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Prefácio

Não há como pensar em uma sociedade Justa sem olhar para o


outro, para o outro e seu entorno, para o outro e sua condição. Este
é um livro sobre o outro, os outros, nós todos e como vivemos. Os
estudos aqui apresentados problematizam as condições da
existência em situação de vulnerabilidade e defendem, através da
afirmação, garantia e concretização dos direitos humanos
fundamentais, o reconhecimento desses grupos. Nesse percurso, o
acúmulo das terias feministas, bem como dos estudos de gênero
são muito benvindos porque permitem sair do lugar tradicional do
Direito e avançar em um reflexão muito menos linear, mais muito
mais colorida, complexa e cheia de possibilidades.
Os estudos de gênero e o acúmulo herdados das diferentes
perspectivas da teoria feminista permitem não só pensar nas
condições em que vivem as mulheres, em especial no Brasil, mas
antes, nos fazem refletir sobre a sociedade que estamos
construindo e como naturalizamos papéis, especialmente os de
gênero.
A importância desse debate pode ser constatada quando
observamos, por exemplo, que em 2010, a ONU criou a ONU
Women, uma agência exclusiva para o empoderamento da mulher e
a igualdade de gênero. Renomados centros universitários dos
Estados Unidos e da Europa contam com programas específicos
para estudar os mais variados temas sobre gênero, desde
identidade sexual, passando por direitos trabalhistas até
representatividade democrática. Harvard e Yale contam com
departamentos com graduação e pós-graduação em mulher, gênero
e sexualidade; Oxford conta com um mestrado em estudos de
gênero; a Universidade de Salamanca tem um Centro de Estudos
da Mulher, assim como a Sorbonne, que tem um departamento
interdisciplinar em estudos de gênero.
No Brasil há importantes espaços acadêmicos vinculados a essa
temática. A Universidade Federal da Bahia conta com um programa
de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres,
Gênero e Feminismo, que titula mestras/es e doutoras/es e a
Universidade Federal de Santa Catarina, conta com o Núcleo de
Identidades de Gênero e Subjetividades. O Núcleo de Estudos de
Gênero Pagu, da Unicamp é sempre referência quando pensamos
nos estudos de gênero, dentre outros.
Pontuo esses exemplos para reafirmar a importância de abrir
cada vez mais espaço para pensar as questões de gênero e fazer
conhecer o poderoso quadro teórico que lhe dá sustentação e que
não está restrito à análise exclusiva dos fatores da desigualdade
feminina, mas que permite questionar também a forma como
construímos a ciência e o direito.
Assim, a relevância dessa obra não está apenas na fundamental
apresentação do debate contemporâneo de gênero, mas sim na
relação deste marcador social e a condição de vulnerabilidade
decorrente da violação sistemática de direitos a que estão
submetidas a grande maioria das mulheres brasileiras e suas
crianças. Para além das violências de gênero, os trabalhos aqui
apresentados olham também para circunstâncias de violência e
vulnerabilidade ainda bastante invisibilizadas como a precarização
das condições de trabalho às quais as mulheres estão sujeitas; a
opressão causada por um meio ambiente desequilibrado; a
dificuldade de acesso aos meios de justiça e igualdade social. A
situação das mulheres que vivenciam conflitos armados e das
mulheres refugiadas aqui também é olhada com atenção.
A condição humana de vulnerabilidade é cuidadosamente
observada nos artigos que compõem esse livro e que caminham
entre o direito, a psicologia, a linguística, a economia, o meio
ambiente, tecendo uma obra que oferece a todos nós a
possibilidade de pensar a realidade de forma ampla. Quando
entendemos que a realidade é uma construção social, fica mais fácil
termos esperanças para enfrentar os desafios que nos são
colocados para que possamos ter uma sociedade cada vez mais
justa, mais igualitária, mais saudável, mais democrática.
Convido todas/os a se debruçarem sobre os trabalhos desses
pesquisadores e pesquisadoras que nos ofertam reflexões valiosas
e dedicam seus estudos a desbravar os meandros da construção
social das desigualdades. A vulnerabilidade não é um problema do
outro, mas de todas/os nós. Boa leitura!

Andréa Depieri
Professora do Departamento de Direito
da Universidade Federal de Sergipe
Apresentação

O grupo de pesquisa (CNPq) “Mulher, Sociedade e Direitos


Humanos”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito
Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
realizou em 15 de março de 2017 o I Ciclo de Debates Mulher,
Direitos Humanos, Sociedade e Vulnerabilidade, ponto de partida
para a organização deste e-book.
Entendemos que os estudos acadêmicos têm que cada vez mais
se aproximar da realidade, e por meio da consolidação de parcerias
entre pessoas, experiências e instituições acreditamos que
conseguiremos avançar na redução das vulnerabilidades, às quais
grande parte da população brasileira está submetida.
Diante disto, à compilação das contribuições dos expositores do
evento de 15 de março, adicionamos, com extrema alegria, textos
de pesquisadoras(es) e professoras(es) de diversas searas do
conhecimento e atuação. O resultado é uma interessante reflexão
sobre teorias feministas, o papel do Direito na regulação das
relações sociais, da violência contra a mulher, dos desafios dos
processos migratórios no século XXI e das consequências da
vulnerabilidade do meio ambiente urbano e natural.
Os artigos dialogam entre si, mantendo, sempre, a independência
das ideias das(os) autoras(es) e de seus achados de pesquisa.
Há textos preponderantemente teóricos, como o de Danielly
Passos de Oliveira sobre “Gênero e Norma: o Feminismo em
Chodorow e Butler”, o de Vanessa Oliveira Batista Berner, sobre “As
Teorias Feministas: o Direito como ferramenta de transformação
social” e o de Patricia Brasil e Débora Massmann “Mulher e
vulnerabilidade no Direito brasileiro: uma questão de sentidos”.
Outros, assumem a perspectiva de concretização de direitos
como o artigo de Hildete Pereira de Melo, Cristiane Soares e
Lourdes Maria Bandeira, intitulado “A trajetória da construção da
igualdade nas relações de gênero no brasil: as empregadas
domésticas”; a contribuição de Patrícia Bertolin e Marilu Freitas, “O
trabalho feminino na era globalizada: ritmo intensificado e
precarização”. Ainda neste escopo, e mais voltados à realidade da
norma, do Direito e do Poder Judiciário, dois artigos: o de Maria
Cecília Asperti, com o título “Acesso à justiça e estereótipos de
gênero no Judiciário: o caso propaganda ‘musa do verão 2006’; e o
de Denise Almeida de Andrade, Monica Sapucaia Machado e
Humberto César Temóteo Ribeiro que trataram sobre “A
necessidade de superação das posições dicotômicas sobre o
feminicídio no brasil: reflexões introdutórias”.
Algumas(ns) autoras(es) voltam-se ao cenário internacional. Tarin
Mont´Alverne e Silvana Melo abordam a “A igualdade de gênero e a
desdiferenciação dos sistemas sociais no Islã: o estigma da mulher
oprimida no panorama dos Direitos Humanos”; Flávio de Leão
Bastos Pereira enfrenta “A violência sexual contra mulheres e
meninas em conflitos armados e genocídios: o caso das meninas
Yazidis”; e “O direito internacional dos refugiados e as questões
relacionadas à violência de gênero: contribuições da convenção de
istambul na proteção de mulheres e crianças refugiadas” é a
contribuição de Tarin Mont´Alverne e Ana Carolina Matos.
Encerrando a compilação temos os artigos de Denise Almeida de
Andrade e Roberta Laena Costa Jucá “Direitos Humanos como
processos de luta à luz da Teoria Crítica do Direito: aportes para o
enfrentamento da invisibilidade social de comunidades isoladas”; de
Solange Teles, Jana Maria Brito e Nathalia Lima
“Megaempreendimentos e impactos socioambientais: mulheres
crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade”; e de
Germana Belchior e Diego Primo sobre “As deficiências da
responsabilidade civil como fator de agravamento da vulnerabilidade
ambiental”, contribuindo para as reflexões sobre meio ambiente e
vulnerabilidade.
É louvável o caráter interdisciplinar da obra, que se diferencia da
maior parte dos trabalhos produzidos na área do Direito, mesmo
quando lançamos o olhar para as obras coletivas.
Agradecemos, sinceramente, as valiosas contribuições aqui
mencionadas e desejamos uma ótima leitura.
Patrícia Tuma Martins Bertolin
Denise Almeida de Andrade
Mônica Sapucaia Machado
I
GÊNERO E NORMA: O FEMINISMO EM
CHODOROW E BUTLER1

Danielly Passos de Oliveira


Psicóloga clínica. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do
Ceará. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará e pela
Université Paris 7, Pós-doutoranda em Psicologia, no Núcleo de Investigações em
Psicanálise da Universidade de São Paulo (USP).

Resumo: Este trabalho consiste numa pesquisa sobre o conceito de gênero,


fundamentada nas teorias de Nancy Chodorow e de Judith Butler. Nosso objetivo é mostrar
como o gênero constitui uma norma social que organiza os processos de subjetivação,
sendo incorporada às práticas cotidianas como algo “natural” e “necessário”. Desse modo,
o gênero convenciona um modo de ser e de perceber o mundo, dividido segundo uma
lógica binária entre uma forma masculina e uma forma feminina. Tal lógica implica e
naturaliza uma divisão sexual do trabalho: cabendo aos homens ocupar o espaço público e
às mulheres - mesmo que atualmente também ocupem o espaço público – responsabilizar-
se por todas as tarefas e atribuições do espaço doméstico.

Palavras-chave: Gênero. Percepção. Masculino. Feminino.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este artigo tem por objetivo examinar como o conceito de
gênero pode ser compreendido como uma norma social e de
que modo ele é incorporado pelos sujeitos em suas práticas
cotidianas e em suas formas de perceber e de organizar o
mundo. Para tanto, fundamentamos nossa análise nos
constructos teóricos de duas autoras: Nancy Chodorow e
Judith Butler.
Para se trabalhar com o conceito de gênero, é necessário
partir de uma abordagem histórica. De acordo com Joan
Scott (1995), o termo “gênero” foi inicialmente utilizado pelas
feministas americanas para enfatizar o aspecto
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo.
O objetivo era o de pontuar a necessidade de incluir os
homens, ao se pensar sobre as mulheres. Ou seja, de
utilizar o conceito de gênero para se referir à dimensão
essencialmente relacional dos papéis atribuídos aos homens
e às mulheres na sociedade.
Em seu uso recente mais simples, o termo gênero é
sinônimo de “mulheres”. Contudo, numa acepção mais
aprofundada, o gênero se torna uma maneira de se referir às
maneiras pelas quais as identidades subjetivas de homens e
de mulheres são construções sociais, frutos de uma coerção
social sobre um corpo sexuado (SCOTT, 1995, p. 7). Nesse
caso, o gênero pode incluir o sexo, mas não é diretamente
determinado por ele.
Ainda segundo Scott (1995), existem três posições
teóricas distintas sobre o gênero. Primeiro, a autora
menciona as teóricas do patriarcado, que enfatizam a
subordinação das mulheres aos homens, tendo na
reprodução o apogeu da alienação do corpo feminino. A
crítica tecida a essa posição consiste no fato dela concentrar
sua análise na diferença física entre homens e mulheres, o
que aponta para um essencialismo, além de não procurar
explicar de que maneiras a desigualdade de gênero se
relaciona com outras desigualdades, como as econômicas,
por exemplo.
A segunda posição teórica mencionada por Scott abrange
o campo das pesquisas marxistas. Nele, se situam as
pesquisadoras marxistas que, ao mesmo tempo em que
rejeitam o essencialismo, destacam a importância de
considerar o patriarcado e o capitalismo como sistemas
separados, embora em permanente interação. Para Scott
(1995), as teóricas do marxismo, no entanto, falham ao não
conseguir explicar as razões pelas quais os sistemas
econômicos não determinam diretamente as relações de
gênero, haja vista que a subordinação das mulheres é
anterior ao capitalismo. Além disso, nessa posição, o gênero
é abordado como uma espécie de subproduto das estruturas
econômicas.
A terceira posição teórica consiste na teoria das relações
de objetos (na qual se destaca Nancy Chodorow) e nas
teorias pós-estruturalistas (que, para Scott, são
representadas pela psicanálise lacaniana). Segundo Scott
(1995), a teoria das relações de objeto dá ênfase à divisão
do trabalho existente na família, e apresentaria como
limitação exatamente esse aspecto: o de restringir a
construção do gênero à esfera familiar, sem explicar como a
sociedade se imprime nas formas de organização familiar.
Em relação às teorias pós-estruturalistas, Scott as define
como estando ancoradas num construtivismo radical: onde a
linguagem é erigida como o princípio a partir do qual se
constituem as subjetividades. Para a psicanálise lacaniana,
o masculino e o feminino não são características fixas -
inerentes aos sujeitos - mas identificações instáveis. No
entanto, adverte Scott, os lacanianos falharam ao se
concentram em demasia na dimensão intrapsíquica. Além
disso, certos conceitos desenvolvidos por Lacan podem ser
tomados numa perspectiva a-histórica, universalizante,
levando a uma “naturalização” de determinados aspectos da
relação entre o masculino e o feminino. Tal crítica será
aprofundada por Judith Butler. Scott (1995) não menciona
Butler como uma pesquisadora pós-estruturalista importante
para os estudos de gênero porque a publicação do seu
texto: “Gender: a useful category of historical analisys”
ocorre nos Estados Unidos em 1986. Posteriormente, esse
texto foi traduzido para o português como: “Gênero: uma
categoria útil para a análise histórica”. O texto de Scott ao
qual nos referimos é, portanto, anterior ao aparecimento da
obra que provocará uma mudança no modo como o gênero
é teorizado pelas ciências humanas e problematizado pelo
feminismo: “Gender trouble: feminism and subversion of
identity”, traduzido para o português como: “Problemas de
gênero: feminismo e subversão da identidade” foi publicado
nos Estados Unidos em 1990.
Partindo de uma concepção do gênero como um conceito
complexo que trafega entre diversos campos do saber,
nosso objetivo é tentar compreender de que modo o gênero
se constitui como uma norma incorporada pelos sujeitos em
suas práticas cotidianas e em suas percepções de si
próprios e dos outros. Para tanto, iremos nos fundamentar
em dois aportes teóricos distintos: nas elaborações tecidas
por Nancy Chodorow no livro “Psicanálise da maternidade:
uma crítica a Freud a partir da mulher”, publicado nos
Estados Unidos em 1978 e na concepção de gênero
desenvolvida por Judith Butler. Esses dois referenciais
teóricos nos servirão de fundamento para buscar respostas
para a seguinte pergunta: como o gênero se constitui
enquanto uma norma social incorporada pelos sujeitos em
suas formas de perceber o mundo e a si mesmos e de
organizar suas práticas cotidianas? Para buscar respostas
para esta questão, realizamos uma pesquisa bibliográfica
voltada para a análise do conceito de gênero na teoria de
Nancy Chodorow e na de Judith Butler. Procuraremos
mostrar em que aspectos as duas autoras se aproximam e
no que elas divergem no que se refere à forma como
definem o conceito de gênero enquanto uma norma social.

2. AS MULHERES E A MATERNIDADE, SEGUNDO NANCY


CHODOROW
Nancy Chodorow, nascida em 1944 nos Estados Unidos,
é socióloga, psicanalista, além de uma autora feminista
bastante respeitada. Chodorow publicou diversos livros e
artigos. Dentre eles, o que causou maior repercussão no
campo dos estudos de gênero foi o livro: “The reproduction
of mothering - psychoanalysis and the sociology of gender”,
de 1978, publicado no Brasil com o título: “Psicanálise da
maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher”. É
sobre esta obra que voltaremos nossa atenção.
Segundo Nancy Chodorow, o fato das mulheres não
apenas gerarem os filhos, mas assumirem a
responsabilidade inicial pelos cuidados com a criança
constitui um dos poucos aspectos universais e duráveis da
divisão do trabalho entre os sexos (1990, p. 17). No entanto,
adverte a autora, a tarefa de cuidar das crianças é atribuída
às mulheres não porque haja alguma característica
intrínseca ao psiquismo feminino que torne as mulheres
mais propensas a exercer um papel emocional dentro e fora
da esfera familiar. Não se trata da existência de uma
“natureza” feminina voltada para o outro, mas sim de uma
reprodução da maternação enquanto um elemento central
de organização e de reprodução social do gênero. Nas
palavras da autora:

O argumento biológico em favor da maternalidade das mulheres baseia-


se em fatos que decorrem não do nosso conhecimento biológico, mas
de nossa definição da situação natural tal qual ela surge de nossa
participação em certos arranjos sociais. O fato de que as mulheres
tenham um intenso e quase exclusivo papel materno deve-se a uma
transposição social e cultural das suas capacidades de dar à luz e
amamentar. Não é assegurado ou causado por essas próprias
capacidades (CHODOROW, 1990, p. 50).

A crítica tecida por Chodorow a uma ideia de natureza


feminina circunscrita e definida pelo corpo das mulheres é
uma resposta àquilo que Foucault (1988) chamou de
histerização do corpo da mulher. Um processo que, segundo
ele, se consolidou durante o século XIX e teve como
característica o esquadrinhamento do corpo feminino a partir
da articulação de uma série de saberes: médicos, morais,
pedagógicos. Enquanto corpo saturado de sexualidade
(histérico, necessitado de um homem), o corpo das mulheres
burguesas foi capturado pela medicina. Enquanto corpo
reprodutor, ele se tornava um corpo social: voltado para a
missão de fazer das crianças os futuros cidadãos de uma
nação em crescimento. Enquanto reprodutora ainda, a
mulher era aproximada, pelos discursos religiosos, da
imagem de Maria, a mãe abnegada que se aproximava da
santidade. Nesse sentido, a mulher, no século XIX, passou a
ser definida por algo que se produzia em seu corpo, em sua
natureza: a maternidade (e todas as atribuições decorrentes
do fato de ser mãe) se tornou a principal identidade feminina
das mulheres burguesas nas sociedades ocidentais
modernas (FOUCAULT, 1988, p. 99).
Para Chodorow, no entanto, a maternação – que a autora
define como o ato de cuidar das crianças – transcende a
maternidade e não é um processo natural, mas fruto de uma
educação contínua recebida pelas meninas desde a mais
tenra infância. De acordo com Chodorow, se numa
sociedade apenas as mulheres maternam, isso implica uma
divisão sexual do trabalho que é inegavelmente desigual e
desfavorável para as mulheres:

Cuidar de crianças, como ocupação não paga, fora do mundo do poder


público, acarreta status inferior, menos poder e menos controle dos
recursos que o trabalho pago. A maternação das mulheres efetiva e
perpetua a relativa falta de poder das mulheres (CHODOROW, 1990, p.
52).

Segundo Chodorow, a maternação das mulheres deve ser


compreendida como um elemento que se integra à
organização social do gênero, sendo fundamental para a
manutenção dessa organização. Nesse sentido, maternar
transcende a vontade individual das mulheres, uma vez que
existe um sistema econômico que se mantém porque o
trabalho reprodutivo encontra-se associado às mulheres e
não aos homens.
Chodorow enfatiza que a reprodução da maternação
constitui um processo educativo que se inicia na
primeiríssima infância (1990, p. 81). Nesse processo, entram
em jogo não apenas elementos psicológicos que se
desdobram na dinâmica da identificação entre mãe e filha
ou, por outro lado, na necessidade do filho de se afastar da
mãe para se identificar como menino, mas também questões
referentes ao alheamento dos homens do cotidiano das
crianças e da casa (o que leva alguns meninos a se
identificar com figuras hiper-masculinas: investidas de muita
violência, de muito poder e de nenhuma capacidade de
cuidado). Para Chodorow, a reprodução da maternação
constitui e, mais do que isso, naturaliza uma norma de
gênero em que as funções das mulheres são basicamente
familiares: relacionadas aos vínculos pessoais e afetivos. Do
lado oposto, os homens estariam “destinados” a habitar o
espaço público, a executar funções não familiares, a serem
indivíduos desobrigados do cuidado.

