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Resumo simples
Nas Relações Internacionais o reino “global” é vendido como um local distante, quase
divino. Ele é posicionado longe de nossas vidas e experiências cotidianos. Ainda assim, as
ações conduzidas em seu espaço reverberam aqui e acolá: seja na economia, na política,
na cultura ou em qualquer outro âmbito somos bombardeados com as decisões dos
governantes, os acordos e encontros internacionais e as leis que derivam das resoluções
adotadas nas instituições internacionais. Pensando nestas – e em outras – questões,
objetivo, por meio da análise documental, observar as Conferências sobre População e
Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas a partir da teoria feminista
matricêntrica. Buscarei nestes textos pelo que considero a principal dicotomia entre o que
está proposto e o que de fato está contido nas recomendações, notas e planos de ação.
Como resultado espero ser capaz de comprovar que uma das principais bases desta
diferença é o foco que estes relatórios dão na maternidade sob a égide patriarcal, inserida
principalmente na ideia de uma família nuclear, profundamente marcada pela desigualdade
de gênero, a heteronormatividade, a monogamia e a branquitude.
Resumo expandido
Inicio este resumo tendo como base não somente a minha pesquisa de mestrado,
mas também o mote feminista internacional de que “o pessoal é global e o global é
genderizado.” (ENLOE, 2000, p. xi). Esta frase que a primeira vista parece ser muito simples
e generalizante, muito pode nos dizer: para a autora, assim como para mim, o internacional
está calcado no nacional. Isto é, o que gosto de chamar de “Relações Internacionais (RI) do
dia a dia” ou RIs rotineiras, que nada mais são do que uma gama de fenômenos que
permeiam nossas vivências e que vão desde o simples ato de acordar – afinal, se estamos
vivas possuímos algum tipo de impacto econômico, social, político, cultural etc. - até a
atuação que temos como acadêmicas em um evento de pesquisa internacional – para usar
aqui um exemplo bem óbvio – constituem as bases não apenas da disciplina, mas do
próprio ser etéreo que é o “global”, o “internacional”, o “mundial”. E, assim como qualquer
aspecto das sociedades ocidentais, esta entidade que funciona como palco das “RIs” e das
“ris” é genderizada.
Ao pensar na problemática das mães cuja bandeira tenho levantado quase que
diariamente nos últimos dois anos, e durante o desenvolvimento de um dos capítulos da
minha dissertação, uma pergunta me veio a mente: Como os tratados internacionais
enxergam a maternidade? Ou melhor, de onde parte estas discussões? É a partir da saúde?
Do trabalho? Da questão do cuidado? Um pequeno questionamento ramificou-se em vários.
Portanto, buscando delimitar o meu tema e o meu objeto, optei por focar em um tópico que
tem sido cada vez mais discutido tanto na disciplina quanto nos eventos e fóruns
internacional: a demografia. A conexão entre maternidade e crescimento demográfico,
apesar de óbvia, serve como uma boa forma de desvelar e colocar em xeque os supostos
limites entre o pessoal e o global; o indivíduo e o Estado. Logo, considerando estas e outras
questões, objetivo demonstrar, neste artigo, como as Conferências sobre População e
Desenvolvimento da Organização das Nações Unidades (ONU) partem de um pressuposto
conservador acerca da maternidade – e daquilo que entendem como “maternidade segura”
– passível de ser explicado a partir da adoção da família nuclear como unidade básica da
execução da maternidade.
Com isto, embora exista a ampliação dos debates acerca do papel social das
mulheres mães em, pelo menos, dois relatórios dos encontros promovidos pela ONU, esta
indissociabilidade da figura da mãe e sua presença na família nuclear mitiga a possibilidade
do surgimento de novas discussões acerca do caráter político da maternidade (sob a ótica
da maternagem), dos direitos sexuais e reprodutivos femininos e da compreensão da
maternagem para além dos períodos da gravidez, parto e puerpério.
