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“MULHERES SABEM PARIR, BEBÊS SABEM NASCER”.

AS DOULAS E O MOVIMENTO DE
HUMANIZAÇÃO DO PARTO NO BRASIL

Giovana Acacia Tempesta- UnB, Brasília, Brasil

Resumo: A comunicação parte da hipótese de que as doulas mobilizam de modo singular certos
conceitos e imagens presentes nos enunciados em circulação no seio do movimento de
humanização do parto no Brasil, que vem ganhando força nas duas últimas décadas, por meio de
um ativismo organizado sob a forma de rede, com repercussões importantes em termos de
subjetividade feminina, edição de leis e normativas institucionais e produção e circulação de
imagens sobre parto. As doulas estariam se engajando em uma relação diferencial de cuidado entre
mulheres e, assim, “colocando em jogo” (nos termos de C. Lefort, 1978) o sentido dominante de
nascer no Brasil no século XXI, ao encarnar uma relação de cooperação com a mulher grávida que
visa ao seu empoderamento. Esta reflexão se vale da interlocução com doulas que atuam em
Brasília, se apoia na coletânea Childbirth and authoritative knowledge (organizada por Davis-Floyd
& Sargent, 1997) e se inspira em ideias de M. Strathern, D. Haraway, J. Tronto, E. Martin e G.
Deleuze.

Palavras-chave: Parto. Doula. Pessoa. Cuidado

Em sua abordagem feminista do cuidado, Joan Tronto defende que cuidar de outrem
suscita questões morais importantes, que permitem contestar a teoria moral contemporânea. Para
ela, a experiência particular de cuidar de um outro específico implica capacidade de atenção,
responsabilidade e compromisso, colocando em jogo a concepção de indivíduos racionais e
autônomos sobre a qual se estrutura a sociedade de mercado contemporânea:

Cuidar desafia a visão de que a moralidade começa quando e onde indivíduos


racionais e autônomos confrontam-se mutuamente para executar as regras da vida
moral. Em vez disso, nos permite ver a autonomia como um problema com o qual as
pessoas têm de lidar o tempo todo nas suas relações com os iguais e com aqueles que
as ajudam ou delas dependem. (TRONTO, 1997, p. 196, ênfase adicionada)

O cuidar não pode ser pensado em termos de princípios ou regras morais universais, mas as
questões concernentes a autonomia, autoridade e dependência que ele suscita o inserem no escopo
da ética, uma vez que remetem à natureza da ligação entre o ser e o outro. Afinal, “cuidar de”
envolve responder às necessidades particulares, concretas, físicas, espirituais, intelectuais, psíquicas
e emocionais dos outros, visão que pode ser aproximada à noção de cuidado presente na obra do
filósofo Emmanuel Levinas, para quem a interpelação é uma forma de invocação, um encontro com

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o ente enquanto rosto, donde decorre a responsabilidade que se assume perante ele: “estar em
relação com outrem face a face é não poder matar” (Levinas, 2005, p. 31).

Emprego a expressão “colocar em jogo” no sentido que lhe foi atribuído por Claude Lefort,
para quem:

O próprio de uma sociedade “histórica”, segundo nos parece, é que ela contém o
princípio do acontecimento e tem o poder de convertê-lo em momento de uma
experiência, de modo que ele figura um elemento de um debate que se processa entre
os homens. Deste modo, nela a transformação não é a passagem de um estado para
outro, mas o encaminhamento deste debate que antecipa o futuro referindo-o ao
passado. O que significa ainda dizer que o histórico não reside no acontecimento
enquanto tal ou na transformação enquanto tal, mas em um estilo das relações
sociais e das condutas em virtude do qual há colocação em jogo do sentido
(LEFORT, 1978, p. 47, ênfase adicionada).

No caso do tema que pretendo desenvolver aqui, o movimento em prol da humanização do


parto e do nascimento no Brasil,1 observamos que a conduta dos profissionais que acompanham a
mulher durante a gestação, o parto e o pós-parto imediato é elemento decisivo para a significação da
experiência do parto pela mulher. Desse modo, o tema da autonomia feminina no ciclo gravídico-
puerperal aparece como central em meio a um contexto social altamente medicalizado, como é a
sociedade brasileira.