3. GÊNERO E NORMA EM JUDITH BUTLER


Judith Butler, nascida nos Estados Unidos, em 1956, é
uma filósofa pós-estruturalista considerada, atualmente, uma
das principais referências, tanto para os estudos de gênero
quanto para o feminismo. Em seu livro “Gender
trouble:feminism and the subversion of identity”, publicado
em 1990 - cujo título da edição brasileira é “Problemas de
gênero: feminismo e subversão da identidade” -, Butler se
ancora na psicanálise para dialogar e criticar o sujeito do
feminismo, desenvolvendo uma concepção original de
gênero, e da relação mantida entre sexo e gênero, ou entre
os conceitos de natureza e cultura.
Segundo Butler (2003, p. 17), há um equívoco na teoria
feminista que ocorre já na constituição do sujeito para o qual
a representação política pretende se voltar. Na constituição
da categoria “mulheres”, o movimento feminista partiria do
pressuposto de que existe uma unidade, uma identidade
capaz de reunir e, em última instância, representar esse
conjunto tão disperso e tão profundamente variado de
sujeitos. Para Butler (2003, p. 21) é difícil superar a ideia de
que as mulheres podem se reunir numa coletividade uma
vez que compartilham a “feminilidade”. Supor que as
mulheres são igualmente submetidas à dominação dos
homens ou que as mulheres podem ser agrupadas em torno
da feminilidade implica, segundo Butler, exercitar um
pensamento totalmente descontextualizado e separado de
outras importantes relações de poder, tais como: classe,
etnia, contexto histórico e cultural, etc (1990, p. 21). Assim,
explicita a autora, se alguém “é” uma mulher, isso
certamente não é tudo o que esse alguém é (1990, p. 20).
Para Butler, a tarefa política do feminismo contemporâneo
não seria a de recusar a política representacional, mas,
fundamentalmente, a de repensar as construções
ontológicas de identidade na prática da política feminista
(1990, p. 22). E quais seriam as consequências disso? Para
responder tal questão Butler se propõe a realizar uma
genealogia feminista da categoria mulheres. Ou seja,
fundamentada em Foucault (1989, 2000, 2003), ela pretende
investigar as operações políticas que deram origem e que
garantem a consistência do sujeito do feminismo. Para
Butler (2003), não há sentido em manter uma ideia de
representatividade que se sustenta por exclusão:
expulsando da categoria “mulheres” todos os sujeitos que,
por quaisquer razões, não consigam ou se recusem a se
adequar às exigências normativas implícitas na definição do
sujeito “mulher”.
De acordo com Butler, para compreendermos esse
processo complexo de produção de sujeitos enquanto
mulheres ou enquanto homens é preciso investigar a relação
estabelecida entre sexo e gênero. Nessa relação, o sexo
representaria a dimensão biológica - a realidade dos corpos
- e o gênero, a interpretação cultural e variável “recebida”
por esses corpos. Para Butler, conceber que existe um sexo
natural a ser traduzido posteriormente pelo gênero é um
efeito do sistema binário de gêneros sobre o qual se
organizam as sociedades ocidentais, ancoradas no sistema
da heterossexualidade compulsória. Esse sistema
naturalizaria uma relação mimética entre sexo e gênero:
criando um dualismo entre a feminilidade – concebida como
uma característica a ser compartilhada unicamente pelas
detentoras de um corpo feminino – e a masculinidade –
concebida como uma característica a ser compartilhada
unicamente pelos detentores de um corpo masculino. Butler
aponta que, além da evidência de que existe um espectro
sexual mais amplo do que o binarismo macho e fêmea
sugere (FAUSTO-STERLING, 2001), não há razão para
supor que os gêneros também devam permanecer em
número de dois (BUTLER, 2003, p. 24).
Para Butler, o sexo seria, desde o princípio, uma categoria
tomada em seu gênero (BUTLER, 2003, p. 24). Desse
modo, não faria sentido pensar o gênero como uma
interpretação cultural do sexo, uma vez que não existe o
sexo como um domínio pré-discursivo a esperar uma
tradução vinda da cultura. Os corpos estão, desde sempre,
inscritos na cultura, banhados em linguagem, imersos numa
teia complexa de significados. Na concepção de Butler,
portanto, o sexo é gênero:

O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural


de significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica);
tem de designar o aparato mesmo da produção mediante o qual os
próprios sexos são estabelecidos (2003, p. 25).

Para Butler, o sexo é produzido como um domínio pré-


discursivo pelo efeito do aparato do gênero. Então, é ilusório
pensar a relação entre sexo e gênero, considerando o sexo
como um elemento da natureza e o gênero como um
elemento da cultura. Se os corpos são, desde o início,
significados pelo gênero, isso não quer dizer que todas as
significações de gênero sejam possíveis. Tomando o gênero
como um aparato, ou melhor, como uma norma, Butler
(2004) enfatiza que algumas configurações de gênero são
consideradas socialmente legítimas, enquanto outras não
alcançam legitimidade social.
As configurações de gênero possíveis – legítimas -
formam os chamados “gêneros inteligíveis”, os quais
instituem uma relação de coerência e de continuidade entre
sexo, gênero, prática sexual e desejo. Butler, retomando
Foucault (1988), aborda o processo de produção de uma
verdade sobre o sexo que, nas sociedades ocidentais, desde
o século XIX, passa pela normatização dos desejos. Nesse
processo de normatização é instituída a heterossexualização
dos desejos, que requer e institui a produção de oposições
discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “masculino”,
em que estes são compreendidos como atributos
expressivos de “macho” e “fêmea” (BUTLER, 2003, p. 38-
39).
Para Butler, é através da regulação binária da sexualidade
que se suprime toda a multiplicidade subversiva da
sexualidade. Tal supressão tem como consequência o
aprisionamento da sexualidade no modelo hegemônico
heterossexual, reprodutivo, ordenado pelos saberes médicos
e jurídicos (2003, p. 41). O gênero funcionaria, então, como
uma unidade que implicaria uma coerência entre sexo,
gênero e desejo. Assim, a coerência ou a unidade internas
de qualquer dos gêneros, homem ou mulher, exige assim
uma heterossexualidade estável e oposicional (2003, p. 45).
Sustentada pelo aparato de gênero estaria uma divisão
binária do mundo: de um lado, os espaços, atribuições e
características masculinas; do outro, os espaços, atribuições
e características femininas.
Butler nos convida a deixar de pensar nas categorias
“homem” e “mulher” como substâncias permanentes,
assumindo seu caráter de construções fictícias, provisórias,
instáveis e, principalmente, não necessariamente as únicas
invenções possíveis. A questão que move Butler diz respeito
às diversas possibilidades de configurações de gênero que
não cabem no sistema da heterossexualidade compulsória,
não se reduzem ao binarismo e que necessitam de um
espaço de existência para além do território da
anormalidade.
Para Butler, o sistema da heterossexualidade compulsória
se desdobra numa produção disciplinar do gênero, o que
leva a efeito uma falsa estabilização do gênero, no interesse
da construção e regulação da sexualidade no domínio
reprodutor (2003, p. 194). Tal regulação não só naturaliza a
atribuição da feminilidade às mulheres e da masculinidade
aos homens como organiza as definições da masculinidade
e da feminilidade e a divisão sexual do trabalho justificada
por uma ideia de natureza: aos homens caberia ocupar o
espaço público porque a masculinidade faz com que se
voltem para “fora”, às mulheres caberia ocupar o espaço
privado porque a masculinidade faz com que se voltem para
“dentro”.
Resumindo: a regulação binária da sexualidade, além de
suprimir a multiplicidade subversiva da sexualidade, torna
todas as configurações de gênero que se afastam do
binarismo impossíveis de existir, ininteligíveis. Se a
heterossexualidade compulsória - uma vez naturalizada e
institucionalizada - regula o gênero numa relação onde
necessariamente só existem dois termos (o masculino e o
feminino), todos os gêneros que não se definem por esses
dois termos perdem a legitimidade e, com isso, o direito de
existir dignamente.
Butler enfatiza que o gênero não é uma substância, ou
uma característica que um sujeito possa possuir, mas um
ato: o gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto
de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora
altamente rígida (2003, p. 59). Ao pensar o gênero como um
conjunto de atos, Butler introduz o conceito de performance,
dando margem a uma interpretação errônea de que o sujeito
poderia “inventar” sua performance de gênero da maneira
que lhe fosse mais conveniente. Tal interpretação deixa de
lado que a performance nunca ocorre livremente, ela é
executada num cenário de constrangimentos:
If gender is a kind of doing, na incessant activity performed, in part,
without one’s konwing and without one’s willing, is is not for that reason
automatic or mechanical. On the contrary, it is a practice of improvisation
within a scene of constraint (BUTLER, 2004, p. 1).

Em “Undoing Gender”, Judith Butler se dedica a


esclarecer, aprofundar e também a revisar sua concepção
de gênero delineada em “Problemas de gênero”. Fica mais
claro que o gênero, por ser uma norma, tem seus termos,
desde o início, inscritos fora do sujeito. Butler adverte que as
normas sociais constituem as existências subjetivas, e nelas
inscrevem desejos que são exteriores às subjetividades.
Para a autora, a viabilidade de cada existência individual é
profundamente dependente das normas sociais (2004, p. 2).
Desde “Problemas de gênero” (2003), a autora se
preocupa em esclarecer que a divisão binária dos gêneros
torna determinados sujeitos – os que se desviam da norma –
ininteligíveis e, desse modo, o seu próprio direito à vida se
torna socialmente mais frágil. O gênero, ao funcionar como
uma norma, opera nas práticas sociais, definindo e
separando o que é normal do anormal, do abjeto.
Em “Undoing gender” (2004), Butler examina alguns
conceitos psicanalíticos como, por exemplo, o conceito de
pulsão e o de diferença sexual. A partir da leitura do conceito
de pulsão, a autora afirma que nós somos sempre
conduzidos por algo que não sabemos e que não podemos
saber (2004, p. 15). Ao situar a pulsão como um conceito
limite, que se situa na fronteira entre o biológico e o cultural,
Butler considera que a sexualidade não é nunca
completamente capturada pelas normas, uma vez que ela
excede toda e qualquer regulação. Para Butler, a
sexualidade não seria determinada pelo gênero.
Se, em “Problemas de gênero” (2003), as proposições da
Butler parecem lhe colocar num lugar de defensora de um
construtivismo radical, onde o gênero pode ser concebido
como uma performance, uma “invenção” em “Undoing
Gender” (2004), a proximidade, seja com o construtivismo
radical, seja com o essencialismo se desfaz a partir de uma
apropriação maior da psicanálise.
Em se tratando da diferença sexual, por exemplo, Butler
afirma em “Undoing Gender” (2004) que ela nunca é
completamente dada, nem completamente construída, mas
um somatório de ambas. A diferença sexual estaria no lugar
onde a questão concernente ao biológico e ao cultural seria
colocada e recolocada, e jamais completamente respondida
(BUTLER, 2004, p. 186). Ao combinar, sempre de uma
maneira imprevisível, dimensões psíquicas, somáticas e
sociais, o conceito de diferença sexual apontaria para o
caráter inapreensível e transgressor da sexualidade
humana.
Para Butler, o gênero seria a parte da diferença sexual
que aparece como social e, portanto, é negociável e
construída (2004, p. 186). O gênero seria, assim, a parte da
diferença sexual vinculada à sociabilidade. Relacionando o
conceito de gênero ao de diferença sexual e, por sua vez, ao
de sexualidade, na obra “Undoing gender” (2004), Butler
expõe de forma mais explícita dois aspectos cruciais de sua
concepção de gênero. O primeiro se refere ao fato do
gênero ser uma norma social que é, ao mesmo tempo,
externa ao sujeito, mas constitui também esse sujeito e sua
forma de perceber o mundo e a si mesmo (2004, p. 70). O
segundo aspecto diz respeito à relação entre a sexualidade
e a norma. Quando Butler afirma que nós nos posicionamos
em algum lugar entre a norma e seu fracasso (2004, p. 74),
ela se serve do conceito de pulsão para afirmar que sempre
algo escapa: ou seja, sempre haverá a possibilidade de
transgressão: o gênero é o mecanismo pelo qual as noções
de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas,
mas o gênero pode muito bem ser o aparato pelo qual esses
termos são desconstruídos e desnaturalizados (BUTLER,
2004, p. 42). Nesse sentido, o gênero seria, ao mesmo
tempo, o aparato pelo qual o binarismo e a
heterossexualidade compulsória são naturalizados, e os
desvios, as transgressões que nos permitem criar normas
mais abrangentes e arranjos mais fluidos para as relações
subjetivas. Se o gênero é o mecanismo pelo qual se
naturaliza a divisão binária entre o masculino e o feminino
ele é, ao mesmo tempo, o que desestabiliza essa divisão:
deixando entrever uma diversidade imprevisível: capaz de
desfazer a ilusão de que os humanos se dividem apenas
entre homens ou mulheres.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das elaborações de Nancy Chodorow e de Judith
Butler sobre o gênero, é possível perceber como o gênero
se constitui enquanto uma norma. Segundo Chodorow
(1990), desde a primeira infância, o gênero se inscreve na
relação da criança com seu principal cuidador – em geral, a
mãe – dividindo e delimitando não apenas os espaços a
serem ocupados por homens e mulheres, mas também
estabelecendo fronteiras no que se refere aos espaços
psíquicos. Porque são - desde a mais tenra infância -
educadas para o cuidado, é como se as meninas, explica
Chodorow, não se individualizassem completamente: ficando
sempre presas à mãe, e ao outro (um outro do qual terão de
se ocupar, cedo ou tarde). Já os meninos precisam, para se
tornar seres masculinos, romper, recusar a identificação
originária com a mãe. E na falta de referentes que possam
fazer uma espécie de conciliação entre a necessidade dessa
ruptura com a mãe e todo amor que sentem por ela e por
tudo que a ela se assemelha, tendem a negar, nesse
processo, tudo o que é feminino. Posteriormente, os
elementos femininos recusados pelo menino vão pesar
sobre a identidade masculina como uma ameaça. De tal
maneira, que a identidade masculina vai representar sempre
uma conquista dos atributos masculinos sobre uma
feminilidade que deve ser totalmente recusada.
(SCHENEIDER, 2000). Nesse processo de “se livrar da
feminilidade”, os meninos negam a capacidade de cuidar,
pois aprenderam desde muito cedo que tal capacidade é
eminentemente feminina. Os meninos, portanto, ao se
constituírem enquanto sujeitos, flertam sempre com o risco
de se individualizar em demasia, tornando-se adultos
incapazes de cuidar.
Levando em consideração que Chodorow escreveu
“Psicanálise da maternidade” em 1978, faz-se necessário
pensar sobre as mudanças que ocorreram na divisão sexual
do trabalho, ou nas normas de gênero. É possível afirmar
que assistimos, no Brasil e no mundo, a uma flexibilização
das relações de gênero (GOMES, 2009). A divisão rígida
dos lugares e das atribuições próprios aos homens e às
mulheres dá lugar, atualmente, nas sociedades ocidentais
pós-industrializadas, à negociação, à imprevisibilidade, à
fluidez. No entanto, apesar da existência de muitos espaços
de negociação antes impensáveis, o discurso tradicional,
que propõe para as mulheres a responsabilidade de cuidar
da vida familiar e dos afazeres domésticos, tende a
permanecer forte, mesmo nos casos em que as mulheres
estão solidamente inseridas no mercado de trabalho
(BORGES, ROCHA-COUTINHO, 2008).
Se nos apoiamos na explicação dada por Chodorow para
a manutenção a divisão sexual do trabalho em nossa
sociedade: a saber, de que se trata de um processo
educativo iniciado na primeiríssima infância e que, como tal,
produz dois tipos de subjetividade muito distintos entre si – a
masculina e a feminina –; fica mais fácil compreender
porque não é suficiente que as mulheres estejam no
mercado de trabalho (e até ganhem o suficiente ou mais do
que o marido) para que ocorra uma distribuição mais
igualitária das tarefas reprodutivas. Não se trata, no entanto,
de sugerir que as mudanças sociais não seriam suficientes
para a reorganização dos espaços públicos e privados e das
tarefas produtivas e reprodutivas no campo das relações de
gênero. Trata-se de pensar que é fundamental um trabalho
de reeducação e, sobretudo, um exercício de
desnaturalização das práticas cotidianas. Como defende
Chodorow (1990), o caráter desfavorável e desigual da
maternidade poderia ser mitigado se não coubesse apenas
às mulheres a tarefa de maternar. Mas, para que os homens
também maternem é preciso que homens e mulheres
passem a conceber o processo de parentalização de um
modo diferente, não tradicional, não binário.
Considerar que o gênero é uma norma inscrita nos corpos
dos sujeitos e naturalizada nas suas práticas aproxima as
teorias de Chodorow e Butler. Para as duas autoras, o
gênero é altamente coercitivo porque ele se exerce como um
poder sutil: uma vez que constitui a forma mesma como os
sujeitos veem o mundo, se orientam nele e também se
percebem em sua singularidade. Nesse sentido, um sujeito
“faz gênero” a todo momento, sem pensar e quanto mais
esse fazer é irrefletido mais é sustentado por normas que lhe
escapam, que operam silenciosas, como se fossem algo da
natureza, incontornável, que apenas se desvelasse pelas
ações.
No entanto, Butler é uma pensadora mais transgressora
do que Chodorow. Primeiro, porque existe em Chodorow um
certo essencialismo implícito na divisão do mundo entre os
meninos – que irão se masculinizar – e as meninas – que
irão se feminilizar. Chodorow parte de um pressuposto que
Butler tenta destruir em sua teoria: o de que existe um
sistema binário de gêneros dentro do qual os sujeitos irão se
situar. Obviamente, Chodorow não ignora que a feminilidade
não é um atributo único das mulheres assim como tampouco
a masculinidade é um atributo apenas dos homens. Isso, no
entanto, não exime a autora de relacionar e de dividir o
mundo em dois destinos específicos: o masculino e o
feminino.
Quando tentamos fazer o movimento de ajustar o conceito
à realidade das práticas cotidianas, as formulações de
Chodorow são muito mais digeríveis. Apesar de habitarmos
o século XXI e de convivermos com constantes inovações
tecnológicas, o mundo ainda nos parece seguramente
dividido no que é masculino e no que é feminino. Essa
segurança do binarismo, ainda que se mostre cada vez mais
ilusória, provavelmente é mais fácil de ser absorvida do que
a proposta de Butler de que possam existir tantos diferentes
gêneros quanto existem diferentes pessoas (2003). Se se
trata de uma provocação teórica ou de uma possibilidade
prática, talvez seja algo que as próximas gerações irão nos
mostrar.
No entanto, mais importante do que cogitar ou questionar
sobre a (im)possibilidade de pensar um mundo sem gênero,
é considerar que dentro do sistema binário, regido pelo
modelo da heterossexualidade compulsória, não há como se
pensar numa igualdade de condições para homens e
mulheres na sociedade contemporânea. Primeiro de tudo,
porque esse modelo é definitivamente restrito: apenas se
enquadram neles os homens e as mulheres que se
encontram ordenados segundo a lógica da
heterossexualidade. Ou seja: se for uma mulher, ela deve
ser feminina (preocupada com os sentimentos, interessada
pelo casamento, deve querer ter filhos e se ocupar deles,
deve colocar a família em primeiro lugar na escala das suas
ocupações e preocupações) e deve desejar um homem
masculino: (pouco ou nada preocupado com os sentimentos,
um futuro provedor, um trabalhador, com uma sexualidade
que não precisa se circunscrever à esfera do casamento,
etc), que, por sua vez precise de uma mulher que seja seu
objeto de satisfação sexual e sua cuidadora. Todos os outros
sujeitos que não se “ordenam” segundo a lógica da
heterossexualidade compulsória são banidos (dependendo
do quanto se afastem dela) da terra da normalidade. E qual
o problema de não ser normal? Nenhum. A não ser que, em
nossa sociedade, o anormal se aproxima perigosamente do
abjeto. E tudo o que é abjeto – monstruoso – pode, como
adverte Judith Butler perder com muito mais facilidade o
direito à vida.
Além de excluir toda uma gama de sujeitos que não se
enquadram no padrão (porque não são homens e mulheres
tais como “deveriam” ser: ou seja, não estão completamente
alinhados à norma) o sistema da heterossexualidade
compulsória demarca de modo essencialmente rígido a
feminilidade e a masculinidade. Butler nos conduz a refletir
não apenas sobre o fato de que homens e mulheres podem
ser masculinos e femininos, mas também que os gêneros
podem ser outra coisa para além da masculinidade e da
feminilidade. Nesse exercício, somos levados a buscar
desconstruir o sistema da heterossexualidade compulsória,
pois só a partir da sua desconstrução será, de fato, possível
pensar numa reinvenção da masculinidade e da
feminilidade.
Quando Butler propõe a desconstrução do sistema da
heterossexualidade compulsória é preciso que fique claro
que a autora não tem uma concepção ingênua de que seria
possível se viver numa sociedade sem a existência de
normas, de princípios reguladores do comportamento
individual e do coletivo. Para Butler (2004), em nenhum
momento se trata de pensar numa anomia, mas sim de
propor que é bastante possível e absolutamente necessário
se criar uma sociedade com normas mais fluidas: onde a
diversidade seja legitimada em seu direito de existir e de ser
respeitada em sua diferença.

REFERÊNCIAS

BORGES, Carolina Campos, ROCHA-COUTINHO, Maria Luiza. Família e


relações intergeracionais no Brasil hoje: novas configurações, crises, conflitos e
ambiguidades. In: GOMES, Isabel Cristina (coord). Família: diagnóstico e
abordagens terapêuticas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008.
BUTLER, Judith. Undoing gender. New York and London: Routledge, 2004.
______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira: 2003.
CHODOROW, Nancy. Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir
da mulher. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1990.
FAUSTO-STERLING, Anne. Dualismo em duelo. Cadernos Pagu. 2001.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1989.
______. Ditos e escritos, Vol II: arqueologia das ciências e história dos
sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001
______. Ditos e escritos, Vol IV: estratégia poder saber. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003.
______. História da sexualidade 1 – a vontade de saber. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1988.
GOMES, Isabel Cristina (coord). Clínica psicanalítica de casal e família: a
interface com os estudos psicossociais. São Paulo: Livraria Santos Editora,
2009.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e
Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul./dez. 1995.

