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Andréa Depieri
Professora do Departamento de Direito
da Universidade Federal de Sergipe
Apresentação
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este artigo tem por objetivo examinar como o conceito de
gênero pode ser compreendido como uma norma social e de
que modo ele é incorporado pelos sujeitos em suas práticas
cotidianas e em suas formas de perceber e de organizar o
mundo. Para tanto, fundamentamos nossa análise nos
constructos teóricos de duas autoras: Nancy Chodorow e
Judith Butler.
Para se trabalhar com o conceito de gênero, é necessário
partir de uma abordagem histórica. De acordo com Joan
Scott (1995), o termo “gênero” foi inicialmente utilizado pelas
feministas americanas para enfatizar o aspecto
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo.
O objetivo era o de pontuar a necessidade de incluir os
homens, ao se pensar sobre as mulheres. Ou seja, de
utilizar o conceito de gênero para se referir à dimensão
essencialmente relacional dos papéis atribuídos aos homens
e às mulheres na sociedade.
Em seu uso recente mais simples, o termo gênero é
sinônimo de “mulheres”. Contudo, numa acepção mais
aprofundada, o gênero se torna uma maneira de se referir às
maneiras pelas quais as identidades subjetivas de homens e
de mulheres são construções sociais, frutos de uma coerção
social sobre um corpo sexuado (SCOTT, 1995, p. 7). Nesse
caso, o gênero pode incluir o sexo, mas não é diretamente
determinado por ele.
Ainda segundo Scott (1995), existem três posições
teóricas distintas sobre o gênero. Primeiro, a autora
menciona as teóricas do patriarcado, que enfatizam a
subordinação das mulheres aos homens, tendo na
reprodução o apogeu da alienação do corpo feminino. A
crítica tecida a essa posição consiste no fato dela concentrar
sua análise na diferença física entre homens e mulheres, o
que aponta para um essencialismo, além de não procurar
explicar de que maneiras a desigualdade de gênero se
relaciona com outras desigualdades, como as econômicas,
por exemplo.
A segunda posição teórica mencionada por Scott abrange
o campo das pesquisas marxistas. Nele, se situam as
pesquisadoras marxistas que, ao mesmo tempo em que
rejeitam o essencialismo, destacam a importância de
considerar o patriarcado e o capitalismo como sistemas
separados, embora em permanente interação. Para Scott
(1995), as teóricas do marxismo, no entanto, falham ao não
conseguir explicar as razões pelas quais os sistemas
econômicos não determinam diretamente as relações de
gênero, haja vista que a subordinação das mulheres é
anterior ao capitalismo. Além disso, nessa posição, o gênero
é abordado como uma espécie de subproduto das estruturas
econômicas.
A terceira posição teórica consiste na teoria das relações
de objetos (na qual se destaca Nancy Chodorow) e nas
teorias pós-estruturalistas (que, para Scott, são
representadas pela psicanálise lacaniana). Segundo Scott
(1995), a teoria das relações de objeto dá ênfase à divisão
do trabalho existente na família, e apresentaria como
limitação exatamente esse aspecto: o de restringir a
construção do gênero à esfera familiar, sem explicar como a
sociedade se imprime nas formas de organização familiar.
Em relação às teorias pós-estruturalistas, Scott as define
como estando ancoradas num construtivismo radical: onde a
linguagem é erigida como o princípio a partir do qual se
constituem as subjetividades. Para a psicanálise lacaniana,
o masculino e o feminino não são características fixas -
inerentes aos sujeitos - mas identificações instáveis. No
entanto, adverte Scott, os lacanianos falharam ao se
concentram em demasia na dimensão intrapsíquica. Além
disso, certos conceitos desenvolvidos por Lacan podem ser
tomados numa perspectiva a-histórica, universalizante,
levando a uma “naturalização” de determinados aspectos da
relação entre o masculino e o feminino. Tal crítica será
aprofundada por Judith Butler. Scott (1995) não menciona
Butler como uma pesquisadora pós-estruturalista importante
para os estudos de gênero porque a publicação do seu
texto: “Gender: a useful category of historical analisys”
ocorre nos Estados Unidos em 1986. Posteriormente, esse
texto foi traduzido para o português como: “Gênero: uma
categoria útil para a análise histórica”. O texto de Scott ao
qual nos referimos é, portanto, anterior ao aparecimento da
obra que provocará uma mudança no modo como o gênero
é teorizado pelas ciências humanas e problematizado pelo
feminismo: “Gender trouble: feminism and subversion of
identity”, traduzido para o português como: “Problemas de
gênero: feminismo e subversão da identidade” foi publicado
nos Estados Unidos em 1990.
Partindo de uma concepção do gênero como um conceito
complexo que trafega entre diversos campos do saber,
nosso objetivo é tentar compreender de que modo o gênero
se constitui como uma norma incorporada pelos sujeitos em
suas práticas cotidianas e em suas percepções de si
próprios e dos outros. Para tanto, iremos nos fundamentar
em dois aportes teóricos distintos: nas elaborações tecidas
por Nancy Chodorow no livro “Psicanálise da maternidade:
uma crítica a Freud a partir da mulher”, publicado nos
Estados Unidos em 1978 e na concepção de gênero
desenvolvida por Judith Butler. Esses dois referenciais
teóricos nos servirão de fundamento para buscar respostas
para a seguinte pergunta: como o gênero se constitui
enquanto uma norma social incorporada pelos sujeitos em
suas formas de perceber o mundo e a si mesmos e de
organizar suas práticas cotidianas? Para buscar respostas
para esta questão, realizamos uma pesquisa bibliográfica
voltada para a análise do conceito de gênero na teoria de
Nancy Chodorow e na de Judith Butler. Procuraremos
mostrar em que aspectos as duas autoras se aproximam e
no que elas divergem no que se refere à forma como
definem o conceito de gênero enquanto uma norma social.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das elaborações de Nancy Chodorow e de Judith
Butler sobre o gênero, é possível perceber como o gênero
se constitui enquanto uma norma. Segundo Chodorow
(1990), desde a primeira infância, o gênero se inscreve na
relação da criança com seu principal cuidador – em geral, a
mãe – dividindo e delimitando não apenas os espaços a
serem ocupados por homens e mulheres, mas também
estabelecendo fronteiras no que se refere aos espaços
psíquicos. Porque são - desde a mais tenra infância -
educadas para o cuidado, é como se as meninas, explica
Chodorow, não se individualizassem completamente: ficando
sempre presas à mãe, e ao outro (um outro do qual terão de
se ocupar, cedo ou tarde). Já os meninos precisam, para se
tornar seres masculinos, romper, recusar a identificação
originária com a mãe. E na falta de referentes que possam
fazer uma espécie de conciliação entre a necessidade dessa
ruptura com a mãe e todo amor que sentem por ela e por
tudo que a ela se assemelha, tendem a negar, nesse
processo, tudo o que é feminino. Posteriormente, os
elementos femininos recusados pelo menino vão pesar
sobre a identidade masculina como uma ameaça. De tal
maneira, que a identidade masculina vai representar sempre
uma conquista dos atributos masculinos sobre uma
feminilidade que deve ser totalmente recusada.
(SCHENEIDER, 2000). Nesse processo de “se livrar da
feminilidade”, os meninos negam a capacidade de cuidar,
pois aprenderam desde muito cedo que tal capacidade é
eminentemente feminina. Os meninos, portanto, ao se
constituírem enquanto sujeitos, flertam sempre com o risco
de se individualizar em demasia, tornando-se adultos
incapazes de cuidar.
Levando em consideração que Chodorow escreveu
“Psicanálise da maternidade” em 1978, faz-se necessário
pensar sobre as mudanças que ocorreram na divisão sexual
do trabalho, ou nas normas de gênero. É possível afirmar
que assistimos, no Brasil e no mundo, a uma flexibilização
das relações de gênero (GOMES, 2009). A divisão rígida
dos lugares e das atribuições próprios aos homens e às
mulheres dá lugar, atualmente, nas sociedades ocidentais
pós-industrializadas, à negociação, à imprevisibilidade, à
fluidez. No entanto, apesar da existência de muitos espaços
de negociação antes impensáveis, o discurso tradicional,
que propõe para as mulheres a responsabilidade de cuidar
da vida familiar e dos afazeres domésticos, tende a
permanecer forte, mesmo nos casos em que as mulheres
estão solidamente inseridas no mercado de trabalho
(BORGES, ROCHA-COUTINHO, 2008).
Se nos apoiamos na explicação dada por Chodorow para
a manutenção a divisão sexual do trabalho em nossa
sociedade: a saber, de que se trata de um processo
educativo iniciado na primeiríssima infância e que, como tal,
produz dois tipos de subjetividade muito distintos entre si – a
masculina e a feminina –; fica mais fácil compreender
porque não é suficiente que as mulheres estejam no
mercado de trabalho (e até ganhem o suficiente ou mais do
que o marido) para que ocorra uma distribuição mais
igualitária das tarefas reprodutivas. Não se trata, no entanto,
de sugerir que as mudanças sociais não seriam suficientes
para a reorganização dos espaços públicos e privados e das
tarefas produtivas e reprodutivas no campo das relações de
gênero. Trata-se de pensar que é fundamental um trabalho
de reeducação e, sobretudo, um exercício de
desnaturalização das práticas cotidianas. Como defende
Chodorow (1990), o caráter desfavorável e desigual da
maternidade poderia ser mitigado se não coubesse apenas
às mulheres a tarefa de maternar. Mas, para que os homens
também maternem é preciso que homens e mulheres
passem a conceber o processo de parentalização de um
modo diferente, não tradicional, não binário.
Considerar que o gênero é uma norma inscrita nos corpos
dos sujeitos e naturalizada nas suas práticas aproxima as
teorias de Chodorow e Butler. Para as duas autoras, o
gênero é altamente coercitivo porque ele se exerce como um
poder sutil: uma vez que constitui a forma mesma como os
sujeitos veem o mundo, se orientam nele e também se
percebem em sua singularidade. Nesse sentido, um sujeito
“faz gênero” a todo momento, sem pensar e quanto mais
esse fazer é irrefletido mais é sustentado por normas que lhe
escapam, que operam silenciosas, como se fossem algo da
natureza, incontornável, que apenas se desvelasse pelas
ações.
No entanto, Butler é uma pensadora mais transgressora
do que Chodorow. Primeiro, porque existe em Chodorow um
certo essencialismo implícito na divisão do mundo entre os
meninos – que irão se masculinizar – e as meninas – que
irão se feminilizar. Chodorow parte de um pressuposto que
Butler tenta destruir em sua teoria: o de que existe um
sistema binário de gêneros dentro do qual os sujeitos irão se
situar. Obviamente, Chodorow não ignora que a feminilidade
não é um atributo único das mulheres assim como tampouco
a masculinidade é um atributo apenas dos homens. Isso, no
entanto, não exime a autora de relacionar e de dividir o
mundo em dois destinos específicos: o masculino e o
feminino.
Quando tentamos fazer o movimento de ajustar o conceito
à realidade das práticas cotidianas, as formulações de
Chodorow são muito mais digeríveis. Apesar de habitarmos
o século XXI e de convivermos com constantes inovações
tecnológicas, o mundo ainda nos parece seguramente
dividido no que é masculino e no que é feminino. Essa
segurança do binarismo, ainda que se mostre cada vez mais
ilusória, provavelmente é mais fácil de ser absorvida do que
a proposta de Butler de que possam existir tantos diferentes
gêneros quanto existem diferentes pessoas (2003). Se se
trata de uma provocação teórica ou de uma possibilidade
prática, talvez seja algo que as próximas gerações irão nos
mostrar.
No entanto, mais importante do que cogitar ou questionar
sobre a (im)possibilidade de pensar um mundo sem gênero,
é considerar que dentro do sistema binário, regido pelo
modelo da heterossexualidade compulsória, não há como se
pensar numa igualdade de condições para homens e
mulheres na sociedade contemporânea. Primeiro de tudo,
porque esse modelo é definitivamente restrito: apenas se
enquadram neles os homens e as mulheres que se
encontram ordenados segundo a lógica da
heterossexualidade. Ou seja: se for uma mulher, ela deve
ser feminina (preocupada com os sentimentos, interessada
pelo casamento, deve querer ter filhos e se ocupar deles,
deve colocar a família em primeiro lugar na escala das suas
ocupações e preocupações) e deve desejar um homem
masculino: (pouco ou nada preocupado com os sentimentos,
um futuro provedor, um trabalhador, com uma sexualidade
que não precisa se circunscrever à esfera do casamento,
etc), que, por sua vez precise de uma mulher que seja seu
objeto de satisfação sexual e sua cuidadora. Todos os outros
sujeitos que não se “ordenam” segundo a lógica da
heterossexualidade compulsória são banidos (dependendo
do quanto se afastem dela) da terra da normalidade. E qual
o problema de não ser normal? Nenhum. A não ser que, em
nossa sociedade, o anormal se aproxima perigosamente do
abjeto. E tudo o que é abjeto – monstruoso – pode, como
adverte Judith Butler perder com muito mais facilidade o
direito à vida.
Além de excluir toda uma gama de sujeitos que não se
enquadram no padrão (porque não são homens e mulheres
tais como “deveriam” ser: ou seja, não estão completamente
alinhados à norma) o sistema da heterossexualidade
compulsória demarca de modo essencialmente rígido a
feminilidade e a masculinidade. Butler nos conduz a refletir
não apenas sobre o fato de que homens e mulheres podem
ser masculinos e femininos, mas também que os gêneros
podem ser outra coisa para além da masculinidade e da
feminilidade. Nesse exercício, somos levados a buscar
desconstruir o sistema da heterossexualidade compulsória,
pois só a partir da sua desconstrução será, de fato, possível
pensar numa reinvenção da masculinidade e da
feminilidade.
Quando Butler propõe a desconstrução do sistema da
heterossexualidade compulsória é preciso que fique claro
que a autora não tem uma concepção ingênua de que seria
possível se viver numa sociedade sem a existência de
normas, de princípios reguladores do comportamento
individual e do coletivo. Para Butler (2004), em nenhum
momento se trata de pensar numa anomia, mas sim de
propor que é bastante possível e absolutamente necessário
se criar uma sociedade com normas mais fluidas: onde a
diversidade seja legitimada em seu direito de existir e de ser
respeitada em sua diferença.
REFERÊNCIAS
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na atualidade, as teorias feministas, no direito, têm sido
debatidas a partir de diversas perspectivas. Surgidas
inicialmente no seio do debate da teoria crítica do direito
norte-americano, contemporaneamente há uma gama
variada de vertentes, entre as quais se destacam o
feminismo negro, o feminismo queer e o feminismo
descolonial. Com isto, a discussão feminista passa pela
questão de identidade e de raça, sem, entretanto, se
descuidar do problema de classes. Hoje, portanto, o debate
feminista é interseccional, na expressão cunhada pela
feminista negra norte-americana Kimberlé Crenshaw em
19893. Qual seria, portanto, o papel do direito? Para tratar
desse assunto, a proposta é fazer aqui um resgate do
debate da teoria crítica do direito, situar a discussão por
meio da revisão bibliográfica e apresentar as propostas que
vêm sendo cogitadas acerca da possibilidade da reflexão
jurídica contribuir para a emancipação das mulheres. Para
isto, o artigo se divide em três partes, sendo que na primeira
é abordada a Teoria Crítica do Direito e sua relação com as
Teorias Feministas; a segunda parte estabelece o vínculo da
teoria com a práxis feminista; e, finalmente, na terceira
seção, discuto como ser mulher é uma questão política.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conceito coletivo de “mulher” deve ser entendido no
âmbito de sua utilidade quando se trate de definir a opressão
como procedimento sistemático, estruturado, institucional,
para que se possa continuar usando o Direito como
instrumento de transformação social a partir do qual se
normatize incorporando uma perspectiva de gênero. Só
assim as mulheres deixam de ser objeto de direito para ser
sujeitas de direito. É a partir dessa mudança de perspectiva
teórica que pode a atuação do Estado deixar de ser
traumática e frustrante no que diz respeito à sua
responsabilidade de garantir direitos das mulheres, para se
transformar em efetiva tutela de nossos direitos e
necessidades básicas. São essas as construções que os
feminismos devem pautar juridicamente: aquelas capazes de
aproveitar o potencial transformador do Direito como
ferramenta geradora de direitos para TODAS as mulheres.
Então, nós, mulheres, e especialmente as mulheres juristas,
precisamos nos inspirar no poema de Kate Rushin:
REFERÊNCIAS
Débora Massmann
Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutora em Semântica
pela Universidade de Campinas. Professora do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí – PPGCL/UNIVÁS
(MG).
Patricia Brasil
Doutoranda e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie (Bolsista CAPES/PROSUP). Advogada. Professora
Universitária na Graduação em Direito da MetrocampDeVry.
Resumo: O capítulo que se inicia tem por objetivo analisar os sentidos mulher na ordem
jurídica brasileira que permeiam as dificuldades na superação da desigualdade de gênero
no Brasil. Tratando-se o Direito de linguagem atribuída ao poder do Estado, a relação da
linguagem jurídica com a sociedade se dá a partir de formações discursivas que, revestidas
de caráter coercitivo, compõem a memória que constitui os sujeitos de direito. Tendo em
vista essa imbricada relação entre direito e linguagem, o texto propõe uma reflexão sobre a
tríplice articulação: linguagem, direito e sociedade, a partir dos estudos materialistas da
linguagem propostos por Orlandi (2002), que nos permite apontar a persistência de uma
memória discursiva sobre o sujeito mulher que constituindo os sentidos que permeiam a
tutela estatal, torna-se um obstáculo à coerência do sistema jurídico e à superação da
desigualdade entre homens e mulheres.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao percorrer textos de referência para o Direito brasileiro,
a reflexão proposta neste estudo deu visibilidade à trama de
sentidos que, historicamente, vem sendo produzida em torno
de e sobre a mulher na sociedade brasileira, sobretudo, no
âmbito do Direito. Esses sentidos não se constituíram, nem
mesmo se constituem ao acaso. Ao contrário, eles são
resultados de processos discursivos que envolvem língua,
história, ideologia, sujeitos, relações de poder, relações de
força, instituições e todos os processos de significação que
confluem para o funcionamento da linguagem na sociedade.
Como foi possível observar, os sentidos que se
produziram e se produzem em torno de e sobre a mulher
refletem o legado conservador, patriarcal e machista da
sociedade brasileira. Legado este que produziu, e ainda
produz, seus efeitos afetando as formas de significação na
contemporaneidade. Legado este que enraizou seus
tentáculos na sociedade brasileira alcançando, desde
sempre, instâncias que deveriam zelar e fazer funcionar a
igualdade de gênero, como é o caso, dos textos que
compõem nosso corpus.
Conforme o percurso teórico-analítico desenvolvido aqui,
compreendeu-se que, antes de 1988, a institucionalização
da ideologia de gênero nas práticas jurídicas e sociais era
um fato: o Direito normatizava a desigualdade entre homens
e mulheres, de um lado, regulamentando a supremacia e a
(aparente) superioridade masculina e, de outro lado,
reforçando a vulnerabilidade, a inferioridade e a
subordinação da mulher. Como destaca Dias (2015), até
1988, mesmo com que a publicação de leis e estatutos em
que a mulher estava, em tese, implicada, como é o caso da
Lei n.° 4.121de 1962, conhecida como Estatuto da Mulher
Casada, a legislação brasileira não apresentou avanços
significativos no que concerne à significação da mulher no
Direito.