Nesse cenário, a filosofia de trabalho das doulas2 exprime, de forma particularmente


interessante, uma pauta cultural contra-hegemônica, voltada para a efetiva transformação da
natureza da ligação entre a mulher que dá à luz e os demais envolvidos no nascimento, incluindo as

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A humanização do parto e do nascimento integra um movimento mais amplo na área da saúde coletiva, cujas
repercussões se fazem sentir desde os anos 1980. Trata-se de “um movimento instituinte do cuidado e da valorização da
intersubjetividade nas relações” (M. C. Minayo, 2006, p. 26). Para Simone Diniz: “A humanização aparece como a
necessária redefinição das relações humanas na assistência, como revisão do projeto de cuidado, e mesmo da
compreensão da condição humana e de direitos humanos” (Diniz, 2005, p. 631-2); é “um termo estratégico, menos
acusatório, para dialogar com os profissionais de saúde sobre a violência institucional” (idem, ibidem, p. 635). O foco
desse movimento é a reapropriação feminina da experiência do parto, concebida como um evento holístico, da ordem do
imponderável. O desejo de ter um parto satisfatório, “mais natural” (Carneiro, 2014 e 2015), vem ganhando visibilidade
nas últimas décadas predominantemente entre mulheres de classe média vivendo nos grandes centros urbanos, e
adquiriu os contornos de uma pauta de direitos humanos, na medida em que as ativistas jogam luz sobre o contexto de
violência institucional sistêmica contra as mulheres.
2
Doulas são profissionais que oferecem apoio físico, emocional e informacional à mulher durante a gestação, o parto e
o puerpério. O reconhecimento da importância do trabalho da doula no meio científico consolidou-se em 2013, quando
foi publicada na plataforma Cochrane – a principal fonte de informações científicas atualizadas para as/os defensores do
parto humanizado – uma extensa revisão sistemática reunindo sólidas evidências científicas sobre a importância da
presença da doula durante o trabalho de parto, indicando índices mais altos de parto vaginal, índices reduzidos de
analgesia, altos índices de satisfação das mulheres, trabalho de parto de menor duração, menores índices de cesárea e de
uso de instrumentos, alto índice de Apgar referente ao recém-nascido (Hodnett et al., 2013). A publicação assinada pela
doula brasileira Fadynha (2011) apresenta conclusões muito semelhantes.

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pessoas presentes na cena do parto, nos termos de uma “mudança cultural intencional” (cf. Davis-
Floyd & Sargent, 1997, p.12). Uma pauta cultural que dá ensejo a duras acusações contra as
mulheres, especialmente aquelas que têm condições de optar por um parto domiciliar planejado,
compreendido como o ápice do empoderamento feminino, em oposição à cesárea eletiva. Com
efeito, a bandeira da humanização do parto costuma ser criticada por diferentes atores sociais como
ideário primitivista ou como modismo elitista com conotações antifeministas.

O contraponto etnográfico com o caso de mulheres britânicas que, nos anos 1990,
desejavam engravidar sem manter relações sexuais com nenhum homem, como se recorressem à
tecnologia para negar o componente sexual (relacional) da reprodução (fenômeno chamado de
“síndrome do nascimento virgem”), joga luz sobre a argumentação aqui desenvolvida. Marilyn
Strathern (1995) dedicou-se a refletir sobre as causas do embaraço cultural provocado por essas
mulheres e o analisou à luz dos dados trobriandeses, de acordo com os quais a concepção não seria
pensada como dependente das relações sexuais. A autora propõe que o problema epistemológico
colocado por esse evento está associado à natureza construída da compreensão dos processos
naturais pelos euro-americanos, pois as novas tecnologias reprodutivas estariam desfazendo muitas
das tradicionais suposições sobre a relação entre Natureza e Cultura, especialmente a compreensão
do parentesco como construção cultural de fatos naturais (“biológicos”).

A abordagem de Strathern nos ajuda a tomar consciência sobre as convenções que


conformam nossa própria cultura, propiciando que as encaremos de forma crítica e que lancemos a
pergunta sobre o tipo de relação que as pessoas pretendem estabelecer entre si. Se, aos olhos da
medicina e da sociedade em geral, voltados para as tecnologias de saúde vanguardistas, as mulheres
britânicas que pretendiam engravidar sem ter relações sexuais desejavam relações “de menos”, aqui
as mulheres que optam pelo parto “humanizado” – que prevê nenhuma ou pouquíssimas
intervenções médicas – estariam desejando relações “demais”. Percebe-se que, em ambos os casos,
o desejo das mulheres é apontado como deslocado em relação a um ideal externo, misógino, de
comportamento feminino.