1 GENDER AND NORM: THE FEMINISM IN CHODOROW AND BUTLER


II
TEORIAS FEMINISTAS: O DIREITO COMO
FERRAMENTA DE TRANSFORMAÇÃO
SOCIAL2

Vanessa Oliveira Batista Berner


Professora Titular da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Coordenadora do Laboratório de Direitos Humanos da
UFRJ.

Resumo: O presente artigo aborda a construção das teorias feministas na perspectiva da


Teoria Crítica do Direito. O objetivo é demonstrar a necessidade de que o feminismo seja
trabalhado no âmbito da interseccionalidade, conjugando a prática com a teoria. A
metodologia é a revisão bibliográfica das diversas abordagens teóricas, abrangendo a
pluralidade de vertentes do feminismo contemporâneo e situando o direito como ferramenta
de transformação social. Como resultado, pretende-se demonstrar que ser mulher é uma
questão política.

Palavras-chave: Feminismos. Práxis Feministas. Teoria Crítica do Direito.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na atualidade, as teorias feministas, no direito, têm sido
debatidas a partir de diversas perspectivas. Surgidas
inicialmente no seio do debate da teoria crítica do direito
norte-americano, contemporaneamente há uma gama
variada de vertentes, entre as quais se destacam o
feminismo negro, o feminismo queer e o feminismo
descolonial. Com isto, a discussão feminista passa pela
questão de identidade e de raça, sem, entretanto, se
descuidar do problema de classes. Hoje, portanto, o debate
feminista é interseccional, na expressão cunhada pela
feminista negra norte-americana Kimberlé Crenshaw em
19893. Qual seria, portanto, o papel do direito? Para tratar
desse assunto, a proposta é fazer aqui um resgate do
debate da teoria crítica do direito, situar a discussão por
meio da revisão bibliográfica e apresentar as propostas que
vêm sendo cogitadas acerca da possibilidade da reflexão
jurídica contribuir para a emancipação das mulheres. Para
isto, o artigo se divide em três partes, sendo que na primeira
é abordada a Teoria Crítica do Direito e sua relação com as
Teorias Feministas; a segunda parte estabelece o vínculo da
teoria com a práxis feminista; e, finalmente, na terceira
seção, discuto como ser mulher é uma questão política.

2. TEORIA CRÍTICA DO DIREITO E AS TEORIAS


FEMINISTAS
Foi na primeira metade do século XX que surgiram os
primeiros ensaios acerca de uma “teoria feminista do direito”,
cuja proposta era anunciar seu potencial para mudar as
condições sociais em que viviam as mulheres. Essas
propostas teóricas tratavam de questionar se a aplicação da
norma jurídica trazia resultados diferentes para homens e
mulheres. As juristas feministas da época se dedicaram à
releitura das normas básicas de direitos fundamentais e
denunciavam a marginalização das experiências, dos
valores, das necessidades das mulheres. Questionava-se a
masculinidade do direito como o reflexo da hegemonia
cultural dos homens, um instrumento de proteção de valores,
necessidades e interesses que nada mais era que a
normatização de uma visão androcêntrica do mundo. As
mulheres juristas concebiam o Direito como uma ferramenta
da opressão, cuja neutralidade e objetividade era - e
continua sendo - questionável.
Foi a teoria crítica que contribuiu para a compreensão da
natureza do Direito, ao oferecer formas teóricas diferentes e
progressistas, desenvolvidas a partir de diversas fontes
intelectuais. Nos Estados Unidos da América, a Teoria
Crítica é claramente associada à contracultura e ao
ressurgimento dos movimentos de esquerda no país. Por
meio dessa corrente teórica redescobriu-se o potencial
político e a crítica política dentro do Direito.4 Naquele país,
os movimentos podem ser divididos em três momentos,
conforme a cartografia apresentada por GARY MINDA
(1995, p. 106-127):
Primeira Geração (meados dos anos 1970 ao início dos
anos 1980 - estruturalistas) - Focada em demonstrar a
imprecisão da teoria jurídica, pretendia revelar como o
Direito justificava a dominação e o privilégio por meio do
discurso abstrato que propugnava pela neutralidade no
processo e nos seus resultados. Para aqueles teóricos, a
racionalidade ou objetividade da lei existem em função de
uma ideologia liberal específica. Essa ideologia explicaria a
escolha racional de conceitos de raça, classe e gênero, com
suas vantagens e desvantagens. O Direito seria uma
construção ideológica que suportaria arranjos sociais e
jurídicos, por meio do convencimento dos atores do direito e
dos cidadãos, de que a ordem jurídica e social seriam
sistemas inevitáveis e basicamente justo. Os autores dessa
corrente argumentavam que não existe neutralidade política
para se abordar o direito. A partir desses estudos, o
comportamento social se tornou uma fonte relevante para se
examinar as políticas jurídicas. Para os estruturalistas a
prática informa a teoria. Assim, tornaram-se ativos nas
faculdades de direito, propondo reformas curriculares,
clínicas jurídicas, revisão de conceitos clássicos com
“contratação”, “venda”, “posse”...Para eles, os debates sobre
a profissão jurídica não podiam ser divorciados da prática
social: o Direito deve ativar a consciência social. A Escola
Critical Legal Studies (CLS) estadunidense estava
conectada, nas não necessariamente alinhada, à Escola de
Frankfurt, pois os primeiros não concordavam com a
construção de uma teoria moral e da política.5
Segunda Geração (primeira metade dos anos 1980 - pós-
estruturalistas ou desconstrutivistas) - Centrada na
interpretação de textos jurídicos, para os autores dessa
corrente todas as hierarquias do pensamento jurídico podem
ser minadas por uma leitura desconstrutiva. Eles buscavam
demonstrar como a visão jurídica do mundo deriva do
ambiente social e cultural externo: o que desconstrói são
ideologias (p. ex., definir “necessidade”). A desconstrução,
aplicada ao Direito, é uma prática de interpretação que
busca apresentar a complexidade e imprecisão do textos
jurídicos. Como afirma Derrida (1972), o mundo que
conhecemos é apenas um mundo de representações e
representações ad infinitum. Porém, esses autores
trabalham também com a construção social: o Direito tanto
afeta quanto é constituído por valores, normas, práticas,
modismos de um ambiente cultural maior do que ele
pretende controlar. A segunda geração foi considerada mais
radical e “perigosa” que a primeira.6
Terceira Geração (final dos anos 1980 _ pós-modernos) -
No final dos anos 1980 havia uma forte reação contra a CLS,
chamada de falida, irrelevante, banal, contraditória, acusada
de fazer ‘a crítica pela crítica’. Essa reação ensejou
mudanças e o surgimento de novos movimentos, as teorias
feministas e a teoria crítica da raça.Essa nova geração se
caracteriza pela organização em torno de temas, com foco
na identidade, muito influenciada pelas teorias de Foucault
sobre gênero, sexualidade e raça. Para trabalhar essas
novas categorias destaca-se o papel e responsabilidade do
intérprete. São teorias inacabadas, em aberto para novas
gerações e novos espaços. Os autores são muitos e se
caracterizam por sua abordagem interdisciplinar, não ficando
restritos a apenas um tema.7
Foi no final dos anos 1970 que começaram a surgir nos
EUA diversas correntes de pensamento feminista, mas a
jurisprudência sobre o tema já se avolumava desde os anos
1960, com as feministas criticando o direito e a sociedade a
partir de uma perspectiva da mulher. Explica LESLIE
BENDER (1988, p. 3):

Feministas são retratadas como queimadoras de sutiãs, odiadoras de


homens, sexistas e castradoras... somos caracterizadas como bitchy,
contestadoras, agressivas, confrontadoras e não cooperativas, assim
como excessivamente sensíveis e sem humor. Não se admira que
muitas mulheres, particularmente mulheres que têm carreiras, lutem
para se manter à distância do opróbio de serem rotuladas como
feministas. (tradução livre)8

Muitos estereótipos foram feitos sobre o movimento


feminista. Há muitos feminismos, mas todos eles se baseiam
sobre duas posições centrais: primeiro, que a sociedade é
moldada e dominada por homens e isto se chama
patriarcalismo9; segundo, que a sociedade subordina as
mulheres aos homens. A partir desses princípios, as
feministas norte-americanas revisaram toda a legislação de
seu país e concluíram que esta era patriarcal e priorizava o
gênero masculino. Historicamente, os juízes americanos
reforçaram essa questão de gênero, reforçando o
patriarcalismo e refletindo seus valores nas decisões
jurídicas, o que as feministas vão afirmar ser a justificativa
legal da desigualdade de gênero. Assumir o papel da mulher
como responsável primária pela educação dos filhos as
excluiu, historicamente, das tomadas de decisão política e
de oportunidades econômicas. (MINDA, 1995, p. 129).
A primeira publicação relevante de uma “jurisprudência
feminista” nos EUA ocorreu em 1978, quando Ann Scales
publicou um artigo intitulado Toward a Feminist
Jurisprudence. Desde o primeiro momento ficou claro que
não se pode generalizar acerca dos feminismos. Nos anos
1970 e 1980 o feminismo tratava de debater se as mulheres
deveriam ter o mesmo tratamento que os homens ou se
deveriam ser a eles equiparadas. Era o debate da “igualdade
x diferença”. As feministas dessa corrente questionavam se
a desigualdade das mulheres no direito era o resultado de
um paternalismo romântico dos homens, que concordavam
em dar às mulheres tratamento legal diferenciado. Elas
arguiam se as mulheres deveriam buscar a igualdade formal
em relação aos homens, por meio da eliminação de regras
baseadas em gênero que levam ao tratamento diferenciado
da mulher. Algumas feministas, porém, entendiam que a
mulher é diferente do homem e, portanto, em alguns casos,
deveria ser convencionado mais do que o tratamento igual.
Essa controvérsia deslocou a questão feminista para a
discussão sobre a simetria de gênero, fazendo com que as
mulheres tivessem que provar serem iguais aos homens: as
mulheres só poderiam requerer proteção legal se na
comparação com os homens ficasse demonstrada a
igualdade das experiências.
Em resposta à questão da igualdade/diferença, um grupo
de feministas começou a construir uma teoria segundo a
qual as mulheres têm uma natureza própria, que não é
exatamente a “natureza humana” baseada no insight
masculino. A metodologia da teoria feminista começa então
a se modificar, e o “método feminista” passa a ser descrito
como “um método de crescimento da consciência, que
valoriza as experiências pessoais” (MINDA, 1995, p. 132-
133). Essa metodologia fez com que as feministas
passassem a ter um discurso mais experimental, com o qual
se valida a crítica ao direito. As feministas reivindicam que a
evidência, baseada na experiência material, deve suportar a
teoria. A ideia de aumento de consciência estabelece o
quadro epistemológico que as feministas usam para
expressar e validar as experiências das mulheres, para
expor como o conteúdo dessas experiências foram
invalidadas pelo direito, investindo, inclusive na linguagem10.
Como parte de sua consciência crítica, algumas
feministas desenvolveram uma teoria hedonista11 que se
reporta diretamente ao “oprimido, dominado ou
desvalorizado”, em contraposição ao linguajar e discurso
jurídico pretensamente universal, mas, na realidade,
masculinista. Essa corrente usa, experimentalmente,
narrativas baseadas em histórias pessoais, que variam de
estupros a questões matrimoniais, para avançar sobre
mensagens substantivas sobre valores prazerosos para as
mulheres, a fim de explicar como o gênero feminino
experimenta a desigualdade de gênero e o abuso sexual.
Essas feministas fazem mais do que descrever e imaginar o
que é ser oprimida: elas enfatizam que seu método visa a
esclarecer “atributos historicamente relacionados às
mulheres”. Seu objetivo é explicar como o direito subordina
as mulheres. O ponto de vista experimental é usado para
descobrir a autêntica sexualidade feminina e a realidade de
sua condição. Suas teorias são baseadas na ideia de
Foucault de que o “poder vem de todo lugar”. Elas alegam
que o poder do patriarcado está em todo lugar.
Um ponto importante é que as feministas entendem que o
direito contemporâneo é masculino em sua essência, e que
a forma de desafiar a dominância masculina é desenvolver
uma alternativa hedonista de direito, baseada nas
experiências, que demonstre os motivos para que a os
interesses femininos estejam excluídos do discurso
moderno, que evidencia porque as mulheres devem ocupar
uma posição respeitada (e algumas vezes privilegiada) na
análise legal e na argumentação.
Nos anos 1980 destacam-se três diferentes escolas
feministas nos Estados Unidos, cujas diferenças são
metodológicas, mas que estão unidas em seu esforço
comum de expor os diversos caminhos que o direito utiliza
para perpetuar a hierarquia de gênero, buscando enfatizar
as diferenças entre homens e mulheres:
a vertente liberal – essa escola está
comprometida com a discussão da igualdade
formal como expressa na Emenda da
Igualdade de Direitos e no movimento dos
direitos civis norte-americano. Algumas
feministas dessa corrente vão discutir a
“simetria” de gênero, lutando por igualdade de
direitos e pela igualdade diante da lei: mesmas
demandas, mesmo tratamento; enquanto
outras vão se dedicar a expor a dominação
masculina e estabelecer a “diferença” entre
homens e mulheres: mulheres merecem
benefícios especiais porque são diferentes dos
homens. Destacam-se Martha Minow e Nancy
Frasier.
o feminismo cultural – defendem que há um
caminho feminino distinto da aproximação
moral e legal dos problemas que foi (e continua
sendo) ignorada ou subestimada na doutrina
jurídica e na educação. Seu objetivo é expor os
vieses no trabalho de psicólogos de crianças
que se baseiam expecialmente em valores
masculinos para explicar o desenvolvimento
psicológico infantil. É uma vertente importante
porque demonstra a dinâmica psicológica da
hierarquia de gênero. Seu principal expoente é
a psicóloga Carol Gilligan.
o feminismo radical - Catharine MacKinnon é a
principal autora desta corrente. Sua obra
contribuiu pra transformar nossa compreensão
das relações de dominação entre homens e
mulheres. Participante de uma corrente de
feminismo radical, a autora examinou, a partir
da teoria e da prática, as múltiplas formas de
dominação patriarcal. Ao enfocar a dominação
sexual, demonstrou ao mesmo tempo os limites
do reformismo liberal e a armadilha em que
caíram os feminismos dominantes, que se
enredaram na lógica da igualdade e da
diferença. Para MacKinnon, o direito não
apenas não é neutro, mas a própria retórica
liberal da igualdade é o manto por trás do qual
a legalidade patriarcal estrutura a opressão
baseada no sexo. Tal opressão transcorre com
a naturalização das relações de subordinação
sexual, das quais não se fala porque
supostamente são parte da vida privada, em
que o amor é a regra. Para ela os limites do
liberalismo não são o único foco de crítica, mas
também as feministas. Ela entende que tanto o
feminismo liberal como o feminismo cultural
falharam em transformar as vidas das
mulheres, pois erraram o diagnóstico ao lutar
por uma igualdade formal ou pelo
reconhecimento da diferença. Ou seja, o foco
nos sintomas e não nas estruturas de
dominação não podem reformar aquilo pelo
que se luta. A obra de MacKinnon compreende
tanto a crítica ao marxismo quanto ao
feminismo teórico hegemônico. Ela defende
que o pessoal é político, colocando em
discussão a regulamentação jurídica do
matrimônio, o aborto, a violência sexual, a
prostituição e a pornografia. Alguns de seus
textos provocaram impacto concreto na
construção de instituições legais, como a
definição de assédio sexual, considerado como
instância da discriminação sexual. Mais
recentemente, suas contribuições recolocaram
na pauta do direito internacional a questão da
proteção das mulheres nos conflitos armados.
Uma de suas obras mais importantes,
Feminism unmodified. Discourses on life and
law, de 1987, é um exemplo da metodologia
que utiliza, confrontando grupos conservadores
e liberais, na tentativa de repolitizar os espaços
de regulação que esses autores controlavam e
a doutrina liberal neutralizava como questões
de moral, invisibilizando o jogo de poder que
encobriam. No livro, ela entra nos debates
jurídicos dos anos 1980 nos EUA e mostra os
limites das estratégias de mudança legislativa.
É uma autora de grande influência na América
Latina, especialmente nos temas de violência
sexual, pornografia e prostituição.
Ao analisarmos a forma como o feminismo, em suas
diversas correntes, vai aflorar nas diversas partes do mundo,
é relevante compreeender como ele se insere dentro de um
ambiente cultural determinado. Ao discorrer sobre o
processo cultural, em sua teoria da cultura, o filósofo crítico
HERRERA FLORES (2005b) o constrói a partir de três
imaginários, ou seja, de três conjuntos de reações
simbólicas diante dos ambientes de relações em que
estamos inseridos, uma abordagem teórica que merece ser
mencionada quando tratamos de localizar as teorias
feministas na cultura ocidental contemporânea:
O imaginário social instituinte (nossas relações
com a sociedade) – oferece materiais éticos e
políticos para entender e, nesse caso,
transformar nossa posição no “processo de
humanização do humano”: trata-se do
processo contínuo de construção e
reconstrução de nossa posição no mundo.
Para ele, a partir do imaginário social instituinte
é que devemos trabalhar o que Stuart Hall
(1999) chama “processos de articulação e
entrelaçamento de posições políticas e
culturais”.
O imaginário ambiental bio(sócio)diverso
(nossas relações com os ambientes naturais) –
em que se propõe materiais para reforçar uma
relação não exploradora ou destrutiva dos
processos naturais. Esse imaginário é centrado
na luta contra a destruição do meio ambiente
por parte dos grandes interesses comerciais e
financeiros que povoam o planeta.
O imaginário radical (nossas relações com
nosso interior) – o conjunto de materiais a partir
dos quais se deve derrubar barreiras e
bloqueios interiores que nos impedem de nos
articular com outros seres humanos,
estabelecer vínculos com a natureza e colocar
em prática processos continuados de
ressignificação do mundo. A questão é que, se
não temos materiais “radicais” suficientes para
conectar com nosso interior e dizer a verdade
do somos e do que fazemos, dificilmente
poderemos nos interrelacionar com os outros
ou com a natureza de modo criativo e
transformador. HERRERA defende que este
imaginário radical tem suas raízes profundas
nas propostas feministas de luta antipatriarcal;
nas aproximações fronteiriças às diversas
percepções de mundo que existem em nosso
universo cultural; nas lutas contra o racismo e o
colonialismo; na redução da vida ao puro
consumismo de tudo e de todos12.
Situada neste “imaginário radical”, a teoria política
feminista não é um bloco teórico uniforme e homogêneo. Há,
efetivamente, uma pluralidade de focos, uma diversidade de
métodos, muitas vezes distantes entre si. Porém, o objeto
enfrentado é sempre o mesmo: o patriarcalismo como
sistema de relações dominantes que coloca um só ponto de
vista: o masculino, branco, proprietário e cidadão como
padrão universal. As diferentes matrizes derivam das
diversas questões que o contexto social, político e
econômico impõe à reflexão jurídica e filosófica. Há uma
preocupação com o tempo e o contexto.
Em suma: se pretendemos realmente interrelacionar a
cultura com a dignidade, devemos lutar contra essas
invisibilidades e esses silêncios, trazer para a luz nossas
propostas que, de um modo ou de outro, ficaram relegadas à
margem da História em virtude dos processos coloniais que
provocaram tantas desgraças. Uma vez demonstradas as
opressões e as explorações, lutar por formas distintas de
produzir, de criar, de simbolizar o mundo que nos rodeia, de
construir as condições para que todas e todos tenham
acesso igualitário aos bens necessários para uma vida
digna.
A pluralidade de enfoques e metodologias do feminismo,
sua aparente desordem teórica e conceitual deriva de uma
sensibilidade, também ideológica, dos fatos sociais. As
teorias feministas buscam se aproximar da realidade.
Primeiro, para desconstrui-la (fazendo críticas ao tratamento
de gênero) e, por fim, para reconstruí-la desde uma
perspectiva normativa destinada à emancipação dos grupos
marginalizados ou excluídos das garantias oferecidas pelo
sistema patriarcal dominante.
A reflexão feminista se situa em uma perspectiva não
instituída, mas instituinte, um terreno de “vozes em
interseção”13, não de dominação ou hegemonia. O
feminismo não é uma alusão a uma doutrina ou programa
teórico concreto, e sim um compromisso (este sim, teórico)
com dois aspectos fundamentais: a análise e denúncia dos
efeitos que as instituições, políticas e ideias projetam sobre
o bem-estar e oportunidades em determinados contextos
(em que se situam as mulheres); e com o conjunto de
reflexões e ações orientadas a corrigir a situação de
subordinação, desigualdade e opressões de gênero.
A finalidade do feminismo é cooperar para a emancipação
e construção de uma sociedade sem discriminações por
gênero, idade, pertencimento cultural ou comunitário ou por
desigualdades econômicas. Assim, HERRERA FLORES
(2005a: 41) reivindica uma teoria política feminista de viés
“materialista extremo” que aproxime a teoria e a práxis das
realidades concretas, a fim de repensar radicalmente o
sentimento de convivência com seus modelos organizativos.
Portanto, deve-se impor outras interpretações e sentidos da
realidade, abandonando o minimalismo das diferenças
sexuais. Deve-se ainda rejeitar toda teoria que parte de
idealizações, pois elas não superam os limites impostos de
uma proposta de “dever ser”. Ademais, o autor alerta que
passou o tempo de denúncia de políticas cujo objetivo são
as mulheres. Para ele, esta não pode ser a única opção
crítica e feminista, pois já não basta colocar em evidência a
discriminação de gênero. O materialismo extremo leva a um
tipo de teoria que construa a representação e a democracia
a partir do poder político, social e cultural.
3. O DESENVOLVIMENTO TEÓRICO E A PRÁXIS
FEMINISTA
As reivindicações, ao longo do século passado,
resultaram em ganhos relevantes como a inclusão da
violência contra a mulher e sua respectiva sanção como
forma específica de maus tratos; o direito ao voto; a revisão
do poder marital sobre a mulher; o acesso à educação; a
revisão dos direitos trabalhistas e previdenciários; os direitos
sexuais e reprodutivos; o direito ao aborto... enfim, um novo
corpo normativo cujo fim é o de garantir a autonomia da
mulher e a proibir expressamente a discriminação por razão
de gênero.
Porém, em que pesem os avanços alcançados até os
anos 1970, especialmente em termos normativos, a teoria
política feminista se caracteriza por não ser um bloco teórico
uniforme e homogêneo. Assim, no sentido do proposto por
Herrera Flores, mais recentemente têm se desenvolvido três
correntes feministas relevantes: o feminismo negro, o
feminismo queer e o feminismo chicano ou descolonial.
Ao longo da história foi se consolidando uma
“naturalização” dos valores masculinos e femininos, e o
patriarcalismo induziu à construção social do direito e da
política instituindo duas situações: uma visível - a da esfera
dos que são iguais perante a lei; e uma invisível - a dos que
são diferentes. Em que pesem os inegáveis avanços
alcançados em diversos países, especialmente, os europeus
ocidentais, quanto à igualdade de tratamento, as velhas
desigualdades se perpetuam ou são reinventadas, na
mesma medida em que que as conquistas jurídicas se
desfazem diante da aparição de novas circunstâncias e
conceitos. Assim, em relação à mulher, aos progressos que
foram até agora conquistados, fica uma incômoda questão:
por que, nas condições atuais, as mulheres não se
beneficiam na mesma proporção que os homens dos
progressos alcançados? Por que recebem um tratamento
pior do que os homens na sociedade que juntos
construíram? Esta é efetivamente, a grande questão diante
do patriarcalismo. HERRERA FLORES (2005a, p. 31-32)
propõe que a resposta a esta pergunta deve ser feita em
etapas:

politicamente, o patriarcalismo pressupõe uma configuração da


realidade em que predomina o abstrato sobre o concreto, a
desigualdade sobre a igualdade; axiologicamente, o patriarcalismo
impõe um conjunto de valores, crenças e atitudes não deduzidas, nem
dedutíveis, da realidade, a partir das quais um grupo humano se coloca
“naturalmente”, superior a todo o resto; sociologicamente, o
patriarcalismo se constitui no conjunto de mecanismos enraizados na
estrutura da sociedade. É a partir desses mecanismos que
determinadas pessoas e grupos são rechaçados ou sistematicamente
deslocados da participação plena na cultura, na economia, na política
dominantes na sociedade em determinado momento histórico. (tradução
livre).

