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45º Encontro Anual da ANPOCS

GT 20 – Gênero, família e a crise do cuidado

As barreiras para a maternagem saudável nas Conferências sobre População e


Desenvolvimento

Juddy Garcez Moron


(Universidade Federal da Integração Latino-Americana - UNILA)
Introdução

Inicio este artigo tendo como base não somente a minha pesquisa de mestrado,
mas também o mote feminista internacional de que “o pessoal é global e o global é
genderizado.” (ENLOE, 2000, p. xi). Esta frase que a primeira vista parece ser muito
simples e generalizante, muito pode nos dizer: para a autora, assim como para mim, o
internacional está calcado no nacional. Isto é, o que gosto de chamar de “Relações
Internacionais (RI) do dia a dia” ou RIs rotineiras, que nada mais são do que uma gama
de fenômenos que permeiam nossas vivências e que vão desde o simples ato de acordar –
afinal, se estamos vivas possuímos algum tipo de impacto econômico, social, político,
cultural etc. - até a atuação que temos como acadêmicas em um evento de pesquisa
internacional – para usar aqui um exemplo bem óbvio – constituem as bases não apenas
da disciplina, mas do próprio ser etéreo que é o “global”, o “internacional”, o “mundial”.
E, assim como qualquer aspecto das sociedades ocidentais, esta entidade que funciona
como palco das “RIs” e das “ris” é genderizada.
Ao pensar na problemática das mães cuja bandeira tenho levantado quase que
diariamente nos últimos dois anos, e durante o desenvolvimento de um dos capítulos da
minha dissertação, uma pergunta me veio a mente: Como os tratados internacionais
enxergam a maternidade? Ou melhor, de onde parte estas discussões? É a partir da saúde?
Do trabalho? Da questão do cuidado? Um pequeno questionamento ramificou-se em
vários. Portanto, buscando delimitar o meu tema e o meu objeto, optei por focar em um
tópico que tem sido cada vez mais discutido tanto na disciplina quanto nos eventos e
fóruns internacional: a demografia. A conexão entre maternidade e crescimento
demográfico, apesar de óbvia, serve como uma boa forma de desvelar e colocar em
xeque os supostos limites entre o pessoal e o global; o indivíduo e o Estado. Logo,
considerando estas e outras questões, objetivo demonstrar, neste artigo, como as
Conferências sobre População e Desenvolvimento, promovidas principalmente pela
Organização das Nações Unidades (ONU), partem de um pressuposto conservador acerca
da maternidade – e daquilo que entendem como “maternidade segura” – passível de ser
explicado a partir da adoção da família nuclear como unidade básica da execução da
maternidade.
Para tal tarefa, a metodologia que adotei é a qualitativa, sendo os principais
métodos a análise conceitual dos termos maternidade, maternagem, segura e saudável a
partir da teoria feminista matricêntrica; e a análise documental dos relatórios referentes
as Conferências sobre População. Este esforço encontra-se dividido em três seções, sendo
a primeira delas referente teoria feminista matricêntrica e a análise dos conceitos
supracitados; a segunda, um breve percurso pelo desenvolvimento das noções de família
nas sociedades Ocidentais e ocidentalizadas; e por fim, na terceira seção, a análise dos
documentos das Conferências com vistas a compreender a forma como estas
recomendações – e a ONU em última instância – enxergam a questão materna a partir
dos debates sobre população e desenvolvimento.

Feminismo matricêntrico e maternagem saudável

Nesta seção exporei a teoria feminista matricêntrica e buscarei trazer uma


compreensão matrifocal sobre a maternagem saudável. Para este trabalho, apoiarei-me
nas obras de Rich (1995) e O’Reilly (2004, 2016) principalmente, mas não me limitarei
as suas produções. Como já foi vastamente argumentado por Rich (1995), a maternidade
nos termos Ocidentais1 é a experiência vivenciada por uma mulher mãe2 sob a égide do
patriarcado. Ela possui bases biológicas, ou seja, o potencial que toda pessoa com útero
tem de gestar e parir, e bases institucionais, isto é, o fenômeno da maternidade definido
por homens e imposto sobre as mulheres. A maternidade, portanto, configura tanto a
experiência quanto a instituição, e este discurso normativo é moldado em termos
patriarcais, servindo como fonte de opressão e controle de mulheres por possuírem a
capacidade de gestar, parir e cuidar.
Procurando ilustrar como este discurso opera, Andrea O’Reilly (2016)
desenvolveu o que ela chama de os dez pressupostos ideológicos da maternidade
patriarcal: (1) essencialização, responsável por posicionar a maternidade como a base
identitária feminina; (2) privatização, que localiza o trabalho materno somente no reino
doméstico e reprodutivo do lar; (3) individualização, que faz com que o cuidado materno
seja trabalho e responsabilidade de uma pessoa só; (4) naturalização, que pressupõe que a
maternidade é natural para todas as mulheres e que todas as mulheres sabem,
naturalmente, como ser mães; (5) normatização, responsável por criar uma identidade e