Na balança das relações, pesa o conceito de risco, em torno do qual se constitui o poder-
saber biomédico referente à gestação e ao parto. O trabalho de Lilian Chazan sobre o
entrelaçamento entre a tecnologia do ultrassom obstétrico e o processo social de subjetivação do
feto e da mulher grávida, no início do século XXI, funciona como pano de fundo para a presente
discussão. Para esta autora, a medicalização da vida e o panopticismo (nos termos de Michel

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Foucault) envolvendo a gravidez e o feto nos colocariam diante do seguinte fenômeno: ainda dentro
do útero materno, “o feto-Pessoa, generificado, consumidor, além de ‘paciente’, torna-se um ‘astro
televisivo’ em um espetáculo – literalmente – ‘pay-per-view’” (Chazan, 2007, p. 214).

A etnografia elaborada por Chazan, que mostra uma adesão aparentemente unânime de
segmentos das camadas médias cariocas à cultura do ultrassom obstétrico, estimula a reflexão sobre
até que ponto o uso da tecnologia no campo da saúde cria dependência ou promove a autonomia das
pessoas. Chazan enfatiza que:

A produção da ‘necessidade’ de monitoramento encontra-se vinculada à construção


de uma ‘cultura do risco’, partilhada por todos, cujo objetivo final seria, acima de
tudo, uma “medicina sem surpresas” (Arney, 1982: 175). É, sobretudo, um conjunto
de crenças e valores compartilhados e em constante circulação na cultura. Conjugada
a melhorias efetivas para a vida e a saúde dos sujeitos concretos – proporcionadas
pela mais variada gama de dispositivos tecnológicos e diagnósticos –, é gerada
também uma ilusão de controle e saber totais sobre os fenômenos da vida e, por
conseguinte, também da morte. (CHAZAN, 2007, p. 208)

Vejamos então como, em contraposição a esse cenário, o desejo das mulheres por um parto
satisfatório e respeitoso, ou “mais natural” (de acordo com Rosamaria Carneiro, 2014), é acolhido,
legitimado e potencializado pelas doulas. Em primeiro lugar, notemos que a decisão de procurar
uma doula costuma resultar da participação prévia da mulher em grupos de apoio ao parto
humanizado, virtuais ou presenciais. Tais grupos em geral ressaltam a importância dessa
profissional para o bom andamento da gestação e o desfecho favorável do parto. Esses grupos,
muitas vezes chamados de “rodas” (quando presenciais), organizam-se em torno da convicção sobre
a aptidão da mulher e do bebê para o nascimento, o que se exprime nos seguintes enunciados:
“Mulheres sabem parir, bebês sabem nascer” e “Nosso corpo foi feito para parir” – princípio básico
desse projeto de empoderamento feminino.

Tânia Salem (2007) ressaltou o duplo papel dos grupos de apoio pré-natal, enquanto rede
de suporte emocional (psicológico) e também de solidariedade, para a configuração do “casal
grávido”, um código moral vigente nos anos 1980 entre camadas médias urbanas brasileiras. O
ideário da humanização do nascimento apresenta diversos pontos de contato com esse fenômeno
cultural, todavia não se observa no universo aqui considerado a pertinência da posição de destaque
conferida ao homem no âmbito do fenômeno do “casal grávido”, nem tampouco da ética da
indiferenciação de gênero que o caracterizou. Ao contrário, no universo aqui considerado a ênfase
recai claramente sobre as necessidades e desejos da mulher grávida.

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Para seguir a jornada do empoderamento, é fundamental que a mulher grávida tenha
informação de qualidade, isto é, ela deve buscar conhecer os direitos previstos em lei e os dados
científicos atualizados. “Empoderar” por meio da informação é um elemento-chave do trabalho das
doulas alinhadas à medicina baseada em evidências,3 em oposição às táticas de
“desempoderamento” (ou fragilização, infantilização) da mulher, por vezes empregadas pelos
profissionais de saúde desde o início da gestação, durante o acompanhamento pré-natal
convencional. A “informação” ganha ares de instituição cultural ao irmanar mulheres vivendo em
locais distantes, com estilos de vida diferentes, ao modo de uma “rede ideológica”, caracterizada
por uma profusão de espaços e identidades e pela permeabilidade das fronteiras no corpo pessoal e
no corpo político, nos termos de Donna Haraway: “A ideia de ‘rede’ evoca tanto uma prática
feminista quanto uma estratégia empresarial multinacional – tecer é uma atividade para ciborgues
oposicionistas” (Haraway, 2000, p. 84).