Se até 1988, a discursividade jurídica atribuía à mulher
sentidos que remetem à relações de poder e relações de
força, em que, como vimos, ela era descrita como sendo
incapaz. Com o advento da Constituição Federal, a
materialidade linguística, isto é, o modo de dizer, de
representar linguisticamente a lei dá a falsa compreensão,
num processo de simples decodificação da língua, de que
algumas mudanças parecem ter se operado no discurso do
Direito, especificamente, na Constituição Federal.
Entretanto, como nos ensina a análise de discurso, a
linguagem não é transparente, isto é, as palavras não são
repositórios de sentidos: não há como atravessar uma
palavra e, atrás dela ou dentro dela, encontrar um sentido ali
já posto (ORLANDI, 2007). Não há como olhar nas
entrelinhas de um texto e dizer o que ele significa. Isso seria
apenas analisar o conteúdo. Para fazer análise de discurso,
é preciso aperfeiçoar nossa escuta discursiva e relacionar,
como foi destacado ao longo texto, o sujeito, a linguagem
(sentido) e a história funcionado em seus processos de
significação. Por isso, não podemos aceitar que, no art. 5º
da Constituição, se diga que novos e outros sentidos de e
sobre a mulher e sobre a paridade entre mulher e homem
estão ali expressos.
Conforme a análise realizada, observou-se que na
materialidade linguística, isto é, na estrutura da língua (forma
de dizer), o movimento de sentidos, que se produz em
“Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”,
põe em funcionamento um saber discursivo que remete ao
já-dito, qual seja, homens e mulheres não têm ou não tinham
os mesmos direitos e as mesmas obrigações na legislação
brasileira. Trata-se do funcionamento da memória discursiva,
amplamente explorando neste estudo, que faz retornar o
mesmo sentido em condições de produção distintas fazendo
assim a significação deslizar, deslocar, derivar para outros
espaços simbólicos. O que se observou nos textos em
análise foi justamente isso: o mesmo sentido de e sobre a
mulher foi sendo (re)produzido de modos diferentes, (re)dito
e (re)escrito de formas diversas por sujeitos distintos, em
textos distintos, em momentos históricos, sociais,
ideológicos e jurídicos também distintos. A partir do exposto,
considera-se então que a memória discursiva de e sobre a
mulher parece persistir e resistir nos textos da legislação
brasileira aqui estudados. Ao final desta reflexão, as
palavras de Foucault, em epígrafe, produzem seus efeitos
de sentidos e nos provocam a (re)considerar aquele
imaginário sobre a àrea Direito porque para Foucault (1998,
p. 45) “um direito, em seus efeitos reais, está ainda muito
mais ligado a atitudes, a esquemas de comportamento do
que a formulações legais”.
REFERÊNCIAS
Cristiane Soares
Doutora em Economia pela Universidade de Brasilia – UnB. Tecnologista do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
Resumo: Este artigo faz uma recuperação histórica da construção e da formalização dos
direitos reais dos trabalhadores domésticos brasileiros. Excluídas da legislação de 1940,
protetora dos diretos sociais, tanto estas como os trabalhadores rurais. As empregadas
domésticas representam uma das maiores ocupações das trabalhadoras brasileiras, mas
esta exclusão foi herança de um modelo histórico patriarcal e escravocrata. Com este olhar
este artigo analisa historicamente as alterações que a luta das domésticas foram
introduzindo no seu estatuto legal até alcançar a plenitude dos direitos trabalhistas em
2013. Em seguida a partir dos microdados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio
(PNAD/IBGE), constrói marcadores sociais de classe e das relações de gênero e raça,
para analisar nos anos de 2013, 2014 e 2015 este processo de transição da igualdade
formal para a realidade do cotidiano destas trabalhadoras. E conclui com uma breve
avaliação da atuação das políticas públicas pode romper com os elementos históricos e
estruturais de desigualdade no campo do trabalho, cuja condição de igualdade entre os
sexos nas suas relações de gênero e raça não é uma prioridade nacional.
Palavras-chave: Relações de gênero. Famílias. Legislação trabalhista. Igualdade.
Trabalhadores domésticos.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este estudo recupera historicamente a construção e a
formalização dos direitos sociais dos trabalhadores
domésticos brasileiros, ignorados pela legislação nacional de
1940. Esta deixou de lado a maioria dos trabalhadores do
país: os trabalhadores rurais e as empregadas domésticas.
Este trabalho analisa apenas o caso das empregadas
domésticas, onde as relações de trabalho são construídas
culturalmente como “lugar de mulher” e a execução dessas
tarefas não exige nenhuma qualificação. Portanto, uma
relação familiar, cuja atividade ocorria no interior dos
domicílios e no discurso oficial isto impediu sua
profissionalização.29
Numa perspectiva social, considera-se que este tipo de
exclusão foi herança de um modelo histórico patriarcal e
escravocrata vivenciado pela sociedade brasileira ao longo
do tempo (MELO, 1998). Esta naturalização faz dessa
ocupação o refúgio dos trabalhadores com baixa
escolaridade e sem treinamento na sociedade. A análise
histórica das alterações que a luta das domésticas
provocaram na legislação social nacional é sucintamente
apresentada, através das mudanças no seu estatuto legal
até alcançar a plenitude dos direitos trabalhistas em 2013.
No item seguinte a partir dos microdados da Pesquisa
Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD/IBGE), foram
construídos marcadores sociais de classe e das relações de
gênero e raça, para analisar nos anos de 2013, 2014 e 2015.
Estes marcadores são sinalizadores deste processo de
transição da igualdade formal para a realidade do cotidiano
destas trabalhadoras. Por último avalia a atuação das
políticas públicas pode romper com os elementos históricos
e estruturais de desigualdade no campo do trabalho, cuja
condição de igualdade entre os sexos nas suas relações de
gênero e raça não é uma prioridade.
2. A CONSTRUÇÃO E A FORMALIZAÇÃO DOS DIREITOS
DOS TRABALHADORES DOMÉSTICOS BRASILEIROS A
PARTIR DOS ANOS 1940: UMA VISÃO GERAL
Este estudo recupera, historicamente, porque a
construção e a formalização dos direitos reais dos
trabalhadores brasileiros, nos anos 1940, ignoraram os
trabalhadores rurais e a maioria das mulheres trabalhadoras
brasileiras.30 Alguns estudos que abordam o tema se limitam
a afirmar que a exclusão destes dois grupos da reforma
trabalhista resultou das características de relações de poder
e de trabalho diferenciadas vividas por estes trabalhadores
(MELO, 1998; FRAGA, 2013). No campo, as oligarquias
rurais tinham grande influência na política e na economia e,
naquele período, o Brasil ainda era considerado uma
economia predominantemente agrícola. Por outro lado, é
necessário destacar que a legislação trabalhista adotou uma
posição protecionista em relação às mulheres trabalhadoras,
baseada em princípios tais como - da fragilidade feminina,
da defesa da moralidade, da proteção à prole e da natural
vocação da mulher ao lar, assim como do caráter
complementar do salário da mulher, fundamentando-se em
um ideal de família patriarcal. Neste modelo de família a
chefia familiar seria do homem, tendo por objetivo proteger a
mulher trabalhadora no seu papel de mãe (BRUSCHINI et
all. 2008).
Por sua vez, um enorme contingente de trabalhadores
rurais, tanto homens como mulheres, ficaram fora deste
marco regulatório e desprotegidos, seja porque a força de
mobilização política era escassa diante do poder de grandes
latifundiários, conhecidos como os ‘coronéis’, seja porque a
representação sindical era praticamente inexistente. Esta
exclusão se apoia na profunda desigualdade que
caracterizava e ainda permanece nas relações sociais
brasileiras. No caso das empregadas domésticas, as
relações de trabalho em sua maioria eram tratadas como
uma relação familiar, de plena subserviência, cuja atividade
se dava no interior dos domicílios familiares e não em
empresas, o que dificultava a profissionalização desta
categoria. Desta forma a Consolidação da Lei do Trabalho
(CLT) 31 definiu estas trabalhadoras como “os que prestam
serviços de natureza não econômica à pessoa ou à família,
no âmbito residencial destas” (Decreto-Lei nº 3.078/1941,
Art.7º, alínea “a”) e, consequentemente, estas não foram
incluídas no corpo da legislação trabalhista.
Numa perspectiva social, pode-se considerar também que
este tipo de exclusão foi herança de um modelo sócio -
histórico patriarcal e escravocrata. Este se expressava na
vontade do “senhor ou patrão” como a autoridade suprema
tanto na unidade sócio-familiar como produtiva brasileira. E
mesmo após a abolição da escravidão a convivência entre
criadas e senhoras permaneceu marcada por relações
patriarcais que definia a extrema desigualdade presente na
sociedade, na qual as mulheres, senhoras ou criadas, eram
submetidas ao poder masculino. O trabalho com a
reprodução da vida, tais como cuidar da casa, cozinhar,
lavar louça, lavar e passar roupa, cuidar de crianças, idosos,
doentes, era secularmente femininas. Estas tarefas eram
responsabilidades das mulheres, culturalmente definidas do
ponto de vista social, como donas de casa, mãe e esposa.
As atividades de consumo familiar se constituíam em
serviços pessoais para o qual cada mulher internalizava a
ideologia de servir aos outros, que era vista pela sociedade
como uma “situação natural”, sem remuneração e
condicionada por relações afetivas entre as mulheres e as
pessoas de suas famílias.
Em outras palavras, percebe-se que, mesmo passado
quase um século, são poucas as transformações
observadas nas atividades desenvolvidas pelas mulheres no
universo doméstico, sobretudo, quando se almeja a
repartição do trabalho doméstico entre os dois sexos. As
empregadas domésticas, ainda hoje, constituem “...um dos
segmentos ocupacionais mais expressivos na alocação da
mão-de-obra feminina urbana” (AZERÊDO, 2002, p. 323).
Ademais, deslocadas para o mercado, as pessoas que
realizam tais atividades se deparam com uma ‘herança’
social, cujo estigma de desvalorização permanece até os
dias atuais. Patroas e empregadas participam de uma
relação de identidade mediada pela lógica de servir aos
outros como algo “natural”, embora essa relação de trabalho
tenha dois efeitos contraditórios: de um lado a questão de
classe e de outro, a identidade de gênero, raça/cor que é
estabelecida entre as mulheres, que aponta para uma
diferença estrutural entre mulheres, que se apóia na
profunda desigualdade que caracteriza as relações sócio-
raciais no Brasil. Portanto, coerentemente com a sociedade
de antanho, a legislação protetora do trabalho no Brasil, na
década de 1940, ignorou o serviço doméstico remunerado
no novo código legal.
Segundo Hirata (2004, p. 43), “A questão dos móveis
psico-afetivos da dominação, central neste campo, foi pouco
explorada pelos sociólogos [....] As noções de “servidão
voluntária”, de “consentimento” à dominação, bem como a
convocação do “sentimento amoroso” são heurísticas para
pensar o lugar dos afetos na reprodução da servidão
doméstica”. Pois se deve considerar que as mudanças na
divisão sexual do trabalho profissional não foram
acompanhadas de transformações similares na divisão
sexual do trabalho doméstico e familiar, onde a gestão e a
execução das tarefas continuam a ser de responsabilidade
das mulheres. Portanto, trata-se basicamente de uma
intrincada relação entre as diferenças estruturais e as
desigualdades entre mulheres que compartilham de uma
mesma condição de sexo, isto é, de ser fêmea da espécie
humana, uma categoria ainda considerada como tendo
menos valor (AZERÊDO, 2002); ao contrário dos homens
que são vistos como seres sociais.
A antropóloga Suely Kofes, ao analisar as relações e as
diferenças entre patroas e empregadas explicitou o que
denomina de “ambiguidade estrutural”, que permeia o
discurso sobre as experiências da relação entre empregada
e patroa, constituindo uma armadilha na prática política das
empregadas domésticas e suas conexões com outras
relações de dominação, impedindo-as de romper “aquelas
regras de convivência nos termos da relação familiar,
privada, interpessoal, que marca o exercício dessa mesma
relação” (2001, p. 302).
Nas décadas seguintes algumas mudanças aconteceram
e, em 1956, a Lei nº 2.757/1956 distinguiu o serviço
doméstico nos domicílios daqueles realizados por porteiros,
zeladores, faxineiros e serventes de prédios de
apartamentos residenciais. Estes trabalhadores até então
estavam excluídos dos direitos trabalhistas pela semelhança
com o trabalho doméstico. Além disso, vale chamar atenção
que esta distinção entre ocupações, que incorporou este
grupo de trabalhadores na CLT, favoreceu o trabalho
masculino.
Em entrevista para a Revista Maria Maria/UNIFEM, Melo
(2002) identifica o trabalho das empregadas domésticas
como o pior posto de trabalho, e é denominado assim por
ser tido como o lugar de mulher, como extensão das tarefas
femininas e ainda compreendidas como um “fazer por amor”
que, segundo a autora, foi decorrência de um processo
histórico que estabeleceu ao longo dos últimos 200 anos, a
separação da produção de bens do âmbito familiar,
reforçado pela herança escravocrata como responsável pela
desvalorização do trabalho doméstico. Assim, a autora traz
para a análise a construção histórica destas relações
baseada nas mudanças da economia, por meio do
capitalismo que, por sua vez, fortaleceu as desigualdades
entre os gêneros, configurada na divisão sexual do trabalho.
Poder-se-ia afirmar que ainda existe um “modo de produção
doméstico” fundado sobre a opressão das mulheres, central
na reiteração da dominação feminina, nessa permanência da
divisão sexual do trabalho no espaço e no tempo.
Por sua vez, exercendo atividades no interior dos lares e
famílias brasileiras, as domésticas foram silenciadas e, na
efervescência industrial dos anos 1950, no coração da
sociedade industrial nacional, na cidade de Campinas (SP),
por exemplo, surgiu uma associação profissional de
empregadas domésticas. Em 1961 funda-se na cidade do
Rio de Janeiro a Associação Profissional dos Empregados
Domésticos do Rio de Janeiro.32 Este movimento não foi
interrompido, nem mesmo pelo regime militar implantado no
Brasil em 1964. E as associações foram sendo criadas pelo
país afora, nos Estados do Maranhão, Paraíba,
Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
O que as trabalhadoras domésticas reivindicavam era,
fundamentalmente, a extensão da legislação trabalhista e a
seguridade social para a categoria. Provavelmente estas
organizadas na cidade de Campinas levaram as
reivindicações para o Deputado Federal paulista Francisco
Amaral (Movimento Democrático Brasileiro – MDB/SP) e
este formulou um projeto de lei que se transformou em uma
legislação especial para as domésticas. Assim, em 1972, o
Congresso Nacional aprovou a Lei nº 5.859/1972 que
reconhecia apenas alguns direitos legais a essas
trabalhadoras. Esta lei tornou obrigatória a assinatura da
carteira de trabalho, o direito a férias anuais remuneradas de
20 dias úteis e o direito a previdência social na qualidade de
segurados obrigatórios. No entanto, esta não regulou, por
exemplo, o tamanho da jornada e nem o horário de trabalho,
o que permaneceu a critério – e gosto dos patrões.
Desde 1960 (Lei nº 3.807/1960) as trabalhadoras
domésticas podiam se inscrever na Previdência Social como
segurado facultativo. Lentamente, outros direitos foram
sendo assegurados como a instituição do vale-transporte
com a Lei nº 7.418/1985, cobrindo o deslocamento
residência-trabalho e vice-versa, primeiro de forma
facultativa e, em 1987, como uma obrigação do empregador.
Porém, vale destacar que para tais obrigações do patrão/oa
havia, a priori, a necessidade de assinar a carteira, mas em
geral isso não ocorria e, na prática, as obrigações
mencionadas não eram efetivadas.
Nos anos 1980, apesar do contexto ser de plena afluência
das mulheres ao mercado de trabalho, suas dificuldades de
ascensão já eram demarcadas pela extrema desigualdade
salarial entre os sexos, agravada pela ausência de politicas
públicas como, por exemplo, a existência de creches, ainda
insuficientes até os dias atuais.
Finalmente, em 1988, depois de uma ampla mobilização
nacional de mulheres, foi promulgada uma nova Carta
Constitucional no Brasil que ampliou o reconhecimento de
um conjunto mais amplo de direitos para as empregadas
domésticas. Embora elas tivessem o direito ao salário-
mínimo, acrescentaram outros; irredutibilidade do salário,
salvo negociação; décimo-terceiro salário; repouso semanal
remunerado, preferencialmente aos domingos; gozo de
férias remuneradas, com pelo menos um terço a mais do
que o salário normal; licença à gestante, sem prejuízo do
emprego e do salário normal, com licença de 120 dias;
licença paternidade (cinco dias); aviso prévio proporcional ao
tempo de serviço, sendo no mínimo de 30 dias;
aposentadoria e integração à Previdência Social. Mas, os
direitos escritos para esta ocupação – domésticas - na
realidade ainda podiam ser “enquadradas” numa situação de
“servidão doméstica”. Por que a aprovação deste conjunto
de direitos, mesmo que ainda limitados não significou o seu
cumprimento na vida real. Isto porque esta ainda era uma
legislação discriminatória que não igualava esta categoria
aos demais trabalhadores, mas foi inegável que tinha havido
um avanço. O movimento de mulheres e as trabalhadoras
domésticas comemoraram a vitória porque durante os
trabalhos constituintes havia uma forte oposição à extensão
destes direitos, uma vez que era proposto que tudo ficasse
como rezava a legislação de 1972, suficientemente “boa”
para aquelas trabalhadoras. 33
Outra mudança que ocorreu com a Constituição de 1988
foi permitir a sindicalização das trabalhadoras domésticas e
isso possibilitou a continuidade da luta pela obtenção dos
demais direitos trabalhistas e previdenciários. Estes foram
basicamente obtidos a partir da primeira década dos anos
2000, como o acesso facultativo ao Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço (FGTS) e ao Programa Seguro-
Desemprego (Projeto de Lei da Deputada Benedita da Silva,
Partido dos Trabalhadores – PT/RJ). Contudo, estes novos
direitos ficavam a critério do empregador, como a maioria
dos anteriores.
Em 2006, o governo federal promulgou a Medida
Provisória nº 286 que permitia a dedução no Imposto de
Renda (IR) o valor pago pelo empregador à Previdência
Social do empregado doméstico. Esta medida tinha como
objetivo incentivar a formalização da categoria que
permanecia num patamar inferior a 30% do conjunto dessas
trabalhadoras. 34 Em 2008, o Decreto nº 6.481 proibiu o
serviço doméstico remunerado aos menores de dezoito
anos. Este decreto seguia as recomendações da Convenção
182, de 1999, da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), que trata de eliminar as piores formas de trabalho
infantil e que havia sido ratificada pelo Brasil em 2000, mas
que era ignorada pela sociedade brasileira.
Provavelmente a luta das mulheres pela igualdade no
mundo do trabalho e na vida, em todos os países, seja a
explicação para a mudança que aconteceu em 17 de junho
de 2011. Neste dia, a 100º Conferência Internacional do
Trabalho aprovou uma Convenção e Recomendação
histórica sobre trabalho decente para as trabalhadoras
domésticas do mundo. Na maioria dos países até então o
trabalho doméstico era objeto de uma regulação particular
que, de uma maneira geral, conferia às domésticas um
menor reconhecimento dos direitos garantidos. Este estatuto
diferenciado para o serviço doméstico remunerado
significava que, nessas sociedades, estas atividades eram
reconhecidas como o lugar da mulher e, portanto, gozavam
de uma proteção social excepcional.