1 Refiro-me aqui a maternidade vivida por mulheres nas sociedades Ocidentais e Ocidentalizadas.
2 Embora reconheça que a maternidade não é um fenômeno vivenciado exclusivamente por mulheres ou
sequer somente por pessoas com útero, nesta pesquisa o recorte por mim adotado é o da maternidade
experienciada por mulheres e pessoas com útero que possuem a capacidade de gestar e parir.
prática materna que só existem de um modo muito específico: o da família nuclear; (6)
especialização e (7) intensificação, responsáveis por uma criação de filhas que é
consumidora e dirigida por especialistas; (8) idealização, causa da definição de
expectativas intangíveis de e para as mães; (9) despolitização, responsável por
caracterizar a edução das crianças somente como um empreendimento privado e
apolítico; e (10), biologização, que enfatiza laços sanguíneos e posiciona a mãe biológica
como a mãe real e autêntica.
Em contrapartida a esta vivência patriarcal, há a maternagem. Embora o conceito
de maternagem tenha sido criado inicialmente por Rich (1995) para diferenciar as
experiências patriarcais da maternidade e o potencial empoderar das práticas femininas
de maternagem, quem aprofunda esta noção é Andrea O’Reilly (2004, 2016). Na prática,
a maternagem envolve as experiências maternas desenvolvidas para e por mulheres. É a
possibilidade de tomada de agência por parte destas mães. Ela possui um caráter
fundamentalmente emancipatório e considera a vivência das mulheres mães como algo
político, passível de trazer mudanças sociopolíticas.
A partir desta distinção, e pensando em formas de avançar estas práticas em
termos teóricos, O’Reilly, (2016) gestou e pariu a teoria feminista matricêntrica após
longa pesquisa dentro dos estudos maternos. O feminismo matricêntrico pode ser
entendido como uma teoria que torna possível a execução de pesquisas – e modos de vida
em última instância – que aprofundam debates em torno da maternagem e das múltiplas
experiências que a permeiam. Seus principais objetos de estudo são as questões maternas
e as mulheres mães. Embora seja possível traçar o seu surgimento no início dos anos
2000, foi somente em 2016 que a intelectual publicou a obra “Matricentric Feminism:
Theory, Activism and Practice”3.
Neste livro, a autora tem como objetivo apresentar a teoria proposta e desenvolver
uma crítica a maternidade nos moldes patriarcais. Ela também reconhece a importância
da adesão do feminismo aos questionamentos acerca da maternidade – e da maternagem.
Ela parte de uma perspectiva matrifocal: em sua concepção, o feminismo matricêntrico
não deve se opor as abordagens feministas tradicionais, mas, antes, mudar o centro e
colocar a figura da mulher mãe nele. Em suas palavras, “eu sugiro que uma perspectiva
matrifocal em desmascarar a maternidade e redefinir a maternagem permite estes

3 Feminismo Matricêntrico: Teoria, Ativismo e Prática. Esta e outras traduções foram feitas por mim, a
autora.
encontros e explorações.” (O’REILLY, 2016, p.6)
A teoria feminista matricêntrica, portanto, lança as bases para considerações que
fujam do óbvio imbuído na maternidade patriarcal. Ou melhor, esta abordagem nos
permite tecer críticas e observar os avanços e entraves em diversas temáticas relativas a
vida da mulher mãe. Neste sentido, trago a partir de agora o que compreendo como
maternagem saudável e desenlaço as redes em torno desta concepção. Embora pareça
redundante, em um primeiro momento, adicionar o adjetivo saudável a um conceito que
já tem como pressuposto tal característica, eu o faço como forma de reafirmar o
compromisso que uma pesquisa sobre a maternagem envolve. Foi o modo mais
deliberado que encontrei de contrapor, em poucas palavras e de forma extremamente
explícita, as ideias de maternidade e a maternagem e de problematizar teorias maternas
que não consideram a interseccionalidade em suas análises.
Isto posto, posso adentrar agora nos termos do que pode ser considerado uma
maternagem saudável. Como já argumentei a maternagem tem como pressuposto o
empoderamento de mulheres. O seu aspecto saudável, entretanto, é muito mais
trabalhado pela grande área da saúde, em especial medicina (CESCHIA; HORTON,
2016, BRIZUELA; TUNÇALP, 2021), enfermagem (CARVALHO; GASPAR;
CARDOSO, 2017; UCHOA ET AL., 2021) e psicologia (CAVALCANTE ET AL., 2017;
ARTEIRO, 2017; OLIVEIRA; CABRAL, 2019) do que pelo viés das ciências sociais.
Somando-se a isto, temos a utilização do adjetivo “segura”, em detrimento de uma noção
mais ampla de “saudável”, diferenciação que farei mais adiante. Ainda assim, múltiplas
são as possibilidades de se pensar o maternar saudável para além do ciclo gravídico-
puerperal e dos impactos que a maternagem tem na vida de bebês e crianças. Afinal, o
maternar saudável diz respeito não somente a questões biológicas relacionadas a um
determinado período da vida da mulher mãe e a vida da criança, mas trata-se de uma
temática que recorta a vida destas mulheres por um longo tempo.
Como Paim (1998) relembra, a gravidez e a maternidade, assim como as
concepções de saúde, doença e corpo, apesar de possuírem aspectos biológicos, também
são construtos sociais e, como tais, podem possuir significados distintos dentro de uma
mesma sociedade ou em sociedades diferentes. Neste sentido, a concepção do que é
saudável também poderá variar não apenas com base na localização, classe, raça,
sexualidade e em torno de outros marcadores sociais, mas também a partir do discurso de
uma determinada área. A maternidade segura, portanto, diferenciar-se-á da maternagem
saudável, tendo em vista que no primeiro caso o foco será essencialmente em questões
biológicas, a exemplo da saúde da mulher grávida ou puérpera, e no segundo a noção se
expande, abrangendo também os aspectos sociais posteriores ao ciclo gravídico-
puerperal.
É preciso, portanto, que eu elucide o que os adjetivos “segura” e “saudável”
significam para, assim, compreender as suas ramificações. De acordo com o Dicionário
Michaelis Online (2021), “segura” possui dezenove significados. Entretanto, trarei aqui
somente aqueles pertinentes a temática trabalhada: “que envolve pouco ou nenhum risco;
eficaz, garantida; livre de perigo ou não exposta a ele; protegida; que oferece segurança
contra ataques, acidentes, desastres ou danos de qualquer outra natureza.” (SEGURA,
2021). Já “saudável” pode ter quatro significações: aquilo que é “bom ou conveniente
para a saúde; higiênico, salutar; que tem ou demonstra boa saúde física ou mental; que dá
alegria e bem-estar; que satisfaz a uma necessidade ou melhora uma situação; favorável,
positivo.” (SAUDÁVEL, 2021)
O aspecto seguro da maternidade, portanto, está muito mais vinculado ao
universo da saúde materno-infantil, principalmente nos períodos que vai da descoberta da
gravidez até a primeira infância da criança. Já o caráter saudável, que também engloba a
importância do cuidado no ciclo gravídico-puerperal, pode ser estendido para
compreender também outros pontos, tais como a aceitação social da função materna; a
possibilidade da mulher mãe decidir sobre qual é a melhor forma de maternar; a busca
pela qualidade de vida da mãe; a não essencialização da maternidade como a única
identidade da mulher mãe; a possibilidade de maternar fora da família nuclear e/ou com
base em outras configurações de agrupamento social; e a oportunidade de politização da
maternagem como ferramenta de luta.
Estes elementos que citei são apenas alguns exemplos do que a maternagem
saudável pode ser. E não a toa os desenvolvi em contrapartida aos dez pressupostos da
maternidade patriarcal formulados por O’Reilly (2016) que possuem uma ênfase no
caráter biológico. A maternagem não somente possui potencial emancipador: ela é a
própria prática de emancipação da mulher mãe. E, considerando que a maternagem não é
uma experiência universal (RICH, 1995), mas varia de mulher para mulher, o aspecto
saudável desta vivência também variará de acordo com as múltiplas realidades das
mulheres mães, em especial aquelas que sofrem com o acúmulo de opressões advindas de
outros marcadores sociais, a exemplo da raça, classe, localização geográfica, religião,
sexualidade, idade etc.

