções sociais moldadas pelas normas e valores
culturais.
O texto “Mãe, Maria nunca existiu! Me chama de João?” inicia com a observação de
que o debate sobre "crianças trans" gera disputas entre diferentes agentes sociais com
interesses variados na sociedade. A análise se concentra nas relações entre médicos, famílias e
crianças que estão passando por transições de gênero. O autor destaca desigualdades de poder
nessas relações, mas também ressalta que as crianças não são meramente passivas e que se
expressam de várias maneiras.
O caso de Lucas e sua mãe Penélope mostra essa não passividade. Lucas, anteriormente
conhecido como Maria, começou a questionar sua identidade de gênero aos 4 anos, expressou
o desejo de ser um menino, pedindo para ser chamado de por nomes masculinos. Ela resistiu
aos apelos por um tempo, achando que tudo fosse apenas uma fantasia infantil, e que se ela o
cercasse de brinquedos e atividades “femininas” ele iria mudar de ideia, porém ele rejeitava
tudo e estava se tornando tornar uma criança retraída, solitária e agressiva, que não tinha
amigos na escola e chegava em casa machucado de brigar com outros meninos. Parecia
perigosamente próximo de um quadro clínico de depressão.
De acordo com a pesquisa realizada em 2015, apenas 8% dos entrevistados relataram ter
passado por um processo de destransicionamento em algum momento de suas vidas. Destes, a
maioria (62%) considerou essa experiência temporária e estava vivendo em tempo integral
como um gênero diferente daquele atribuído ao nascimento. Um estudo mais recente
publicado na revista Pediatrics em 2022 examinou a trajetória de crianças trans que
realizaram a transição social. Os resultados mostram que, após 5 anos, 94% das crianças ainda
se identificam como transgênero, 3.5% se identificavam como não-binárias e apenas 2.5%
haviam destransicionado.
5. CONCLUSÃO
Preliminarmente, foram articulados os conceitos de sexo e gênero, sendo o primeiro
definido pelas características estritamente biológicas desde o nascimento, enquanto o segundo
refere-se uma construção social imposta a um indivíduo com determinadas características
físicas. Ocorre que o gênero não pode ser considerado binário, eis que a imposição do
“masculino” e “feminino” é uma “convenção” que não corresponde à realidade. Porém, é
certo que a insistência desse molde criado causa muito sofrimento e exclusão dos que não se
enquadram, sendo certo a necessidade de repensar o binarismo de gênero.
Amparados por todo esse arcabouço teórico, adentramos na história do menino Lucas,
uma criança trans que aos 4 anos manifestou para a sua mãe Penélope o seu desejo de ser um
menino. Mesmo com todo o medo, oriundo do estigma em torno do assunto, além de sentir a
dor de seu filho e perceber que o mesmo já tinha ideias suicidas, procurou tratamento e
amparo médico-psicológico, quando pôde proporcionar à sua criança um tratamento
experimental hormonal. Todavia o caminho foi árduo, tendo a Penélope sido denunciada por
maus tratos. Vale salientar que estamos tratando de uma família classe média, isto é, as
dificuldades enfrentadas podem ser muito maiores se tratarmos de famílias pobres, porém não
foi objeto de estudo do autor do texto estudado.
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