A nova recomendação internacional promovida pela OIT
repercutiu no Brasil e o movimento sindical das
trabalhadoras domésticas ganhou fôlego para prosseguir na
luta. Para estender todos os direitos trabalhistas e
previdenciários vigentes aos demais trabalhadores e às
trabalhadoras domésticas era necessário revogar o
parágrafo único do art.7º da Constituição Federal que
restringia os direitos sociais da categoria dos trabalhadores
domésticos: “São assegurados à categoria dos
trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos
IV, VI, VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, bem como a sua
integração à previdência social” (Constituição da República
Federativa do Brasil). Portanto, a ampliação dos direitos
exigia a revogação deste parágrafo do art. 7º. E uma
mudança em um texto constitucional implica numa votação
no qual 2/3 dos deputados devem aprovar esta mudança.
Uma tarefa árdua para o movimento social e sindical
nacional que representava cerca de sete milhões de
trabalhadoras e trabalhadores domésticos submetidos a
regime jurídico desigual em relação aos demais
trabalhadores. O processo de ratificação interna de norma
internacional, tal como exigido pela Constituição em vigor,
faria nascer uma norma de caráter infraconstitucional, lei
ordinária, que se apresentaria em conflito com a Lei Maior.
Portanto, em tese, o parágrafo único, do artigo 7º, da
Constituição da República Federativa do Brasil, impedia o
ingresso no direito pátrio das normas previstas na nova
Convenção 189, da OIT.
No entanto, tramitava na Câmara dos Deputados a
Proposta de Emenda Constitucional,35 que propunha a
mencionada revogação deste parágrafo único, do artigo 7º.
Esta Emenda Constitucional teve parecer favorável
aprovado em 05/07/2011 na Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania da Casa. Criando, assim, a
esperança de viabilidade jurídica da ratificação interna da
nova Convenção sobre o trabalho doméstico decente e a
perspectiva de ampliação dos direitos das empregadas e
empregados domésticos. Embora o Brasil, naquele momento
não havia assinado a Convenção nº 156, da OIT, relativa à
igualdade de oportunidades e de tratamento para as
trabalhadoras e os trabalhadores com responsabilidades
familiares.
Em 2013, diversos projetos tramitavam na Câmara
Federal, cuja finalidade era a extensão do conjunto dos
direitos trabalhistas as trabalhadoras domésticas. Estes
foram apensados e terminaram no desenho geral da
intitulada Emenda Constitucional n.72, que teve como
origem a PEC 66/2012, também conhecida como a PEC das
Domésticas. Esta vitória legislativa foi intensamente
discutida pela sociedade brasileira e finalmente foi
regulamentada em maio de 2015 pelo Senado Federal e
sancionada pela Presidenta Dilma Rousseff em junho de
2015. E assim, setenta e dois anos depois que os
trabalhadores e trabalhadoras brasileiras tiveram acesso a
uma legislação de proteção social, as domésticas
conseguiram a equiparação de todos os direitos dos demais
trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT).
Tabela 1
O serviço doméstico no Brasil, desde o final do século
XIX, quando se realizou o primeiro recenseamento, constitui
o principal segmento ocupacional das mulheres brasileiras.
Em 1872, do total de mulheres com profissão declarada, o
serviço doméstico empregava cerca de um terço delas.
Passado mais de um século, os dados do Censo
Demográfico 2010 indicaram que o serviço doméstico
representa ainda um importante segmento do emprego
feminino com 5,5 milhões de ocupadas, correspondendo a
cerca de 20% da população ocupada feminina (SOARES et
all, 2014). Embora o trabalho doméstico no Brasil tenha se
reduzido, argumenta-se que este dificilmente tenderá a
desaparecer, visto que a sociedade brasileira ainda conserva
uma característica patriarcal e não houve uma redefinição
acerca dos papeis de gênero.
Além dos papeis de gênero desempenhados no interior da
família, outro aspecto importante que tem influenciado a
inserção das mulheres no mercado de trabalho é a
escolaridade. Historicamente, as principais funções sociais
das mulheres eram o casamento, a maternidade e os
cuidados (da casa e da família) fazendo com que a maior
parte delas ficasse à margem da educação formal e do
trabalho remunerado. No Brasil, até a década de 1980 as
mulheres eram maioria entre os analfabetos. Contudo, a
escolaridade feminina avançou progressivamente, visto que,
em 1960, na população com ensino superior as mulheres
eram apenas 14,3%; em 1991, elas superaram os homens
com este nível de ensino (51%) e, em 2010, as mulheres
correspondiam a quase 59% daqueles com nível superior
concluído.
Com o avanço da escolaridade, a entrada das mulheres -
principalmente as de classe média - no mercado de trabalho
a partir da década de 1970 somente se tornou possível
porque havia também um mercado [expressivo] não
regulamentado de trabalhadoras pouco escolarizadas, em
grande parte mulheres negras e com baixa qualificação
dispostas a trabalharem por um salário sem garantias
sociais, cujas atividades eram essencialmente da “natureza”
feminina.
Dessa maneira, a inserção das mulheres no mercado de
trabalho ocorreu de forma segmentada, de um lado por um
grupo de mulheres pouco escolarizadas em ocupações
precárias e informais como o trabalho doméstico; e, de
outro, por mulheres mais escolarizadas, sobretudo, oriundas
de segmentos médios, em trabalhos de maior qualidade,
porém concentradas em áreas que remetem a “papéis”
socialmente atribuídos as mulheres, tais como: saúde,
educação e serviços sociais.
Soares et al. (2014) ressaltam que se comparada a
inserção ocupacional feminina desde o primeiro
recenseamento, em 1872, até o mais recente, realizado em
2010, pode-se constatar que o mercado de trabalho
brasileiro ainda conserva características de mais de um
século atrás. O serviço doméstico ainda se constitui um
importante segmento de emprego feminino. E com o avanço
da escolaridade, embora se evidencie uma maior inserção
feminina em áreas anteriormente dominadas pelos homens,
elas ainda estão concentradas naquelas que remetem e
reforçam os papéis de gênero. As autoras chamam atenção
também que as relações de desigualdade ainda são
proeminentes e permanecem enraizadas no tecido social.
Elas citam a área da saúde como o espaço onde as
mulheres tiveram grande avanço; contudo, a inserção se deu
de forma diferenciada de acordo com a ‘hierarquia’
sociocupacional, visto que na categoria de chefes de clínicas
médicas, por exemplo, o número de mulheres é bem
reduzido. Com efeito, as autoras concluem que o padrão
educacional segundo as áreas de concentração se reflete no
mercado de trabalho, o que nos faz presumir que sem uma
transformação no campo educacional, fica difícil romper com
um modelo estrutural e desigual no mercado de trabalho.
No que se refere à qualidade dos trabalhos, embora nos
últimos dez anos o mercado de trabalho tenha registrado um
crescimento da taxa de formalização ainda há segmentos
cujo percentual de trabalhadores que contribuem para a
previdência é relativamente baixo. A maioria do emprego
doméstico é informal, isto é, de 6,4 milhões de
trabalhadores, quase 70% não tem carteira de trabalho
assinada. Esse número representa mais de 4 milhões de
empregados domésticos que foram excluídos da reforma
trabalhista desde a implantação da CLT e somente em
201537 tiveram todos os direitos trabalhistas equiparados aos
dos demais trabalhadores formais. Entre os empregados
domésticos sem carteira que contribuem individualmente
para a Previdência Social o percentual é de apenas 14%, o
mais baixo entre as demais categorias ocupacionais
(SÍNTESE..., 2015).
O Gráfico 1 mostra ainda a evolução da contribuição
previdenciária individual dos empregados domésticos por
cor/raça e verifica-se que há uma diferença significativa na
taxa de formalização entre brancos e negros, cuja relação de
desigualdade se intensificou com o crescimento da
formalidade. Em 2004, o percentual de empregados
domésticos sem carteira que contribuíam para a previdência
era 3% e, em 2014, esse percentual passou para 11%. O
crescimento da formalidade neste grupo ocorreu
principalmente a partir de 2011, cuja variação nos últimos
quatro anos foi de 72% entre os brancos e de 67% entre os
negros. Somente entre 2013 e 2014 a variação foi de quase
18% e mostra esse movimento em busca de garantias
sociais, particularmente entre aqueles que não tem carteira
de trabalho assinada.
No trabalho doméstico, evidencia-se que 92% são
empregadas domésticas e a taxa de formalização delas, em
2014, era de 40% somando, inclusive, aquelas que
contribuíam individualmente. Embora este percentual seja
baixo, há dez anos atrás o percentual era ainda menor
(27,8%). Na perspectiva de evidenciar algum efeito da
mudança da legislação na taxa de formalização, os dados
indicaram uma redução de número de domésticas de 1,9
milhão para 1,8 milhão entre 2013 e 2014. A taxa de
contribuição previdenciária, por sua vez, permaneceu a
mesma. A maior variação da taxa de formalização ocorreu
entre 2012 e 2013, com um aumento de 3,4 pontos
percentuais.
Gráfico 1
Gráfico 2
Tabela 2
Gráfico 3
5. IGUALDADE NAS RELAÇÕES DE GÊNERO: UM
PROCESSO EM CONSTRUÇÃO?
Historicamente, a luta social e política das mulheres têm
sido pela busca de maior igualdade e autonomia econômica
e de seus rendimentos; no entanto, esta busca está
diretamente relacionada com a distribuição mais equitativa
na distribuição dos afazeres domésticos e de cuidado.
Se considerado os dados da distribuição de mulheres de
16 anos ou mais ocupadas no trabalho doméstico por
raça/cor, nas grandes regiões brasileiras, em 2012, ainda
observa-se que as mulheres negras, em mais de 50%
desempenham o trabalho doméstico, a saber: Região Norte
(81,7%); Nordeste (79,2%); Centro-Oeste (71,0%); Sudeste
(60,0%). Somente a Região Sul tem um percentual inferior a
50% de mulheres desempenhando o trabalho doméstico
(34,3%)38. Levantamento realizado pelo Ministério do
Trabalho, em 2008, informava que nas regiões Norte e
Nordeste, somente 26,4% das trabalhadoras domésticas
tinha, em média, a carteira de trabalho assinada, sendo que
entre as mulheres negras, era de 23,9%, enquanto para as
mulheres brancas o índice aumentava para 30,2%.39 Por sua
vez as informações da PNAD 2014 mostram que a dupla
jornada de trabalho feminina (trabalho pago e não pago)
passou a ter mais cinco horas diárias (O Globo, Economia,
21/2/2016, p. 25).
Ademais, do ponto de vista dos direitos constitucionais e
trabalhistas que passaram a ser similares a ambos os sexos,
a partir da PEC das domésticas (2013), no entanto, a
persistência de desigualdades de gênero e raça/cor continua
a se expressar claramente tanto nas formas de inserção
destas mulheres no mercado de trabalho, como nos salários
diferenciados, nas condições de desempenho do trabalho,
no uso do tempo, inclusive nas horas noturnas dedicadas ao
trabalho familiar, evidenciado por pesquisas recentes. 40
Portanto, a análise acurada, precisa e sistemática desses
indicadores e de sua evolução torna-se uma condição para a
elaboração de políticas e estratégias voltadas para alteração
desse quadro.
Por outro lado, historicamente, identifica-se uma maior
apropriação pelos homens do poder político, do poder de
escolha e de decisão sobre sua vida afetivo-sexual e da
visibilidade social no exercício das atividades profissionais.
Este é um processo que resulta em diferentes formas
opressivas, o qual submeteu as mulheres a relações de
dominação, violência e violação dos seus direitos no
desempenho profissional nos espaços públicos. Poder e
visibilidade são construtos históricos, determinados na e
pelas relações sociais. Em cada conjuntura sócio-histórica é
preciso, portanto, analisar os elementos desta determinação
do ponto de vista econômico, político e cultural que incidem
na vida cotidiana das mulheres trabalhadoras domésticas,
sobretudo, pois, estruturam valores, modos de pensar, de
ser e agir. Ou seja, trata-se não apenas de reconhecer quem
tem poder e visibilidade, mas em quais condições materiais
foram alicerçados e são efetivados, e que servem para
ancorar as desigualdades e exclusões as quais estão
expostas as trabalhadoras domésticas.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As desigualdades de gênero e raça, historicamente, se
constituíram (ainda se constituem) eixos estruturantes da
organização das relações de trabalho no Brasil que, por sua
vez, estão enraizadas na permanência e reprodução das
situações da pobreza feminina, assim como das situações
de exclusão social. Por isso, se coloca a necessidade
urgente de enfrentar tais desigualdades tratando de mudar
as características estruturais da sociedade brasileira, que
segundo Abramo (2006, p. 2) a “...transformação é
imprescindível para a superação dos déficits de trabalho
decente atualmente existentes, assim como para o efetivo
cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”.
Para tanto, seria necessária a implementação de politicas
públicas a esta categoria de trabalhadoras domésticas, que
considerasse desde a capacitação das mesmas, pois seu
índice de escolaridade não ultrapassa quatro anos de
escolaridade, assim como a observância de proteção à
maternidade, a saúde, sem contar que um número
significativo delas ainda sofre alguma forma de violência no
desempenho de suas atividades.
REFERÊNCIAS
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Comba Marques Porto, advogada, juíza aposentada da Vara do trabalho da
Capital do Rio de Janeiro/Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, concedida
a Hildete Pereira de Melo em maio de 2013.
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Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?pid=S0009-
67252006000400020&script=sci_arttext. Acesso em: abr. 2016.
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BRUSCHINI, Cristina, O trabalho da mulher brasileira nas décadas recentes.
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MELO, Hildete Pereira de. De criadas a trabalhadoras. Revista Estudos
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MELO, Hildete P. de. Trabalhadoras Domésticas. In: Maria, Maria, Revista do
Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher. Ano 4, no. 4,
2002.
Marilu Freitas
Doutoranda, Mestre e Especialista em Direito do Trabalho e da Seguridade Social
pela Universidade de São Paulo; Advogada. Contato:
freitascoutinhoadv@hotmail.com.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A globalização da economia gerou a interdependência
dos mercados e importantes transformações nos métodos e
condições de trabalho, marcadas pela precarização e
vulnerabilidade. Nesse contexto, a empregabilidade feminina
se ampliou no mundo todo, em face de as mulheres terem
estado historicamente sujeitas às condições de opressão,
exploração e subalternidade, dentro do que se convencionou
designar por divisão sexual do trabalho, um sistema
segregacionista e hierarquizante das atividades
desenvolvidas socialmente.
Consideraremos precarizados os trabalhos mal
remunerados, sem perspectiva de carreira e destituídos da
totalidade ou de parte dos direitos sociais dos trabalhadores
(HIRATA, 2000, p. 44), assegurados pela Constituição de
1988 e pela legislação infraconstitucional.
Neste artigo, analisaremos os reflexos da globalização
sobre o trabalho humano e, especificamente, sobre a
parcela feminina da mão de obra, e verificaremos que a
globalização, fenômeno de variados efeitos (econômicos,
sociais, políticos, culturais), longe de romper com a lógica da
divisão sexual do trabalho, apenas a atualizou, preparando-a
para o século XXI.
Resumo: O artigo visa resgatar e repensar a agenda de pesquisa sobre acesso à justiça
com foco no reconhecimentode injustiças culturais e sociais contra as mulheres, como
passo necessário para efetivação desse direito e para prevenção e combate da violência
de gênero. Para tanto, além de uma breve revisão bibliográfica sobre o tema, propõe-se a
análise das decisões judicias proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo nos
processos que discutiram a abusividade da propaganda “Musa do Verão”, veiculada pela
cervejaria Skol no ano de 2006. A análise dos argumentos dos votos revela diferentes
posicionamentos sobre a reprodução e perpetuação de estereótipos e práticas de
objetificação da mulher. Conclui-se que a maior percepção social sobre a ofensividade
dessas práticas tem refletido no Judiciário, que deve também exercer um papel de
impulsionador das transformações necessárias para superação dessas injustiças.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Lei Maria da Penha (Lei nº 13.340/2006) é muito mais
lembrada por suas disposições de cunho criminal do que
pela política pública que pretende ver criada e aperfeiçoada,
a qual teria não só o intuito de coibir e prevenir a violência
doméstica e familiar (art. 1º), mas também para assegurar
direitos fundamentais às mulheres (arts. 2º e 3º),
promovendo-se, ao menos em teoria, uma mudança cultural
e social que propiciasse as transformações preconizadas.
Dentre os direitos fundamentais ressaltados pela lei está o
acesso à justiça, que não deve ser interpretado somente
como o acesso aos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar – cuja implementação e consolidação ainda parece
longe de atingir o patamar almejado quando da criação da
lei53 – mas ao sistema de justiça como um todo, partindo-se
de uma concepção mais ampla e mais atual desse direito.
Promover o verdadeiro acesso à justiça para a mulher
significa compreender os motivos que levaram à proteção
legal que a Lei Maria da Penha visa assegurar. A violência
que se trata é aquela baseada no gênero, de modo que a
sua prevenção perpassa, necessariamente, pela
compreensão da discriminação baseada no gênero e no
efetivo reconhecimento de direitos às mulheres, em um
esforço que vai muito além da criminalização da violência.
Assim, o problema que se propõe aqui discutir é sobre como
o sistema de justiça e, mais especificamente, o Judiciário,
vem respondendo às discussões de gênero na atualidade.
Para iniciar essa análise, é necessário resgatar e
ressignificar a agenda de acesso à justiça, colocado de lado
os discursos de busca por efetividade e celeridade que
nortearam as últimas reformas institucionais e processuais.
A verdadeira consagração do acesso à justiça às mulheres
demanda que operadores do direito (e não só os penalistas)
voltem seu olhar para a atuação do Judiciário e do sistema
de justiça face às injustiças culturais e simbólicas que ainda
obstaculizam o acesso a direitos por parte de grupos
vulneráveis, como as mulheres. Discute-se a natureza
dessas práticas culturais e sociais, tais como a
discriminação, estereótipos e a objetificação da mulher, e
examinados exemplos tratados em pesquisas que
analisaram decisões judiciais e falas de operadoras/es do
sistema de justiça que reproduzem papéis de gênero e
subjugações da mulher.
Para além dessas manifestações institucionais, propõe-se
também a reflexão sobre o papel do Judiciário diante de
práticas socioculturais potencialmente discriminatórias às
mulheres.
O exemplo analisado é o da propaganda da AmBev para
a cerveja Skol, divulgada no ano de 2006, em campanha
intitulada “se o cara que inventou a Skol tivesse inventado a
musa do verão”. A campanha foi objeto de uma Ação Civil
Pública manejada pelo Ministério Público do Estado de São
Paulo (Proc. nº 583.00.2009.165466-9, 11ª Vara Cível do
Foro Central da Comarca de São Paulo) e de uma multa
aplicada pela Fundação de Proteção e Defesa do
Consumidor – PROCON/SP, em que se discutia seu caráter
abusivo e discriminatório face as mulheres. A multa em
questão foi objeto de uma ação ajuizada pela Companhia
Brasileira de Bebidas - AmBev (Proc. nº 0005431-
07.2010.8.26.0053, 9ª Vara da Fazenda Pública da Comarca
de São Paulo).
A análise dos principais argumentos dessas decisões
judiciais permite o aprofundamento da necessária reflexão
sobre como o Judiciário tem lidado com questões de gênero
e com os desdobramentos mais recentes desse debate.
1. A propaganda
Em 2006, a AmBev lançou uma campanha para a
Cerveja Skol conhecida por “Se o cara que inventou a
Skol...”, com uma série de motivos, dentre os quais a
“Musa do Verão 2006”57. No site da agência publicitária
que desenvolveu o anúncio descreve-se que
2. Irrelevância da intencionalidade
Novamente rebatendo os argumentos do
acórdão da Ação Civil Pública, o relator
expressamente afasta o elemento da
intencionalidade ou da má-fé do publicitário,
associando o exame da sua abusividade ao
potencial ofensivo, ou ao dano potencial63.