Família nuclear e a institucionalização da maternidade

Seguindo na rota traçada por Rich (1995), cuja ideia principal é a de que tanto a
maternidade quanto a heterossexualidade são instituições sociais e, como tal, possuem
poder de coerção, trago para dentro deste artigo um dos principais pontos que considero
como um entrave para os avanços dos debates sobre maternagem saudável nas
Conferências de População e Desenvolvimento da ONU: a ênfase na família nuclear.
Para explicitar o que é a família nuclear e quais são seus impactos na maternagem, farei
uma breve distinção sobre os modelos de família teorizados e suas mudanças ao longo do
tempo nas sociedades Ocidentais e ocidentalizadas.
Primeiramente, no que diz respeito a compreensão do que significa família, Alves
(2009) discorre que há duas correntes teóricas: a primeira delas considera a família como
uma instituição social basilar e da qual dependem todas as demais; e outra recorda os três
modelos básicos de família: a patriarcal, a nuclear e a atual. Entretanto, estas abordagens
não concorrem, mas antes se complementam. Para Lasch (1991, apud RAMOS;
NASCIMENTO, 2008), a família é a fonte mais fundamental de socialização do
indivíduo pois é neste espaço que esta pessoa aprenderá os padrões e normas culturais
adequados para, a partir de então, internalizá-los e reproduzi-los em suas relações sociais.

As funções mais universais atribuídas à família correspondem a: (1) perpetuar


a espécie humana; (2) cuidar dos mais velhos e inválidos; (3) dar nome e status
(SOUTO, 1985); (4) socializar o indivíduo em relação aos padrões e normas
sociais dominantes; (5) dar segurança (LASCH, 1991; LOURAU, 1996).
(RAMOS; NASCIMENTO, 2008)

Retornando aos modelos básicos de família, é possível compreender que, apesar


das diferenças estruturais, os pontos acima mencionados recortam as modelagens
patriarcal, nuclear e atual, ainda que de maneira distinta. No contexto das sociedades
Ocidentais, Engels (2017), argumenta que o modo de se organizar a família na Grécia,
povo que ele considerava mais culto e desenvolvido da antiguidade, girava em torno da
monogamia e do casamento, que nada tinham a ver com o amor sexual individual, mas
sim como uma conveniência econômica e social. “Foi a primeira forma de família que
não se baseava em condições naturais, mas em condições econômicas, e de modo
específico, no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva que
havia surgido espontaneamente.” (ENGELS, 2017, p. 89)
Ainda para o autor, a monogamia surgirá, então, como uma forma de subjugação
de um sexo pelo outro. Inspirado por um escrito seu e de Marx, Engels (2017, p.89)
afirma: “A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a
procriação de filhos.”. Entretanto, Simone de Beauvoir (2016), discorda desta ideia ao
assumir que a oposição dos sexos não pode ser reduzida a um conflito de classes. Para
ela, “Não há na cisão entre as classes nenhuma base biológica. (…) não se poderia (…)
considerar a mulher unicamente uma trabalhadora; tanto quanto sua capacidade
produtora, sua função de reprodutora é importante na economia social como na vida
individual (…).” (BEAUVOIR, 2016, p. 88)
Apesar da divergência entre os autores, é possível afirmar que este caráter
patriarcal que molda a sujeição feminina dentro da família é uma marca tanto destas
sociedades ocidentais antigas quanto da família patriarcal. Para Badinter (1985, p. 29),
“Por mais longe que remontemos na história da família ocidental, deparamos com o
poder paterno que acompanha sempre a autoridade marital.” Sobre a coerção do sistema
patriarcal, Beauvoir (2016, p.89) endossa, “Não seria possível obrigar diretamente uma
mulher a parir: tudo o que se pode fazer é encerrá-la dentro de situações em que a
maternidade é a única saída; a lei ou os costumes impõem-lhe o casamento, proíbem as
medidas anticoncepcionais, o aborto e o divórcio.”
Elisabeth Badinter (1985), que vai a fundo na formação mitológica do amor
materno no Ocidente, disserta também sobre a ausência do amor como valor familiar e
social no período anterior a metade do século XVIII. Neste contexto, que é o do modelo
patriarcal, há uma fundamentação hierárquica, na qual a figura do pater famílias, do pai,
é soberana e é função de sua esposa e filhos respeitarem-no e serem obedientes a ele,
subordinando-se aos seus ditames. (PIZZI, 2012) Segundo Badinter (1985, p. 41), “Até o
século XVII, repetir-se-á constantemente: o pai é para seus filhos o que o rei é para seus
súditos, o que Deus é para os homens, ou seja, o que o pastor é para o seu rebanho.”
Sem embargo, apesar de ter existido por um tempo considerável, este modelo
patriarcal de família começa a sofrer grandes mudanças principalmente a partir do século
XIX, ainda que retenha o aspecto da subjugação feminina e a centralidade em uma
família formada por três grandes figuras: o pai, a mãe e o(s) filho (s) 4. Com o advento da
industrialização e dos novos processos desencadeados pelo estabelecimento do Estado-
Nação moderno, o casamento passa a se transformar e a ser um espaço para a prática da
maternidade, isto é, o gestar, parir e cuidar.