Para o autor, esse patriarcalismo se relaciona


umbilicalmente com o capitalismo, sendo este patriarchal e
estruturado de forma racial, étnica, sexual e classista. Na
perspectiva do patriarcalismo capitalista, portanto, os
problemas de gênero sempre deverão ser compreendidos
em conjunto com as questões raciais, étnicas e de classe
social. Trata-se, pois, de um hetero-patriarcalismo, que
conjuga o fazer humano, as relações laborais, as relações
sociais determinadas pela produção e o ocultamento das
diferenças realmente existentes nas relações mercantis
capitalistas (HERRERA, 2005a, p. 32). Para compreender o
patriarcalismo neste sentido não nos serve nem o liberalismo
extremo, que que não se incomoda com as diferenças
sociais, nem o marxismo ortodoxo, cuja compreensao de
mundo se dá a partir da propriedade e dos meios de
produção. A luta de classes deve ser entendida como
inseparável de todas as outras lutas que travamos para
alcançar uma vida digna. No entanto, a partir desse modelo
de patriarcalismo é que se vende como tradição inexorável
todo um conjunto de leis, normas e valores, todas as
configurações institucionais e culturais que regulam as vidas
das pessoas, dos povos, sem se admitir qualquer
contestação, sob a pena de se converter em marginal. O
patriarcalismo é definido pelo autor como uma tradição
“política, axiológica e sociológica” (HERRERA FLORES,
2005a), no qual um poder aumenta em relação direta com o
que resta de outro poder. Ele discorre acerca dos princípios
em que se baseia o que denomina de “bloqueio patriarcalista
do circuito de reação cultural” que nos enreda a todos e
todas (HERRERA, 2005b, p. 120-123):
1. princípio da dominação, que nasce das
desequiparações discriminatórias entre homens
e mulheres, trabalhadores e capital, imigrantes
e cidadãos: o que um detém, ao outro é
negado. Por meio da dominação, as
experiências dominantes de classe, sexo ou
etnia se colocam como universais, como
verdades objetivas. Assim, o masculino é uma
abstração universal e “natural”, quando o
feminino é tão somente um ponto de vista
carregado de particularidades e vinculações
naturalistas;
2. princípio da complementaridade, a partir do
qual o dominado aceita a situação de
inferioridade, reforçando sua identidade por
meio do inafastável sentimento de que pertence
a algo ou a alguém. Assim, a identificação do
grupo oprimido com o poderoso faz com que
ele careça de uma interpretação própria de sua
opressão. Nesse sentido, o feminismo burguês,
aliado ao individualismo liberal, adotou (talvez
inconscientemente) a ideologia competitiva e
atomista do individualismo.
3. princípio da necessidade, que leva os grupos
inferiorizados (mulheres, negros, indígenas...) a
não articular pontos de vista próprios e a
colocar sempre alternativas que se originem
nos princípios anteriores. BEL HOOKS (1981)
ensina que no sistema capitalista, o patriarcado
está estruturado de tal modo que o sexismo
restringe o comportamento das mulheres a
alguns campos e o libera em outros. Isto faz
com que as mulheres muitas vezes ignorem as
esferas em que são exploradas ou
discriminadas, a ponto, inclusive, de parecer
que não estão sendo oprimidas.
4. princípio da vitimização. Em função dos
princípios anteriores, os coletivos submetidos à
lógica patriarcal se percebem como pobres,
cidadãos de segunda classe, estigmatizados,
sociologicamente inferiores. São qualificados
como vítimas, passíveis de sofrer as
consequências negativas do sistema.
Entretanto, sentir-se como vítima não significa
ver-se como explorado, ou seja, sujeito de uma
relação social concreta, determinada pelo modo
como se elaboram, se percebem e se
enfrentam - política, axiológica e socialmente -
as diferenças e desigualdades. (tradução livre)14
Em outras palavras, estou aqui falando de uma realidade
que influi tanto sobre mulheres quanto sobre homens, pois
as relações de gênero, étnicas, raciais ou de classe são uma
consequência, um ponto de partida das relações de poder. E
é aqui que entram outras questões, como, por exemplo, o
funcionamento do sistema judicial, aquele poder do Estado
cuja função constitucional é a de decidir sobre as
possibilidades de igualação e quebra de isonomias. Se
dermos uma simples olhadela nos ordenamentos jurídicos
contemporâneos, perceberemos rapidamente que, na
realidade, se configuram discriminando, aberta ou
veladamente, as mulheres. Trata-se de uma construção, de
uma “pedagogia de identidade”, que, nas palavras de
MARCELA LAGARDE (2003), considera “natural” que as
mulheres ocupem os lugares próprios de mulheres, os
negros de negros, os velhos de velhos etc. Um dogma que
não reside em uma essência sexual, étnica ou racial, mas na
imposição de um sistema de percepção politica, axiológica e
sociológica que nos leva a crer que cada qual deve estar em
conformidade com a determinação que lhe foi imposta.
Como alerta AUDRE LORDE (2009, p. 2), “não há hierarquia
de opressões (...) e eu não posso escolher entre as frentes
em que eu devo batalhar contra essas forças da
discriminação, onde quer que elas apareçam pra me
destruir. E quando elas aparecem para me destruir, não
durará muito para que depois eles aparecerem pra destruir
você.”Cabe, pois, à teoria feminista se empenhar em
ressaltar esses procedimentos.
Neste sentido, as feministas negras reagem contra a
tendência de se tratar as categorias de raça e gênero em
separado. KIMBERLE CRENSHAW (1991) argumenta que
um dilema que confronta as mulheres negras é que
concepção dominante de racismo e sexismo torna
impossível sua representação, pois estão excluídas do
discurso das feministas brancas, que chamam para si a
responsabilidade de falar por todas as mulheres. O desafio
que colocam é que uma concepção dominante e universal
de gênero está comprometida com políticas de identidade,
devendo abrir o caminho para um discurso jurídico voltado
para a diversidade de políticas culturais da pós-
modernidade.
Autoras como MARÍA LUGONES (2010) pesquisam a
interseção entre raça, classe, gênero e sexualidade com o
objetivo de entender a preocupante indiferença que os
homens demonstram em relação às violências que
sistematicamente são infringidas contra as mulheres negras,
ou seja, nas mulheres não brancas vitimas da colonialidade
do poder e, inseparavelmente, da colonialidade de gênero.
As mulheres de cor, uma coalizão orgânica entre mulheres
indígenas, mestiças, negras, que se colocam não como
vítimas, mas como protagonistas de um feminismo
descolonial e inauguraram uma rica tradição de
pensamento com análises críticas do feminismo
hegemônico, precisamente porque este ignora a interseção
de raça/classe/sexualidade/gênero. Busca-se entender a
forma como se constrói esta indiferença dos homens para,
dessa maneira, converte-la em algo cujo reconhecimento
seja iniludível para aqueles que estão envolvidos nas lutas
libertadoras. Discutem detalhadamente uma outra maneira,
muito diferente dos feminismos ocidentais, de entender o
patriarcalismo a partir da colonialidade de gênero,
convidando a pensar na cartografia do poder global a partir
de um Sistema Moderno/Colonial de Gênero.
No mesmo sentido questionador se situam as teorias
queer, cuja autora mais conhecida é Judith Butler15, e que
se propõem a abranger “corpos não normativos”, para além
da lei, colocando em cheque a própria racionalidade do
saber moderno. Situa-se na área dos “saberes subalternos”,
as formas de pensar que têm como ponto de partida a
subalternidade, os que precisam ser ouvidos e ter espaço; a
capacidade de “ler” o que estava escondido, de desenterrar
invisibilidades, baseando-se sobretudo na ideia de que sexo
e gênero são construções políticas.
Assim, o feminismo negro, o pós-colonial, o lésbico e
outros, se colocam contra essa ideia de uma categoria
homogênea e universal de “mulher” como sujeito político e
de direito, justamente por se tratar de uma categoria que,
por representar valores ocidentais, exclui outras categorias
de mulheres. Sua reivindicação é a interseccionalidade, cujo
propósito é encontrar fórmulas que considerem a soma das
diferentes desigualdades, como raça, sexo, classe social,
orientação sexual etc. Fórmulas que sejam capazes de
conceber sujeitos como categorias sociais heterogêneas. O
feminismo interseccional pretende diminuir as assimetrias e
as opressões por meio da visibilidade e da heterogeneidade.

4. SER MULHER É UMA QUESTÃO POLÍTICA


A felicidade feminina é construída sobre nossa adaptação
pessoal ao cativeiro que nos é designado dentro da estrutura
do patriarcalismo. Nossa definição política deriva do que nos
aprisiona, de nossa relação com o poder, se caracteriza pela
privação da liberdade e pela opressão. Nós, mulheres,
somos cerceadas em nossa autonomia, no governo de
nossos corpos, de nós mesmas. Nosso universo
sociocultural é machista, heterossexual, hetero-erótico,
misógino.
Ser mulher é uma questão política. E essa questão é o
que estabelece nossos cativeiros, como defende Marcela
Lagarde (2005). O que seremos depende de nossa condição
sócio-histórica, da relação entre o ser e a existência, o
abstrato e o concreto, dos fatos particulares que nos
colocam em nossos próprios cativeiros. Há poucas opções
para nossos modos de vida: podemos escolher entre ser
mães-esposas, putas, freiras, presas, loucas. E só. E todas
as opções se relacionam com nossa sexualidade.
Uma mãe-esposa é o mais “positivo” paradigma de
feminilidade. É a mulher reconhecida pela maternidade, pelo
sentido de família, pela adaptação à vida conjugal. É a
mulher realizada normativamente. As mulheres deste grupo
social específico são fadadas a expressar sua sexualidade
dentro do que está convencionado ser a “vida familiar”. Seu
erotismo deve ser subjacente à procriação, sua mais
relevante função, não importa se esta mulher é advogada,
professora, médica, empresária, executiva de uma empresa
multinacional ou política. Esse controle sobre seu corpo, sua
sexualidade, seu erotismo, garante a estrutura patriarcal e
seu papel no sistema capitalista. Ela está irremediavelmente
submetida ao seu marido, ao modelo de vida que lhe foi pré-
estabelecido, ainda que não o perceba. Suas decisões, seus
desejos, sua vida, são direcionados por essa relação de
poder em que o homem assume o papel dominante. Se não
se adapta, não serve para ser “mãe-esposa”. Ser mãe não é
uma escolha, portanto: é, ao contrário, vital para estar “bem
colocada”, para que ela exerça seu “papel no mundo”. As
mães-esposas, quanto mais assumem este papel, melhores
são. Mulheres fiéis, castas, deserotizadas, monogâmicas. As
boas mulheres.
Elas são o oposto das putas, que, “obviamente”, são as
mulheres más. Esse grupo se caracteriza, exatamente, pelo
erotismo: aquelas que concretizam o desejo feminino
negado, especialistas na sexualidade feminina sempre
proibida, regulada, enquadrada, tabulada. As putas são as
que colocam seu erotismo à disposição do prazer do outro,
encarnam a poligamia, estão disponíveis, não
necessariamente estabelecem vínculos com os homens.
Seus corpos não se destinam à reprodução, seus filhos não
têm o pedigree dos filhos de uma mãe-esposa. E não se
trata aqui somente das trabalhadoras sexuais. São também
as amantes, as mulheres que se permitem viver uma
liberdade sexual fora da convencionalidade, as que têm
filhos sem um marido, as que vivenciam uma prática sexual
que não seja heteronormativa, monogâmica, virginal.
As freiras são aquelas mulheres cuja sexualidade é
castrada em favor do poder divino. Não procriam, não têm
cônjuges, sublimam seu erotismo em favor do poder
religioso. São mulheres que se relacionam de forma servil e
dependente com um Outro todo-poderoso e adorado, em
nome de quem negam seu corpo, seu erotismo, ao extremo,
renunciando ao protagonismo e se dedicando aos outros.
As presas são as mulheres que materializam o cativeiro, o
encarceramento absoluto, reaprisionadas nas instituições de
poder. Independente do delito que tenham cometido, sua
prisão é exemplar e pedagógica. Dados recentes apontam
para o abandono das mulheres presas, que não são
visitadas sequer por sua família ou companheiros.
As loucas são as mulheres que contrariam a racionalidade
humana, que levam ao limite a transgressão da feminilidade.
A loucura genérica das mulheres emerge de sua
sexualidade, de sua relação com os outros.
Todas nós, mulheres, ocupamos um ou mais de um
desses espaços: casa, bordel, convento, prisão, manicômio.
Nossa sociedade, nossa cultura, nos coloca dentro desses
muros, construídos em torno dos aspectos definidores da
feminilidade dominante, seja ela boa, aceita, positiva,
saudável, ou, ao contrário, negada, doente, delitiva, oculta.
Passamos a vida enredadas nas tramas tecidas ao nosso
redor conforme se realize o círculo particular de nossa
sexualidade e do poder: nossos corpos são procriadores ou
eróticos, para os outros ou para o divino, mas sempre
submetidos ao poder externo. Sempre incompletas, sempre
politicamente inferiores aos homens. Somos territórios de
disputa a serem ocupados e dominados no mundo patriarcal.
Como e em que grau ocorrem essas dominações
depende da situação de cada mulher, dos espaços sociais e
culturais em que estão inseridas, dos bens materiais e
simbólicos que cada uma possui, de sua capacidade criativa
para viver e sobreviver no cativeiro. Somos, cada uma de
nós, únicas em nossa complexidade, podendo ser muitas ao
mesmo tempo, simultaneamente subalternas ou
transgressoras. Apesar de tudo, muitas mulheres
abandonamos os rígidos marcos que estabelecem para
nossa feminilidade, seja compulsoriamente, seja por vontade
própria, a fim de encontrar uma nova forma de vida. As que
não se enquadram no estereótipo, porém, são consideradas
um equívoco, doentes, incapazes, alopradas… e, de uma
forma ou de outra, sempre cumprem, ainda que
parcialmente, com o papel contra o qual se rebelaram.
A teoria aliada à prática, essa práxis feminista de
resistência capaz de nos apontar o caminho da liberdade, da
democratização da sociedade e da cultura em que estamos
inseridos. Cada uma de nós, como mulher particular e única,
carrega em si a síntese do mundo patriarcal, suas regras e
proibições, suas obrigações, seus mecanismos de
aprendizado, sejam eles ideológicos, afetivos, intelectuais,
políticos… E somos também o que não pode ser, insistindo
em nos manifestarmos em espaços em que a divisão de
classe, gênero e raça estão colocados cuidadosa e
intencionalmente para nos manter nos respectivos
compartimentos, cativas das categorias sociais de onde
viemos. Contudo, dentro de cada uma de nós se encontra o
outro, estão as instituições, as concepções do mundo e do
poder. Cabe a nós escolhermos nossas práxis, redefinirmos
as regras do mundo, traçarmos novas formas de exercício
do poder. De preferência coletivamente, com as outras
mulheres, unidas no mundo visível e no mundo que está
oculto, a partir de nossos corpos, de nossa sexualidade, de
nossas histórias, de nossas lutas, tão diversas mas com
tanto em comum. Para romper o véu pesado do silêncio e
viver a vida que pensamos para nós, precisamos fazer
nossas próprias alianças.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conceito coletivo de “mulher” deve ser entendido no
âmbito de sua utilidade quando se trate de definir a opressão
como procedimento sistemático, estruturado, institucional,
para que se possa continuar usando o Direito como
instrumento de transformação social a partir do qual se
normatize incorporando uma perspectiva de gênero. Só
assim as mulheres deixam de ser objeto de direito para ser
sujeitas de direito. É a partir dessa mudança de perspectiva
teórica que pode a atuação do Estado deixar de ser
traumática e frustrante no que diz respeito à sua
responsabilidade de garantir direitos das mulheres, para se
transformar em efetiva tutela de nossos direitos e
necessidades básicas. São essas as construções que os
feminismos devem pautar juridicamente: aquelas capazes de
aproveitar o potencial transformador do Direito como
ferramenta geradora de direitos para TODAS as mulheres.
Então, nós, mulheres, e especialmente as mulheres juristas,
precisamos nos inspirar no poema de Kate Rushin:

La puente que tengo que ser


Es la puente a mi propio poder
Tengo que traducir
Mis propios temores
Mediar
Mis propias debilidades
Tengo que ser la puente a ningún lado
Más que a mi ser verdadero
Y después
Seré útil

REFERÊNCIAS

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TEIXEIRA FILHO, Fernando S. Et al. Queering.Cuiabá: Edufmt, 2013.
2 FEMINIST THEORIES: LAW AS A TOOL TO SOCIAL TRANSFORMATION
3 CRENSHAW, Kimberlé Williams. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics,
and Violence Against Women of Color. Stanford Law Review 43(6), 1991, p. 1241–99.
4 Em inglês, Critical Legal Studies - CLS.
5 Destacam-se os seguintes autores: Duncan Kennedy (Legal Education); Mangabeira
Unger; Peter Gabel; Paul Harris; William Simon.
6 São seus autores principais; Jack Balkin, Gerald, E.Frug; Gary Peller.
7 Feministas: Catherine A. Mac Kinnon, Ann Scales, Kathryn Abrams, Robin West, Carol
Gilligan, Martha Minow, Drucilla Cornell, Mary Becker, Kimberle Crenshaw; teoria crítica da
raça: Richard Delgado, Derrick Bell, Patricia Williams, Alan Freeman, Randall L. Kennedy;
identidade e interpretação: Charles Taylor (Canadá) - crítico do liberalismo e comunitarista,
Stuart Hall (Jamaica) - sociologia da cultura; Axel Honneth (Alemanha) - relações de poder,
reconhecimento e respeito. Alguns autores vão circular em diversas áreas, como Nancy
Fraser, na New School de Nova York, que se aproxima dos estruturalistas, das teorias
feministas e da discussão sobre reconhecimento; ou como Martha Finneman, que trabalha
na mesma linha que Fraser.
8 No original: “Feminists are protrayed as bra-burners, man-haters, sexists, and
castrators... we are characterized as bitchy, demanding, agressive, confrontational, and
uncooperative, as well as overly sensitive and humorless. No wonder many women,
particularly many career women, struggle to distance themselves from the opprobium
appended to the label”
9 Compreendido aqui como um sistema de relações dominantes, o patriarcalismo é a base
e suporte de todo tipo de autoritarismo ou totalitarismo. Substituir o termo “patriarcado”
serve ao propósito de ir além da perspectiva de que apenas a mulher em abstrato é
afetada pelas estruturas de dominação que imperam nas relações sociais no sistema
capitalista. A expressão “patriarcalismo” é mais adequada por abarcar todo o conjunto de
relações opressoras: gênero, sexo, etnia, classe social, conjugadas com a dimensão
pública do poder e da exploração do ser humano nas relações sociais. O conceito de
patriarcalismo explicita as articulações das relações patriarcais, pois as estrururas que
afetam aquelas diversas categorias não são varieaveis independentes, mas se
interseccionam de forma relacional nos determinados momentos históricos (HERRERA
FLORES, 2005a, p. 29-30)
10 sobre a importacia da metodologia e da linguagem para as teorias feminista, consultar
MELINO, Heloisa. Potência das Ruas. Direito, Linguagem e emancipação: processos de
luta e o potencial transformador dos movimentos sociais. Rio de Janeiro, Multifoco, 2017.
11 Doutrina ética, ensinada por antigos epicureus e cirenaicos, e por modernos utilitaristas,
que afirma constituir o prazer, só, ou principalmente, a felicidade da vida. Conferir MINDA,
1995, p. 131.
12 Para ele, não consumimos objetos, mas diferenças culturais, convertendo-as em nossas
próprias visões de nós mesmos, ao nos entregarmos ao que o mass media quer que
pensemos.
13 Expressão da canadense Iris Marion Young em seu livro Intersecting
Voices: Dilemmas of Gender, Political Philosophy, and Policy. Princeton: Princeton
University Press, 1997.
14 No mesmo sentido, ver ainda COLLINS, Patricia Hill. Black Feminist Thought.
Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment. 2. ed. Routledge: New York;
London, 2000.
15 Ver, especialmente, BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e Subversão da
Identidade. Col. Sujeito & História, 8 ed.. São Paulo, Civilização Brasileira, 2015.
III
MULHER E VULNERABILIDADE NO DIREITO
BRASILEIRO: UMA QUESTÃO DE
SENTIDOS16

Débora Massmann
Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutora em Semântica
pela Universidade de Campinas. Professora do Programa de Pós-Graduação em
Ciências da Linguagem da Universidade do Vale do Sapucaí – PPGCL/UNIVÁS
(MG).