Antes de avançar para a explicação acerca do principal método a ser utilizado nesta
empreitada, é importante que eu faça uma distinção entre maternidade e maternagem, o
que demanda que eu explicite, também, a base teórica a ser adotada. Primeiramente, para
fazer esta pequena distinção apoio-me nas obras de Rich (1995) e O’Reilly (2004). De forma
sucinta, a maternidade é a experiência vivenciada por uma mulher mãe 1 sob a égide do
patriarcado. Ela possui bases biológicas, ou seja, o potencial que toda pessoa com útero
tem de gestar e parir, e bases institucionais, isto é, o fenômeno da maternidade definido por
homens e imposto sobre as mulheres. Já a maternagem, que na prática também envolve a
experiência materna, é a possibilidade de tomada de agência por parte das mulheres. Ela
possui um caráter fundamentalmente emancipatório e considera a vivência das mulheres
mães como algo político, passível de trazer mudanças sociais.
Isto posto, o feminismo matricêntrico pode ser entendido como uma teoria que torna
passível a execução de pesquisas – e modos de vida em última instância – que trazem
questionamentos acerca da maternagem e das múltiplas experiências que a permeiam. Esta
1 Embora reconheça que a maternidade não é um fenômeno vivenciado exclusivamente por
mulheres ou sequer somente por pessoas com útero, nesta pesquisa o recorte por mim adotado é
o da maternidade experienciada por mulheres e pessoas com útero.
corrente teórica foi fundada por Andrea O’Reilly, pesquisadora norte-americana que tem
como objeto de estudo as questões maternas. Embora seja possível traçar o seu surgimento
no início dos anos 2000, foi somente em 2016 que a intelectual publicou a obra “Matricentric
Feminism: Theory, Activism and Practice”.
Neste livro, a autora tem como objetivo apresentar a teoria proposta e desenvolver
uma crítica a maternidade nos moldes patriarcais. Ela também reconhece a importância da
adesão do feminismo aos questionamentos acerca da maternidade – e da maternagem. Ela
parte de uma perspectiva matrifocal: em sua concepção, o feminismo matricêntrico não deve
se opor as abordagens feministas tradicionais, mas, antes, mudar o centro e colocar a figura
da mulher mãe nele. Em suas palavras, “eu sugiro que uma perspectiva matrifocal em
desmascarar a maternidade e redefinir a maternagem permite estes encontros e
explorações.”2 (O’REILLY, 2016, p.6)
A tarefa de reposicionar as mães no centro não é difícil. Afinal, a maternidade é uma
realidade vivida por mulheres que fazem parte dos mais diversos grupos. A intersecção não
só existe como é desejável: quanto maior a multiplicidade de experiências, maior será o arco
de possibilidade de mudanças. Desta maneira, gostaria de retornar aqui ao meu objeto de
análise: as Conferências sobre População e Desenvolvimento da ONU. Para este resumo
inicial elegi como fonte principal o documento proveniente da Conferência sobre População
e Desenvolvimento de 1994, a Plataforma de Cairo. Buscando pelas recomendações e
notas que versassem explicitamente sobre as questões maternas, deparei como um
conceito de grande importância no âmbito do relatório: o da maternidade saudável.
Este conceito, cuja definição foi pautada na concepção oferecida pela Organização
Mundial da Saúde (1994), afirma que a
3 Para mais explicações acerca da perspectiva epistemológica feminista, ver Ackerly, Stern e True
(2004).
Finalizando, com esta pesquisa, que de certa forma deriva da minha dissertação de
mestrado, espero problematizar questões referentes a maternidade na esfera internacional
e, de modo mais específico, demonstrar como os limites da disciplina de Relações
Internacionais e do Sistema Internacional são construídos de modo a parecerem distantes,
apesar de suas resoluções e construtos teóricos impactarem mormente em nossas vidas e,
com isso, enfraquecerem ou fortalecerem opressões e/ou resistências.
Referências Bibliográficas
Ackerly, B. A.; Stern, M.; True, J. (2006) Feminist methodologies for International Relations.
Cambridge University Press
Enloe, C. (2000) Bananas, Beaches and Bases: Making Sense of International Relations.
Los Angeles: University of California Press
O’Reilly, A. (2004) From motherhood to mothering: The legacy of Adrienne Rich’sOf Woman
Born. New York:State Universiry of New York Press.
Oxfam. Relatório sobre nós e a desigualdade "tempo de cuidar". Fórum Econômico Mundial
de 2020, Davos. [documento da Internet]. 2020 Jan. Disponível em:
<https://oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-davos/tempo-de-
cuidar/> Acesso em 31 mai. 2021.
Rich, A. (1995). Of woman born: Motherhood as experience and institution. New York: Norton