É interessante a ressalva feita também pelo voto
convergente quanto ao caráter humorístico da peça
publicitária. Sustenta o Desembargador que,
diversamente do que ocorre na publicidade, que
“invade” o dia-a-dia do consumidor, o espectador da
peça humorística escolhe presenciar aquela
representação, prevenindo-se quanto ao seu teor
potencialmente jocoso e até ofensivo.
Especificamente quanto ao potencial ofensivo ou
de danos às mulheres, tanto o voto vencedor
quanto o voto convergente reconhecem
expressamente a objetificação da mulher e
defendem a necessidade de se coibir
manifestações que reflitam a mercantilização ou
comoditização das mulheres como bem de
consumo dos homens.
3. Voto vencido
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo propõe, em linhas gerais, um resgate e
uma ressignificação da agenda de pesquisa sobre acesso à
justiça, atualmente colocada de escanteio em favor de
pautas economicistas de combate à morosidade e à falta de
efetividade do processo, sempre com um viés quantitativo e
de combate a uma suposta litigiosidade excessiva.
Há um abismo entre essa pauta norteadora das recentes
reformas judiciárias e processuais e as injustiças cada vez
mais escancaradas, que acometem minorias em geral,
especialmente as mulheres, cuja tutela de direitos ainda é
vista muito mais da perspectiva criminal do que da afirmação
e do reconhecimento de seu direito de uma paritária
participação em todas as esferas públicas e privadas
(FRASER, 1995). Essas demandas não estão refletidas
sequer nos marcos teóricos comumente referenciados no
Brasil (em especial o “Projeto Florença”, de Mauro
Cappelletti e Bryant Garth), cujo foco é muito mais
direcionado a uma justiça redistributiva do que a uma justiça
de reconhecimento.
Pensar acesso à justiça para as mulheres perpassa,
portanto, em refletir sobre práticas sociais e culturais
opressoras, e sobre o papel do Judiciário enquanto
replicador ou perpetuador dessas práticas. A análise do caso
da propaganda “musa do verão 2006” pretendeu discutir que
o Judiciário perpetua essas práticas não somente quando
reproduz estereótipos de gênero ou subjuga a mulher, mas
também quando é conivente com representações
opressivas, que objetificam a mulher, como é o caso do
anúncio em questão.
Como propõe Boaventura de Sousa Santos, um
verdadeiro acesso à justiça é aquele em que novas
demandas por direitos provocam a transformação do
sistema jurídico como um todo, em uma verdadeira
revolução democrática da justiça (SANTOS, 2011, p. 38).
Espera-se que essa revolução democratizante implique
também no reconhecimento das injustiças colocadas em
juízo (são novas demandas, mas não necessariamente
novas injustiças) e que o sistema de justiça se coloque como
um agente da transformação culturais e sociais necessária
para efetiva garantia de direitos às mulheres.
REFERÊNCIAS
The present report deals with the situation of violence against women in
Ciudad Juárez. It looks closely at the killings that have taken place since
1993, and gives equal attention to other manifestations of violence
against women and to the different forms of gender-based discrimination
that underlie such violence. While Ciudad Juárez as a locality is
marked by a number of special challenges, including high levels of
violence that affect men, women and children, the levels of violence
against women, and the impunity in which most cases remain show
that the gender dimensions of this violence have yet to be
effectively addressed. (grifou-se) (CIDH, 2003).
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É imprescindível reforçar que identificar o feminicídio com
crimes passionais é uma excrecência, não apenas jurídica
mas também moral, pois justificar, no século XXI, o
assassinato de uma mulher que por descontrole oriundo do
excesso de amor, é, no mínimo, revitimizar a mulher e sua
família. Diante disto, todas as discussões que contribuam
para essa superação são relevantes e devem ser
respeitadas.
Ratifica-se a já mencionada limitação das reflexões aqui
apresentadas tendo em vista a recente alteração do CP, em
comento, que conta apenas com dois anos. Contudo,
acredita-se que se pode obter ganhos com um corpo
legislativo bem elaborado, que subsidie ações políticas e
judiciais comprometidas com a superação de problemas
históricos, como a violência contra a mulher, o demanda
uma contínua análise do arcabouço jurídico, incluindo as
primeiras impressões sobre uma alteração normativa.
Neste sentido, entende-se que todas as críticas, supra
indicadas, à inserção do inciso VI ao artigo 121 do CP são
pertinentes, pois impedem a estagnação dos esforços,
publicizam os recrudescentes desafios do sistema de justiça
brasileiro e denunciam a “seletividade” do sistema
penitenciário brasileiro, questões que não podem ser
alijadas das discussões sobre a violência contra a mulher.
É inequívoco que concentrar esforços na punição do
agressor dentro do atual modelo, na maioria das vezes, vai
tão somente mudar a vítima da agressão. Ao cumprir sua
pena, o agressor retoma suas relações sociais e íntimas e
reinicia o ciclo de violência com outra mulher. Construir
caminhos voltados à reabilitação do homem que agride é
atuar, diretamente, no enfrentamento à violência contra a
mulher.
Por outro lado, diante da necessidade de medidas
urgentes e que apresentem algum resultado a curto prazo,
entende-se como positiva a presença do feminicídio na
legislação penal, especialmente, como uma tentativa de
reforçar o compromisso do Estado com o tema e conferir
algum consolo à vítima e sua família, por perceberem que a
brutalidade desses crimes está devidamente reconhecida
pelo poder público.
Reconhece-se que esse passo é pequeno e restrito no
contexto complexo da violência contra a mulher, por isso a
relevância de se construir espaços de diálogos
colaborativos, a fim de que as contribuições das diversas
áreas do conhecimento e instituições públicas e privadas
que atendem mulheres vítimas de violência doméstica
possam redundar em alternativas possíveis de serem
implementadas e eficientes na redução dos altos índices de
feminicídio.
RFERÊNCIAS
Resumo: No presente escrito, discorreu-se inicialmente sobre o islã, tendo como pano de
fundo a Teoria dos Sistemas Sociais, esclarecendo confusões terminológicas. Logo após,
evocou-se o questionamento relacionado à (in)existência de igualdade de gênero no islã
compatível com a noção ocidental de direitos humanos que, por via de consequência,
ensejaria o quadro de opressão das mulheres muçulmanas. Na oportunidade, foram
analisadas as assimetrias do islã na materialização do Alcorão, decorrentes da
desdiferenciação dos sistemas sociais nos países muçulmanos. E por fim, fez-se um
recorte metodológico comparativo dos dispositivos inerentes à igualdade de gênero
presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nas Declarações islâmicas
sobre direitos humanos, bem como no Alcorão, na qualidade de fonte do sistema jurídico-
religioso do islã, a fim de averiguar se há ou não igualdade entre homem e mulher no
contexto islâmico consoante a noção ocidental de direitos humanos.
Palavras-chave: Igualdade de gênero. Islã. Direitos Humanos. Assimetrias.
Desdiferenciação
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na contextura da sociedade mundial hipercomplexa88,
emergem questões controvertidas acerca da possibilidade
de compatibilizar islã com a noção ocidental de direitos
humanos, principalmente, no que se refere à igualdade de
gênero e ao papel das mulheres muçulmanas. Aspectos
relacionados à evolução social e a modernidade, sobretudo,
no tocante a desdiferenciação89, em alguns países
muçulmanos90, dos sistemas jurídico, político e religioso,
bem como dos influxos do sistema cultural sobre estes,
refletem na noção islâmica dos direitos humanos no islã.
Utilizando como pano de fundo a Teoria dos Sistemas
Sociais91 nas perspectivas de Luhmann (2006a) e Neves
(2013b), pretende-se analisar neste escrito se inexiste
igualdade de gênero no islã compatível com a noção
ocidental de direitos humanos que, por via de consequência,
ensejaria o quadro de opressão das mulheres muçulmanas.
Dessa forma, objetiva-se desvendar se afirmações neste
sentido expressam a realidade ou se decorrem de
constantes generalizações e do desconhecimento das
assimetrias nos países muçulmanos por parte do senso
comum.
Impõe-se, portanto, tecer alguns esclarecimentos iniciais
restantes ao islã e ao modelo sistêmico para,
posteriormente, analisar dispositivos inerentes à igualdade
de gênero presentes na Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH) de 194892, na Declaração Islâmica
Universal dos Direitos Humanos de 198193 e na Declaração
dos Direitos do Homem no Islã, também conhecida
Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos no Islã de
199094, ambas inspiradas no Alcorão, compilado no século
VII95, na qualidade de fonte do sistema jurídico-religioso.
Sobre o tema islã96, normalmente existe um desalinho
terminológico97. Importante evidenciar que, primariamente,
se trata de uma religião, que surgiu há mais de 1.400 anos,
especificamente no século VII na Península Arábica e se
expandiu por três continentes e inúmeras sociedades,
encontrando condições vastamente diferentes entre si,
ensejando as assimetrias contemporâneas do islã. Os
seguidores da fé islâmica são denominados muçulmanos.
Essas pessoas anteriormente ao advento do islã eram
politeístas, até que Muhammad (Maomé)98, considerado
profeta, disseminou a ideia da existência de um só deus,
Allah e propôs a unidade de todos os fiéis em ummah, isto é,
única comunidade (AL-MUSAUI, 2006, p.25; AL-SHEHA,
[s.n.t]a, p. 27; AL-SHEHA, 2007, p.11; DEMANT, 2014, p.15-
24; HUSSEIN, 2005, p.35).
As manifestações de Muhammad, de inspiração divina99,
foram compiladas formando o livro sagrado do islã,
conhecido como Alcorão ou Corão100 (AL-SHEHA, [s.n.t]a;
AL-SHEHA, 2007, p.11; DEMANT, 2014, p. 14; CORDEIRO,
2017, on line), que se tornou o fundamento escrito da fé
islâmica, bem como da legislação em diversos países
muçulmanos101. Depreende-se o fato de que,
hodiernamente, há síntese entre fé religiosa e organização
sociopolítica em diversos países.
Em um segundo momento, o islã pode se expressar como
uma comunidade, modo de viver ou tradição que regula
todos os aspectos da vida102 e em sentido geopolítico
moderno103, em outras palavras, é uma doutrina que
influencia e tem pretensão de determinar a vida social,
econômica, política e as relações internacionais dos seus
seguidores. (DEMANT, 2014, p. 35, LE GOFF, 1990, p. 312).
Demant (2014, p. 14) é mais preciso no emprego
terminológico, ao relatar que o vocábulo muçulmano refere-
se a um fenômeno sociológico, enquanto islâmico diz
respeito especificamente à religião. No presente escrito,
utiliza-se a palavra islã de forma ampla para tratar de
questões relacionadas aos muçulmanos na sociedade
mundial.
A desordem terminológica é decorrente do caráter total do
islã, tendo em vista que vai além de um simples corpo de
crenças, pois, repita-se, se trata de algo que influencia e tem
pretensão de determinar toda a vida social e mesmo as
esferas da economia, da política e das relações
internacionais (DEMANT, 2014, p. 14)
Com o intuito de, na sequência, interligar as noções sobre
islã com o modelo sistêmico, destaca-se que o conceito de
sistema se contrapõe ao entendimento de ambiente (todos
os outros elementos não componentes do sistema). Assim, o
sistema se estabelece com amparo em uma espécie de
ruptura com o ambiente, capaz de criar nele uma estrutura
relativamente independente de todo o resto. Tal ruptura é
trabalhada por Luhmann (2006a, p. 471-490) como
diferenciação (MELO; CORREIA, 2016, p. 31).
O paradigma teórico luhmanniano defende a existência de
vários sistemas autopoiéticos104, entre eles os sistemas
político, jurídico, econômico, religioso, cultural e dos meios
de comunicação em massa (mídia), que figuram como os
mais relevantes ao estudo que se apresenta. Em sua
inteligência, a evolução social se materializa como
complexificação e diferenciação funcional dos sistemas
sociais (LUHMANN, 2006a, p. 560; MELO; CORREIA, 2016,
p. 31).
Objetivando explicar a evolução social, Neves (2006;
2013b) parte desses ensinamentos de Luhmann (2006a),
destacando que a efetiva diferenciação funcional dos
sistemas sociais ocorreu apenas na sociedade moderna, de
sorte que a sociedade se tornou mundial, multicêntrica ou
policontextural (LUHMANN, 2006a, p. 560; LUHMANN
2006b; NEVES, 2013b, p. 6-23).
Estabelecidos tais esclarecimentos, reporta-se ao estudo,
em linhas gerais, da evolução social nos países
muçulmanos, destacando o sistema jurídico-religioso e as
consequências na elaboração do direito islâmico. Consoante
mencionado há uma espécie de desdiferenciação dos
sistemas jurídico e religioso na maior parte dos países
muçulmanos e, em alguns se inclui também o sistema
político. Nas palavras de Demant (2014, p. 35-36) “tudo se
concentra num sistema jurídico-religioso total”. Além disso,
evidencia-se forte influência do sistema cultural de cada país
nestes sistemas, o que enseja assimetrias que repercutem
no tratamento dos direitos humanos.
Nessa conjuntura, sobre tratamento dispensado à
igualdade de gêneropelo islã, tornou lugar comum afirmar
que os países com maioria muçulmana se opõem aos
preceitos contidos na Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH) e, consequentemente, a sua adaptação
às respectivas legislações e práticas internas, legitimando,
dessa maneira, violações de inúmeros direitos,
principalmente os relacionados às mulheres muçulmanas.
Tal percepção é norteada pelas informações vinculadas no
sistema da mídia. Essas informações não devem ser
consideradas como válidas imediatamente, isto é, as
reproduções não devem ser acríticas.
Portanto, justifica-se a relevância social do tema pelo fato
de que o islã é a religião que mais cresce atualmente no
mundo (DEMANT, 2014, p. 193; LE GOFF, 1990, p. 293) e
que os muçulmanos - migrantes, descendente e revertidos
ao islã - se expressam em número elevado como parte da
população de países diversos do Ocidente105. Além disso, na
sociedade mundial hipercomplexa muitos eventos
contemporâneos remetem ao Oriente Médio 106
e a sua
situação política, como Primavera Árabe, ascensão do
DAESH107 (popularmente conhecido no Ocidente como
Estado Islâmico) e a atual crise de refugiados, ensejada pela
guerra civil na Síria. Dessa maneira é inegável que o islã
encontra-se no topo da agenda internacional no tocante aos
desafios das relações globais, isto é, que ultrapassam as
fronteiras.
A pesquisa desenvolvida neste escrito, de acordo com os
objetivos propostos, é no que concerne aos fins,
exploratória. No respeitante às fontes ou procedimentos, é
bibliográfica e documental com suporte em livros, artigos e
informações disponibilizadas em sítios eletrônicos. No que
se refere à abordagem do problema, qualitativa. No que diz
respeito à natureza, teórica (FERRAZ JR, 2011).
Assim, este ensaio se estrutura em dois tópicos, afora
introdução e conclusão. Inicialmente, faz-se uma exposição,
no contexto da sociedade mundial, das assimetrias dos
países muçulmanos e dos seus reflexos no direito,
especialmente, no que se refere a materialização do Alcorão
e a desdiferenciação dos sistemas sociais. Em seguida, faz-
se um recorte metodológico comparativo dos dispositivos
inerentes à igualdade de gênero - presentes na Declaração
Universal dos Direitos Humanos e nas Declarações
islâmicas sobre direitos humanos, bem como no Alcorão, na
qualidade de fonte do sistema jurídico-religioso do islã, a fim
de averiguar se há ou não igualdade de gênero no contexto
islâmico harmonizável com o entendimento ocidental. Com
tais premissas, passa-se ao estudo das assimetrias do islã.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De todo esse contexto, se objetiva com este escrito
acadêmico, chamar a atenção para as assimetrias do direito
islâmico nos países muçulmanos que repercutem na
concepção de direitos humanos no islã, especialmente, no
que se refere à igualdade de gênero, bem como para o fato
de que o Alcorão, fundamento de validade do sistema
jurídico-religioso islâmico e, por via de consequência, das
Declarações islâmicas, não somente reconhece, mas impõe
veementemente a igualdade de condições entre os sexos
(ALCORÃO, 114; 210).
Entretanto, constata-se que o Alcorão, mesmo sendo o
principal fundamento do islã, constitui apenas um fator, e
não necessariamente o maior, que molda os reflexos e as
escolhas dos países muçulmanos, que diferem
enormemente entre si em sua história, estrutura
socioeconômica, composição étnica, cultura etc. Enfim,
vislumbra-se que há muitos “islãs”, cujos valores
relacionados aos direitos humanos são variáveis, pois
receberam influxos de tradições tribais, servindo a religião
de tentativa para justificar as condutas opressoras, o que
não deveria se sustentar, considerando a inexistência de
previsão no Livro Sagrado (DEMANT, 2014, p. 150;
NOGUEIRA, 2007, p. 60).
Diante do que se expôs, a princípio, entende-se que a
alegação de incompatibilidade do islã com a noção ocidental
de direitos humanos e, por via de consequência, com a ideia
de igualdade de gênero é uma generalização decorrente do
desconhecimento das assimetrias dos países muçulmanos.
Não se pode aduzir de forma inequívoca que todas as
mulheres muçulmanas se encontram em situação de
subordinação e opressão. Atualmente, é crescente o
movimento das mulheres que declaram ter orgulho de ser
muçulmanas e que trabalham para ampliar as “vozes” das
demais muçulmanas. Elas exaltam a utilização do véu, não
se sentem oprimidas e ocupam posição de destaque na
sociedade mundial (BADRAN, 2009). Logo, não se pode
continuar a propagar essa visão Ocidental estereotipada
sobre as mulheres muçulmanas.
Percebe-se, no entanto, que embora o Alcorão e as três
Declarações contemplem a igualdade de gênero, no
contexto do islã existe diferença entre a ideia de igualdade e
identidade. Igualdade significa paridade, equidade, já
identidade significa uniformidade, isto é, que os direitos
sejam exatamente os mesmos (MOTAHARI, 2008, p. 115).
Dessa forma, a mulher no islã está numa situação diferente
da situação do homem, isso não significa, necessariamente,
um aspecto negativo. O próprio Alcorão (4; 34) deixa isso
evidente quando relata que “os homens são os protetores
das mulheres, porque Allah dotou uns com mais (força) do
que as outras, e pelo o seu sustento do seu pecúlio [...]”.
Assim, a distinção entre homem e mulher, de acordo com os
princípios alcorânicos, não se materializa no sentido de
opressão, muito pelo contrário, pois o homem exerce o papel
de protetor, cosoante evidenciado.
Contudo, diante das assimetrias dos países muçulmanos,
em muitos casos, a situação que deveria ser de proteção se
conduz a dominação e violência. Há também países mais
progressistas. O quadro de opressão parece não se justificar
dentro da crença, pois esta determina que todas as normas
retirem fundamento de validade do Alcorão, dessa forma,
costumes tribais e pré-islâmicos não teriam legitimidade.
Na leitura de Said (1990), em geral o Ocidente trata a
alteridade das muçulmanas de forma generalizante. Como
se todas fossem submissas, desconsideradas as diferenças
de padrões nacionais e culturais. Já a mulher ocidental é
caracterizada como independente. Muito embora essa seja a
leitura que o Ocidente faz de si mesmo, ela não representa a
realidade da grande maioria das mulheres ocidentais,
submetidas a graves problemas sociais e inferiorizadas em
relação aos homens em várias situações, como profissionais
e econômicas. Ademais, atualmente, mulheres muçulmanas
consideradas vanguardistas tencionam realizar a releitura do
direito islâmico a partir de uma interpretação progressista do
Alcorão, a fim de possibilitar a materialização da igualdade
de gênero (como paridade) nos países muçulmanos.