Patricia Brasil
Doutoranda e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie (Bolsista CAPES/PROSUP). Advogada. Professora
Universitária na Graduação em Direito da MetrocampDeVry.

Resumo: O capítulo que se inicia tem por objetivo analisar os sentidos mulher na ordem
jurídica brasileira que permeiam as dificuldades na superação da desigualdade de gênero
no Brasil. Tratando-se o Direito de linguagem atribuída ao poder do Estado, a relação da
linguagem jurídica com a sociedade se dá a partir de formações discursivas que, revestidas
de caráter coercitivo, compõem a memória que constitui os sujeitos de direito. Tendo em
vista essa imbricada relação entre direito e linguagem, o texto propõe uma reflexão sobre a
tríplice articulação: linguagem, direito e sociedade, a partir dos estudos materialistas da
linguagem propostos por Orlandi (2002), que nos permite apontar a persistência de uma
memória discursiva sobre o sujeito mulher que constituindo os sentidos que permeiam a
tutela estatal, torna-se um obstáculo à coerência do sistema jurídico e à superação da
desigualdade entre homens e mulheres.

Palavras-chave: Igualdade de gênero. Sujeito mulher. Discurso jurídico. Sentido de


mulher.

Porque um direito, em seus efeitos reais,


está ainda muito mais ligado a atitudes,
a esquemas de comportamento do que a formulações legais.
Foucault
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O primeiro olhar sobre a questão proposta neste texto
pode gerar inquietações. Como questionar os sentidos de
mulher para área jurídica, mais especificamente para o
Direito? Para alguns pode parecer óbvio que a mulher é um
sujeito de direitos. Direitos esses que se encontram inscritos
como fundamento do Estado Democrático, no artigo 5º da
Constituição de 1988. E ainda, parece inquestionável que
esses direitos existam e que são garantidos, em condições
de igualdade, na relação com os direitos dos homens, com
quem também se equivalem em deveres.
Devemos lembrar que, a despeito da igualdade formal
legislada, expressa no texto Constitucional como
fundamento do Estado brasileiro, diversas leis
discriminatórias permaneceram vigentes até o século XXI.
Além disso, também confrontaram e ainda confrontam com a
dicção constitucional, reiteradas decisões dos tribunais
brasileiros, revelando conflitos e contradições em torno do
sentido de mulher pelo e para o Direito.
A completar, a situação é de desigualdade material nas
várias dimensões da vida social, especialmente nos espaços
de poder. Os indicadores sociais brasileiros demonstram
que, apesar da mulher representar aproximadamente 52%
da população, em 2013, e 52,3% do eleitorado brasileiro em
201617, o Brasil ocupa hoje a 153ª posição no ranking
mundial de participação de mulheres nos parlamentos, com
10,7% dos assentos na Câmara dos Deputados ocupados
por mulheres e pouco mais de 14% dos mandatos no
Senado exercidos por mulheres18. Além disso, de acordo
com o Índice Global da Desigualdade de Gênero de 2016,
do Fórum Econômico Mundial, o Brasil ocupa a 79ª posição,
a pior entre os países da América Latina. Este índice analisa
a desigualdade relativa à capacitação política e à paridade
entre os gêneros no trabalho19.
Essa situação de desigualdade se apresenta, assim, de
várias formas sendo que seu extremo é a violência que
apresenta números alarmantes no Brasil. De acordo com
dados de pesquisa realizada pelo DataFolha, em 2016, 44%
das mulheres sofreram algum tipo de agressão e a cada 11
minutos, uma mulher é estuprada no país20. Em 2013, 4.762
mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil21.
Os números da desigualdade apontam que há uma
lacuna no funcionamento jurídico que impede a
concretização da igualdade expressa no art. 5º da
Constituição. Como consequência, obstrui-se o predomínio
na sociedade do discurso jurídico que confere à mulher a
natureza de sujeito de Direito. Há, portanto, uma
contradição, um litígio entre a teoria de direitos e a prática
deles na sociedade brasileira.
Reconhecendo o Direito como um acontecimento histórico
e ideológico que se produz nas, pelas e para as relações
sociais (REALE, 2002) e de relações de poder e que
funciona, consequentemente, como instrumento de coerção,
propusemo-nos a analisar a rede de sentidos que se
entrelaça em torno da mulher no Direito brasileiro. Para isso,
consideramos que linguagem e sociedade se constituem
mutuamente (ORLANDI, 2012) e que o Direito, neste estudo,
funciona como um instrumento coercitivo na e da sociedade.
Além disso, inscrevemo-nos na mesma posição teórica
daqueles estudiosos que compreendem que o Direito é
linguagem e é também interpretação (FERRAZ JÚNIOR,
2013). Assim, fundamentadas em uma perspectiva teórico-
analítica de entremeio, a saber, que se coloca entre a área
do Direito e área das Ciências da Linguagem - sobretudo
aquela da Análise de Discurso -, propomo-nos a refletir
sobre uma tríplice relação - a saber, Direito, história e
linguagem -, que, para nós, é fundamental para a
compreensão dos sentidos produzidos nos discursos de e
sobre a Mulher em textos de referência para o Direito
brasileiro. Buscamos dessa maneira relacionar a
persistência da desigualdade de gênero nos diversos
ambientes da sociedade com os diferentes sentidos que
compõem a memória discursiva sobre a mulher na
historicidade do Direito brasileiro.
É, pois, a partir deste olhar de entremeio, que se inscreve
entre o jurídico e o discursivo, que este estudo se debruça
sobre três dispositivos da legislação brasileira - a saber, o
Código Penal de 1940, o Código Civil de 1916 e a
Constituição Brasileira de 1988. O modo como a mulher tem
sido significada nestes textos produz efeitos sobre e para ela
na sociedade e nas relações jurídicas. É importante ressaltar
que a posição-sujeito, no caso dos recortes selecionados
para esta análise, é aquela do Estado que se inscreve no
discurso jurídico e, a partir desta inscrição, regula(menta) a
vida em sociedade exercendo inclusive poder punitivo
quando necessário. Tem-se assim que, nas legislações que
compõem o corpus deste trabalho, os sentidos postos em
funcionamento se sustentam em diferentes condições de
produção e fazem circular formações discursivas diversas
que revelam a persistência de um conflito em torno da
mulher.

2. ENTREMEIO ANALÍTICO: O JURÍDICO E O


DISCURSIVO
A análise de discurso apresenta-se como um domínio
disciplinar cujo interesse está em refletir e analisar a
linguagem na sua relação com a sociedade. Dito de outra
maneira, a partir deste arcabouço teórico-analítico, busca-se
investigar e compreender os processos de significação que
são postos em funcionamento nas diferentes produções de
linguagem. O papel da análise de discurso, segundo Orlandi
(2002, p. 26), é compreender “como um objeto simbólico
produz sentidos, com ele está investido de significância para
e por sujeitos”. Para isso, essa teoria se interessa pelos
gestos de interpretação que são produzidos na relação entre
sujeitos e sentidos, pois, como destaca Orlandi (2006, p. 24)
“face a qualquer objeto simbólico, o sujeito é instado a
interpretar, pois ele se encontra na necessidade de “dar”
sentido. O que é dar sentido? Para o sujeito que fala, é
construir sítios de significação, é tornar possíveis gestos de
interpretação”.
Observa-se aí que sujeito e sentido estão na gênese de
qualquer reflexão de e sobre a linguagem na perspectiva
discursiva. De fato, para análise de discurso, todo e qualquer
dispositivo de análise deve ser organizado tomando como
ponto de partida a língua (consequentemente, o sentido), o
sujeito e a história22, pois “o sentido é assim uma relação
determinada do sujeito – afetado pela língua – com a
história. É o gesto de interpretação que realiza essa relação
do sujeito com a língua, com a história, com os sentidos”
(ORLANDI, 2002, p. 47). É a partir deste tríptico elementar
(língua, sujeito e história) aos estudos discursivos que
podemos compreender o funcionamento da significação e
que podemos, também, analisar as condições de produção,
a ideologia, a memória discursiva entre outros elementos
que afetam o funcionamento da interpretação.
É pois fundamentadas na teoria discursiva que, nesta
reflexão, analisamos os sentidos produzidos em torna da
“mulher” no âmbito do Direito brasileiro. Para isso,
selecionamos alguns recortes (ORLANDI, 1984) retirados do
corpus que compõe este estudo, isto é, três legislações
distintas produzidas e publicadas em momentos históricos,
ideológicos e políticos também distintos. A noção de corpus
e de recorte nos é importante, pois, em análise de discurso,
tanto a seleção do corpus quanto a do(s) recorte(s) já aponta
para gestos de análise fundamentais: de um lado, o corpus,
descrito como um conjunto de documentos, de formulações,
já é o resultado (o produto) de um processo de análise e de
interpretação do discurso na sua relação com as condições
de produção, ou melhor, na “relação com a materialidade da
língua, com a história, com o real” (GUILLAUMOU;
MALDIDIER, 2014, p. 177); e, de outro lado, o recorte,
definido como a unidade de análise discursiva, que também
é resultado de um olhar analítico do pesquisador, “varia
segundo os tipos de discurso, segundo a configuração das
condições de produção e, mesmo, o objetivo e o alcance da
análise (ORLANDI, 1984, p. 14). Ou seja, os recortes
apresentados aqui abaixo não foram selecionados ao acaso:
eles também põem em funcionamento gestos de análise e
de interpretação (tal como o corpus) em função da sua
relação com a língua, com a história, com os sujeitos e com
os sentidos de e sobre mulher no discurso do Direito
brasileiro.
Recorte A: Recorte B: Recorte C:
CÓDIGO CÓDIGO CIVIL (1916) CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
PENAL (1940) (revogado em 2002) (1988)
(ainda em
vigor, alterado
em 2009)
Posse Sexual Art. 6. São incapazes, Art. 5º. Todos são iguais perante a lei,
Mediante relativamente a certos sem distinção de qualquer natureza,
Fraude atos (art. 147, n. 1), garantindo-se aos brasileiros e aos
Art. 215. Ter ou à maneira de os estrangeiros residentes no País a
conjunção exercer: inviolabilidade do direito à vida, à
carnal com II. As mulheres liberdade, à igualdade, à segurança e
mulher honesta, casadas, enquanto à propriedade, nos termos seguintes:
mediante subsistir a sociedade I – homens e mulheres são iguais em
fraude. conjugal. direitos e obrigações, nos termos
Pena – Art. 36. Os incapazes desta Constituição.
reclusão, de um têm por domicílio o
a três anos. dos seus
Parágrafo representantes.
Único. Se o Parágrafo único. A
crime é mulher casada tem
cometido contra por domicílio o do
mulher virgem, marido, salvo se
menor de estiver desquitada
dezoito anos e (art. 315), ou lhe
maior de competir a
quatorze anos. administração do
Pena – casal (art. 251).
reclusão, de
dois a seis
anos:
Mulher Mulher Mulher igual ao Homem
Honesta/Mulher Casada/Incapaz
Virgem

Ao realizar esse exercício de seleção do corpus e dos


recortes que serão analisados, observa-se que a análise de
discurso pode trazer contribuições importante à área do
Direito já que, como destaca Ferraz Júnior (2013), Direito é
linguagem. Nessa perspectiva, à medida que se considera
que a linguagem é o elo que conecta o sujeito com o real,
com a sociedade e com o Estado, passa-se a concebê-la
como uma prática simbólica, como um trabalho de e com a
significação. De acordo com Orlandi (2007, p. 296), a
linguagem é prática significativa que produz sentido
inscrevendo-se na história. Nas palavras da autora,
Quando dizemos que a linguagem é uma prática
significativa e pensamos a relação da linguagem com a
sociedade e o Estado, queremos dizer que a prática, que é a
linguagem, se relaciona com as práticas sociais em geral.
Para fazer sentido, a língua, sujeita a falhas (divisão), se
inscreve na história, produzindo a discursividade. A
discursividade, por sua vez, caracteriza-se pelo fato de que
os sujeitos, em suas posições, e os sentidos constituem-se
pela sua inserção em diferentes formações discursivas.
Estas se definem como aquilo que o sujeito pode e deve
dizer numa situação dada em uma conjuntura dada, e
refletem, no discurso, as formações ideológicas.
Assim, à medida em que Direito é linguagem (FERRAZ
JÚNIOR, 2013) e sendo o Direito também um fenômeno
social, este reflete os valores de determinada sociedade, em
determinado tempo, portanto, inscreve-se na história,
relacionando-se com as condições de sua produção. Além
disso, o Direito, seja como legislação, seja como atividade
judicial, reflete interesses específicos da sociedade que o
produz:
a legislação que se pressupõe apta a tornar concreto o ideal de justiça
é, de fato, construída por alguns ‘porta-vozes’ do(s) grupo(s) dominantes
da sociedade que, inadivertidamente (ou não), perpetuam o status quo
(CARVALHO; BERTOLIN, 2010, p. 185).

Quando dizemos que a análise de discurso contribui com


a interpretação do Direito, reconhecemos a incompletude da
hermenêutica jurídica centrada na norma, na técnica, na
determinação e no controle (ou melhor na ilusão do controle)
do sentido das palavras. Diante disso, faz-se necessário
repensarmos o processo de produção de sentidos e a
interpretação na área do Direito. Impõe-se também trazer
para o centro dos debates do Direito a noção de opacidade
da linguagem, as relações de força23 e relações de poder
que estão no cerne de nossa sociedade e que, sem dúvida,
afetam os sentidos de e sobre mulher no discurso jurídico.
Considerando que o lugar de que fala o sujeito lhe é
constitutivo, nos recortes selecionados para esta reflexão, a
posição-sujeito é aquela do Estado que fala de uma posição
de poder e, pelo discurso jurídico, regulamenta a sociedade.
Isso significa que os dizeres estão revestidos de poder
coercitivo, obrigatório, institucional, oficial e representativo
da própria sociedade. Em outras palavras, os dizeres estão
encapsulados em um poder hierárquico, que funciona a
partir de um jogo imaginário constitutivo do funcionamento
da linguagem. Este jogo imaginário orienta e conduz todo
processo de produção do discurso. Ele é absolutamente
eficaz e persuasivo, pois, segundo Orlandi (2002, p. 42),
“assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem
na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa,
por relações de poder”. Assim, a imagem que temos de um
juiz, de um promotor, de um desembargador, de um
professor, por exemplo, não se produz ao acaso. Ela é
resultado da força que este jogo imaginário exerce na
produção do dizer. A imagem que temos de cada um destes
profissionais citados acima se constitui, de acordo com a
autora, “nesse confronto do simbólico com o político, em
processos que ligam discursos e instituições” (ORLANDI,
2002; p. 42). No caso do nosso corpus, a posição-sujeito
Estado está inscrita discursivamente neste imaginário que a
sociedade produz, por exemplo, sobre o judiciário e sobre o
legislativo que se apresentam como os representantes do
Estado no discurso jurídico.

3. DA MEMÓRIA DISCURSIVA DE E SOBRE A MULHER


Com a Análise de Discurso, inaugura-se um novo espaço
de reflexão sobre o funcionamento da linguagem em que a
história possui um papel fundamental nos processos de
significação. Para Pêcheux (1969), o sentido de uma palavra
não existe em si mesmo. Isso acontece porque, segundo o
autor, ele é determinado e afetado pelas posições
ideológicas que estão em funcionamento no processo sócio-
histórico de produção da linguagem. Ou seja, o sentido
também tem história uma vez que é produzido e enunciado a
partir de certas posições que são sustentadas por aquele
que fala a partir do lugar de onde fala, afinal, como destaca
Orlandi, “o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo
do que ele diz” (ORLANDI, 2002, p. 39). Trata-se das
formações discursivas24 que projetam na linguagem as
formações ideológicas: “as palavras, expressões,
proposições adquirem seu sentido em referência às
posições dos que as empregam, isto é, em referência às
formações ideológicas nas quais essas posições se
inscrevem (ORLANDI, 2006, p. 17).
Considerando o exposto, os sentidos que são produzidos
em torno de e sobre a mulher nos recortes selecionados
para este estudo, inscrevem-se em determinadas posições
que, por sua vez, projetam formações discursivas e
formações ideológicas relacionadas ao lugar ocupado por
quem fala. Assim, a palavra mulher, quando empregada nos
recortes aqui analisados, retoma aquilo que já foi dito sobre
a mulher por alguém em outras situações e outros
textos/lugares.
De fato, observando o primeiro recorte, retirado do Código
Penal de 1940, verificamos que o bem jurídico tutelado pela
lei penal é a dignidade sexual da mulher. Entretanto, a
proteção expressa no texto da lei não acolhe a todas as
mulheres mas, apenas, aquela designada como honesta.
Esta, e apenas, esta mulher seria merecedora da proteção
ou da aplicação do poder punitivo do Estado. O crime se
tornaria ainda mais grave se praticado contra mulher virgem,
ou menor de 18 e maior de 14 anos, como se verifica no
recorte apresentado aqui abaixo.
Recorte A:
Posse Sexual Mediante Fraude
Art. 215. Ter conjunção carnal com mulher honesta, mediante fraude.
Pena – reclusão, de um a três anos.
Parágrafo Único. Se o crime é cometido contra mulher virgem, menor de
dezoito anos e maior de quatorze anos.
Pena – reclusão, de dois a seis anos

Segundo Barbosa (2016)25, o termo “mulher honesta” foi


empregado no âmbito do Direito como repetição pouco
alterada de dispositivo das Ordenações Alfonsinas. A
previsão foi reiterada com poucas mudanças no Código
Criminal do Império de 1830, no Código Penal de 1890 e
permaneceu no Decreto-Lei nº 2.848/1940, o atual Código
Penal Brasileiro. Observemos que já se tem aí um
funcionamento de sentidos que, pela historicidade do termo,
põe em funcionamento uma formação ideológica e um pré-
construído sobre a imagem da mulher na sociedade: a lei
deve proteger a mulher honesta e mulher virgem.
A tutela estatal sobre a mulher honesta persistiu no
sistema jurídico brasileiro até o ano de 2009, quando o
Decreto-Lei nº 2.848/1940 foi alterado pela Lei nº 12.015.
Assim, por 21 anos coexistiram, em nosso sistema jurídico, o
sentido de igualdade entre homens e mulheres conforme
descrito no art. 5º da Constituição Federal de 1988 e o
sentido de mulher honesta do Código Penal de 1940, que
informava as decisões dos tribunais penais brasileiros na
tutela de crimes sexuais. Na prática, o termo “mulher
honesta”, embora retirado do Código Penal em 2009, ainda
aparece em discursos da área do Direito e da sociedade em
geral, sobretudo, naqueles que tratam de violência contra a
mulher.
Essas considerações nos remetem hoje à pesquisa do
instituto DataFolha (2016) sobre a violência contra a mulher,
em especial quando avalia a assertiva: “mulheres que se
dão respeito não são estupradas”. Dentre os participantes da
pesquisa, 42% dos homens e 32% das mulheres
entrevistadas concordaram com essa afirmação. Os dados
apontam para o fato de que, mesmo no século XXI, ainda há
persistência deste discurso que responsabilizam a mulher
pelos crimes sexuais de que é vítima. Trata-se de um
exemplo concreto do funcionamento dessa memória
discursiva que vai estabilizando sentido de e sobre a mulher
e assim, como o próprio DataFolha destacou “a ideia de
controle do comportamento e do corpo das mulheres faz
com que a violência sexual possa ser tolerada” (DataFolha,
2016).
Com o advento do Código Civil de 1916, vigente até 2002,
outros/novos sentidos em torno de e sobre a mulher foram
discursivizados na norma jurídica:
Recorte B
Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira
de
os exercer:
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.
Art. 36. Os incapazes têm por domicílio o dos seus representantes.
Parágrafo único. A mulher casada tem por domicílio o do marido,
salvo se estiver desquitada (art. 315), ou lhe competir a administração do casal
(art. 251).