Se outrora insistia-se tanto no valor da autoridade paterna, é que importava


antes de tudo formar súditos dóceis para Sua Majestade. Nesse fim do século
XVIII, o essencial, para alguns, é menos educar súditos dóceis do que pessoas,
simplesmente: produzir seres humanos que serão a riqueza do Estado.
(BADINTER, 1985, p.146)

A eclosão da família nuclear começa a se dar, portanto, neste cenário. A


dicotomização entre o público e o privado, a idealização da mulher mãe a partir da
invenção do amor materno e a operacionalização de discursos 5 para a realização plena
deste suposto destino biológico, configuram os principais pontos neste processo de
transição para a família nuclear. “A família se fecha e se volta para si mesma. É a hora da
intimidade, das pequenas residências particulares confortáveis de peças independentes
com entradas particulares, mais adequadas à vida íntima.” (BADINTER, 1985, p.179)
Para Duarte (1986 apud PAIM, 1998), o homem passa a ter como espaço privilegiado de
ação a esfera pública. Em contrapartida, a mulher passa a estar restrita ao lar, ao locus
doméstico.
Esta família, composta por um homem, uma mulher e os filhos têm como o
casamento e a monogamia a fonte de seus laços estreitados. (PIZZI, 2012) E, embora não
pareça haver muitas diferenças entre a família patriarcal e a nuclear, o principal ponto a
se ressaltar neste sentido é o de que a maternidade passou a ser um imperativo biológico.
É certo que, como já argumentei, algumas características são comuns aos três modelos
familiares, sendo o patriarcado a principal delas. Para Véras e Traverso-Yepez (2010 p.
76), “Apesar de se acreditar atualmente que o comportamento é uma construção social,
na cultura ocidental a mulher é potencialmente considerada a partir de sua natureza

4 Algumas autoras, inclusive, não fazem distinção específica entre o modelo patriarcal e nuclear. Perucchi
e Beirão (2007), por exemplo, comentam sobre a crise da família patriarcal e a associam aos processos de
emancipação feminina e transformações no mercado de trabalho, que culminam nas atuais mudanças no
modelo de família que, para Borsa e Nunes (2008) configuram na transição entre a família nuclear e a
contemporânea.
5 Badinter (1985), ao observar a França, conclui que três foram os discursos empregados na construção do
amor materno: o econômico, o filosófico e o dos intermediários. Todos estes foram fomentados
principalmente pelo Estado, mas também há a participação da Igreja neste contexto.
biológica, em função da sua capacidade de gerar e parir filhos.” E é na família nuclear
que esta ideia é naturalizada.
Borsa e Nunes (2011) observam que este modelo nuclear, entretanto, já se tornou,
de certa forma, obsoleto. Com as inúmeras mudanças ocorridas no século XX, em
especial após o advento de movimentos sociais tais como o feminista, a identidade e o
lugar da mulher na família começar a sofrer modificações. Para Landim, Banaco e Borsa
(2020), a partir das conquistas dos direitos das mulheres, das alterações jurídicas e da
conquista do mercado de trabalho por parte das mulheres, novas práticas familiares
começaram a existir. “É possível citar, a partir disso, a inclusão de configurações como
famílias homoafetivas, pluriparentais (ou binucleares, decorrentes de divórcio e de
guarda compartilhada) (Rosa, 2013).” (LANDIM; BANACO; BORSA, 2020)
Certamente não é possível fazer generalizações sobre o modelo de família atual.
Aliás, não é sequer possível tratar a configuração familiar contemporânea a partir de um
único modelo. Afinal, as possibilidades são diversas e diferentes fatores colocam em
xeque uma noção universal de “família”. Paulatinamente as relações de gênero têm
sofrido alterações. Contudo, algumas características básicas ainda recortam as sociedades
ocidentais e ocidentalizadas, em especial no que tange os cuidados do lar e das crianças.
Tal persistência de desigualdades fica explícita no relatório da Oxfam (2020): no Brasil,
90% do trabalho de cuidado é feito informalmente pelas famílias. E destes 90%, quase
85% é feito por mulheres. Neste sentido, o argumento de Durham (1988) de que a
instituição familiar ainda possui valor e não força é corroborado.
Um ponto que acredito deveras relevante é o levantado por Peterson (2014). Para
a autora, o Estado, ao fomentar e fortalecer o estabelecimento de uma família
heteropatriarcal, teve como benefícios a facilitação da acumulação; a centralização do
controle; a possibilidade de regulação das relações sexuais a partir de leis familiares; a
possibilidade de organização da reprodução; e a capacidade de regulação do direito a
propriedade (e sua transmissão) e pedidos de cidadania a partir de códigos. Para Holt
(2019), a compreensão que a disciplina de RI tem acerca da família ainda é pautada na
sinonimização entre família e relações heterossexuais e monogâmicas. E, embora não
seja possível afirmar que a disciplina por si só causa grandes impactos no reino
internacional de forma mais ampla, ela certamente possui reverberações ontológicas e
epistemológicas neste espaço, especialmente no que diz respeito a atuação Estatal e de
organizações internacionais tais como a ONU, como demonstrarei a seguir.
As Conferências sobre População e Desenvolvimento e o “internacional”