REFERÊNCIAS
“We were registered. ISIS took our names, ages, where we came from and whether we
were married or not. After that, ISIS fighters would come to select girls to go with them.
The youngest girl I saw them take was about 9 years old. One girl told me that ´if they
try to take you, it is better that you kill yourself´[…]”124.
Menina de 12 anos sequestrada pelo ISIS.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
É célebre a frase de Ésquilo125 segundo o qual a verdade
é a primeira vítima das guerras.
No caso da violência sexual cometida contra mulheres e
meninas nos contextos das guerras e genocídios a verdade
não é vitimada, mas simplesmente tolerada.
Caracterizada uma guerra entre nações ou, ainda, mesmo
nos conflitos armados intrafronteiras, ao que podemos
acrescentar os processos genocidários, o grau de
sistematização na violência sexual perpetrada e de
sofrimento imposto às vítimas do sexo feminino tomadas por
tropas que as consideram troféus a serem expostos e
oprimidos, em completa situação de vulnerabilidade, não é
ignorado – pois o fenômeno é conhecido desde a
antiguidade – mas é objeto de indiferença, tanto pelas
autoridades e comandos que têm poder de decisão e
mantêm relação de poder hierárquico sobre suas tropas nos
palcos de operações, como também pelos agentes e
estruturas internacionais responsáveis pelo disciplinamento
e responsabilização dos perpetradores da referida violência,
segundo as normas globais e regionais protetivas dos
direitos humanos e definidoras das regras vigentes em
situações de combate (direito humanitário – o Direito de
Genebra e o Direito de Haia).
Significa afirmar que a despeito de encontrarmos uma
prática reiterada ao longo da história (incluídos os conflitos
dos séculos XX e XXI, até o presente), com padrões em
suas dinâmicas, dita conduta prossegue admitida por certas
instâncias e estruturas envolvidas nos respectivos conflitos,
ainda que a justiça penal internacional e o sistema do Direito
de Nova York (ONU), nas décadas recentes, tenham
assumido a posição de protagonistas em alguns avanços,
como no caso de condenações por estupros genocidas
impostas pelo Tribunal Criminal Internacional Para Ruanda,
apenas para lembrarmos um exemplo recente ou nas ações
das Nações Unidas para combate à violência sexual em
situações de conflitos armados (UN Action Against Sexual
Violence in Conflict, on line).
Aliás, a referida Corte Criminal Internacional para Ruanda
foi a primeira a reconhecer o estupro como instrumento para
cometimento de um genocídio (UNICTR, on line), no caso
Jean-Paul Akayesu, bem como o primeiro a condenar uma
mulher acusada de colaborar para o estupro genocida126 de
vítimas tutsis, no caso de Pauline Nyiramasuhuko (UNICTR,
on line)127.
A despeito de avanços tais - ainda tímidos mas sempre
bem-vindos - necessário é o estabelecimento de visões
críticas sobre as dinâmicas e sobre as causas que propiciam
a reiteração de crimes sexuais contra mulheres e meninas128
durante situações de conflitos e nas quais os mecanismos
de prevenção e inibição encontram-se em colapso.
Muito embora pouco se fale a respeito, necessária é a
compreensão de que as raízes na prática destes crimes hoje
considerados dentre os mais graves na ordem jurídica
internacional129, compõem categorias de violência
preexistentes às guerras e genocídios, vigentes em
sociedades em tempos de paz e presentes sob bases
patriarcais, com variantes relacionadas a cada uma delas e
de cunho religiosas, raciais, étnicas, nacionais ou políticas.
De fato, o modo pelo qual cada sociedade vê e considera
a mulher guarda íntima relação com a violência sexual
praticada por grupos armados, componham tais grupos as
forças oficiais ou grupos e milícias combatentes
paramilitares.
Fato é que, durante os conflitos ou após o desfecho de
combates e batalhas – e, em alguns casos, mediante prévio
estabelecimento de diretrizes para limpeza étnica, as
mulheres e meninas ainda no início de sua adolescência
passam a ser alvos imediatos nos dias atuais como se
observa no caso das mulheres Tutsis durante o genocídio de
Ruanda (1994); das mulheres bósnio-muçulmanas ao longo
da Guerra das Bósnia (1992-1995)130; das mulheres Yazidis
a partir dos 14 anos de idade, em poder do ISIS, no Iraque
(2011-dias atuais) ou, ainda, no caso das mulheres em
poder do grupo fundamentalista Boko Haram131, na Nigéria
(2002-dias atuais).
E, se a causa imediata pode ser identificada no conflito
em si, a motivação fundamental para tal violência em
períodos de guerra e genocídios relaciona-se muito mais
com a consideração ao sexo feminino como objeto e troféu a
ser conquistado, bem como instrumento de imposição de
humilhação ao país ou grupos armados derrotados (no caso,
v.g., dos estupros de guerra) ou, no caso dos processos
genocidários, como meios para destruição de grupos por
razões raciais ou étnicas (nas hipóteses dos denominados
estupros genocidas).
Considerações, portanto, aos objetivos almejados pelos
perpetradores; às dinâmicas e grau de sistematização
utilizados para a prática dos crimes sexuais; em relação à
composição étnica, racial, religiosa e política dos grupos
vitimados; ao contexto do conflito sob o qual ocorram as
violações sexuais contra mulheres e meninas vitimadas,
dentre outros, ajudam à definição da espécie de violência
sexual praticada e sua inserção no tipo legal e convencional
incidente.
As considerações a seguir buscarão apontar alguns
destes aspectos acima levantados, tendo por recorte, ainda,
a situação das mulheres e meninas Yazidis durante o conflito
no Iraque ao longo dos combates contra o Estado Islâmico
(ISIS).
3. OS YAZIDIS
Os Yazidis constituem um dos mais antigos grupos
humanos existentes no mundo, atualmente no ano 6.766 de
seu calendário148, com suas crenças e cultos baseados na
tradição oral vigentes já por cerca de 4.000 anos. Conforme
informação do Instituto Humanitas da Unisinos (2014, on
line):
[...] Os yazidis são uma comunidade curdófona que possui entre 100 mil
e 600 mil pessoas no Iraque, segundo estimativas. São dos povos mais
antigos da Mesopotâmia, onde sua crença surgiu há mais de 4.000
anos. Seu principal local de culto é Lalish, no Curdistão iraquiano, mas
milhares de yazidis moram na Síria, na Turquia, na Armênia e na
Geórgia, além da Europa, especialmente na Alemanha, onde vivem 40
mil yazidis [...].
5. O ESTABELECIMENTO DE PADRÕES DE
COMPORTAMENTO BASEADOS NO GÊNERO E OS
RISCOS DAÍ DECORRENTES - GENDERCIDE
A despeito das novas análises fruto da atenção que vem
sendo despertada entre os estudiosos dos fenômenos das
guerras e genocídios sobre a violência sexual perpetrada
contra mulheres e meninas desde os conflitos mais antigos
na história da humanidade, até os dias atuais, algumas
considerações de ordem sociológica devem também ser
apresentadas na tentativa de se alcançar uma compreensão
mais completa e adequada sobre o fenômeno.
Assim, como dito acima, parece claro que a violência
sexual imposta às mulheres e meninas nos conflitos
armados encontram raízes em categorias de violência bem
anteriores ao citado conflito, em si mesmo considerado. Vale
dizer: as bases culturais, sociológicas, patriarcais etc. que
inserem a mulher numa situação reificada, preexistem aos
conflitos. Ao término destes, desaparecem os campos de
concentração e demais estruturas e figurações típicas de
períodos de conflagração, mas permanecem as bases
violentas acima mencionadas (entenda-se, violência não
necessariamente física) e que farão das mulheres e
meninas, novamente, as principais vítimas no próximo
conflito164.
Não sem razão, pelas mesmas causas, também
encontramos o recurso à violência sexual (especialmente os
estupros) e contra a condição feminina em geral, ao longo
de outros processos sócio-políticos traumáticos, como no
caso da repressão perpetrada em ditaduras contra mulheres
opositoras presas pelos respectivos regimes e consideradas
como inimigas internas, como ocorreu com as ditaduras do
Cone Sul165. Vale ressaltar que outras agressões à condição
feminina foram também sistematicamente praticadas nestes
contextos, como por exemplo o sequestro de bebês de
presas políticas encarceradas – clandestinamente, na
maioria das vezes, como no caso argentino166. É significativo
que um dos mais célebres movimentos de resistência
argentina no mundo, comprometido com a busca da verdade
e da justiça, seja exatamente a entidade de direitos
humanos conhecida como Las Madres de Plaza de Mayo167.
De fato, a visão que recai sobre a mulher nas sociedades
patriarcais e mais conservadoras a relega ao papel
secundário e de suporte ao homem. Este, o homem, quando
alcança o ápice social tem na posse da mulher o troféu e
símbolo de sucesso e poder.
Daí a utilização de táticas de guerra voltadas para a
conquista da mulher do inimigo, num primeiro estágio de
análise da violência sexual num contexto de combates: tal
domínio transmite mensagens ao inimigo, marca os
territórios conquistados (já que a mulher violentada,
estigmatizada pela comunidade e muitas vezes pela própria
família, jamais retornará à terra natal, abandonada às
pressas ou onde sofreu a violência) e, ainda, em certos
contextos, altera a composição étnica local, exatamente o
caso na guerra da Bósnia, o que é atualmente considerado
crime contra a humanidade pelo Estatuto de Roma168.
O crime do estupro em massa deve também ser
considerado, ainda, como instrumento de extermínio quando
suas dinâmicas e objetivos sofrem variações quanto ao grau
de crueldade e seus objetivos, conforme enfatizamos acima
ao tratarmos das distinções entre os estupros de guerra e os
estupros genocidas. Mas, trate-se de um, ou de outro, em
ambos os casos o desencadeamento de sua ação criminosa
guarda profunda relação com os papéis e expectativas
impostas pelas sociedades para o masculino e para o
feminino, ainda em tempos de paz.
Para alguns estudiosos, como Mary Anne Warren, que
cunhou o termo gendercide para definir o extermínio
deliberado de pessoas pertencentes a um particular sexo
(POWELL, 2011, p. 121), o estabelecimento de papéis
baseados no gênero possui consequências tão letais quanto
as rotulações baseadas nos preconceitos raciais, étnicos,
políticos, religiosos ou nacionais169. Informa Powell que
Warren, entretanto, conceituou o termo gendercide para
referir-se a outras estruturas de violências e de assassinatos
de gênero especificamente de pessoas do sexo feminino,
como o infanticídio de bebês do sexo feminino (comuns na
Índia e a China), perseguição a mulheres consideradas
bruxas ou feiticeiras em certas regiões do planeta, mutilação
genital feminina, proibição à mulher para reproduzir ou a
ideologias misóginas. A aplicação do termo gendercide para
assassinato de gênero seletivo em massa (que pode ser de
mulheres ou também de homens), resulta de interpretação
reformulada por Adam Jones, sobre a definição de Warren.
Jones, ao tratar da violência sexual contra mulheres em
situação de conflitos, discute o tema vislumbrando os
estupros seguidos de assassinatos em massa, bem como
seu uso deliberado para transmissão do vírus HIV, nas
hipóteses de prática de estupros genocidas (POWELL, 2011,
p.122), tal como ocorreu durante o genocídio de Ruanda.
De fato, se à mulher é destinado um papel social marcado
pela submissão ao homem, como ocorre em grande parte
dos países, a visão que prevalece ao longo do desenrolar
dos conflitos armados é exatamente a da tolerância para
com a violência sexual e a submissão das mulheres
pertencentes ao combatente inimigo. Vale dizer: a violência
sexual e contra a condição feminina – e, em nossa análise
presente, o estupro – são tolerados pois considerados efeito
colateral da guerra, e não um crime de guerra e contra a
humanidade em si próprio considerados e apenados
adequadamente, dada a sua gravidade. E ainda que
encontremos o reconhecimento do estupro como
instrumento para a concretização de tais crimes, inclusive
com condenações já registradas nos precedentes dos
tribunais penais internacionais, do ponto de vista sociológico
e cultural, é ainda considerado uma consequência própria da
condição submissa da mulher, considerada um troféu a ser
tomado ao inimigo.
A cultura prevalente sobre o papel da mulher em variadas
regiões do globo geram situações de violência sexual
praticadas mesmo por parte daqueles que deveriam zelar
pela segurança das referidas vítimas, conforme se observa
pelas narrativas, até mesmo, em relação às forças das
Nações Unidas que vêm se empenhando em combater tal
prática por parte de soldados componentes das referidas
forças internacionais, como se depreende pela leitura, a
título de exemplo, do Relatório Independente de Revisão
sobre Exploração Sexual e Abuso por Forças Internacionais
de Manutenção da Paz na República Centro-Africana
(Report of an Independent Review on Sexual Exploitation
and Abuse by International Peacekeeping Forces in the
Central African Republic).170
Nas hipóteses das guerras e genocídios, deve ser
ressaltado, os mecanismos de inibição da violência sexual
contra as mulheres e meninas encontram-se, via de regra,
colapsados. Não existe qualquer obstáculo institucional ou
legal entre o perpetrador e suas vítimas, entregues que são
à própria sorte. No caso de estupros e abusos sexuais
outros praticados por soldados componentes das missões
de paz das Nações Unidas, investigações e
responsabilizações são efetivadas. Não sem razão o
Conselho de Segurança da ONU adotou, em 2016, a
Resolução n° 2272171 visando coibir referida prática por
membros de suas missões de paz e diante das reiteradas
notícias de abusos sexuais contra as populações locais,
muitas verificadas nas regiões da África Central.
Daí a relevância do veredicto proferido pelo Tribunal
Criminal Internacional para Ruanda, na acusação contra
Jean-Paul Akayesu, na medida em que sua decisão
consistiu na primeira condenação da história por crime de
genocídio proferida por uma Corte Internacional; foi também
a primeira decisão na qual condenou-se autor de violência
sexual praticada durante uma guerra civil e, finalmente,
tratou-se do primeiro julgamento da história por um tribunal
internacional que reconheceu o estupro com um ato de
genocídio, com a intenção de destruir um grupo172. Como
afirmamos acima, a respectiva Câmara de Julgamento
entendeu que a prática dos estupros em massa contra
mulheres e meninas Tutsis ocorreu inserida num contexto no
qual o objetivo final era a destruição do grupo. Os requintes
de crueldade praticados pelos perpetradores radicais Hutus
visava não permitir a manutenção, na mente e no espírito
das vítimas, da viabilidade de continuidade e reconstrução
de suas vidas.
Ao comentar a referida histórica decisão, William A.
Schabas ressalta ponto importante neste reconhecimento (o
estupro como ato de genocídio) por um tribunal criminal
internacional, na medida em que tal resultado foi fruto de
pressão de entidades não-governamentais, especialmente
formada por mulheres, inclusive ruandesas, e não de
espontânea ação do procurador atuante no caso. Afirma
Schabas (2009, p. 187):
[…] Neste ponto, o julgamento de Akayesu constitui uma grande
contribuição para o progressivo desenvolvimento das normas sobre
genocídio. O reconhecimento de que a violência sexual se coaduna com
os graves danos corporais e mentais talvez não seja revolucionário. É
também preciso que se tenha em mente que as vítimas Tutsis
estupradas foram assassinadas, também, como regra geral...a Câmara
de Julgamento anotou, também, que na maioria dos casos os estupros
de mulheres Tutsis, na localidade de Taba, foram acompanhados da
intenção de matar aquelas mulheres. De qualquer forma, a histórica
banalização na prática de tais crimes violentos direcionados
especialmente contra mulheres gerou impactos nas acusações de
genocídio assim como ocorreu nos casos de acusações por crimes de
guerra e crimes contra a humanidade. O Procurador...” – Schabas se
refere ao acusador no caso Akayesu – “...não incluiu os crimes
baseados no gênero, no indiciamento inicial. Foi apenas no decorrer do
julgamento, após pressões de organizações não-governamentais, que o
indiciamento foi emendado [...]173. (tradução livre)
[...] Viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, estar
privado de coisas essenciais a uma vida verdadeiramente humana: estar
privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros,
privado de uma relação ‘objetiva’ com eles decorrente do fato de ligar-se
e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da
possiblidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A
privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o
homem privado não aparece, e, portanto, é como se não existisse. O
que quer que ele faça permanece sem importância ou consequência
para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de
interesse para os outros (ARENDT, 2013, p. 71).
REFERÊNCIAS
123 SEXUAL VIOLENCE AGAINST WOMEN AND GIRLS IN ARMED CONFLICTS AND
GENOCIDITIES: THE CASE OF YAZIDIS GIRLS
124 Depoimento de menina de 12 anos, cativa do ISIS por 7 meses e vendida 4 vezes,
constante do Relatório do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas de 15.6.2016
sobre a situação dos Yazidis em poder do ISIS –
http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/CoISyria/A_HRC_32_CRP.2_en.pdf
- acesso em 1.3.2017.
125 Dramaturgo na Grécia antiga, viveu entre 525 a.C. e 456 a.C.
126 Além do reconhecimento do estupro como crime de guerra e crime contra a
humanidade, o Tribunal Criminal Internacional Para Ruanda reconheceu o estupro como
instrumento para cometimento do crime de genocídio, quando tiver por objetivo a
destruição do grupo-alvo (Caso Akayesu, 1998). No caso, a Câmara de Julgamento
daquela Corte Criminal Internacional entendeu que os estupros praticados contra as
mulheres Tutsis (que foram violentadas por serem mulheres e Tutsis), seria subsumível à
descrição da Convenção Para Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, constante
da alínea “b” de seu artigo 2º, que reconhece como atos de genocídio aqueles que
traduzam grave atentado à integridade física e mental de membros de um certo grupo. A
gama de danos impostos às mulheres violentadas durante guerras, conflitos armados e
genocídios é variada e extensa, de difícil reparação, quando sobrevivem.
127 Veredicto de Pauline Nyiramasuhuko, Ex-Ministra de Relações Exteriores de Ruanda.
http://unictr.unmict.org/en/cases/ictr-98-42 - acesso em 21.2.2017.
128 A prática de crimes sexuais contra homens e meninos não é tampouco uma conduta
rara durante conflitos armados e que merece também análise aprofundada e apropriada.
129 Considere-se, por exemplo, a previsão do Estatuto de Roma constante da alínea “g”,
item 1 de seu artigo 7º.
130 “Entre 30.000 e 40.000 mulheres muçulmanas foram vítimas de estupro, na Guerra da
Bósnia. O estupro, na Guerra da Bósnia, entre 1992 e 1995, não foi um crime praticado por
iniciativa particular dos combatentes diante de vítimas indefesas; foi uma estratégia
previamente pensada, arquitetada e efetuada durante o conflito nos chamados ‘campos de
estupro’, bem como em locais e prédios transformados em prisões e locais de martírio para
as vítimas, muitas das quais cometiam suicídio antes ou após serem violentadas.”
(PEREIRA, 2013, p. 205-206). Exemplo de tal localidade é o Hotel Villina Vlas, em
Visegrad, onde em torno de 20.000 mulheres foram estupradas, torturadas e assassinadas
por tropas sérvias. Hoje, é ainda utilizado como hotel, gerando discussões relevantes sobre
a necessidade de memorialização dos crimes cometidos no local -
http://www.bbc.com/news/world-europe-35992642 . Acesso em 5.3.2017.