Como se observa no artigo 6º do Código Civil de 1916, o


sentido de mulher vem aqui especificado pelo adjetivo
casada. O texto da lei indica que a mulher casada é parte
daqueles que são designados como “incapazes” e que,
nessa condição, estão sob a responsabilidade e proteção de
um representante capaz, este sendo, no caso da mulher
casada, o marido. Ou seja, a mulher casada não é
reconhecida como um sujeito de direitos, mas, assim como
um acessório do marido.
É importante lembrar que o Código Civil foi publicado em
1916, mas sua elaboração foi iniciada por Clóvis Beviláqua
em 1899, ou seja, ainda no século XIX, como destaca Dias
(2016)26. Considerando as condições de produção do Código
Civil, não se pode desconsiderar as questões ideológicas
desta época marcada por uma sociedade conservadora e
patriarcal. Que sentidos poderiam ser produzidos sobre a
mulher se a sociedade valorizava o homem e sua
superioridade (aparente) em todas as relações sejam
pessoais (familiares), sociais, políticas e jurídicas, entre
outras? O discurso que se materializa na textualidade do
Código Civil de 1916 reproduz a ideologia vigente e põe em
funcionamento as relações de força: não podemos esquecer
quem é o autor (ou quem são os autores desta norma
jurídica), quem são as autoridades desta sociedade de
transição do século XIX para o século XX. Há, neste
período, uma hegemonia masculina que, conforme a análise
aqui empreendida, ainda produz efeitos de sentido na
sociedade contemporânea.
A partir deste gesto analítico, podemos historicizar os
sentidos de mulher e observar justamente o funcionamento
de uma memória discursiva (interdiscurso) que foi sendo
constituída em torno da significação de e sobre a mulher nos
textos jurídicos e na própria sociedade. Nesse sentido, a
memória discursiva (ou interdiscurso) constitui, pois, “todo o
conjunto de formulações feitas e já esquecidas que
determinam o que dizemos” (ORLANDI, 2002, p. 33). As
palavras de Orlandi nos conduzem a pensar que há um já-
dito que permeia todo o processo de produção da linguagem
e se coloca como componente fundamental para a
compreensão do funcionamento discursivo, sua relação com
os sujeitos e com a ideologia. À medida que observamos
como significação se produz, conseguimos relacionar os
dizeres de e sobre a mulher, expressos nos recortes em
análise, a toda uma rede de filiação de sentidos que remete
a uma memória e, assim, em sua historicidade, identificamos
sítios de significância que, no discurso jurídico, inscrevem
posições políticas e ideológicas.
A análise do terceiro recorte aponta justamente para o
funcionamento da memória discursiva e para essas posições
políticas e ideológicas que ganham visibilidade no discurso
seja pelo dito, seja pelo não-dito. O artigo 5º da Constituição
Federal de 1988 destaca que
Recorte C
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição.
Considerando que a “lei materializa o ideal de justiça de
determinada sociedade” (BERTOLIN; CARVALHO, 2010, p.
194), a partir da concepção constitucional, todo o corpo
normativo e todas as relações sociais do Estado Brasileiro
deveriam se desenvolver no sentido de garantir a igualdade
entre homens e mulheres, de forma a permitir que todos
tenham liberdade para decidir e desenvolver suas aptidões
pessoais sem limitações, ultrapassando os limites
estabelecidos em função do gênero.
Essa previsão constitucional significou, a princípio e em
tese, o rompimento com o sistema institucionalizado de
dominação masculina, ao negar vigência a qualquer medida
discriminatória, reconhecendo a igualdade como princípio
fundamental e base do Estado. A igualdade jurídica
representou, ainda, o rompimento do paradigma público
versus privado, que sempre limitou a atuação do Estado
sobre as relações domesticamente estabelecidas, que
figuravam intocáveis onde os homens reinavam absolutos
(BERTOLIN et al; 2013). Neste aspecto, merece destaque a
Lei Maria da Penha, promulgada em 2006, que passou a
tratar com mais rigor a violência doméstica e passou para o
Estado a iniciativa da investigação e do processamento dos
crimes, permitindo, inclusive, a denúncia da situação de
violência por terceiros.
Assim, observando o recorte “C” da perspectiva de
entremeio, aquela que estamos construindo entre jurídico e
discursivo, o artigo 5º reescreve, por exemplo, o que já havia
sido dito no artigo 7º da Declaração Universal dos Direitos
Humanos que passou a ser adotada pela Organização das
Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, a saber:
“Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer
distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual
proteção contra qualquer discriminação que viole a presente
Declaração e contra qualquer incitamento a tal
discriminação”27. Ou seja, depois de mais 50 anos da
publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
o Brasil se pronunciou juridicamente em relação à igualdade
de todos os sujeitos perante a lei e específica que, no Brasil,
“homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações”, nos termos da Constituição de 1988.
Dessa forma, o artigo 5º da Constituição Federal, ao
contrário do que foi observado nos outros recortes,
estabelece, na materialidade linguística, a equidade entre
homem e mulher. No entanto, observando o funcionamento
dos sentidos, somos levados a compreender que ao
especificar que “homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações”, o texto constitucional põe em funcionamento
um saber discursivo que remete a um já-dito, isto é, àquele
de que, juridicamente e historicamente, homens e mulheres
não têm ou não tinham os mesmos direitos e as mesmas
obrigações. Em outras palavras, eles não são/eram
compreendidos pela legislação brasileira em patamar de
igualdade. Desse modo, pelo não-dito, o recorte “C” funciona
na direção de sentido dos recortes “A” e “B” e coloca em
funcionamento a mesma memória discursiva sobre a mulher.
Conforme temos explicitado aqui, nesse funcionamento
da memória discursiva, entram em cena sentidos sobre a
mulher que já estão estabilizados em nossa sociedade e
também sentidos em conflito. A estabilização de sentidos
remete ao fato de que, “em todo dizer há algo que se
mantém” (ORLANDI, 2002, p. 36). Quando estabilizados, os
sentidos funcionam para naturalizar significações.
Entretanto, nem sempre é assim. A significação que está
estabilizada pode sempre ser rompida, deslocada ou
(re)significada em função das condições de produção que
podem estabelecer uma tensão no discurso e assim produzir
rupturas e equívocos de significação ou, em outras palavras,
colocar em funcionamento novos e outros sentidos para a
mulher. De fato, conhecer como a linguagem funciona é
pois, segundo Orlandi (2002, p. 10), “colocar-se na
encruzilhada de um duplo jogo da memória: da memória
institucional que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo, o
da memória constituída pelo esquecimento que é o que
torna possível o diferente, a ruptura, o outro”.
Isso nos levar a considerar a relação que se estabelece
entre língua, sujeito e história como um processo dinâmico.
Estes três componentes estão na base do processo
significação e, consequentemente, também naquele da
interpretação que, segundo Pêcheux (2014, p. 59), pode se
dar de “maneiras diferentes ou mesmo contraditórias”. É
justamente no entremeio do sentido estabilizado e do sujeito
a equívoco (sentidos em conflito) que pode se dar a tensão
do/no discurso e o efeito da polissemia. Trata-se pois do
trabalho de interpretação. Ou ainda, como destaca Orlandi
(2014, p. 2),

[…] trabalho da memória em perpétuo confronto consigo mesma. E é


neste confronto da memória com a memória – [dos sentidos em
conflitos/sujeito a interpretação e dos sentidos estabilizados] - que se
aloja o vai e vem da interpretação, dos gestos de leitura e da força do
imaginário.

Tem-se assim que sentidos em litígio são produzidos pela


relação de interpretação e apontam para o funcionamento do
político na linguagem, da contradição, da divisão dos efeitos
de sentido. Nessa perspectiva, analisando recortes A, B e C
que foram selecionados para este estudo, se pensarmos
numa representação gráfica, podemos, didaticamente,
imaginar a representação sob a forma de nuvem de
palavras. Nesta imagem, estariam representados os
diversos sentidos que, em tese, compõem a memória
discursiva que se produz em torno da significação de mulher
nos fragmentos A e B, apresentados anteriormente. De um
lado (confira o quadro ao lado), observa-se a memória
discursiva da mulher protegida pelo direito, isto é, todos os
sentidos que podem ser construídos para aquela mulher
que, de acordo com discurso jurídico, se insere no modelo
tido “padrão” para uma sociedade machista como é o caso
da brasileira. Trata-se da mulher “certa”, da mulher direita,
da mulher honesta.
Esse discurso sobre a mulher ideal traz consigo a
memória discursiva de outros sentidos para a mulher:
aqueles opostos a essa descrição, isto é, os sentidos que
remetem àquela mulher que não é protegida pelo direito. O
Direito, ao firmar a proteção da mulher em um sentido
específico e desejado, determina, ao mesmo tempo, sua
discriminação e, consequentemente, sua exclusão. Produz,
assim, um deslizamento que conduz para a ruptura de
sentidos, ou melhor, para o funcionamento político na
linguagem que se manifesta, justamente, no embate, no
litígio na divisão de sentidos. Essa ruptura é alcançada a
partir do jogo que se estabelece entre a memória
estabilizada e cristalizada pelas e nas instituições - neste
caso, temos aqui o próprio judiciário -, e a memória
constituída pelo esquecimento, aquele que rompe com os
sentidos engessados e torna possível o diferente, o outro o
novo. Mais uma vez, a nuvem de palavras (confira aqui ao
lado) contribui para representarmos os sentidos que se
enlaçam em torno daquele imaginário sobre a mulher não
atendida pela tutela jurídica.
jogo que se estabelece entre a memória estabilizada e
cristalizada pelas e nas instituições - neste caso, temos aqui
o próprio judiciário -, e a memória constituída pelo
esquecimento, aquele que rompe com os sentidos
engessados e torna possível o diferente, o outro o novo.
Mais uma vez, a nuvem de palavras (confira aqui ao lado)
contribui para representarmos os sentidos que se enlaçam
em torno daquele imaginário sobre a mulher não atendida
pela tutela jurídica.

A partir destes dois gestos de análise, compreendemos


que, de acordo com o texto jurídico, apenas a mulher
honesta, a mulher casada, a mulher mãe, a mulher
dependente, a mulher frágil, a mulher do lar, merece a
proteção do Estado. Isso porque somente essas mulheres
estão compreendidas dentro de um imaginário de
honestidade, de dignidade e de proteção da mulher. Por
outro lado, neste mesmo discurso, a mulher solteira, a mãe
solteira, a trabalhadora, a sexualmente livre, a mulher
independente, a mulher capaz é desconsiderada
juridicamente: a este estereótipo de mulher não caberia a
proteção do Estado uma vez que, conforme as condições de
produção deste discurso, seriam elas mesmas as
responsáveis por se colocar em situação de risco e de
violência.
Considerando que a memória discursiva é constitutiva dos
sujeitos e, que o Direito consiste na prestação da tutela
(proteção) do Estado para resguardar um bem da vida, o
efeito de sentidos que se produz a partir desta análise é o
seguinte: a vida da mulher que não se enquadra no pré-
construído de honesta e incapaz está excluída da proteção
do Estado. Fora da lei, a mulher, nesse sentido, justifica
qualquer violência que venha a sofrer e toda a discriminação
a que for submetida, inclusive aquela praticada pelo próprio
Estado. Percebe-se, então, que a noção de proteção Estatal
pelo exercício do poder punitivo no Direito brasileiro está
diretamente atrelada ao caráter relacional dos papéis
sociais. Esses papéis atribuídos ao gênero, são construídos
a partir das diferenças biológicas e sexuais entre homens e
mulheres, enquanto representações do masculino e do
feminino, respectivamente. Com efeito, trata-se de
institucionalização da diferença como fator de desigualdade
(MIGUEL, 2014, p. 81). Desta forma, pensar os sentidos de
e sobre a mulher para o Direito produz um jogo de
significância promovido pela desestabilização dos sentidos e
dos sujeitos. Isso acontece porque, afetado pela história,
pela ideologia e pelas condições de produção, o discurso
está em constante movimento, ele flui, se (re)significa,
entrelaça-se de modo que os sentidos produzidos nessa
movência “sempre podem ser outros” (ORLANDI, 2002, p.
37).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao percorrer textos de referência para o Direito brasileiro,
a reflexão proposta neste estudo deu visibilidade à trama de
sentidos que, historicamente, vem sendo produzida em torno
de e sobre a mulher na sociedade brasileira, sobretudo, no
âmbito do Direito. Esses sentidos não se constituíram, nem
mesmo se constituem ao acaso. Ao contrário, eles são
resultados de processos discursivos que envolvem língua,
história, ideologia, sujeitos, relações de poder, relações de
força, instituições e todos os processos de significação que
confluem para o funcionamento da linguagem na sociedade.
Como foi possível observar, os sentidos que se
produziram e se produzem em torno de e sobre a mulher
refletem o legado conservador, patriarcal e machista da
sociedade brasileira. Legado este que produziu, e ainda
produz, seus efeitos afetando as formas de significação na
contemporaneidade. Legado este que enraizou seus
tentáculos na sociedade brasileira alcançando, desde
sempre, instâncias que deveriam zelar e fazer funcionar a
igualdade de gênero, como é o caso, dos textos que
compõem nosso corpus.
Conforme o percurso teórico-analítico desenvolvido aqui,
compreendeu-se que, antes de 1988, a institucionalização
da ideologia de gênero nas práticas jurídicas e sociais era
um fato: o Direito normatizava a desigualdade entre homens
e mulheres, de um lado, regulamentando a supremacia e a
(aparente) superioridade masculina e, de outro lado,
reforçando a vulnerabilidade, a inferioridade e a
subordinação da mulher. Como destaca Dias (2015), até
1988, mesmo com que a publicação de leis e estatutos em
que a mulher estava, em tese, implicada, como é o caso da
Lei n.° 4.121de 1962, conhecida como Estatuto da Mulher
Casada, a legislação brasileira não apresentou avanços
significativos no que concerne à significação da mulher no
Direito.
Se até 1988, a discursividade jurídica atribuía à mulher
sentidos que remetem à relações de poder e relações de
força, em que, como vimos, ela era descrita como sendo
incapaz. Com o advento da Constituição Federal, a
materialidade linguística, isto é, o modo de dizer, de
representar linguisticamente a lei dá a falsa compreensão,
num processo de simples decodificação da língua, de que
algumas mudanças parecem ter se operado no discurso do
Direito, especificamente, na Constituição Federal.
Entretanto, como nos ensina a análise de discurso, a
linguagem não é transparente, isto é, as palavras não são
repositórios de sentidos: não há como atravessar uma
palavra e, atrás dela ou dentro dela, encontrar um sentido ali
já posto (ORLANDI, 2007). Não há como olhar nas
entrelinhas de um texto e dizer o que ele significa. Isso seria
apenas analisar o conteúdo. Para fazer análise de discurso,
é preciso aperfeiçoar nossa escuta discursiva e relacionar,
como foi destacado ao longo texto, o sujeito, a linguagem
(sentido) e a história funcionado em seus processos de
significação. Por isso, não podemos aceitar que, no art. 5º
da Constituição, se diga que novos e outros sentidos de e
sobre a mulher e sobre a paridade entre mulher e homem
estão ali expressos.
Conforme a análise realizada, observou-se que na
materialidade linguística, isto é, na estrutura da língua (forma
de dizer), o movimento de sentidos, que se produz em
“Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”,
põe em funcionamento um saber discursivo que remete ao
já-dito, qual seja, homens e mulheres não têm ou não tinham
os mesmos direitos e as mesmas obrigações na legislação
brasileira. Trata-se do funcionamento da memória discursiva,
amplamente explorando neste estudo, que faz retornar o
mesmo sentido em condições de produção distintas fazendo
assim a significação deslizar, deslocar, derivar para outros
espaços simbólicos. O que se observou nos textos em
análise foi justamente isso: o mesmo sentido de e sobre a
mulher foi sendo (re)produzido de modos diferentes, (re)dito
e (re)escrito de formas diversas por sujeitos distintos, em
textos distintos, em momentos históricos, sociais,
ideológicos e jurídicos também distintos. A partir do exposto,
considera-se então que a memória discursiva de e sobre a
mulher parece persistir e resistir nos textos da legislação
brasileira aqui estudados. Ao final desta reflexão, as
palavras de Foucault, em epígrafe, produzem seus efeitos
de sentidos e nos provocam a (re)considerar aquele
imaginário sobre a àrea Direito porque para Foucault (1998,
p. 45) “um direito, em seus efeitos reais, está ainda muito
mais ligado a atitudes, a esquemas de comportamento do
que a formulações legais”.

REFERÊNCIAS

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16 WOMEN AND VULNERABILITY IN BRASILIAN LAW:


A QUESTION OF SENSES
17 BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Estatísticas Eleitorais: eleições 2016, eleitorado.
Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-
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18 GENEVE. Women in National Parliaments: situation as 1st March 2017. Disponível
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19 World Economic Forum. Além de nossa existência: perspectivas para atingir a
igualdade de gênero no local de trabalho atingem o ano 2186. Disponível em:
http://www3.weforum.org/docs/Media/GGGR16/GGGR16_PTBR.pdf. Acesso em: 30 abr.
2017.
20 DataFolha. A Polícia Precisa Falar Sobre o Estupro: Percepção sobre violência
sexual e atendimento a mulheres vítimas nas instituições policiais. Disponível em:
http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/wp-
content/uploads/2016/09/FBSP_Datafolha_percepcaoviolenciasexual_set2016.pdf. Acesso
em 30 abr. 2017.
21 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil.
Disponível em:
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf. Acesso em
30 abr. 2017.
22 Para a Análise de Discurso, teoria de linguagem que se filia ao materialismo histórico,
proposta, na França, por Michel Pêcheux e desenvolvida no Brasil por Eni P. Orlandi, a
história possui um papel fundamental nos processos de significação. Orlandi (2002, p. 47)
destaca que a “Análise de Discurso pressupõe o legado do materialismo histórico, isto é, o
de que há um real da história de tal forma que o homem faz história mas também essa [...]
não lhe é transparente. Daí, conjugando a língua com a história na produção de sentidos,
esses estudos do discurso trabalham o que vai-se chamar a forma material [...] que é a
forma encarnada na história para produzir sentidos: esta forma é portanto linguístico-
histórica.”
23 Sobre as relações de força, Orlandi (2002, p. 39) assinala que “segundo essa noção,
podemos dizer que o lugar a partir do qual fala o sujeito é constitutivo do que ele diz.
Assim, se o sujeito fala a partir do lugar de professor, suas palavras significam de modo
diferente do que se ele falasse do lugar de aluno. [...]. Como nossa sociedade é constituída
por relações hierarquizadas, são relações de força, sustentadas no poder desses
diferentes lugares, que se fazem valer na “comunicação”. A fala do professor vale
(significa) mais do que a do aluno”. Se estendermos essa reflexão para o âmbito do Direito,
temos que o juiz (ou o advogado, ou ainda o promotor), por exemplo, fala de um lugar em
que suas palavras têm uma autoridade determinada em relação aos seus interlocutores. A
fala do juiz, por exemplo, tem mais “poder”, mais força do que a fala do réu.
24 De acordo com Orlandi (2006, p. 17), “chamamos então de formação discursiva aquilo
que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura
dada, determina o que pode e deve ser dito.
25 Disponível em https://canalcienciascriminais.com.br/mulher-honesta-origem-da-
expressao/. Acesso em 15 abr. 2017.
26 DIAS, Maria Berenice. A Mulher no Novo Código Civil. Disponível em:
www.mariaberenice.com.br/uploads/18_-_a_mulher_no_código_civil. Acesso em 15 mai.
2017
27 In < http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-
Universal-dos-Direitos-Humanos/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.html >.
Acesso em 20 mai. 2017.
IV
A TRAJETÓRIA DA CONSTRUÇÃO DA
IGUALDADE NAS RELAÇÕES DE GÊNERO
NO BRASIL: AS EMPREGADAS
DOMÉSTICAS28
Hildete Pereira de Melo
Doutora em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ. Professora da Universidade Federal Fluminense – UFF.
Editora da Revista Gênero do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política
Social da Universidade Federal Fluminense - UFF

Cristiane Soares
Doutora em Economia pela Universidade de Brasilia – UnB. Tecnologista do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

Lourdes Maria Bandeira


Pós-doutora em Sociologia do Conflito pela École des Autes Études en Sciences
Sociales. Doutora em Antropologia pela Universidade René Descartes -Paris V.
Professora titular da Universidade de Brasilia – UnB.