Apoiando-me em minha pesquisa de mestrado e em uma investigação anterior


(MORON, 2021) sobre os limites da maternidade no âmbito da ONU, resolvi me
aprofundar no embricamento entre demografia e maternidade. Inspirada pelo texto
seminal de Peterson (2014), em que ela disserta sobre os interesses do Estado por trás da
institucionalização de um tipo específico de família, decidi observar os textos e
recomendações derivados das Conferências sobre População e Desenvolvimento da
ONU. Em uma análise prévia verifiquei que há algumas menções a maternidade, em
especial no que diz respeito a maternidade segura. Entretanto, como já comentei na
primeira seção desta pesquisa, há uma grande diferença entre segura e saudável e a
utilização do primeiro termo e não do segundo pode configurar uma grande barreira nos
avanços dos debates sobre maternagem a partir de uma perspectiva matrifocal. Nesta
última parte do artigo, portanto, analisarei os documentos das Conferências atentando-me
as cláusulas e recomendações acerca dos temas maternos.
Embora eu utilize como marco analítico a Conferência de 1954, a primeira
Conferência Mundial sobre a temática populacional ocorreu em Genebra entre 31 de
agosto e 3 de setembro de 1927. Vinte e cinco países participaram da reunião e a
participação foi feita de forma voluntária após o recebimento de um convite. O evento,
que teve inspirações no encontro dos “Homens Americanos da Ciência”, teve como
principais organizadores os biólogos que participaram do supracitado encontro. De
acordo com Close (1927), os principais tópicos discutidos na conferência foram: Biologia
do Crescimento Populacional; População Ideal; População e Abastecimento Alimentar;
Efeitos de Diferentes Taxas de Natalidade; Fertilidade em Relação a População;
Migração Internacional e seu Controle; Institutos Raciais Biológicos e Hereditários; e
Doenças e Pobreza.
O foco se deu, principalmente, na questão migratória e, embora Close (1927,
p.472) afirme que “Estes são bons problemas práticos que podem ser melhor discutidos
em uma atmosfera internacional tão amigável como a da recente Conferência.”, é
possível observar que com a posterior crise migratória e humanitária e com a eclosão da
Segunda Guerra Mundial, que a iniciativa não passou de um debate teórico entre
especialistas e interessados na temática.
Já no que diz respeito as Conferências sobre população no âmbito da ONU,
Barsted (1996) aponta que as discussões acerca de questões concernentes à população e
desenvolvimento de forma mais densa tem como ponto de partida as Conferências
Mundiais de População, em especial as de Bucareste (1974), Cidade do México (1984) e
Cairo (1994). As quatro primeiras Conferências Mundiais de População não carregaram o
complemento “Desenvolvimento” em seus títulos, mas podem ser compreendidas dentro
deste escopo mais amplo, considerando que, para Camarano (2013 apud MARTINS,
2019) e Alves (2014 apud MARTINS, 2019), estes encontros tiveram como principal
foco o fornecimento de uma resposta para os desafios envolvidos na busca por um
equilíbrio entre crescimento populacional e desenvolvimento econômico.
McIntosh e Finkle (1995), corroboram com este argumento ao afirmar que,
embora muitas ONGs e a imprensa afirmem que a Conferência sobre População e
Desenvolvimento (CIPD) de 1994 tenha sido a primeira a considerar a população em
relação ao desenvolvimento, isto não procede. Para os autores,

A maior parte da linguagem sobre desenvolvimento no Plano de Ação da


População Mundial aprovado em Bucareste em 1974 e reafirmado na Cidade
do México em 1984 foi rotulado como “idêntica” ou “quase idêntica” ao
Programa de Ação aprovado no Cairo. No entanto, a passagem sobre o
“desenvolvimento sustentável” no documento do Cairo é novo, mas breve e
muito geral. (MCINTOSH; FINKLE, 1995, p.252)