Muitas das adeptas da humanização fazem uma reflexão crítica sobre a banalização do
recurso à tecnologia e, sobretudo, à sua imposição durante a gestação e o parto, que concorrem para
que o Brasil ocupe a segunda posição dentre os países campeões de cirurgias cesarianas em todo o
mundo, fato que a Organização Mundial de Saúde classifica como “epidemia”. A maioria dos
critérios utilizados pelos médicos para indicar cesariana são questionados ou mesmo refutados por
elas, tais como a duração da gestação (medida em número de semanas), o resultado positivo do
exame para detecção da bactéria estreptococo B, a presença de circular de cordão, o volume
reduzido do líquido amniótico, o genérico e aterrorizante “sofrimento fetal”, a presença de mecônio
no líquido amniótico, a ocorrência de cesárea anterior e a posição do feto durante a gestação e o
trabalho de parto.

A informação é empregada pelas mulheres para questionar, com propriedade,


potencialmente todos os procedimentos de rotina que têm lugar na instituição médico-hospitalar,
tais como a raspagem dos pelos pubianos da parturiente, a lavagem intestinal, o jejum, a episiotomia
(incisão cirúrgica na musculatura perineal, realizada com o objetivo alegado de favorecer a saída do
bebê), a amniotomia (ruptura artificial da bolsa amniótica), a aplicação de ocitocina sintética
(visando acelerar o período expulsivo) e de analgésicos e ainda a manobra de Kristeller (pressão
forte sobre a barriga da mulher com o objetivo de facilitar a passagem do bebê) – quando realizadas

3
Minha interlocução é com doulas que se definem como “alinhadas à medicina baseada em evidências” (que se
distinguem das “doulas na tradição”), que atuam no Distrito Federal. Algumas das ideias aqui apresentas foram
abordadas em um Manuscrito ainda não publicado.

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sem indicação clínica clara e sem o consentimento da parturiente –, práticas que geralmente
ocorrem na forma de “efeito-cascata”. Essas mulheres questionam também a obrigatoriedade de
ficar imóvel na posição horizontal, com as pernas abertas, e os sucessivos exames de toque vaginal
durante o trabalho de parto, bem como o corte imediato do cordão umbilical e a retirada do recém-
nascido da sala de parto para o banho (que resulta na remoção do verniz natural da pele), para a
aplicação de colírio de nitrato de prata e para a medição de peso e estatura, práticas cuja eficácia é
questionada e que acabam por inviabilizar a amamentação na primeira hora de vida.

Esse “pacote tecnológico”, adotado integral ou parcialmente como protocolo de rotina nas
instituições de saúde públicas e privadas no Brasil, que parece estar sendo naturalizado pelos
profissionais de saúde e também pelo senso comum, é alvo do escrutínio das ativistas da
humanização do parto e das doulas, sendo que algumas práticas recebem mais atenção do que
outras, como, por exemplo, a episiotomia, que pode trazer efeitos orgânicos e psicológicos danosos
por longo período. De acordo com várias doulas, tais intervenções muitas vezes se somam a abusos
ou atos de violência explícita e podem ser classificadas como “violência obstétrica”. Em linhas
gerais este conceito se refere a toda forma de ofensa, humilhação, constrangimento, coação,
prestação de informações distorcidas ou incompletas, negativa de atendimento de qualidade, lesão
corporal, tratamento aviltante, impedimento da entrada de acompanhante na sala de parto,
desconsideração das opiniões e solicitações emitidas pela parturiente e esterilização não solicitada
pela mulher, dentre outras. Nesse universo costuma-se afirmar que a maioria das violências
praticadas contra a mulher durante o evento do parto é justificada com o apelo à necessidade
pungente de resguardar a saúde do bebê. A abrangência do conceito indica que estamos diante de
uma modalidade de violência sistêmica, pervasiva (cf. Pulhez 2013), que recusa à mulher o estatuto
de sujeito de direitos, um estado de coisas que o movimento da humanização visa combater.