131 O termo Boko Haram significa “a educação não-islâmica/ocidental é pecado”, no
idioma Hausa, falado no norte da Nigéria.
132 “In the colonial imagination, Native bodies are also immanently polluted with sexual sin.
Theorists Albert Cave, Robert Warrior, H.C. Porter, and others have demonstrated that
Christian colonizers often likened Native peoples to the biblical Canaanites, both worthy of
mass destruction. What makes Canaanites supposedly worthy of destruction in the biblical
narrative and Indian peoples supposedly worthy of destruction in the eyes of their colonizers
is that they both personify sexual sin […]”. (SMITH, 2005, p.10).
133 “Because Indian bodies are ‘dirty’, they are considered sexually violable and ‘rapable’,
and the rape of bodies that are considered inherently impure or dirty simply does not count.
For instance, prostitutes are almost never believed when they say they have been raped
because the dominant society considers the bodies of sex workers undeserving of integrity
and violable at all times. Similarly, the history of mutilation of Indian bodies, both living and
dead, makes it clear that Indian people are not entitled to bodily integrity.” (SMITH, 2005,
p.10).
134 Consideramos o primeiro genocídio praticado no século XX o extermínio dos povos
Hereros e Namas pelas tropas imperiais alemãs, sob o comando do Gal. Lottar von Trotha,
entre 1904-1907, na Namíbia e para sufocar revolta dos referidos povos contra a
colonização alemã. Se considerada, entretanto, a ação genocida de um Estado contra seus
próprios cidadãos, o genocídio armênio foi o primeiro e com graus de sistematização mais
detalhados do que o genocídio dos Namas e Hereros, embora tenha apresentado este
extermínio, também, alguns métodos de assassinatos em massa bem sistematizados pelos
alemães, como o estabelecimento do primeiro campo de extermínio do século XX,
conhecido como Shark Island. Para uma leitura mais detalhada sobre o tema, acesse
http://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/46046325/Territorios__Poderes_e_Ide
ntidades.pdf?
AWSAccessKeyId=AKIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1488132792&Signature=Q4ZCb
nd9Pxq8ByhHf2rbuTPz0cg%3D&response-content-
disposition=inline%3B%20filename%3DTerritorios_poderes_e_identidades_a_ocup.pdf#pa
ge=123 . Mesmo durante o extermínio dos Namas e Hereros, o estupro de mulheres e
meninas pelas tropas alemãs não foi deixado de lado, conforme informa Adam Jones:
“...After five months of sporadic conflict, about 1.600 German soldiers armed with machine
guns and cannons decisively defeated the Hereros at the Battle of Waterberg. After
vanquishing the Hereros, the German Army launched a ´mass orgy of Killing´…Herero men
were slowly strangled by wire and then hung up in rows like crows, while young women and
girls were regularly raped before being bayoneted to death…”. JONES, Adam, ob.cit.,
p.122.
135 Para mais informações, acesse http://heinonline.org/HOL/LandingPage?
handle=hein.journals/nylshr19&div=58&id=&page=
136
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/05/150508_estupro_berlim_segunda_guerra_
fn – acesso em 26.2.2017,
137 Para mais informações acesse https://youtu.be/kKJqCYLoMq8 - acesso em 26.2.2017.
138 Para mais informações acesse https://books.google.com.br/books?hl=pt-
BR&lr=&id=nLdJEZGkwrkC&oi=fnd&pg=PP1&dq=russian+women+raped+by+nazi+troops&
ots=DssPfsgGIK&sig=totK6GRU8aDFk5Bu6l-
taKZC4mU#v=onepage&q=russian%20women%20raped%20by%20nazi%20troops&f=false
139 Para mais informações acesse http://scholarship.law.berkeley.edu/cgi/viewcontent.cgi?
article=1241&context=bjil – acesso em 26.2.2017.
140 Para mais informações acesse https://books.google.com.br/books?
id=e4MsBgAAQBAJ&pg=PA73&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false – acesso em
26.2.2017.
141 Para mais informações acesse
http://www.womenundersiegeproject.org/conflicts/profile/rwanda - acesso em 26.2.2017.
142 Para mais informações acesse
http://www.womenundersiegeproject.org/conflicts/profile/rwanda - acesso em 26.2.2017.
143 Para mais informações acesse
https://www.theguardian.com/world/2014/jun/08/rwanda-20-years-genocide-rape-children -
acesso em 26.2.2017.
144 1ª Guerra do Congo – 1996/1997; 2ª Guerra da Congo – a partir de agosto de 1998;
em 2008 – 5.4 milhões de mortos. O pior conflito no mundo, desde a 2ª guerra mundial –
45 mil mortos por mês - http://www.reuters.com/article/us-congo-democratic-death-
idUSL2280201220080122 – acesso em 26.2.2017.
145 Para mais informações acesse https://www.theguardian.com/world/2011/may/12/48-
women-raped-hour-congo - acesso em 26.2.2017.
146 Para mais informações acesse http://www.bbc.com/news/world-africa-27285268 -
acesso em 26.2.2017.
147 “Astonishingly, the record of mass rape in the Rwandan genocide was matched and
even surpassed in the years following the holocaust – in neighboring Congo, where sexual
violence has raged through to the present day. ‘Tens of thousands of women, possibly
hundreds of thousands, have been raped in the past few years,’ wrote Jeffrey Genttleman
of the The New York Times in 2008.”
148 O ano-novo Yazidi se dá a partir de 20 de abril, de cada ano. O mês de abril de 2017
marcará a chegada ao ano Yazidi 6.767. - http://ekurd.net/yazidi-celebrate-red-wednesday-
2016-04-20 - acesso em 3.3.2017.
149 Para mais informações acesse: http://www.yeziditruth.org/yezidi_genocide.
150 Aqueles que enfrentam a morte.
151 O Wahabismo consiste na ideologia islâmica fundada por Mohammed Ibn Abd al-
Wahhab (1703-1792) e que prega a absoluta soberania de Deus. Rejeita, ainda, qualquer
utilização de imagens, como Santos em tumbas, por exemplo, que devem ser destruídas.
Mohammed Ibn Abd-Wahhab era contrário a qualquer espécie de inovação ou
modernização na sociedade islâmica, que deve retornar às origens puras da primeira
geração do Islã – os Salafis (daí o termo Salafismo). O Wahabismo é a ideologia que
inspira o Estado Islâmico e demais ações fundamentalistas. É também a fonte ideológica
preponderante no Reino da Arábia Saudita. Para maior detalhamento sobre a ideologia
Wahabista, consulte: https://global.britannica.com/topic/Wahhabi - acesso em 1.3.17.
152 Muitas mulheres Yazidis, temendo o pior, se diziam casadas; para serem mais
convincentes, pediam a sobrinhos, sobrinhas e irmãos mais novos, que se dissessem seus
filhos. O ISIS providenciou uma médica para examinar e comprovar que em casos tais
estava-se diante de uma mulher não virgem, portanto, casada. Há relatos, ainda, dando
conta de que vizinhos árabes apontavam mulheres que eram, na verdade, solteiras.
http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/CoISyria/A_HRC_32_CRP.2_en.pdf
- acesso em 1.3.17.
153 Para mais informações https://www.hrw.org/news/2016/04/05/iraq-women-suffer-under-
isis - acesso em 1.3.17.
154 http://ahtribune.com/world/north-africa-south-west-asia/1221-yazidi-sex-slaves.html -
acesso em 4.3.17.
155 Crime contra a humanidade, crime contra as leis e costumes de guerra e crime de
genocídio.
156 Para mais informações acesse http://unictr.unmict.org/.
157 Para mais informações acesse http://www.icty.org/.
158 Para mais informações acesse https://youtu.be/zBOCPAzDA98.
159 Para mais informações acesse https://www.icc-cpi.int/nr/rdonlyres/ea9aeff7-5752-4f84-
be94-0a655eb30e16/0/rome_statute_english.pdf
160 Para mais informações acesse http://scholarship.law.berkeley.edu/cgi/viewcontent.cgi?
article=1241&context=bjil.
161 Para mais informações acesse http://www.un.org/News/dh/sudan/com_inq_darfur.pdf.
162 Para mais informações acesse UN, A/65/592-S/2010/604,§05.
163 Para mais informações acesse UN, A/HRC/31/57,§05 - https://youtu.be/a5grokGIEUY.
164 Gays, transexuais, lésbicas etc. também compõem grupo alvo muito visado durante
guerras, massacres e genocídios. Em relação aos homens heterossexuais e meninos,
costumam ser imediatamente assassinados (para eliminar combatentes resistentes) ou
tomados como força de treinamento para combates. Tais constatações revelam a
existência de dinâmicas próprias de extermínio de gênero nas guerras, conflitos armados e
genocídios.
165 Sugerimos a leitura do artigo O Uso Objetivo e Subjetivo da Violência Sexual Durante
a Ditadura de Segurança Nacional Brasileira, de Janaína. Athaydes Contreiras -
http://www.apers.rs.gov.br/arquivos/1482924634.2016.12.28_Anais_XIII_Mostra_Final.pdf#
page=103
166 Duhalde informa que em torno de 400 bebês foram sequestrados pelos militares
argentinos que atuaram nos órgãos clandestinos de sequestro, tortura e extermínio durante
o período de exceção que vigorou na Argentina (1976-1983): “Dentro del plan sistemático
de la Junta Militar, estuvo el secuestro y apropriación de los hijos de los desaparecidos:
más de 400 niños fueron sus víctimas. Botín de guerra dentro de la cosificada
deshumanización de las personas: matar a los padres y apropiarse de los hijos...El calvário
de aquellas madres es inenarrable: el saber que el hijo que tiene em sus entrañas lo
perderá al nacer, pero que también ello importará su propia muerte, es de uma crueldad
infinita...La natalidad tiene, em la naturaleza simbólica de las relaciones humanas, el
sentido opuesto a la mortalidad. El sentido de la natalidad pone em crisis al totalitarismo:
Ella representa la capacidad de los hombres para empezar algo nuevo, para añadir algo
próprio al mundo y ningún totalitarismo puede soportar esto [Arendt] (...).” (DUHALDE,
2013, p.89).
167 b Sobre a entidade, consulte: http://madres.org/.
168 Ver artigo 7º, item 1, alínea “d” combinado com item 2, alínea “f” do referido Estatuto.
Referido dispositivo define gravidez forçada como a privação ilegal de liberdade de uma
mulher que foi engravidada à força, com o propósito de alterar a composição étnica de uma
população ou de cometer outras violações graves do direito internacional.
169 Não é novidade, na sociologia, o debate acerca de eventual distinção entre o
significado do termo gênero e do termo sexo, mantendo aquele (sexo) conexão com
aspectos biológicos e fisiológicos, enquanto este último (gênero) designaria formulações,
papéis e expectativas sobre o feminino e sobre o masculino, impostas por sociedades e
culturas. Entretanto, referido debate, inclusive entre os estudiosos do fenômeno do
genocídio, vem perdendo força, sendo opinião crescente entre pesquisadores e ativistas a
complementariedade e a mútua interação entre as formulações de sexo e gênero.
170 Para mais informações acesse
http://www.un.org/News/dh/infocus/centafricrepub/Independent-Review-Report.pdf .
171 Para mais informações acesse http://www.refworld.org/docid/56e915484.html .
172 Para mais informações acesse https://www.hrw.org/news/1998/09/02/human-rights-
watch-applauds-rwanda-rape-verdict .
173 “...On this point, the Akayesu judgment constitutes a major contribution to the
progressive development of the law of genocide. The recognition that sexual violence
accords with serious bodily and mental harm is perhaps not revolutionary. It should also be
borne in mind that the Tutsi victims of rape were also murdered, as a general rule…the Trial
Chamber noted that ´in most cases, the rapes of Tutsi women in Taba, were accompanied
with the intent to kill those women´. Nevertheless, the historic trivialization of such crimes of
violence directed principally against women impacted upon the prosecution of genocide as
it did upon war crimes and crimes against humanity. The Prosecutor did not include gender-
based crimes in the initial indictment of Akayesu. It was only midway through the trial, after
pressure from non-governmental organizations, that the indictment was amended […].”
174 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm - acesso em 6.3.2017.
175 Uma mulher foi agredida a cada três minutos no carnaval de 2017 na cidade do Rio de
Janeiro - http://racismoambiental.net.br/2017/03/03/uma-mulher-foi-agredida-a-cada-3-
minutos-durante-o-carnaval-no-rio/ - acesso em 5.3.2017.
176 O debate sobre como combater a cultura de estupros na Índia é mundialmente
conhecido em face de casos de violência sexual praticada por gangues de estupradores e
que ganharam as manchetes de todo o mundo, demonstrando a vulnerabilidade das jovens
mulheres na Índia em face da cultura machista lá vigente, que inclusive dita o
comportamento de parte das autoridades responsáveis por investigar e punir eventuais
perpetradores - https://shorensteincenter.org/rape-culture-india-english-language-press/ -
acesso em 5.3.2017.
177 Para mais informações acesse http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,russia-
descriminaliza-violencia-domestica-que-nao-cause-danos-a-saude,70001643565 – acesso
em 5.3.2017.
X
O DIREITO INTERNACIONAL DOS
REFUGIADOS E AS QUESTÕES
RELACIONADAS À VIOLÊNCIA DE GÊNERO:
CONTRIBUIÇÕES DA CONVENÇÃO DE
ISTAMBUL NA PROTEÇÃO DE MULHERES E
CRIANÇAS REFUGIADAS178
Resumo: É inegável que situações de deslocamento forçado são capazes de gerar efeitos
nefastos sobre os seres humanos, no entanto, homens e mulheres podem ser afetados de
maneiras diferentes. O presente artigo se limitará a analisar a necessidade de proteção
diferenciada em relação às mulheres e meninas refugiadas e solicitantes de refúgio. O
trabalho ora desenvolvido tem como objetivo principal discutir de que forma o direito
internacional tem contribuído para a diminuição da vulnerabilidade de refugiadas e
solicitantes de refúgio do sexo feminino. No que concerne ao método de investigação
adotado, a pesquisa construir-se-á a partir de análise bibliográfica e documental. Segundo
a utilização de resultados, trata-se de uma pesquisa aplicada. No que tange à abordagem,
a pesquisa é qualitativa, por fim, no que se refere aos objetivos, trata-se de uma pesquisa
explicativa. A pesquisa desenvolvida verificou a existência de uma lacuna legal no que
tange a tutela e proteção de direitos consagrados especialmente para a proteção de
mulheres e meninas refugiadas. Diante deste vácuo jurídico foi editada a Convenção de
Istambul que tratou expressamente da necessidade de serem estabelecidas práticas
diferenciadas e mecanismos de proteção especiais para a proteção das refugiadas. A
referida Convenção pode vir a representar um grande avanço para a proteção dos direitos
das mulheres dentro do regime legal internacional acerca do direito dos refugiados.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Com a crise internacional de refugiados que se instaurou
no mundo, especialmente a partir do ano de 2014 com o
agravamento do número de deslocados oriundos da Síria, a
questão da proteção internacional dos refugiados ganhou
proporções semelhantes àquelas vistas no período da
Segunda Guerra Mundial.
De acordo com dados do Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados – ACNUR de Abril de 2017, em
relação aos sírios, do total de mais de 5 milhões de
deslocados, 48,5% são do sexo feminino179. Percentual
semelhante é verificado no que se refere ao número total
refugiados em todo mundo, destes aproximadamente 50%
são do sexo feminino (UNHCR, online).
No Brasil, segundo dados divulgados pela Cáritas, o
número de refugiados e solicitantes de refúgio do sexo
feminino vem crescendo, tendo passado de um percentual
de 13% do total no ano de 2013 para 36% no ano de 2016,
além de ser cada vez mais comum a chegada no país de
mulheres sozinhas ou acompanhadas apenas dos filhos
menores para solicitar refúgio (MELLO, 2017, online).
Em casos de refúgio, deslocamentos internos ou
apatridia, as mulheres são um dos grupos mais vulneráveis,
haja vista que o seu deslocamento forçado as expõem a
riscos muito maiores do que aqueles enfrentados pelos
homens nas mesmas condições.
Não é raro a mídia noticiar casos de estupro,
espancamento e desrespeito aos direitos humanos mais
básicos praticados contra mulheres e meninas deslocadas180-
181
– sejam estas deslocadas internas, solicitantes de refúgio
ou, ainda, refugiadas.
Ademais, o simples fato de ser do sexo feminino pode
dificultar bastante a busca por refúgio, sendo muitos os
fatores que podem dificultar que uma mulher se desloque
até outro país para solicitar o reconhecimento de sua
condição de refugiada.
Dentre as dificuldades que poderão vir a ser
experimentadas, destacam-se: as restrições quanto à sua
liberdade de locomoção em seu país de origem; a falta de
acesso a documentos de viagem, apenas por ser do sexo
feminino; o fato de muitas vezes serem vítimas de violência
sexual durante a travessia (ACNUR, 2009, p. 40).
Acrescente-se que, um dos motivos que podem ter levado
a essas mulheres a tentarem buscar refúgio em outro país
pode ter sido a falta de proteção estatal em seu país de
origem contra as violências de gênero182 sofridas.
Observa-se que homens e mulheres podem ser afetados
de maneiras diferentes no que se refere a questões de
deslocamento forçado, assim é essencial a concessão de
tratamento diferenciado para as solicitantes de refúgio e
refugiadas (WCRWC, 2010, p. 01).
Apesar de serem vislumbradas várias questões
relacionadas ao gênero que merecem ser discutidas no que
tange à proteção de vítimas de deslocamentos forçados
internos e apatridia, a pesquisa ora desenvolvida pretende
se debruçar sobre a análise da necessidade de proteção
diferenciada em relação às mulheres e meninas refugiadas e
solicitantes de refúgio, haja vista a urgência do tema diante
da crise atualmente instalada na Europa.
O presente artigo tem por escopo discutir de que forma o
direito internacional tem contribuído para a diminuição da
vulnerabilidade de refugiadas e solicitantes de refúgio do
sexo feminino.
Assim, a pesquisa está dividido em dois tópicos, no
primeiro abordar-se-ão as previsões relacionadas aos
direitos das mulheres constantes nas normas que integram o
regime legal internacional sobre o direito dos refugiados.
No segundo tópico serão discutidos os principais pontos
da Convenção de Istambul sobre a prevenção e o combate
da violência contra a mulher e da violência doméstica e a
suas possíveis contribuições como instrumento legal capaz
de mitigar a vulnerabilidade de mulheres e crianças em
situação de refúgio.
REFERÊNCIAS
Resumo: Este breve ensaio aborda a potencialidade dos direitos humanos para minimizar
a desigualdade social, a exclusão e a invisibilidade de comunidades isoladas, a exemplo de
duas comunidades localizadas no Sertão Central do Estado do Ceará. Partindo da Teoria
Crítica dos Direitos Humanos desenvolvida por Joaquín Herrera Flores, objetiva encontrar
possibilidades de rupturas sistêmicas que proporcionem acessos igualitários a bens
essenciais e a modificação desse cenário de invisibilidade. Ao final, demonstra de que
modo os processos culturais de luta por dignidade podem ser concretizados pela prática da
educação em direitos humanos realizada por coletivos universitários de assessoria jurídica
popular. Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica e exploratória de campo.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Circunstâncias de extrema desigualdade social e exclusão
ainda são presentes em muitas localidades brasileiras. Não
são poucas as comunidades que vivem excluídas e
marginalizadas, sendo também - e por isso - alvo de
discriminação social. Esse panorama se agrava quando, nos
dias de hoje, nos deparamos com comunidades isoladas,
invisíveis, que vivem totalmente à margem do Estado, sem
acesso a direitos básicos e políticas públicas específicas
que, reconhecendo suas peculiaridades, promovam
condições mínimas a uma vida com dignidade, o que se
mostra mais danoso ainda quando encontramos grupos
isolados não protegidos pela legislação brasileira.