Dito isto, a primeira destas conferências foi realizada de 31 de agosto a 10 de


setembro de 1954 na cidade de Roma. Seu propósito fundamental foi de ser “uma troca
de opiniões e experiências entre especialistas em questões relevantes para a população.”
(ONU, 1955, p.1) Dentro os pontos de destaque no que diz respeito as questões maternas,
no encontro 11, na seção de formulações gerais sobre políticas para a população que já
estavam em curso, estão disponíveis algumas informações sobre países com baixas taxas
de fertilidade, em especial na Europa, que formularam planos de assistência materna e
infantil e que adotaram medidas de prevenção da morte materna e infantil. O texto segue
dispondo, em outras seções, acerca de práticas feitas em torno da prevenção da
mortalidade materno-infantil e não inova muito neste quesito.
Entretanto, percorrendo as páginas do relatório, um debate feito dentro do
encontro 28 me chamou a atenção: para os presentes, a empregabilidade de mulheres
antes da vida conjugal poderia impactar em uma maior “aceitação” da maternidade com
menor ansiedade devido a um suposto aumento de confiança na possibilidade de
reentrada no emprego quando “seus filhos não precisarem mais seu cuidado constante em
casa.” (ONU, 1954, p.141) Ora, esta frase corrobora com o argumento de que, embora
haja um esforço para compreender as demandas das mulheres mães, em especial no que
diz respeito ao trabalho fora de casa, a visão da mulher mãe como sendo exigida nos
cuidados de suas crianças somente no ciclo gravídico-puerperal ainda persiste. Não se
considera o fato de que o maternar, em muitos casos, acontece ao longo de toda a vida
restante da mulher desde o momento em que ela gera uma nova vida. Desconsidera-se,
também, a própria relação mãe-filha(s) e o desejo e/ou necessidade que esta mulher pode
ter de flexibilizar a sua rotina para dar conta da dupla ou tripla jornada de trabalho6.
Com relação a segunda conferência, ela foi realizada em Belgrado e ocorreu entre
30 de agosto e 10 de setembro de 1965. Ela foi promovida pela ONU em associação com
Agências Especializadas e a União Internacional para o Estudo Científico da População.
(INSTITUTE AND FACULTY OF ACTUARIES, 1966) É interessante observar que os
relatórios e documentos relativos as CIPDs a partir de então passaram a contar com um
aviso logo no início, no qual a ONU informa que as visões e opiniões expressas nos
encontros são de autores individuais e não implicam na opinião expressa do Secretariado
da ONU. Ainda assim, estes debates acontecem sob os auspícios do órgão. Isto posto, no
quesito materno, os textos e debates dispõem, principalmente, sobre mortalidade
materno-infantil; controle de fertilidade; e estudos quantitativos sobre o perfil de
mulheres mães e seus cruzamentos com fatores relativos a mortalidade materna, a
mortalidade infantil e a características de saúde e do perfil de mães e crianças.
Ressalto, entretanto, um caso que me chamou atenção: o dos países soviéticos. O
primeiro ponto está disposto na seção “Tendências Populacionais Futuras e Prospectos”.
Um dos artigos, redigido por Smulevich (1967), ao observar os padrões contemporâneos
ao seu tema e as estimativas futuras sobre a substituição populacional, constatou que no
modelo socialista, contrariamente ao que pensavam os especialistas da época, não havia
posição contrária ao planejamento parental.
O autor ainda expõe que a política populacional socialista era considerada uma
das facetas da política socioeconômica, que foi “projetada para alcançar os objetivos
humanísticos de desenvolvimento físico e espiritual completo das pessoas e a satisfação
6 A dupla e a tripla jornada dizem respeito as atividades laborais que uma mulher exerce ou pode exercer
em seu trabalho fora de casa (formal ou informal), ao trabalho doméstico não remunerado e ao cuidado
com as crianças.
de suas crescentes necessidades e, em particular, para permitir que as mulheres
combinem maternidade feliz com trabalho criativo.” (SMULEVICH, 1967, p.35)
Já o segundo se encontra na seção “Fertilidade” e advém de um artigo escrito por
Sadvokasova, no qual o autor afirma que na União Soviética o Estado não praticou
nenhuma ação para a redução artificial da taxa de natalidade. “Na União Soviética, o uso
de anticoncepcionais e a interrupção artificial gravidez (aborto) são autorizados por lei.
As mulheres têm o direito de decidir questões de maternidade por si mesmas.”
(SADVOKASOVA, 1967, p.113) Entretanto, esta tendência não pode ser observada em
outros contextos. Conforme Barsted (1996, p.7)

Nas duas primeiras Conferências, o ponto mais sensível foi a ênfase em deter o
crescimento populacional, apontado como uma das causas mais diretas da
produção de pobreza. Tal ênfase redundou, em muitos países, em políticas
autoritárias de controle demográfico, contrariando os direitos humanos de sua
população.

De fato, é possível observar que programas de limitação do crescimento


populacional foram iniciados por Japão, Índia, Paquistão, Indonésia, República Árabe
Unida e Taiwan. “A URSS, a China e a Igreja Católica Romana mantiveram oposição
pública, mas privadamente começaram a ajustar suas atitudes para com a extrema
necessidade humana.” (INSTITUTE AND FACULTY OF ACTUARIES, 1966, p.92) A
importância deste tema, da possibilidade de decisão da mulher nos assuntos maternos, é
vital para a maternagem. Pois, como infere Hoagland (1988, p. 96), “A maternagem
também pode envolver a escolha de não trazer um filho ao mundo, uma vez que a
sociedade não permite que uma lésbica seja o tipo de mãe que ela escolhe ser.” O inverso
também pode ser dito: a escolha de trazer uma criança ao mundo implica, por si só, em
uma agência da mulher que deseja ser mãe. Tirar esse direito implica em uma violação
corporal e emocional das mulheres.
Avançando, com relação a terceira Conferência, ela ocorreu em Bucareste entre
os dias 19 e 30 de agosto de 1974. Diferentemente dos dois primeiros encontros, esta
conferência contou com um plano de ação e recomendações. No capítulo VI, que contém
relatórios do Primeiro Comitê referente a “Mudança populacional e econômica e
desenvolvimento social”, consta, na subseção VI, parágrafo 126, que “Reafirma-se que o
direito de cada casal, que livre e responsavelmente decide sobre o número e espaçamento
de suas crianças, é um direito humano básico, e parte integral da família e bem-estar
social e essencial para a saúde das mães e crianças.” (ONU, 1974, p.89)
O documento segue trabalhando com a questão da saúde materna e entende-a
como um fator crucial para a saúde infantil. A temática da redução da taxa de natalidade
aparece novamente e uma problemática etarista fica evidente:

Os países que desejam reduzir suas taxas de natalidade são convidados a dar
considerações especiais à redução da fertilidade nos extremos da idade
reprodutiva feminina, devido aos efeitos salutares que isso pode ter sobre o
bem-estar infantil e materno. (ONU, 1974, p.13)

Ainda que discussões sobre a influência da idade materna na gestação e parto e


outros fatores a exemplo de escolaridade e classe social tenham, de fato, sido feitas nos
encontros anteriores, é somente neste que o caráter recomendatório entra em cena. A
despeito de estar claro que o convite acima aparece como um desejo de reconsideração
de políticas antinatalistas, a forma como esta reflexão foi feita configura um preconceito
contra mulheres que desejam ser mães e que não estão “nos extremos da idade
reprodutiva”. Neste momento a questão da impossibilidade que a mulher tem de decidir
sobre o seu próprio corpo e com base em seu próprio desejo também mostra a sua face.
Os caminhos da maternagem sofrem, mais uma vez, um grande revés.
Seguindo, na quarta Conferência, sucedida na Cidade do México entre os dias 6 e
14 de agosto de 1984, as recomendações seguem praticamente o mesmo padrão das
anteriores: tratam, acima de tudo, de questões concernentes a mortalidade materna e
infantil. Um ponto de destaque é a recomendação 7, na qual se aconselha que os
governos devem fornecer para as mulheres, através de educação, treinamento e emprego,
oportunidades de satisfação pessoal, seja em papéis familiares ou não. “Bem como
quanto à plena participação na vida econômica, social e cultural, enquanto continuando a
dar o devido apoio ao seu importante papel social de mãe.” (ONU, 1984, p.17)
Não há, contudo, uma descrição detalhada de qual é o “papel social da mãe” ou
sequer uma consideração para além do ciclo gravídico puerperal, como pode ser
observado na Resolução 19, que reconhece a importância do papel da família, em
especial da mãe, nos primeiros cuidados infantis. O foco na maternidade saudável é feito
aqui, fundamentalmente, em termos biologizantes, o que essencializa não somente a
mulher mãe, mas o próprio processo do maternar, que neste contexto pode ser
considerado como maternidade e não como maternagem.
Com relação a quinta Conferência, conhecida oficialmente como a primeira CIPD
(Conferência Internacional de População e Desenvolvimento), ela ocorreu em Cairo entre
os dias 5 e 13 de setembro de 1994. Esta convenção foi um marco nos estudos sobre a
intersecção população e desenvolvimento pois partiu de um viés diferente do que estava
sendo utilizado até então: a abordagem numérica e o foco em projeções de crescimento
populacional foram postos em xeque. A partir da CIPD de 1994 objetivou-se trabalhar
com a ideia de que a população é detentora de direitos. (MARTINS, 2019)
No caso das propostas relativas as mulheres mães, muito há a se falar neste
sentido. Primeiramente, destaco as recomendações 4.13 e 5.3. que discorrem
principalmente sobre a importância da criação de leis e implementações de programas e
políticas que permitam que funcionárias e funcionários organizem suas responsabilidades
familiares e trabalhistas por meio de horários flexíveis, licença-maternidade e
paternidade, a implementação de creches, e políticas que favoreçam a amamentação de
mulheres mães trabalhadoras. Embora, de fato, as propostas sejam muito boas, há uma
grande ênfase somente na mulher mãe que trabalha fora (formal ou informalmente). As
recomendações não buscam abarcar a mulher mãe que exerce trabalho doméstico e/ou de
cuidado não remunerado.
Ao longo do Capítulo VIII, que versa sobre “Saúde, Morbidade e Mortalidade”,
muito se fala sobre o valor da maternidade segura. A ênfase é dada, principalmente, na
manutenção da saúde materna no ciclo gravídico-puerperal e na busca pela redução da
mortalidade materna que, conforme afirmado no texto, pode impactar fortemente no
desenvolvido da criança.

A maternidade segura visa atingir a saúde materna e neonatal ideal. Implica


redução da mortalidade e morbidade materna e aumento da saúde de recém-
nascidos por meio do acesso equitativo aos cuidados primários de saúde,
incluindo planejamento familiar, pré-natal, parto e cuidados pós-natal para a
mãe e bebês, e acesso a cuidados obstétricos e neonatais essenciais. (ONU,
1994, p.115)