Resumo: Este artigo faz uma recuperação histórica da construção e da formalização dos
direitos reais dos trabalhadores domésticos brasileiros. Excluídas da legislação de 1940,
protetora dos diretos sociais, tanto estas como os trabalhadores rurais. As empregadas
domésticas representam uma das maiores ocupações das trabalhadoras brasileiras, mas
esta exclusão foi herança de um modelo histórico patriarcal e escravocrata. Com este olhar
este artigo analisa historicamente as alterações que a luta das domésticas foram
introduzindo no seu estatuto legal até alcançar a plenitude dos direitos trabalhistas em
2013. Em seguida a partir dos microdados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio
(PNAD/IBGE), constrói marcadores sociais de classe e das relações de gênero e raça,
para analisar nos anos de 2013, 2014 e 2015 este processo de transição da igualdade
formal para a realidade do cotidiano destas trabalhadoras. E conclui com uma breve
avaliação da atuação das políticas públicas pode romper com os elementos históricos e
estruturais de desigualdade no campo do trabalho, cuja condição de igualdade entre os
sexos nas suas relações de gênero e raça não é uma prioridade nacional.
Palavras-chave: Relações de gênero. Famílias. Legislação trabalhista. Igualdade.
Trabalhadores domésticos.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este estudo recupera historicamente a construção e a
formalização dos direitos sociais dos trabalhadores
domésticos brasileiros, ignorados pela legislação nacional de
1940. Esta deixou de lado a maioria dos trabalhadores do
país: os trabalhadores rurais e as empregadas domésticas.
Este trabalho analisa apenas o caso das empregadas
domésticas, onde as relações de trabalho são construídas
culturalmente como “lugar de mulher” e a execução dessas
tarefas não exige nenhuma qualificação. Portanto, uma
relação familiar, cuja atividade ocorria no interior dos
domicílios e no discurso oficial isto impediu sua
profissionalização.29
Numa perspectiva social, considera-se que este tipo de
exclusão foi herança de um modelo histórico patriarcal e
escravocrata vivenciado pela sociedade brasileira ao longo
do tempo (MELO, 1998). Esta naturalização faz dessa
ocupação o refúgio dos trabalhadores com baixa
escolaridade e sem treinamento na sociedade. A análise
histórica das alterações que a luta das domésticas
provocaram na legislação social nacional é sucintamente
apresentada, através das mudanças no seu estatuto legal
até alcançar a plenitude dos direitos trabalhistas em 2013.
No item seguinte a partir dos microdados da Pesquisa
Nacional de Amostra por Domicílio (PNAD/IBGE), foram
construídos marcadores sociais de classe e das relações de
gênero e raça, para analisar nos anos de 2013, 2014 e 2015.
Estes marcadores são sinalizadores deste processo de
transição da igualdade formal para a realidade do cotidiano
destas trabalhadoras. Por último avalia a atuação das
políticas públicas pode romper com os elementos históricos
e estruturais de desigualdade no campo do trabalho, cuja
condição de igualdade entre os sexos nas suas relações de
gênero e raça não é uma prioridade.
2. A CONSTRUÇÃO E A FORMALIZAÇÃO DOS DIREITOS
DOS TRABALHADORES DOMÉSTICOS BRASILEIROS A
PARTIR DOS ANOS 1940: UMA VISÃO GERAL
Este estudo recupera, historicamente, porque a
construção e a formalização dos direitos reais dos
trabalhadores brasileiros, nos anos 1940, ignoraram os
trabalhadores rurais e a maioria das mulheres trabalhadoras
brasileiras.30 Alguns estudos que abordam o tema se limitam
a afirmar que a exclusão destes dois grupos da reforma
trabalhista resultou das características de relações de poder
e de trabalho diferenciadas vividas por estes trabalhadores
(MELO, 1998; FRAGA, 2013). No campo, as oligarquias
rurais tinham grande influência na política e na economia e,
naquele período, o Brasil ainda era considerado uma
economia predominantemente agrícola. Por outro lado, é
necessário destacar que a legislação trabalhista adotou uma
posição protecionista em relação às mulheres trabalhadoras,
baseada em princípios tais como - da fragilidade feminina,
da defesa da moralidade, da proteção à prole e da natural
vocação da mulher ao lar, assim como do caráter
complementar do salário da mulher, fundamentando-se em
um ideal de família patriarcal. Neste modelo de família a
chefia familiar seria do homem, tendo por objetivo proteger a
mulher trabalhadora no seu papel de mãe (BRUSCHINI et
all. 2008).
Por sua vez, um enorme contingente de trabalhadores
rurais, tanto homens como mulheres, ficaram fora deste
marco regulatório e desprotegidos, seja porque a força de
mobilização política era escassa diante do poder de grandes
latifundiários, conhecidos como os ‘coronéis’, seja porque a
representação sindical era praticamente inexistente. Esta
exclusão se apoia na profunda desigualdade que
caracterizava e ainda permanece nas relações sociais
brasileiras. No caso das empregadas domésticas, as
relações de trabalho em sua maioria eram tratadas como
uma relação familiar, de plena subserviência, cuja atividade
se dava no interior dos domicílios familiares e não em
empresas, o que dificultava a profissionalização desta
categoria. Desta forma a Consolidação da Lei do Trabalho
(CLT) 31 definiu estas trabalhadoras como “os que prestam
serviços de natureza não econômica à pessoa ou à família,
no âmbito residencial destas” (Decreto-Lei nº 3.078/1941,
Art.7º, alínea “a”) e, consequentemente, estas não foram
incluídas no corpo da legislação trabalhista.
Numa perspectiva social, pode-se considerar também que
este tipo de exclusão foi herança de um modelo sócio -
histórico patriarcal e escravocrata. Este se expressava na
vontade do “senhor ou patrão” como a autoridade suprema
tanto na unidade sócio-familiar como produtiva brasileira. E
mesmo após a abolição da escravidão a convivência entre
criadas e senhoras permaneceu marcada por relações
patriarcais que definia a extrema desigualdade presente na
sociedade, na qual as mulheres, senhoras ou criadas, eram
submetidas ao poder masculino. O trabalho com a
reprodução da vida, tais como cuidar da casa, cozinhar,
lavar louça, lavar e passar roupa, cuidar de crianças, idosos,
doentes, era secularmente femininas. Estas tarefas eram
responsabilidades das mulheres, culturalmente definidas do
ponto de vista social, como donas de casa, mãe e esposa.
As atividades de consumo familiar se constituíam em
serviços pessoais para o qual cada mulher internalizava a
ideologia de servir aos outros, que era vista pela sociedade
como uma “situação natural”, sem remuneração e
condicionada por relações afetivas entre as mulheres e as
pessoas de suas famílias.
Em outras palavras, percebe-se que, mesmo passado
quase um século, são poucas as transformações
observadas nas atividades desenvolvidas pelas mulheres no
universo doméstico, sobretudo, quando se almeja a
repartição do trabalho doméstico entre os dois sexos. As
empregadas domésticas, ainda hoje, constituem “...um dos
segmentos ocupacionais mais expressivos na alocação da
mão-de-obra feminina urbana” (AZERÊDO, 2002, p. 323).
Ademais, deslocadas para o mercado, as pessoas que
realizam tais atividades se deparam com uma ‘herança’
social, cujo estigma de desvalorização permanece até os
dias atuais. Patroas e empregadas participam de uma
relação de identidade mediada pela lógica de servir aos
outros como algo “natural”, embora essa relação de trabalho
tenha dois efeitos contraditórios: de um lado a questão de
classe e de outro, a identidade de gênero, raça/cor que é
estabelecida entre as mulheres, que aponta para uma
diferença estrutural entre mulheres, que se apóia na
profunda desigualdade que caracteriza as relações sócio-
raciais no Brasil. Portanto, coerentemente com a sociedade
de antanho, a legislação protetora do trabalho no Brasil, na
década de 1940, ignorou o serviço doméstico remunerado
no novo código legal.
Segundo Hirata (2004, p. 43), “A questão dos móveis
psico-afetivos da dominação, central neste campo, foi pouco
explorada pelos sociólogos [....] As noções de “servidão
voluntária”, de “consentimento” à dominação, bem como a
convocação do “sentimento amoroso” são heurísticas para
pensar o lugar dos afetos na reprodução da servidão
doméstica”. Pois se deve considerar que as mudanças na
divisão sexual do trabalho profissional não foram
acompanhadas de transformações similares na divisão
sexual do trabalho doméstico e familiar, onde a gestão e a
execução das tarefas continuam a ser de responsabilidade
das mulheres. Portanto, trata-se basicamente de uma
intrincada relação entre as diferenças estruturais e as
desigualdades entre mulheres que compartilham de uma
mesma condição de sexo, isto é, de ser fêmea da espécie
humana, uma categoria ainda considerada como tendo
menos valor (AZERÊDO, 2002); ao contrário dos homens
que são vistos como seres sociais.
A antropóloga Suely Kofes, ao analisar as relações e as
diferenças entre patroas e empregadas explicitou o que
denomina de “ambiguidade estrutural”, que permeia o
discurso sobre as experiências da relação entre empregada
e patroa, constituindo uma armadilha na prática política das
empregadas domésticas e suas conexões com outras
relações de dominação, impedindo-as de romper “aquelas
regras de convivência nos termos da relação familiar,
privada, interpessoal, que marca o exercício dessa mesma
relação” (2001, p. 302).
Nas décadas seguintes algumas mudanças aconteceram
e, em 1956, a Lei nº 2.757/1956 distinguiu o serviço
doméstico nos domicílios daqueles realizados por porteiros,
zeladores, faxineiros e serventes de prédios de
apartamentos residenciais. Estes trabalhadores até então
estavam excluídos dos direitos trabalhistas pela semelhança
com o trabalho doméstico. Além disso, vale chamar atenção
que esta distinção entre ocupações, que incorporou este
grupo de trabalhadores na CLT, favoreceu o trabalho
masculino.
Em entrevista para a Revista Maria Maria/UNIFEM, Melo
(2002) identifica o trabalho das empregadas domésticas
como o pior posto de trabalho, e é denominado assim por
ser tido como o lugar de mulher, como extensão das tarefas
femininas e ainda compreendidas como um “fazer por amor”
que, segundo a autora, foi decorrência de um processo
histórico que estabeleceu ao longo dos últimos 200 anos, a
separação da produção de bens do âmbito familiar,
reforçado pela herança escravocrata como responsável pela
desvalorização do trabalho doméstico. Assim, a autora traz
para a análise a construção histórica destas relações
baseada nas mudanças da economia, por meio do
capitalismo que, por sua vez, fortaleceu as desigualdades
entre os gêneros, configurada na divisão sexual do trabalho.
Poder-se-ia afirmar que ainda existe um “modo de produção
doméstico” fundado sobre a opressão das mulheres, central
na reiteração da dominação feminina, nessa permanência da
divisão sexual do trabalho no espaço e no tempo.
Por sua vez, exercendo atividades no interior dos lares e
famílias brasileiras, as domésticas foram silenciadas e, na
efervescência industrial dos anos 1950, no coração da
sociedade industrial nacional, na cidade de Campinas (SP),
por exemplo, surgiu uma associação profissional de
empregadas domésticas. Em 1961 funda-se na cidade do
Rio de Janeiro a Associação Profissional dos Empregados
Domésticos do Rio de Janeiro.32 Este movimento não foi
interrompido, nem mesmo pelo regime militar implantado no
Brasil em 1964. E as associações foram sendo criadas pelo
país afora, nos Estados do Maranhão, Paraíba,
Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
O que as trabalhadoras domésticas reivindicavam era,
fundamentalmente, a extensão da legislação trabalhista e a
seguridade social para a categoria. Provavelmente estas
organizadas na cidade de Campinas levaram as
reivindicações para o Deputado Federal paulista Francisco
Amaral (Movimento Democrático Brasileiro – MDB/SP) e
este formulou um projeto de lei que se transformou em uma
legislação especial para as domésticas. Assim, em 1972, o
Congresso Nacional aprovou a Lei nº 5.859/1972 que
reconhecia apenas alguns direitos legais a essas
trabalhadoras. Esta lei tornou obrigatória a assinatura da
carteira de trabalho, o direito a férias anuais remuneradas de
20 dias úteis e o direito a previdência social na qualidade de
segurados obrigatórios. No entanto, esta não regulou, por
exemplo, o tamanho da jornada e nem o horário de trabalho,
o que permaneceu a critério – e gosto dos patrões.
Desde 1960 (Lei nº 3.807/1960) as trabalhadoras
domésticas podiam se inscrever na Previdência Social como
segurado facultativo. Lentamente, outros direitos foram
sendo assegurados como a instituição do vale-transporte
com a Lei nº 7.418/1985, cobrindo o deslocamento
residência-trabalho e vice-versa, primeiro de forma
facultativa e, em 1987, como uma obrigação do empregador.
Porém, vale destacar que para tais obrigações do patrão/oa
havia, a priori, a necessidade de assinar a carteira, mas em
geral isso não ocorria e, na prática, as obrigações
mencionadas não eram efetivadas.
Nos anos 1980, apesar do contexto ser de plena afluência
das mulheres ao mercado de trabalho, suas dificuldades de
ascensão já eram demarcadas pela extrema desigualdade
salarial entre os sexos, agravada pela ausência de politicas
públicas como, por exemplo, a existência de creches, ainda
insuficientes até os dias atuais.
Finalmente, em 1988, depois de uma ampla mobilização
nacional de mulheres, foi promulgada uma nova Carta
Constitucional no Brasil que ampliou o reconhecimento de
um conjunto mais amplo de direitos para as empregadas
domésticas. Embora elas tivessem o direito ao salário-
mínimo, acrescentaram outros; irredutibilidade do salário,
salvo negociação; décimo-terceiro salário; repouso semanal
remunerado, preferencialmente aos domingos; gozo de
férias remuneradas, com pelo menos um terço a mais do
que o salário normal; licença à gestante, sem prejuízo do
emprego e do salário normal, com licença de 120 dias;
licença paternidade (cinco dias); aviso prévio proporcional ao
tempo de serviço, sendo no mínimo de 30 dias;
aposentadoria e integração à Previdência Social. Mas, os
direitos escritos para esta ocupação – domésticas - na
realidade ainda podiam ser “enquadradas” numa situação de
“servidão doméstica”. Por que a aprovação deste conjunto
de direitos, mesmo que ainda limitados não significou o seu
cumprimento na vida real. Isto porque esta ainda era uma
legislação discriminatória que não igualava esta categoria
aos demais trabalhadores, mas foi inegável que tinha havido
um avanço. O movimento de mulheres e as trabalhadoras
domésticas comemoraram a vitória porque durante os
trabalhos constituintes havia uma forte oposição à extensão
destes direitos, uma vez que era proposto que tudo ficasse
como rezava a legislação de 1972, suficientemente “boa”
para aquelas trabalhadoras. 33
Outra mudança que ocorreu com a Constituição de 1988
foi permitir a sindicalização das trabalhadoras domésticas e
isso possibilitou a continuidade da luta pela obtenção dos
demais direitos trabalhistas e previdenciários. Estes foram
basicamente obtidos a partir da primeira década dos anos
2000, como o acesso facultativo ao Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço (FGTS) e ao Programa Seguro-
Desemprego (Projeto de Lei da Deputada Benedita da Silva,
Partido dos Trabalhadores – PT/RJ). Contudo, estes novos
direitos ficavam a critério do empregador, como a maioria
dos anteriores.
Em 2006, o governo federal promulgou a Medida
Provisória nº 286 que permitia a dedução no Imposto de
Renda (IR) o valor pago pelo empregador à Previdência
Social do empregado doméstico. Esta medida tinha como
objetivo incentivar a formalização da categoria que
permanecia num patamar inferior a 30% do conjunto dessas
trabalhadoras. 34 Em 2008, o Decreto nº 6.481 proibiu o
serviço doméstico remunerado aos menores de dezoito
anos. Este decreto seguia as recomendações da Convenção
182, de 1999, da Organização Internacional do Trabalho
(OIT), que trata de eliminar as piores formas de trabalho
infantil e que havia sido ratificada pelo Brasil em 2000, mas
que era ignorada pela sociedade brasileira.
Provavelmente a luta das mulheres pela igualdade no
mundo do trabalho e na vida, em todos os países, seja a
explicação para a mudança que aconteceu em 17 de junho
de 2011. Neste dia, a 100º Conferência Internacional do
Trabalho aprovou uma Convenção e Recomendação
histórica sobre trabalho decente para as trabalhadoras
domésticas do mundo. Na maioria dos países até então o
trabalho doméstico era objeto de uma regulação particular
que, de uma maneira geral, conferia às domésticas um
menor reconhecimento dos direitos garantidos. Este estatuto
diferenciado para o serviço doméstico remunerado
significava que, nessas sociedades, estas atividades eram
reconhecidas como o lugar da mulher e, portanto, gozavam
de uma proteção social excepcional.
A nova recomendação internacional promovida pela OIT
repercutiu no Brasil e o movimento sindical das
trabalhadoras domésticas ganhou fôlego para prosseguir na
luta. Para estender todos os direitos trabalhistas e
previdenciários vigentes aos demais trabalhadores e às
trabalhadoras domésticas era necessário revogar o
parágrafo único do art.7º da Constituição Federal que
restringia os direitos sociais da categoria dos trabalhadores
domésticos: “São assegurados à categoria dos
trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos
IV, VI, VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, bem como a sua
integração à previdência social” (Constituição da República
Federativa do Brasil). Portanto, a ampliação dos direitos
exigia a revogação deste parágrafo do art. 7º. E uma
mudança em um texto constitucional implica numa votação
no qual 2/3 dos deputados devem aprovar esta mudança.
Uma tarefa árdua para o movimento social e sindical
nacional que representava cerca de sete milhões de
trabalhadoras e trabalhadores domésticos submetidos a
regime jurídico desigual em relação aos demais
trabalhadores. O processo de ratificação interna de norma
internacional, tal como exigido pela Constituição em vigor,
faria nascer uma norma de caráter infraconstitucional, lei
ordinária, que se apresentaria em conflito com a Lei Maior.
Portanto, em tese, o parágrafo único, do artigo 7º, da
Constituição da República Federativa do Brasil, impedia o
ingresso no direito pátrio das normas previstas na nova
Convenção 189, da OIT.
No entanto, tramitava na Câmara dos Deputados a
Proposta de Emenda Constitucional,35 que propunha a
mencionada revogação deste parágrafo único, do artigo 7º.
Esta Emenda Constitucional teve parecer favorável
aprovado em 05/07/2011 na Comissão de Constituição e
Justiça e de Cidadania da Casa. Criando, assim, a
esperança de viabilidade jurídica da ratificação interna da
nova Convenção sobre o trabalho doméstico decente e a
perspectiva de ampliação dos direitos das empregadas e
empregados domésticos. Embora o Brasil, naquele momento
não havia assinado a Convenção nº 156, da OIT, relativa à
igualdade de oportunidades e de tratamento para as
trabalhadoras e os trabalhadores com responsabilidades
familiares.
Em 2013, diversos projetos tramitavam na Câmara
Federal, cuja finalidade era a extensão do conjunto dos
direitos trabalhistas as trabalhadoras domésticas. Estes
foram apensados e terminaram no desenho geral da
intitulada Emenda Constitucional n.72, que teve como
origem a PEC 66/2012, também conhecida como a PEC das
Domésticas. Esta vitória legislativa foi intensamente
discutida pela sociedade brasileira e finalmente foi
regulamentada em maio de 2015 pelo Senado Federal e
sancionada pela Presidenta Dilma Rousseff em junho de
2015. E assim, setenta e dois anos depois que os
trabalhadores e trabalhadoras brasileiras tiveram acesso a
uma legislação de proteção social, as domésticas
conseguiram a equiparação de todos os direitos dos demais
trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT).