Essa situação de total invisibilidade e exclusão social foi
constatada no Sertão Central do Estado do Ceará: Cafundó
e Escondido são duas comunidades isoladas, localizadas a
165km da capital Fortaleza, não categorizadas como
indígenas, quilombolas ou outro tipo de comunidade
tradicional previsto da legislação, cujos moradores não são
destinatários de políticas públicas e sofrem discriminação
em razão de sua origem. Os moradores dessas duas
comunidades vivem em situação de extrema pobreza e, em
razão da condição geográfica e da falta de vias públicas de
acesso, além de não conviverem com as pessoas da cidade
mais próxima, sofrem discriminação por serem de tais
localidades198.
O contato com essa realidade de extrema vulnerabilidade
social nos levou a refletir sobre a possibilidade de encontrar
no direito, mais especificamente na esfera dos direitos
humanos, respostas e alternativas a esse panorama.
Considerando, todavia, que tais direitos em seu viés
universalista e normativista não dão conta de enfrentar as
situações de exclusão e de desigualdades sociais do nosso
contexto atual, assegurando a todos condições igualitárias
de acesso aos bens essenciais, optamos por abordar os
direitos humanos em sua perspectiva crítica, a partir da
teoria de Joaquín Herrera Flores. E, na tentativa de
demonstrar uma possibilidade prática dos processos de lutas
propostos pelo autor, abordamos a educação em direitos
humanos realizada por coletivos de assessoria jurídica
popular de universidade brasileiras.
Entendemos ser relevante nos debruçarmos sobre a
análise de situações reais e de temáticas locais,
especialmente de comunidades isoladas do nordeste
brasileiro, notadamente diante do fato de que a pesquisa
científica do Direito ainda é predominantemente teórica e
distante da realidade social. É primordial, também, que se
avance na compreensão instrumental dos direitos humanos
numa linha que se distancie da ideia eurocêntrica positivista,
universalista e abstrata, de modo que os processos culturais
de luta por acesso igualitário a bens essenciais sejam cada
vez mais possíveis.
2. INVISIBILIDADE E DISCRIMINAÇÃO EM
COMUNIDADES ISOLADAS DO SERTÃO CENTRAL DO
CEARÁ
No município de Choró, localizado a aproximadamente
140km em linha reta da cidade de Fortaleza, Estado do
Ceará, cerca de 40 (quarenta) famílias integram as
comunidades isoladas do Cafundó e do Escondido. Tais
grupos comunitários não são oficialmente categorizados
como indígenas, quilombolas ou outro tipo de comunidade
tradicional nos termos da legislação brasileira, e nunca
foram objeto de estudo sociológico ou antropológico para
fins de identificação e reconhecimento por parte do Estado.
Essas pessoas vivem no alto de uma serra a 600 metros
acima do nível do mar, a que se tem acesso apenas após
1h30min de subida íngreme a pé, em meio a vasta
vegetação e obstáculos naturais. Não há acesso às
comunidades pelos meios de transporte tradicionais, em
razão das peculiaridades geográficas e da falta de via
pública. (ANAIS..., 2014).
Os habitantes do Cafundó e do Escondido vivem isolados
do restante da população do município de Choró e, em
regra, só convivem com os demais munícipes uma vez por
mês, quando descem até a cidade em busca de alimentação
ou de algum tipo de serviço público. A regra é o isolamento:
não há convivência com os moradores da cidade,
notadamente porque a condição geográfica e a falta de vias
de acesso ao local dificultam sobremaneira a interação
social.
Essa condição territorial de isolamento torna as
comunidades do Cafundó e do Escondido parte do
fenômeno da invisibilidade social. Seu moradores são
pessoas que vivem à margem da cidade, sem a tutela do
Estado e sem acesso a direitos básicos, em uma situação de
extrema vulnerabilidade e exclusão que os tornam vítimas
de discriminação social e até de violência. Ou seja, para o
Estado, essas pessoas são invisíveis.
De fato, a regra nessas comunidades é o não acesso a
direitos básicos, tais como alimentação, saúde, educação,
saneamento básico, trabalho, lazer, assistência social etc. A
maior parte das crianças e dos adolescentes nunca passou
por consulta médica tampouco teve tratamento odontológico,
e os mais velhos pouco fazem uso de medicamentos, além
de não se consultaram com profissionais de saúde com
habitualidade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos humanos na perspectiva universalista
tradicional não respondem aos anseios de sociedades
marcadas pela desigualdade social e pela exclusão no
contexto capitalista. O paradoxo entre a legislação
positivada que concede direitos a todos os seres humanos e
existência de um grande parcela da população vivendo sem
acesso a bens essenciais a uma vida digna não encontra
respostas na teoria tradicional do direito.
Apenas com os aportes da teoria crítica dos direitos
humanos conseguimos encontrar caminhos para a
compreensão dessa questão. A concepção de direitos
humanos como processos de luta por dignidade da forma
proposta por Herrera Flores mostra-se como possibilidade
de enfrentamento do tema, na medida em que considera a
realidade social e o contexto em que estamos inseridos e
possibilita o empoderamento dos cidadãos oprimidos e
excluídos para a luta por acesso igualitário aos bens
essenciais, bem como o desenvolvimento da nossa
capacidade criativa de agir e reagir diante do mundo. Os
processos culturais possibilitam o desvelamento de
insivibilidades e opressões e, em consequência, o
reconhecimento, a inclusão e possibilidade de luta contra a
discriminação social, especialmente no caso de
comunidades isoladas que vivem à margem do Estado,
como as comunidades do Cafundó e do Escondido,
localizadas no Sertão Central do Ceará.
E se é verdade que no Brasil esses processos de luta por
dignidade encontram entraves na precária situação das
políticas de educação em direitos humanos, não é menos
verdade que algumas experiências atuais de assessoria
jurídica popular universitária conseguem realizar a proposta
de Herrera Flores ao contribuírem para o desenvolvimento
da autonomia, da capacidade de crítica e de reconhecimento
das condições sociais em que vivemos no contexto
capitalista, estimulando uma cultura de cidadania e de luta
por dignidade com potencial transformador e emancipatório.
REFERÊNCIAS
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Disponível em: <http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/285.pdf.>. Acesso em: 6 jun.
2017.
Nathalia Lima
Bolsista CAPES/ PROSUP; Mestranda em Direito Político e Econômico na
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A instalação de megaempreendimentos na região
Amazônica necessita ser amplamente debatida,
notadamente em razão dos impactos socioambientais
negativos que pode provocar, sendo necessário indagar-se
igualmente sobre qual desenvolvimento tais
megaempreendimentos podem trazer para a região. É certo
que há no ordenamento jurídico brasileiro instrumentos
voltados para avaliação desses impactos, tais como estudos
prévios de impacto ambiental, existindo, todavia, problemas
que acabam não sendo abordados em tais estudos e que
figuram como questões sensíveis que atingem grupos mais
vulneráveis, tais como as mulheres, crianças e
adolescentes, permanecendo na maioria dos casos
invisíveis. Esses grupos sofrem com a marginalização social
e exclusão econômica, encontrando-se geralmente mais
expostos aos impactos socioambientais ocasionados pela
instalação de obras de infraestrutura de grande porte, como
é o caso das hidroelétricas na Amazônia.
O presente artigo tem como objetivo levantar o véu sobre
essa questão e, realizar uma discussão sobre os impactos
socioambientais negativos, provocados pela ausência ou
deficiência de um planejamento preventivo, que possibilite
garantir o respeito à integridade física e psicológica das
mulheres, crianças e adolescentes afetadas pelo abuso
sexual nas proximidades dos canteiros de obras desses
empreendimentos de infraestrutura de grande porte. Com a
finalidade de compreender as possíveis causas dessa
invisibilidade será estudado o procedimento de
licenciamento ambiental para construção da Usina
Hidroelétrica de Belo Monte (UHE de Belo Monte).
Uma pesquisa exploratória permitirá analisar se nos
principais instrumentos do licenciamento ambiental da obra,
quais sejam, o Relatório de Impacto Ambiental e as licenças
(prévia e de instalação), houve a previsão de abuso sexual
como um provável impacto negativo na população
indiretamente afetada pelo projeto e, se dentre as
condicionantes apresentadas nas licenças foram
estabelecidas medidas a serem adotadas com relação aos
possíveis danos decorrentes dessa violação a atingir
mulheres, crianças e adolescentes. Nesse contexto, as
contribuições de Kimberlé Williams Crenshaw209 e sua
análise do conceito de insterseccionalidade auxiliará
igualmente na compreensão dos eixos de discriminação,
presentes na classe, raça e gênero, dentre outros, que
devem ser identificados separadamente, mas considerados
de maneira conjunta no momento de fortalecimento das
instituições e elaboração das políticas públicas destinadas a
mitigar as desigualdades e discriminações, bem como os
danos sofridos, principalmente, pelas mulheres, crianças e
adolescentes socialmente marginalizadas e
economicamente excluídas, que se tornam mais vulneráveis
no cenário das grandes obras. E, para complementar nossa
análise, realizaremos um levantamento legal dos
compromissos que o Brasil assumiu em relação à proteção
de mulheres, crianças e adolescentes, indagando-se sobre
os passos necessários para auxiliar na identificação das
vulnerabilidades desses grupos e ao mesmo tempo oferecer
balizas para o monitoramento e controle de impactos
socioambientais de megaempreendimentos.
2. MEGAEMPREENDIMENTOS NA AMAZONIA,
MULHERES, CRIANCAS E ADOLESCENTES: POR QUE
DEVEMOS DISCUTIR ESSAS QUESTÕES?
A atual experiência da instalação de
megaempreendimentos na Amazônia é marcada por
discussões controversas acerca dos seus impactos
socioambientais negativos e das violações constatadas, sem
a devida resposta jurídica. Observa-se que o processo de
tomada de decisão desse tipo de empreendimento não
considera, de forma adequada, os impactos socioambientais
negativos e, em particular a violação a direitos de
determinados grupos vulneráveis como os das mulheres,
jovens e crianças. Ao analisar, por exemplo, as fases do
processo de implementação do projeto da Usina de Belo
Monte (UHE Belo Monte), quer dizer, do licenciamento
ambiental – planejamento, instalação e operação –, o que se
pode observar é uma ausência do diálogo com esses grupos
vulneráveis e distanciamento dos compromissos nacionais e
internacionais que deveriam orientar a tomada de decisão.
O licenciamento ambiental da UHE Belo Monte
apresentou inúmeras questões sobre os prováveis impactos
desse megaempreendimento que integraram o leque de
condicionantes; mas, em nenhuma delas vislumbrou-se
especificamente a discussão dos impactos negativos
gerados em relação às mulheres, crianças e adolescentes,
principalmente no que diz respeito a questões envolvendo a
sua exploração sexual. Isso acabou por não possibilitar o
contínuo monitoramento dessa questão.
Ocorre que, em março de 2013, o Ministério Público
Federal (MPF) ofereceu denuncia de seis pessoas ligadas a
Boate Xingu, estabelecimento que ficava próximo ao
canteiro de obras da UHT Belo Monte, junto a Justiça
Federal de Altamira, pelos seguintes crimes: trabalho
escravo, tráfico de pessoas, exploração sexual, corrupção
de menores e formação de quadrilha. 210 Os acusados foram
identificados pelas vítimas, mulheres e meninas, que se
encontravam em situação precária e desumana, e que foram
libertadas da boate em fevereiro, depois de operação da
Polícia Civil do Pará. (MPF, 2013). Essas mulheres e
meninas tinham sido traficadas para o local com a promessa
de alta rentabilidade, para trabalharem na barragem. As
vítimas eram inseridas em condições análogas a de escravo,
onde eram obrigadas a exercer atividade sexual para pagar
o quarto onde dormiam, sua alimentação e produtos de
higiene pessoal. Para além desses custos, ainda havia o
pagamento de uma comissão em cima do valor de cada
“programa”.211 De acordo com relatos do MPF, “Além da
precariedade das instalações, as vítimas foram colocadas
em quartos sem janela e sem ventilação, o que se torna
desumano, quando considerarmos as temperaturas locais e
o fato de que o gerador de energia era mantido desligado
após encerramento das atividades da boate” (MPF, 2013).
Relatos de impactos socioambientais negativos como
esse são recorrentes em locais em que
megaempreendimentos são instalados, principalmente
quando o local de instalação já apresenta algumas
vulnerabilidades decorrentes de um sistema de gestão
público ainda pouco estruturado para lidar com essas
questões. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do
tráfico de pessoas analisou inúmeros casos e relatos que
sintetizam essas questões, sendo possível extrair alguns
consensos presentes nos relatos, tais como: o acirramento
da violência doméstica, a não priorização das mulheres nas
políticas de reassentamento das populações atingidas, a
inclusão deficitária dessas mulheres no mercado de trabalho
nas grandes obras, o aumento da exploração sexual, a
precarização da convivência familiar, a exclusão produtiva
de crianças e adolescentes. Trata-se portando de uma
realidade incontestável, sendo que pesquisa realizada pela
Universidade Federal de Sergipe e Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, em parceria com a Childhood Brasil
(instituto WCF), sobre “Os homens por trás das grandes
obras do Brasil” indicou que “no Norte [a exploração sexual
de crianças e adolescentes] é pior, [tal qual avaliaram] (...)
40% dos entrevistados” (SANTOS, 2013, p. 339). Esses
impactos socioambientais também foram identificados no
relatório de atividades produzido pelo GVCes, em 2016,
sobre as grandes obras na Amazônia que trouxe um
diagnostico da “pouca ou nenhuma conexão [dos
megaempreendimentos] com as reais demandas sociais
geradas local e regionalmente, numa visão de futuro
compartilhada [tendo como resultado uma tendência] (...) a
violação de direitos”. (GVCes, 2016, p. 7). Pode-se extrair
dai uma visibilidade e previsibilidade da emergência desses
impactos e danos sociais vis-à-vis da invisibilidade dessas
questões no processo de tomada de decisão, o que impede
que um planejamento preventivo eficiente.
As reflexões sobre o papel do Estado e a
responsabilidade da empresa sobre os impactos
socioambientais negativos e sobre as eventuais condutas a
serem adotadas para prevenir e igualmente reparar os
danos provocados são necessárias. A discussão sobre a
reparação, sem dúvida é absolutamente relevante, e
mereceria um estudo específico sobre o tema, mas são
questões de cunho preventivo e dentre elas aquelas que se
relacionam com um momento especifico: o do processo de
tomada de decisão e os fatores que devem orientar esse
processo podem alterar essa dinâmica.
O Brasil ratificou inúmeros tratados assumindo a
obrigação de promover e estimular o respeito dos direitos
humanos, sobretudo em relação a grupos historicamente
reconhecidos como vulneráveis como mulheres212, crianças
e adolescentes213. Para além desses tratados e legislações
nacionais que podem ser aplicadas ao caso, o Brasil aderiu
em 2011, aos Princípios Orientadores da Organização das
Nações Unidas (ONU) sobre Empresas e Direitos humanos.
Nesse documento, foi estabelecido que a vulnerabilidade
deve ser considerada como um critério para a priorização
em duas esferas: na esfera privada, orientando a ação
empresarial para o conhecimento e controle dos seus
impactos; e na esfera púbica, sendo o Estado um ator
econômico, que atua na condição de regulador e licenciador
de empreendimentos. Para que isso seja alcançado, em
primeiro lugar é fundamental definir e identificar
vulnerabilidades, assim como de compreender alguns
passos importantes nesse processo.
3. IMPACTOS, INTERSECCIONALIDADE E
VULNERABILIDADE
Se considerarmos o contexto do processo de
licenciamento para construção da UHE de Belo Monte
podemos identificar diversos impactos que decorreram do
aumento populacional na região e acarretaram a
vulnerabilização das condições de vida. Esses impactos
foram ocasionados pelo aumento da demanda social pelo
acesso às instituições e políticas públicas que eram
insuficientes para absorver toda demanda, tanto pelo
aspecto quantitativo quanto pelo aspecto qualitativo.
(OLIVEIRA, 2013)
Boa parte da insuficiência se deve pela falta de
planejamento e ausência de uma gestão adequada dos
impactos socioambientais gerados pelo empreendimento. No
processo de licenciamento existem alguns mecanismos para
traçar as diretrizes das medidas preventivas e mitigatórias
destinadas a sanar os efeitos dos danos ocasionados ou
atuando no sentido de evitá-los.
Dentre os instrumentos que permitem realizar uma
avaliação dos impactos encontram-se os Estudos Prévios de
Impacto Ambiental que darão origem aos Relatórios de
Impacto Ambiental (EIA/RIMA), destacando-se ainda as
condicionantes estabelecidas pelas licenças prévia, de
instalação e de operação. Contudo, nem sempre todos os
impactos negativos são considerados no EIA/RIMA e todas
as medidas preventivas e mitigatórias exigidas. Há questões
que são simplesmente invisibilizadas, colocando em risco a
população mais vulnerável e mais exposta aos impactos
gerados pela obra.
Durante o processo de licenciamento214 da UHE de Belo
Monte as populações locais foram poucos são escutadas,
seja pela ineficiência dos instrumentos de participação
previstos pela legislação215 seja pela falta de interesse em
aplicar tais mecanismos. Assim, as ferramentas que
garantem o direito de participação passam a funcionar como
mera etapa de um procedimento, com o objetivo único e
exclusivo de obter a licença para autorização da exploração
de recursos naturais ao invés de assumirem um papel
fundamental nas tomadas de decisão. 216A exclusão da
participação dos grupos afetados pelo empreendimento
pode gerar a ausência de medidas compensatórias217 que se
destinem a esses grupos, uma vez que as demandas sequer
serão colocadas em pauta nas consultas públicas.
De acordo com as informações presentes no Relatório de
Impacto Ambiental sobre o Meio Ambiente/RIMA elaborado
para identificar os principais impactos gerados pela
construção da UHE Belo Monte, tem-se que 19.242 pessoas
seriam afetadas diretamente pelo alagamento de áreas
devido a construção das barragens no rio Xing, por conta do
deslocamento dos municípios de Altamira, Brasil Novo,
Senado José Porfírio e Vitória do Xingu. (RIMA Vol. 23, p.
37). Com relação, as pessoas indiretamente afetadas pela
obra, não fica claro, no RIMA, quais são os possíveis
impactos nem tampouco são identificadas dentre as
condicionantes estabelecidas pelas licenças (prévia e de
instalação) medidas para prevenir ou compensar os danos
sofridos.
Essa falta de clareza demonstra a fragilidade dos estudos
de impacto ambiental, uma vez que os referenciais não
podem ser traçados apenas numa perspectiva objetiva de
definição geográfica dos danos socioambientais, pois tratam-
se de elementos subjetivos e culturais que permeiam de
maneira coletiva ou individual, as formas dos impactos a
serem sofridos pelas vítimas do atual modelo de crescimento
econômico, em especial o núcleo populacional
marginalizado, que sofre quando exposto a mais
vulnerabilidades, tais como as mulheres, crianças e
adolescentes. (OLIVEIRA, 2013)
No que diz respeito a prostituição a única previsão no
RIMA foi com relação a esse problema nas terras indígenas
(TIs) durante a etapa de construção, provavelmente, por
conta da instalação dos canteiros de obra. Segundo o
relatório “o aumento da chegada de pessoas à região tende
a provocar o aumento das pressões sobre as TIs e seus
recursos naturais, o aumento da disseminação de doenças
sexualmente transmissíveis e outras. Além disso, os
indígenas ficam mais expostos ao alcoolismo, à prostituição
e às drogas. ” (RIMA, 2009, p. 85). Nada previu quanto a
possibilidade de exploração sexual de mulheres, crianças e
adolescentes no entorno das obras.