O que havia me chamado a atenção positivamente a primeira vista, a utilização do


conceito de maternidade segura, logo trouxe consigo uma realidade mais dura. A
promoção da maternidade segura na CIPD não trata sobre os aspectos sociais e/ou dos
impactos culturais, econômicos e políticos que a maternidade tem na vida da mulher. Ela
não parte de um pressuposto mais abrangente que, como já argumentei, abrangeria
também o caráter saudável que pode ser mais amplo. O olhar da CIPD sobre a
problemática restringe-se nos termos das possibilidades biológicas – a maternidade na
esfera patriarcal – e em um curto espaço de tempo, o ciclo gravídico-puerperal. A
despeito de tratar do planejamento familiar, que pode ser feito no longo prazo, esta leitura
da maternidade segura não abarca a necessidade de creches para mulheres mães que não
trabalham fora, os cuidados desprendidos pelas mulheres mães ao longo da existência de
suas filhas e filhos (cuidados estes que vão muito além da primeira infância) e não trazem
para dentro do texto uma visão materna pautada nas experiências e necessidades destas
mulheres.
Os resultados de Cairo, entretanto, impactaram fortemente as discussões mais
amplas sobre uma série de tópicos, dentre eles o direito ao aborto e as crises ambientais.
Um Plano de Ação de 20 anos foi adotado ao término deste encontro e o que veio a
seguir foi, na verdade, uma fama de discussões provenientes da CIPD de 1994 e deste
Plano de Ação. No documento formulado pela UNFPA 7 em 2004 que teve como intuito
revisar os principais tópicos da CIPD e verificar o andamento da execução do Plano de
Ação, a questão da maternidade segura reaparece como um dos temas centrais. Todavia, é
pertinente apontar que o reconhecimento das limitações de algumas tarefas aparece no
texto. Na seção sobre igualdade de gênero e empoderamento feminino, está disposto que
“Mesmo 10 anos após o Cairo, o relatório descobriu que ‘as mulheres ainda são vistas em
termos de suas vulnerabilidades’ e colocadas mais frequentemente em seus papéis
tradicionais de mães ou vítimas - não como atores no processo de desenvolvimento.”
(UNFPA, 2004, p.32)
O reconhecimento destas limitações não os impede, contudo, de prosseguir com
uma perspectiva essencialista no âmbito dos assuntos maternos. No quadro de ações para
o acompanhamento do Programa de Ação da CIPD publicado em 2014 e pensado para
além deste ano, a atenção ainda se concentra na mortalidade materno-infantil e na busca
pela redução destes índices. A ideia de maternidade aparece apenas uma única vez, o que
não significa que esta noção tenha sido substituída pela da maternagem saudável ou
qualquer outra concepção semelhante. Ainda que este quadro afirme que “Na área da

7 United Nations Population Fund ou em português, Fundo Populacional da Organização das Nações
Unidas
saúde da mulher, resultados do parto são cada vez mais reconhecidos como sendo
responsivos a condições de estresse devido à discriminação contra a mãe.” (UNFPA,
2014, p.73), não há uma definição clara de como combater tais discriminações e somente
três artigos são indicados como material de aprofundamento na questão, todos os três
focando principalmente na discriminação racial e deixando de lado todas as outras.
Processo parecido ocorre na temática da condição da pessoa sem-teto. A despeito
de haver o reconhecimento de que a condição do adulto solteiro sem-teto difere da
condição da família sem-teto, dos jovens sem-teto e das especificidades que cada um
destes grupos possuis, a exemplo da interseccionalidade de opressões que há no caso da
jovem mãe solteira com pequenas crianças, o assunto é muito pouco desenvolvido e as
lacunas não param de se acumular.
Mesmo na Cúpula de Nairóbi sobre a CIPD 25, que aconteceu entre os dias 12 e
14 de novembro de 2019 na capital queniana, a mortalidade materno-infantil ainda figura
como o ponto central das discussões maternas. Com a observação destas Conferências e
de seus relatórios, é possível afirmar que, embora a CIPD 1994 configure um ponto
destoante no tratamento das questões maternas, mesmo ela possui barreiras para a
maternagem saudável que, como argumentei, é vital para uma prática materna
emancipadora e potencialmente empoderadora.

Considerações Finais

O feminismo matricêntrico enquanto proposta teórica e prática, que parte de uma


abordagem matrifocal e da compreensão da maternagem como um fenômeno e uma ação
potencialmente emancipatórios para a mulher, defende, principalmente, que a mulher
mãe possui capacidade de agência. Este protagonismo só pode ser plenamente realizado
em ambientes nos quais o papel social da maternagem seja não só reconhecimento, como
fomentado. É certo que os arranjos familiares atuais, conforme debati na segunda seção
deste artigo, podem configurar tal espaço. Ainda assim, muitas das concepções Estatais –
e sociais, de certo modo – acerca da “família” ainda se encontram no locus patriarcal e,
em última instância, nuclear, que tem como fundamento a essencialização, a
individualização, a privatização, a naturalização, a normatização, a intensificação, a
idealização, a despolitização e a biologização tanto da mulher mãe quanto das funções
maternas.
Os impactos destas visões reverberam em diferentes cenários e aspectos sociais,
especialmente no que diz respeito a forma como os Estados e os especialistas enxergam a
maternidade que ocorre nos âmbitos patriarcais e impossibilita a maternagem feminina e
feminista. A partir destas asseverações, e após observar os documentos referentes as
Conferências sobre População e posteriormente Conferências sobre População e
Desenvolvimento, identifiquei que as principais barreiras para a maternagem saudável
nestes encontros é a associação da maternidade a segurança e a sua assimilação ao ciclo
gravídico-puerperal, o que endossa uma visão biologizante e essencialista da mulher mãe
e faz com que seu único espaço de existência persista como sendo o da família nuclear, o
que é profundamente excludente e opressor.
Em suma, embora exista a ampliação dos debates acerca do papel social das
mulheres mães em, pelo menos, dois relatórios dos encontros promovidos pela ONU, esta
indissociabilidade da figura da mãe e sua presença na família nuclear mitiga a
possibilidade do surgimento de novas discussões acerca do caráter político da
maternidade (sob a ótica da maternagem), dos direitos sexuais e reprodutivos femininos e
da compreensão da maternagem para além dos ciclo gravídico-puerperal. Tratar deste
assunto é, portanto, urgente. A plena realização da mulher mãe em sua maternagem
depende de diferentes fatores, e as possibilidades internacionais e nacionais que surgem a
partir dos debates e das consequentes legislações fazem parte deste universo e, como tal,
impactam nos avanços – ou entraves - para a maternagem saudável.

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