Destarte, um aspecto importante da atuação das doulas alinhadas à medicina baseada em


evidências é orientar sua cliente no processo de apropriação de conhecimentos sobre o corpo
feminino, sobre suas necessidades específicas e sobre “o sistema” (isto é, o funcionamento da
instituição médico-hospitalar). Apropriação crítica e criativa, que assume a forma de politização do
conhecimento médico, ao desvelar seus fundamentos simbólicos.

Em sua análise sobre as metáforas científicas sobre os corpos das mulheres, ancoradas no
imaginário do sistema de produção capitalista, Emily Martin afirma que o parto é uma experiência
profunda e intensa, que envolve sentimentos íntimos e a percepção de forças poderosas do mundo

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(Martin, 2006, p. 249). Observo que muitas das mulheres que divulgam seus relatos de parto
(humanizado ou não) na internet realmente desejam ter essa experiência, que encerra um senso de
completude desafiador: “Aqui talvez estejam seres humanos integrais, com todas as suas partes
inter-relacionadas, engajados naquilo que talvez seja a única forma de trabalho verdadeiramente
inalienado agora disponível para nós” (op. cit., p. 256). A autora demonstrou como as novas
tecnologias pré-natais (dentre as quais a ultrassonografia) estariam criando novas normas para os
padrões de produção de bebês, além de novas expectativas padronizadas para o crescimento e o
desenvolvimento fetal, ao tempo em que os direitos do feto passam a sobrepujar os direitos da
mulher. Este processo histórico corresponderia a um movimento de apagamento da mulher da cena
do parto, apoiado em imagens depreciativas sobre o corpo da mulher, que resultaria em seu repúdio
completo na “linha de produção de bebês perfeitos” (Martin, 2006, p. 227-232).

Porém as adeptas do parto humanizado se recusam a atuar como máquinas inseridas na


linha de produção hospitalar e reafirmam sua completude enquanto sujeitos conectados a outros
significativos – neste caso, outras significativas – durante o ciclo gravídico-puerperal. Como lutar
sozinha contra “o sistema” é batalha inglória, elas se unem e se apoiam mutuamente e aprendem a
confiar umas nas outras, com o intuito – suponho eu – de transformar uma relação de cuidado em
uma relação de apoio entre mulheres, com repercussões éticas genuínas, como se verá adiante.

Articulados à informação que conduz à tomada de consciência sobre uma realidade


opressora, as emoções, as sensações e os ritmos corporais são outros elementos manejados pelas
doulas. Escutemos as palavras de uma doula que atua em São Paulo:

[As doulas] Auxiliam os corpos das mulheres a se manifestarem em sua plena


potência. Tocam, movimentam, respiram junto. Existe, neste ofício, um querer
subjetivo. O de cuidar do campo, da atmosfera de cada parto, para que a trama,
trançada até ali, seja com fios de confiança, firmeza, segurança e amor. (...) Uma
doula precisa amar o que faz. E ouso dizer, amar a pessoa a quem está
acompanhando. Mesmo que esse amor nasça no momento do parto. Ela aprende a
conectar seu coração e seu olhar para conseguir abrir caminhos com toques,
manobras ou palavras. Doula pode ser filtro, blindagem e veículo. Pode ser colo,
abraço e conforto. Pode também ser o silêncio, ou dizer o indizível. A doula cava
com você a sua coragem e assiste, marejada, sua vitória. (Depoimento da doula
Maíra Duarte transcrito em AZEVEDO & BELTRÃO, 2016, p. 58; 107)

Não vejo obstáculo para interpretar o amor a que a doula faz alusão como uma expressão da
noção de apoio, tal como a vimos entendendo até aqui, e que amplia ou tensiona a noção de