O fato de não existir uma previsão da probabilidade de
exploração sexual de mulheres, crianças e adolescentes em
decorrência desse megaempreendimento no Relatório de
Impacto Ambiental/RIMA e nas medidas compensatórias
previstas nas Licenças Prévia e de Instalação218 levou ao
descompasso entre a dinâmica socioambiental
desencadeada pela implantação dessa obra e a capacidade
institucional de prever e compensar os impactos negativos
gerados. Desse modo, ficou prejudicado a definição de
problemas relativos a exploração sexual como um pré-
requisito fundamental para o planejamento estratégico das
políticas públicas destinadas as mulheres, crianças e
adolescentes.
Com relação às condicionantes previstas para a obtenção
das licenças, tem-se que na Licença de Prévia nº 342/2010
foram definidas 40 condicionantes socioambientais e na
Licença de Instalação nº 795/2011, 23 novas condicionantes.
Essas medidas devem ser realizadas pelo empreendedor
antes e durante a instalação da hidroelétrica para garantir a
minimização dos impactos socioambientais e proporcional o
desenvolvimento local. No caso da UHE Belo Monte, as
medidas compensatórias destinadas a população
indiretamente atingida só foram previstas na licença prévia:
Figura 1
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao levantar o véu sobre a situação das mulheres, crianças
e adolescentes no caso da instalação de
megaempreendimentos e de sua vulnerabilidade algumas
questões permitem avançar nas reflexões sobre essa
temática.
Há uma relação intrínseca entre a instalação de
megaempreendimentos e a exploração sexual de mulheres,
crianças e adolescentes, ou seja, há probabilidade que em
canteiros de obras ocorram situações de exploração sexual
desse grupo de pessoas vulneráveis, ou em outras palavras
a instalação de megaempreendimentos tem como um de
seus impactos perversos a exploração sexual de mulheres,
crianças e adolescentes. E, apesar de normativas existentes
que preveem que sejam considerados os impactos
socioambientais dos megaempreendimentos, essa temática
ainda permanece invisível no processo de tomada de
decisão. Ao invés de um amplo diálogo e articulação desses
tipos de impactos no momento de planejamento do
megaempreendimento, essas questões passam a ser
discutidas em face de violações posteriores ao momento de
instalação do empreendimento e desconectadas de uma
eventual responsabilidade dos empreendedores e do Poder
Público. Há, portanto, a necessidade de considerar-se uma
matriz de responsabilidades mais alargada.
Evidencia-se, particularmente, a fragilidade dos estudos
de impacto ambiental, uma vez que os referenciais não
podem ser traçados apenas numa perspectiva objetiva de
definição geográfica dos danos socioambientais, pois tratam-
se de elementos subjetivos e culturais que permeiam de
maneira coletiva ou individual, as formas dos impactos a
serem sofridos pelas vítimas do atual modelo de crescimento
econômico, em especial o núcleo populacional
marginalizado, que sofre quando exposto a mais
vulnerabilidades, tais como as mulheres, crianças e
adolescentes.
Por fim, deve-se ressaltar que a construção de espaços
de fala e discussão bem como o empoderamento de
mulheres, crianças e adolescentes pode ser uma relevante
ferramenta para assegurar que todos os seus direitos e
interesses, sejam não somente respeitados, mas tomados
como diretriz para a construção de um processo de tomada
de decisão mais coerente, inclusivo, preventivamente
protetivo.
REFERÊNCIAS
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O recrudescimento dos riscos ambientais na
contemporaneidade e o aumento na vulnerabilidade de
diversos grupos sociais aos danos decorrentes desses
riscos têm ocasionado eventos ambientais catastróficos, que
violam direitos humanos básicos, como a saúde, a
propriedade, a moradia e o trabalho, além, é claro, do direito
a um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.
A vulnerabilidade ambiental representa um fenômeno
complexo por excelência, na medida em que constitui o
efeito de uma pluralidade de causas inter e transdisciplinares
que não seguem um processo de atuação linear e tampouco
podem ser isoladas ou decompostas de maneira
absolutamente objetiva, o que desafia o reducionismo típico
da racionalidade moderna, cartesiana.
Embora muito se tenha falado sobre medidas preventivas
e precaucionais como elemento de combate à
vulnerabilidade ambiental, não se tem dado suficiente
destaque à importância do efeito dissuasório da
responsabilidade civil por danos ambientais para a redução
dos índices desses prejuízos e o incremento da resiliência
das sociedades humanas, o que justifica a necessidade
desta pesquisa.
A efetiva produção desse efeito dissuasório, relacionado à
função preventiva da responsabilidade civil, exige, porém,
que esse instrumento jurídico reparatório funcione a
contento, o que pressupõe, dentre outras coisas, que sejam
reconhecidas suas principais deficiências e, mais do que
isso, que sejam envidados esforços para, na medida do
possível, transpô-las. Diante disso, o trabalho tem como fio
condutor a seguinte pergunta de partida: como e em que
medida as deficiências da responsabilidade civil por dano
ambiental contribuem para o agravamento da
vulnerabilidade ambiental, à luz do pensamento complexo?
Desenvolver-se-á, para tanto, pesquisa de natureza
teórica, descritiva e explicativa, com abordagem qualitativa,
orientada pelo paradigma epistemológico da complexidade,
abordado de forma transversal. Quanto às fontes, a
pesquisa será documental e bibliográfica e trabalhará com
amostragem não-probabilística, do tipo intencional puro,
definida com base em critérios de homogeneidade e de
pertinência em relação ao objetivo geral. Em relação aos
métodos, serão predominantemente empregados o dedutivo
e o sistêmico.
Uma tentativa de resposta adequada à questão central
deste artigo exige o cumprimento de determinadas etapas
prévias, que constituem verdadeiros objetivos específicos a
serem perseguidos em cada um dos tópicos do trabalho, a
fim de que se chegue a uma conclusão coerente.
Não há como tratar da relação entre as deficiências da
responsabilidade civil e o agravamento da vulnerabilidade
ambiental sem, antes, identificar, de forma tão precisa
quanto possível, quais são essas deficiências, ou as
principais delas, sendo esse o objetivo do primeiro tópico do
trabalho.
Em um segundo momento, serão abordadas as funções
reparatória e preventiva da responsabilidade civil,
relacionando-as ao funcionamento regular desse instituto
jurídico reparatório. Em seguida, no terceiro tópico, analisar-
se-á, sob a óptica do pensamento complexo, o conteúdo
jurídico da expressão “vulnerabilidade ambiental”,
demonstrando-se em que medida a responsabilidade civil
pode contribuir para a sua redução.
Por fim, à guisa de conclusão, buscar-se-á estabelecer
uma correlação entre as deficiências da responsabilidade
civil identificadas na pesquisa com o agravamento da
vulnerabilidade ambiental, tal como concebida no terceiro
tópico, de modo a atender ao objetivo geral do trabalho.
2. PRINCIPAIS DEFICIÊNCIAS DA RESPONSABILIDADE
CIVIL POR DANO AMBIENTAL
Nem sempre as medidas tradicionais de prevenção e
precaução, como o controle da poluição e o licenciamento
ambiental, são suficientes para a proteção integral do meio
ambiente e dos bens jurídicos passíveis de serem
reflexamente atingidos. Há casos em que as lesões
ambientais concretizam-se e excedem os limites de
tolerabilidade, impondo-se que o equilíbrio ecossistêmico
seja reestabelecido.
A principal ferramenta jurídica empregada pelos Estados
para reparar os prejuízos decorrentes das lesões ambientais
é a responsabilidade civil, instrumento típico dos danos ditos
“tradicionais”, ligados ao Direito Privado, o qual, após um
período de surpreendente resistência (BENJAMIN, 1998, p.
78), foi importado para o campo dos danos ambientais dado
o advento da crise ambiental e o reconhecimento da
inidoneidade do Direito Público para dar conta, por si só, da
proteção do meio ambiente (BENJAMIN, 1998, p. 80).
Embora constantes adaptações venham sendo feitas
nesse instituto, de modo a adequá-lo às peculiaridades dos
danos ambientais contemporâneos, de estrutura causal
complexa, cumulativa e sinérgica e de efeitos muitas vezes
transfronteiriços, transtemporais e potencialmente
catastróficos, elas não têm sido suficientes para assegurar
um grau de efetividade satisfatório, de modo que a efetiva
contribuição da responsabilidade civil para a tutela do meio
ambiente encontra-se aquém do seu potencial.
De fato, apesar dos esforços doutrinários, legislativos e
jurisprudenciais, a responsabilidade civil ainda padece de
deficiências que a tornam um mecanismo reparatório
incompleto e, portanto, incapaz de exercer plenamente as
suas funções – inclusive a preventiva, relacionada ao efeito
dissuasório, de que se tratará no próximo tópico.
Uma síntese da literatura especializada permite afirmar
que as principais deficiências inerentes à responsabilidade
civil por dano ambiental ou por ela enfrentadas são as
seguintes: dificuldade de comprovação do nexo causal entre
conduta e dano, o que torna muitas vezes impossível a
identificação do poluidor; o problema dos danos cumulativos
e dos danos latentes ou transtemporais, ante óbices legais
como a prescrição; os casos de insolvência do responsável;
a demora e o custo dos processos judiciais por meio dos
quais a responsabilidade civil é imposta; a dificuldade de
aplicação aos casos de danos ambientais internacionais ou
transfronteiriços e, ainda, a questão da valoração econômica
dos prejuízos ambientais.
Há casos em que, dada a complexidade dos processos de
formação e dos efeitos dos danos ambientais, não é possível
estabelecer com segurança um nexo de causalidade entre
esses prejuízos e os agentes que os provocaram, pelo
menos não sob a óptica clássica, voltada aos danos
comuns, de causalidade linear.
A isso se tem chamado de “o problema do nexo causal”
em matéria de dano ambiental, que é, segundo Steigleder
(2011, p. 71), o “pressuposto mais importante da
responsabilidade civil por dano ambiental”; nos dizeres de
Catalá (1996, p. 247), o seu “problema primordial”, ou, ainda,
nas palavras de Benjamin (1998, p. 126), o seu “calcanhar
de Aquiles”.
Passando pela inversão do ônus da prova (agora admitida
de forma genérica, no ordenamento jurídico brasileiro, pela
Lei nº 13.105/2015, que instituiu o Novo Código de Processo
Civil), pela adoção da chamada “teoria do risco integral”,
pela utilização de presunções jurídicas (SAMPAIO, 2003, p.
209), pelas teorias da responsabilidade coletiva, da pollution
share liability (OLIVEIRA, 2007, p. 31), da condição perigosa
(BAHIA, 2015, p. 628), das probabilidades (LEITE; AYALA,
2015, p. 195) e do escopo da norma jurídica violada
(LEMOS, 2010, p. 155), tem-se buscado abrandar a
exigência da prova do nexo causal, de modo a impedir que o
dano ambiental lesado remanesça sem qualquer reparação.
Não obstante, seja pela ausência de alterações
legislativas concretas, seja pela novidade e singularidade do
tema, seja, ainda, por um apego dos tribunais à tradição
mais formalista, ligada aos cânones clássicos do Direito
Civil, o fato é que a exigência de se provar o nexo causal
para fins de imputação do dever de reparar os danos
causados ao meio ambiente ainda constitui uma dificuldade
à plena efetivação da responsabilidade civil como
instrumento reparador.
Por outro lado, uma das peculiaridades dos danos
ambientais é a possibilidade de que seus efeitos se projetem
no futuro (LEITE; AYALA, 2015, p. 215), protraindo-se no
tempo. Os chamados danos ambientais cumulativos e os
danos latentes ou transtemporais desafiam a
responsabilidade civil, na medida em que o passar do tempo
agrava a dificuldade na identificação do poluidor.
Segundo Prieur, esses danos “tardios” tornam mais difícil
o estabelecimento do nexo de causalidade (2004, p. 926).
Além disso, os prejuízos deles decorrentes são mais
suscetíveis ao desamparo jurídico, considerando que a
praxe dos ordenamentos jurídicos é o estabelecimento de
prazos prescricionais, como forma de promover segurança
jurídica. Esses prazos podem ter escoado muito tempo antes
que os efeitos do dano ambiental se manifestem e que ele
seja descoberto.
Note-se que, ao contrário do que ocorre no Brasil, onde o
Superior Tribunal de Justiça, com amparo na doutrina de
Mazzilli (2007, p. 540-541), já pacificou o entendimento de
que é imprescritível a ação reparatória de caráter coletivo
em matéria ambiental (BRASIL, 2009), a tese da
imprescritibilidade em matéria de dano ambiental não é
acatada em todos os países.
Um outro fator que compromete a efetividade da
responsabilidade civil é a insolvência do poluidor. Ainda que
este seja identificado, processado e condenado, de nada
adiantará o “penoso caminho judicial” (PERALES, 1997, p.
253) – que, por si só, costuma ser demorado e custoso
(PERALES, 1997, p. 279-280) – se, afinal, o causador do
dano ambiental não tiver meios econômicos para repará-lo.
Nesses casos, à míngua de um improvável seguro de
responsabilidade civil ambiental, é de se admitir que a
responsabilização será, simplesmente, inútil para reparar os
prejuízos causados.
Há, ainda, a questão dos danos ambientais
transfronteiriços, em especial os danos internacionais. Assim
como os riscos ambientais abstratos que lhes dão origem, os
danos ambientais contemporâneos não conhecem fronteiras
físicas. Seus efeitos são, muitas vezes, globais,
manifestando-se de forma difusa, como sói ocorrer, por
exemplo, com os prejuízos decorrentes do aquecimento
global.
Nesses casos, mesmo que identificável a fonte poluidora,
a sua localização territorial pode acarretar um acréscimo na
dificuldade para responsabilizá-la civilmente e compeli-la a
reparar o dano, tendo em vista a diversidade de ordens
jurídicas e a vigência do postulado básico da soberania, que
rege o Direito Internacional Público.
Some-se a isso o fato de que a responsabilidade civil é
incapaz de oferecer uma resposta segura à questão da
fixação do quantum debeatur. A estipulação precisa do
montante pecuniário necessário para fazer frente aos
prejuízos ambientais (quando não for possível a restauração
in situ ou a compensação ecológica, mediante substituição
por equivalente) é tarefa intrincada, em virtude da falta de
parâmetros legais para a avaliação do bem ambiental e da
complexidade do desenvolvimento de metodologias capazes
de fixar valores de troca, mesmo porque a salubridade do
meio ambiente como macrobem não tem preço (LEITE;
POLLI; MELO, 2015, p. 583).
No entender de Sendim (2002, p. 52-53 apud SILVA,
2012, p. 218-219), os métodos existentes não permitem uma
avaliação rigorosa do dano ambiental, pois levam em conta
uma diversidade de fatores que envolvem opções pessoais,
presentes e futuras, pesquisadas geralmente em mercados
hipotéticos, estando, por esse motivo, sujeitos a uma
infinidade de distorções, além de apegarem-se
demasiadamente à capacidade de uso humano dos
recursos, amesquinhando a importante capacidade funcional
ecológica dos bens ambientais.
Todos esses fatores obstaculizam o exercício regular das
funções da responsabilidade civil ambiental, bem como a
plena produção dos efeitos que lhes são próprios,
notadamente, no que interessa a este trabalho, o efeito
dissuasório, relacionado à função preventiva, de que ora se
passa a tratar.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora ocupe papel de destaque entre os instrumentos
jurídicos de reparação dos danos ambientais, a
responsabilidade civil, importada do Direito Privado para o
campo do Direito Ambiental, ainda reclama adaptações
significativas para que adquira maior efetividade.
A dificuldade de comprovação do nexo causal entre
conduta e dano, o que torna muitas vezes impossível a
identificação do poluidor; o problema dos danos cumulativos
e dos danos latentes ou transtemporais, ante óbices legais
como a prescrição; os casos de insolvência do responsável;
a demora e o custo dos processos judiciais por meio dos
quais a responsabilidade civil é imposta; a dificuldade de
aplicação aos casos de danos ambientais internacionais ou
transfronteiriços e, ainda, a questão da valoração econômica
dos prejuízos ambientais são algumas das principais
dificuldades enfrentadas pela responsabilidade civil
ambiental na contemporaneidade.
Atualmente, parece haver um certo consenso na doutrina
quanto à multiplicidade de funções exercidas pela
responsabilidade civil. Além da clássica função reparatória,
ela também desempenha papel relevante na punição dos
infratores e, consequentemente, na prevenção de danos.
A prevenção ocorre por meio da produção do chamado
efeito dissuasório (“deterrence”), fruto de técnicas de
controle social sancionatórias, que se assentam na premissa
de que os sujeitos consideram as perspectivas de sanções
punitivas e avaliam os prós e os contras (custo-benefício) da
conduta antijurídica antes de tomar a decisão de infringir a
ordem jurídica.
Essa função preventiva tem particular importância na
responsabilidade civil ambiental, seja em razão da maior
gravidade dos danos ambientais, dada a sua complexidade
e a sua estreita ligação com direitos de primeiro escalão,
como a vida e a saúde; seja em face dos princípios jurídicos
que informam o Direito Ambiental, notadamente a
prevenção, a precaução, o poluidor-pagador e a
solidariedade intergeracional, em uma perspectiva de
relação jurídico-ambiental continuativa.
A produção de efeito dissuasório e o adequado
cumprimento da função preventiva por parte da
responsabilidade civil pressupõem, todavia, a efetividade do
sistema de responsabilização, de modo a tornar concreta a
ameaça de sanção em caso de descumprimento da
legislação ambiental, impelindo o agente a evitar
comportamentos geradores de riscos ambientais.
Por outro lado, os riscos compõem o núcleo da noção de
vulnerabilidade ambiental, entendida como uma complexa
situação de maior suscetibilidade aos danos ambientais
decorrentes desses riscos. Diminuindo-se os riscos, menor
será a vulnerabilidade. Uma das formas de implementar
essa diminuição é, precisamente, o manejo do efeito
dissuasório da responsabilidade civil.
Se a efetividade da responsabilidade civil ambiental
estiver comprometida, menor será o seu potencial de
prevenção de riscos ambientais e, consequentemente, de
redução da vulnerabilidade ambiental. Daí porque as
deficiências apontadas no primeiro tópico deste artigo
merecem ser objeto de reflexão científica mais aprofundada,
a fim de que se estruturem possíveis maneiras de mitigá-las,
fortalecendo-se o papel da responsabilidade civil na gestão
de vulnerabilidades ambientais.
Pensar em alternativas ao modelo atual de
responsabilidade civil ambiental é um dos maiores desafios
enfrentados pelo Direito Ambiental na atualidade, mas,
surpreendentemente, a abordagem desse problema tem
levado em conta precipuamente a perspectiva reparatória,
olvidando-se da relevante função preventiva desempenhada
por esse instituto e do seu papel na redução da
vulnerabilidade ambiental. Essa perspectiva, diante de tudo
que foi exposto, deve ser levada em conta e preservada
quando da realização de adaptações no modelo atual e da
implementação de novos mecanismos jurídicos de
reparação do dano ambiental, complementares à
responsabilidade civil.
REFERÊNCIAS
Conselho Editorial