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cuidado, tal como caracterizada por Tronto. A fim de desnaturalizar e expor o lastro ético (e
político) do trabalho das doulas, cito o seguinte trecho da fala de uma doula que atua em Brasília e
milita pela transformação da assistência ao parto a partir da crítica ao modelo heteronormativo,
racista, classista e gordofóbico predominante: “As pessoas acham que a gente trabalha por amor,
por isso não precisa receber dinheiro. Não estou dizendo que a gente não trabalha com amor, mas
não podemos trabalhar só por amor”. As iniciativas atuais em torno da profissionalização da
doulagem não são isentas de contradições. Pode-se perceber neste enunciado a ênfase na distinção
conceitual entre afeto e remuneração, explicitando-se que o desejo autêntico de apoiar outra mulher
durante a gestação, o parto e o pós-parto é vivido como vocação profissional orientada
politicamente, não como prática filantrópica. Existe um dilema em torno da melhor maneira de
profissionalizar o cuidado feminino, que se expressa por meio de questionamentos de amplo
escopo: como reconhecer o valor social desse serviço sem “desumanizá-lo”? Como atribuir valor
monetário a uma relação simultaneamente profissional e afetiva, que acolhe o imprevisível e o
incontrolável da experiência humana? Outrossim, tais questionamentos sinalizam a preocupação,
partilhada por muitas doulas, em não permitir que sua atuação seja entendida como impulso
feminino automático, apolítico e irrefletido.

Em artigo onde aponta contradições inerentes à atuação das doulas, Soraya Fleischer (2005)
indica que elas podem funcionar como repositório da memória do parto, algo importante para que a
mulher possa integrar essa experiência à sua subjetividade de maneira positiva. A partir de dados
etnográficos preliminares, estou propondo que estamos diante de um projeto de coletivização
feminina da construção e da apropriação subjetiva da experiência do parto, que se traduz pelo termo
sororidade, e que visa à ressignificação da sensação de dor durante o parto, bem como à
transformação da relação entre as mulheres e a instituição médico-hospitalar.

A atuação das doulas ecoa algumas premissas centrais da crítica feminista direcionada ao
conhecimento científico. De acordo com Margareth Rago (1998), refutando a mitologia científica
misógina, o pensamento feminista supera a ideia do conhecimento como um processo meramente
racional, na medida em que as mulheres incorporam a dimensão subjetiva, emotiva e intuitiva ao
processo do conhecimento, questionando as divisões corpo/mente e sentimento/razão. Assim, a
mudança de conduta (cf. Lefort, op. cit.) que parece estar se processando sob a bandeira da
humanização concerne ao tensionamento do conceito de cuidado durante o parto, que está se
deslocando para o conceito de apoio, o qual implica um laço simétrico, horizontal, respeitoso. A

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capacidade de acolher uma mulher enquanto sujeito singular e completo supõe uma disponibilidade
para a conexão, uma atitude de abertura radical para o outro, que requer um tipo de habilidade
delicada, em alguma medida intuitiva, associada a uma postura contestadora em relação à
biomedicina – o que pode ser categorizado como “tecnologia de relações” ou “tecnologia leve”, nos
termos de Emerson Merhy (2002). Desse modo, a relação de dependência se converteria idealmente
em uma relação de interdependência entre sujeitos plenos.

Com efeito, a apropriação da medicina baseada em evidências e a sensibilização para a


riqueza simbólica e a complexidade existencial do evento do nascimento podem ser interpretadas
como táticas empregadas pelas doulas com o objetivo de construir ou fortalecer um outro tipo de
“conhecimento autorizado” (cf. Davis-Floyd & Sargent, 1997), isto é, de legitimar uma outra
linguagem, uma outra lógica ou uma outra filosofia de vida, articulada a um outro conjunto de
práticas e valores – e a uma outra modalidade de tecnologia –, para circunscrever a experiência do
parto, com possíveis repercussões para as experiências mais amplas de maternidade e feminilidade.
O discurso e as práticas singulares das doulas desestabilizam em alguma medida a hegemonia do
paradigma tecnocrático, em nome da construção de um outro paradigma, reputado como mais
respeitoso, seguro e saudável. Tal paradigma, que corresponde a uma filosofia de vida distintiva,
fundamenta-se em um princípio simbólico feminino, holístico, que implica a aceitação daquilo que
não pode ser controlado ou conformado a padrões universais. Tudo indica, pois, que estamos diante
de uma possibilidade concreta de transformação da vivência e do imaginário social sobre o parto,
que desloca ou relativiza certas concepções cristalizadas, como a de dor de parto.

Eu gostaria de ressaltar que as imagens mobilizadas pela doula no excerto transcrito acima –
filtro, blindagem, veículo, colo, abraço, conforto, silêncio e comunicação do indizível – nos levam a
cogitar que a possível fragilidade deste momento de vida e, alternativamente, a força transcendente
que a mulher pode experimentar durante o trabalho de parto, constituem efeitos de relações, não
atributos intrínsecos a estados ou a um gênero, aproximando-se do conceito de afecção, tal como
formulado pelo filósofo Baruch de Espinosa (cf. G. Deleuze, 2002). Estou sugerindo que o
diferencial da tecnologia de relações empregada pelas doulas é o compromisso em promover o
“bom encontro”, ao maximizarem a capacidade agentiva da mulher que vai dar à luz, o que resulta
em alegria. Contrariamente, as situações de “violência obstétrica” podem ser concebidas como
“mau encontro”, aquele que destrói parte das relações que constituem um corpo, diminuindo sua
potência de agir.

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Ao realçarem a potência feminina contida no ato de parir, as doulas não apenas fazem elogio
ao poder de gerar e nutrir a vida, como também dão a ver a beleza do projeto de saúde de mulheres
que se recusam a ser tratadas como objeto de políticas de saúde misóginas. Essas mulheres agem
como sujeitos de sua própria vida e desejam mudar os parâmetros éticos do mundo onde seus filhos
e filhas crescerão, encarnando uma forma de criação e manutenção de relações sociais que envolve
as pessoas numa trama de interdependências mútuas e que deve ser analisada em suas dimensões
simbólica, histórica, moral, ética, afetiva, política, psicológica e estética, configurando uma
modalidade culturalmente diferenciada de constituição de relações (cf. Strathern, 2006).

Para concluir, gostaria de recuperar uma frase do obstetra Michel Odent que se tornou
lema do movimento em prol da humanização do parto: “Para mudar o mundo é preciso mudar a
forma de nascer”. Esta frase de alguma forma encontra eco no pensamento da saúde coletiva, que
propõe a construção de um outro marco ético, “humanizado”, articulado a um novo projeto de
sociedade (Diniz, 2005, p. 635), e permite compreender que aquilo que está em disputa, para além
do controle médico sobre as capacidades criativas femininas envolvidas no parto, é o modelo de
relação que norteia o conceito de cuidado. Se, para ser considerada humanizada, a relação deve
pressupor sujeitos completos implicados em uma interação horizontal, percebemos que aquilo que
se quer transformar, de uma forma mais radical, é o fundamento assimétrico, autoritário e por vezes
violento da noção de cuidado, estreitamente ligada à ideia de risco, que predomina na assistência à
mulher durante a gravidez e o parto prestada pelo sistema médico-hospitalar brasileiro. Desse
modo, pode-se aventar que o modelo de relação encarnado pelas doulas se constitui como uma
alternativa pertinente para nortear a reelaboração do conceito de cuidado (e todas as práticas,
imagens e modelos organizacionais e gerenciais a ele associados) a partir do balanceamento do
conceito de risco com conceitos como interdependência, abertura, confiança, potência, beleza,
movimento, alegria e vida, em consonância com o princípio da integralidade na assistência, um dos
pilares do Sistema Único de Saúde (SUS).

Referências

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“WOMEN KNOW HOW TO GIVE BIRTH, BABIES KNOW HOW TO BE BORN.” THE DOULAS AND THE
HUMANIZING MOVEMENT OF CHILDBIRTH IN BRAZIL.

Abstract: The communication starts from the hypothesis that the doulas mobilize in a singular way
certain concepts and images present in the humanization movement of childbirth in Brazil, which
has been gaining strength in the last two decades, through an organized activism in the form of a
network, with important repercussions in terms of female subjectivity, institutional laws and
regulations and also the production and circulation of images on childbirth. Doulas would be
engaging in a differential relationship of care among women, and then “putting in play” (Claude
Lefort, 1978) the dominant sense of being born in Brazil in the XXI century, by embodying a
cooperative relationship with the pregnant woman that aims at their empowerment. This reflection is
based on the interlocution with doulas that work in Brasilia (Brazil), is based on the collection
Childbirth and authoritative knowledge (Davis-Floyd & Sargent, 1997) and is inspired by ideas of
M. Strathern, D. Haraway, J. Tronto, E. Martin and G. Deleuze.

Key-words: Childbirth. Doula. Person. Female empowerment

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