3. AS RELAÇÕES DE DESIGUALDADE E O TRABALHO


DOMÉSTICO REMUNERADO
Como afirmado acima, as relações de desigualdade entre
aquelas/es que realizam as tarefas domésticas, no interior
das famílias, continuam atribuídas, sobretudo, à
responsabilidade das mulheres: donas de casa e/ou suas
empregadas domésticas. Na maioria mulheres pobres e
negras, que as exercem em condições precárias no interior
dos domicílios. Destaca-se que, em sua maioria, a
doméstica recebe plenamente pelas horas trabalhadas,
embora no discurso patronal de um passado recente estas
horas foram “trocadas” pelo alimento e vestimentas, o que
faz com que a “condição” de servidão humana tenha se
realizado de maneira “voluntária” e “gratuita”, reforçando as
condições de assimetria nas quais viveram estas
trabalhadoras (HIRATA, 2004).
Para as mulheres de modo geral, mesmo aquelas que
não são empregadas domésticas, mas que se nominam
como “do lar” ou “dona de casa”, “[...] a realização desse
trabalho gratuito ao ‘longo da vida inteira’ [...], fora do
contexto coercitivo (escravidão e servidão), coloca um
problema ao sociólogo, notadamente quando, segundo
Hirata (2004, p. 44):
1) admite-se que se trata efetivamente de trabalho (pode-
se dizer que não se trata de trabalho, mas de serviços
prestados em troca de compensações afetivas, materiais,
simbólicas ou que se trata do resultado de negociações no
interior do casal, o que pressupõe necessariamente
interações e reciprocidades etc.);
2) postula-se que se trata de uma “expressão” de amor
(pode-se dizer que não se trata de sentimento amoroso mas
de uma lógica interiorizada, de normas e papéis socialmente
impostos, de alienação etc.; ou, do ponto de vista do sujeito,
de escolhas estratégicas etc.); aqui há que se destacar a
dimensão dos afetos, “[...] essencial no encargo assumido,
por parte das mulheres, do trabalho doméstico [...]” (HIRATA,
2004).
Por sua vez, as empregadas domésticas além de
exercerem tarefas e atividades singulares, “oferecerem” uma
“disponibilidade permanente” de prestação de serviços, pois,
(HIRATA, 2004), há que se reconhecer que existe também a
afetividade nas relações familiares, sobretudo destinada aos
filhos menores; ou como afirma Segato “... a mãe que de
fato conta – é a babá” [...], uma vez que este “desempenho-
personagem” se constitui uma prática de longa duração
histórica [...] que são maternidades transferidas e presentes
na vida social desde os primórdios coloniais” (2007, p. 146).
O premiado filme nacional da cineasta Anna Muylaet, “Que
horas Ela volta” de 2015, traça um duro perfil da
ambiguidade destas relações que transitam entre afetos e
obrigações de trabalho, como domésticas, amas-de-leite ou
babás. Atualmente, tais categorias existem, muitas das quais
dissimuladas, ao migraram para a função-tarefa de
cuidadoras, diaristas, garis, faxineiras, entre outras
ocupações no interior dos lares.36
Desse modo, o mercado de trabalho brasileiro permanece
demarcado por significativas e persistentes desigualdades
de gênero e raça e essa dimensão/situação deve ser
priorizada nos processos de formulação, implementação e
avaliação de políticas públicas em geral, e, em particular,
das políticas de emprego, inclusão social e redução da
pobreza.

4. A EVOLUÇÃO DO EMPREGO DOMÉSTICO NO BRASIL


E OS IMPACTOS DA “PEC DAS DOMÉSTICAS” NA
FORMALIZAÇÃO DA CATEGORIA
Na bibliografia sobre o mercado de trabalho brasileiro, a
década de 1970 é considerada um marco para a inserção
das mulheres no mercado de trabalho (BRUSCHINI, 1994).
Argumenta-se que a deterioração dos salários reais dos
trabalhadores no período contribuiu para aumentar a
participação das mulheres no mercado de trabalho, como
uma forma de complementação da renda familiar. Contudo,
não se pode negar que, do ponto de vista econômico, a
década de 1970 teve seu período mais pujante e a dinâmica
do mercado de trabalho atendeu esta fase de expansão da
economia, recrutando potenciais trabalhadores, o que
favoreceu a mão-de-obra feminina.
A Tabela 1 mostra que o nível de ocupação das mulheres
de 10 anos ou mais de idade teve a maior variação na
década de 1980. Houve um aumento de 40% em relação ao
observado no Censo de 1970. No entanto, a desigualdade
entre homens e mulheres nas taxas de inserção reflete
aspectos da divisão sexual do trabalho, considerando que,
em 2010, o percentual de mulheres ocupadas na população
correspondia a 69% do percentual observado para os
homens. Alguns pesquisadores defendem a posição de que
o percentual de mulheres no mercado de trabalho já atingiu
seu máximo e há pouca margem para aumentar. Os
argumentos destes se baseiam no fato de que não houve
uma divisão sexual do trabalho nos lares. As mulheres
ocuparam o espaço público, mas os homens não migraram
para o privado. Com efeito, a responsabilidade dos afazeres
domésticos e cuidados continuam a cargo das mulheres,
com uma jornada média de 21 horas semanais, sendo que
para as mulheres rurais, a jornada média ultrapassa 26
horas semanais, fazendo com que a inserção feminina no
mercado de trabalho esteja condicionada a uma conciliação
entre trabalho e família. Assim como ressalta Hirata (2002) e
Kergoat (2009), a divisão sexual do trabalho é uma
decorrência das relações sociais de sexo, construída e
determinada historicamente, cujo espaço público é domínio
masculino, cabendo às mulheres o espaço privado, de
reprodução social. Essa articulação entre trabalho e família,
na maioria das vezes, faz com que as mulheres tenham uma
jornada no mercado de trabalho menor, em trabalhos mais
precários (pouco formalizados e de baixa remuneração).

Tabela 1
O serviço doméstico no Brasil, desde o final do século
XIX, quando se realizou o primeiro recenseamento, constitui
o principal segmento ocupacional das mulheres brasileiras.
Em 1872, do total de mulheres com profissão declarada, o
serviço doméstico empregava cerca de um terço delas.
Passado mais de um século, os dados do Censo
Demográfico 2010 indicaram que o serviço doméstico
representa ainda um importante segmento do emprego
feminino com 5,5 milhões de ocupadas, correspondendo a
cerca de 20% da população ocupada feminina (SOARES et
all, 2014). Embora o trabalho doméstico no Brasil tenha se
reduzido, argumenta-se que este dificilmente tenderá a
desaparecer, visto que a sociedade brasileira ainda conserva
uma característica patriarcal e não houve uma redefinição
acerca dos papeis de gênero.
Além dos papeis de gênero desempenhados no interior da
família, outro aspecto importante que tem influenciado a
inserção das mulheres no mercado de trabalho é a
escolaridade. Historicamente, as principais funções sociais
das mulheres eram o casamento, a maternidade e os
cuidados (da casa e da família) fazendo com que a maior
parte delas ficasse à margem da educação formal e do
trabalho remunerado. No Brasil, até a década de 1980 as
mulheres eram maioria entre os analfabetos. Contudo, a
escolaridade feminina avançou progressivamente, visto que,
em 1960, na população com ensino superior as mulheres
eram apenas 14,3%; em 1991, elas superaram os homens
com este nível de ensino (51%) e, em 2010, as mulheres
correspondiam a quase 59% daqueles com nível superior
concluído.
Com o avanço da escolaridade, a entrada das mulheres -
principalmente as de classe média - no mercado de trabalho
a partir da década de 1970 somente se tornou possível
porque havia também um mercado [expressivo] não
regulamentado de trabalhadoras pouco escolarizadas, em
grande parte mulheres negras e com baixa qualificação
dispostas a trabalharem por um salário sem garantias
sociais, cujas atividades eram essencialmente da “natureza”
feminina.
Dessa maneira, a inserção das mulheres no mercado de
trabalho ocorreu de forma segmentada, de um lado por um
grupo de mulheres pouco escolarizadas em ocupações
precárias e informais como o trabalho doméstico; e, de
outro, por mulheres mais escolarizadas, sobretudo, oriundas
de segmentos médios, em trabalhos de maior qualidade,
porém concentradas em áreas que remetem a “papéis”
socialmente atribuídos as mulheres, tais como: saúde,
educação e serviços sociais.
Soares et al. (2014) ressaltam que se comparada a
inserção ocupacional feminina desde o primeiro
recenseamento, em 1872, até o mais recente, realizado em
2010, pode-se constatar que o mercado de trabalho
brasileiro ainda conserva características de mais de um
século atrás. O serviço doméstico ainda se constitui um
importante segmento de emprego feminino. E com o avanço
da escolaridade, embora se evidencie uma maior inserção
feminina em áreas anteriormente dominadas pelos homens,
elas ainda estão concentradas naquelas que remetem e
reforçam os papéis de gênero. As autoras chamam atenção
também que as relações de desigualdade ainda são
proeminentes e permanecem enraizadas no tecido social.
Elas citam a área da saúde como o espaço onde as
mulheres tiveram grande avanço; contudo, a inserção se deu
de forma diferenciada de acordo com a ‘hierarquia’
sociocupacional, visto que na categoria de chefes de clínicas
médicas, por exemplo, o número de mulheres é bem
reduzido. Com efeito, as autoras concluem que o padrão
educacional segundo as áreas de concentração se reflete no
mercado de trabalho, o que nos faz presumir que sem uma
transformação no campo educacional, fica difícil romper com
um modelo estrutural e desigual no mercado de trabalho.
No que se refere à qualidade dos trabalhos, embora nos
últimos dez anos o mercado de trabalho tenha registrado um
crescimento da taxa de formalização ainda há segmentos
cujo percentual de trabalhadores que contribuem para a
previdência é relativamente baixo. A maioria do emprego
doméstico é informal, isto é, de 6,4 milhões de
trabalhadores, quase 70% não tem carteira de trabalho
assinada. Esse número representa mais de 4 milhões de
empregados domésticos que foram excluídos da reforma
trabalhista desde a implantação da CLT e somente em
201537 tiveram todos os direitos trabalhistas equiparados aos
dos demais trabalhadores formais. Entre os empregados
domésticos sem carteira que contribuem individualmente
para a Previdência Social o percentual é de apenas 14%, o
mais baixo entre as demais categorias ocupacionais
(SÍNTESE..., 2015).
O Gráfico 1 mostra ainda a evolução da contribuição
previdenciária individual dos empregados domésticos por
cor/raça e verifica-se que há uma diferença significativa na
taxa de formalização entre brancos e negros, cuja relação de
desigualdade se intensificou com o crescimento da
formalidade. Em 2004, o percentual de empregados
domésticos sem carteira que contribuíam para a previdência
era 3% e, em 2014, esse percentual passou para 11%. O
crescimento da formalidade neste grupo ocorreu
principalmente a partir de 2011, cuja variação nos últimos
quatro anos foi de 72% entre os brancos e de 67% entre os
negros. Somente entre 2013 e 2014 a variação foi de quase
18% e mostra esse movimento em busca de garantias
sociais, particularmente entre aqueles que não tem carteira
de trabalho assinada.
No trabalho doméstico, evidencia-se que 92% são
empregadas domésticas e a taxa de formalização delas, em
2014, era de 40% somando, inclusive, aquelas que
contribuíam individualmente. Embora este percentual seja
baixo, há dez anos atrás o percentual era ainda menor
(27,8%). Na perspectiva de evidenciar algum efeito da
mudança da legislação na taxa de formalização, os dados
indicaram uma redução de número de domésticas de 1,9
milhão para 1,8 milhão entre 2013 e 2014. A taxa de
contribuição previdenciária, por sua vez, permaneceu a
mesma. A maior variação da taxa de formalização ocorreu
entre 2012 e 2013, com um aumento de 3,4 pontos
percentuais.

Gráfico 1

O serviço doméstico se distingue também das demais


categorias ocupacionais por apresentar dois tipos de
trabalhadoras segundo o tipo de jornada com distribuição
muito próxima: as “diaristas” e as “mensalistas”. Denominou-
se diaristas aquelas com jornada inferior a 40 horas
semanais e representam quase 47% do total de empregadas
domésticas. As mensalistas são aquelas com jornada igual
ou maior a 40 horas semanais, cuja distribuição representa
53% da categoria. A taxa de formalização entre esses dois
grupos é bastante distinta, visto que quase 90% das
diaristas estão na categoria de empregadas doméstica sem
carteira, enquanto entre as mensalistas este percentual é de
50%. Com efeito, uma política pública que tenha como
objetivo aumentar a taxa de formalização ou contribuição
previdenciária desta categoria deve atentar para este fato.
Vale ressaltar que a recente legislação brasileira de
regulamentação do trabalho doméstico considera a
obrigatoriedade da assinatura da carteira de trabalho apenas
para aqueles cuja relação de trabalho se dá numa
freqüência superior a duas vezes por semana. Logo, aquelas
empregadas domésticas com vínculo em mais de um
domicílio na maioria das vezes ficam fora do escopo desta
legislação. O incentivo à formalização e à proteção social,
neste caso, carece de outros mecanismos.
A taxa de contribuição previdenciária das trabalhadoras
com jornada de 40 horas ou superior não somente é mais
elevada como o dobro daquelas com jornada inferior a 40
horas na semana (56,8%). Nos últimos dez anos houve um
aumento significativo na proporção de contribuintes entre as
mensalistas (19 p.p.); no entanto, em termos relativos, a
maior variação foi observada para as empregadas diaristas
(73,0%), cujo marco temporal ocorreu principalmente a partir
de 2009. Isto mostra que o crescimento da contribuição
individual está relacionado com outros fatores, como a
garantia da aposentadoria e outros benefícios da previdência
social por parte dos contribuintes.
De acordo com o Gráfico 2 constata-se que apenas uma
em cada cinco diaristas negras são formalizadas, a menor
taxa observada. As desigualdades entre as categorias de
domésticas e de cor ou raça são expressivas visto que as
mensalistas de cor branca têm uma taxa de formalização
superior 3 vezes a taxa das diaristas negras. Com efeito, as
políticas de equidade de gênero no mundo do trabalho, no
caso brasileiro, precisam levar em conta as características
de inserção da população segundo a cor ou raça. Tem-se
que 71% das empregadas domésticas negras não têm
carteira de trabalho assinada e destas 63% são diaristas.
Logo, não necessariamente as mudanças na legislação
impactam diretamente este grupo de trabalhadoras.

Gráfico 2

Dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra


de Domicílios Contínua mostram que o emprego doméstico
apresentou uma ligeira queda entre 2012 e 2014, voltando a
crescer a partir de 2015. Considerando a conjuntura
econômica do período, outra característica importante do
emprego doméstico, exercido majoritariamente por
mulheres, é o seu papel de ser uma ocupação “volátil”, visto
que nos períodos de crescimento da economia e da renda
familiar, as pessoas buscam outra forma de emprego que
não seja o emprego doméstico, pelo baixo salário e prestígio
social. Nos períodos de desaceleração econômica e
crescimento do desemprego, o emprego doméstico passa a
ser uma opção, o que justificaria o aumento observado no
número de empregados domésticos em 2015, apesar da
estabilidade dos salários (Tabela 2). Entretanto, um aspecto
importante desta análise da PNADC/IBGE (Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicilio Continua) é a
possibilidade de evidenciar algum efeito da legislação no
emprego doméstico formalizado.
Apesar das limitações da análise de impacto, o Gráfico 3
mostra o comportamento do emprego doméstico com e sem
carteira de trabalho assinada logo após a regulamentação
da Lei Complementar n.150, de 01.06.2015, que garante
todos os direitos trabalhistas aos empregados domésticos
equiparando-os aos demais trabalhadores. O que se
observa é que entre o terceiro e quarto trimestre de 2015, o
emprego doméstico teve um crescimento de 10% (9,3% se
considerarmos somente as empregadas domésticas). Há
necessidade de se avaliar uma série maior para confirmar se
este crescimento consiste numa maior taxa de formalização
para as empregadas domésticas ou se o serviço doméstico
tem se apresentado como uma alternativa para as mulheres,
visto que o mercado de trabalho não tem ofertado opções
melhores, assim como há outros membros da família
desempregados, comprometendo a renda familiar.

Tabela 2

Gráfico 3
5. IGUALDADE NAS RELAÇÕES DE GÊNERO: UM
PROCESSO EM CONSTRUÇÃO?
Historicamente, a luta social e política das mulheres têm
sido pela busca de maior igualdade e autonomia econômica
e de seus rendimentos; no entanto, esta busca está
diretamente relacionada com a distribuição mais equitativa
na distribuição dos afazeres domésticos e de cuidado.
Se considerado os dados da distribuição de mulheres de
16 anos ou mais ocupadas no trabalho doméstico por
raça/cor, nas grandes regiões brasileiras, em 2012, ainda
observa-se que as mulheres negras, em mais de 50%
desempenham o trabalho doméstico, a saber: Região Norte
(81,7%); Nordeste (79,2%); Centro-Oeste (71,0%); Sudeste
(60,0%). Somente a Região Sul tem um percentual inferior a
50% de mulheres desempenhando o trabalho doméstico
(34,3%)38. Levantamento realizado pelo Ministério do
Trabalho, em 2008, informava que nas regiões Norte e
Nordeste, somente 26,4% das trabalhadoras domésticas
tinha, em média, a carteira de trabalho assinada, sendo que
entre as mulheres negras, era de 23,9%, enquanto para as
mulheres brancas o índice aumentava para 30,2%.39 Por sua
vez as informações da PNAD 2014 mostram que a dupla
jornada de trabalho feminina (trabalho pago e não pago)
passou a ter mais cinco horas diárias (O Globo, Economia,
21/2/2016, p. 25).
Ademais, do ponto de vista dos direitos constitucionais e
trabalhistas que passaram a ser similares a ambos os sexos,
a partir da PEC das domésticas (2013), no entanto, a
persistência de desigualdades de gênero e raça/cor continua
a se expressar claramente tanto nas formas de inserção
destas mulheres no mercado de trabalho, como nos salários
diferenciados, nas condições de desempenho do trabalho,
no uso do tempo, inclusive nas horas noturnas dedicadas ao
trabalho familiar, evidenciado por pesquisas recentes. 40
Portanto, a análise acurada, precisa e sistemática desses
indicadores e de sua evolução torna-se uma condição para a
elaboração de políticas e estratégias voltadas para alteração
desse quadro.
Por outro lado, historicamente, identifica-se uma maior
apropriação pelos homens do poder político, do poder de
escolha e de decisão sobre sua vida afetivo-sexual e da
visibilidade social no exercício das atividades profissionais.
Este é um processo que resulta em diferentes formas
opressivas, o qual submeteu as mulheres a relações de
dominação, violência e violação dos seus direitos no
desempenho profissional nos espaços públicos. Poder e
visibilidade são construtos históricos, determinados na e
pelas relações sociais. Em cada conjuntura sócio-histórica é
preciso, portanto, analisar os elementos desta determinação
do ponto de vista econômico, político e cultural que incidem
na vida cotidiana das mulheres trabalhadoras domésticas,
sobretudo, pois, estruturam valores, modos de pensar, de
ser e agir. Ou seja, trata-se não apenas de reconhecer quem
tem poder e visibilidade, mas em quais condições materiais
foram alicerçados e são efetivados, e que servem para
ancorar as desigualdades e exclusões as quais estão
expostas as trabalhadoras domésticas.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As desigualdades de gênero e raça, historicamente, se
constituíram (ainda se constituem) eixos estruturantes da
organização das relações de trabalho no Brasil que, por sua
vez, estão enraizadas na permanência e reprodução das
situações da pobreza feminina, assim como das situações
de exclusão social. Por isso, se coloca a necessidade
urgente de enfrentar tais desigualdades tratando de mudar
as características estruturais da sociedade brasileira, que
segundo Abramo (2006, p. 2) a “...transformação é
imprescindível para a superação dos déficits de trabalho
decente atualmente existentes, assim como para o efetivo
cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio”.
Para tanto, seria necessária a implementação de politicas
públicas a esta categoria de trabalhadoras domésticas, que
considerasse desde a capacitação das mesmas, pois seu
índice de escolaridade não ultrapassa quatro anos de
escolaridade, assim como a observância de proteção à
maternidade, a saúde, sem contar que um número
significativo delas ainda sofre alguma forma de violência no
desempenho de suas atividades.

REFERÊNCIAS

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Comba Marques Porto, advogada, juíza aposentada da Vara do trabalho da
Capital do Rio de Janeiro/Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, concedida
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XIX Encontro Nacional de Estudos Populacionais, Associação Brasileira de
Estudos Populacionais (ABEP), São Pedro/SP – Brasil, de 24 a 28 de novembro
de 2014.

28 THE PATH OF THE CONSTRUCTION OF EQUALITY IN GENDER RELATIONS IN


BRAZIL: DOMESTIC EMPLOYEES
29 Para os trabalhadores rurais a justificativa relacionava-se a que as relações de trabalho
no campo não seguiam as mesmas regras das estabelecidas nas atividades urbanas:
indústrias, comércio, transportes.
30 Foram também excluídos os funcionários públicos e os servidores das autarquias
paraestatais, estes por que estavam sujeitos a um regime próprio de proteção social.
31 A CLT foi promulgada em 1º de maio de 1943, no governo de Getúlio Vargas, em plena
ditadura do Estado Novo.
32 As empregadas domésticas desde os anos 1930 tinham tentado criar associações
profissionais, a primeira foi na cidade de Santos (SP). A associação fundada em Campinas
teve como uma de suas lideranças a ativista da associação santista dos anos 1930 –
Laudelina de Campos Melo. Sobre a associação carioca ver Oliveira, Conceição & Melo
(1989).
33 Segundo entrevista da advogada Comba Marques Porto, responsável pela articulação
do Conselho Nacional do Direito da Mulher do Ministério da Justiça com o Congresso
Nacional durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, a Hildete Pereira de
Melo em maio de 2013.
34 Ver Melo; Sabatto (2011).
35 PEC nº 478/2010, de autoria do Deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT).
36 Vale lembrar que ficou definido como ‘afazeres domésticos’ o conjunto das seguintes
atividades, segundo a PNAD (1992): arrumar ou limpar toda ou parte da moradia; cozinhar
ou preparar alimentos, passar roupa, lavar louça ou roupa, utilizando ou não aparelhos
domésticos para executar as tarefas aos moradores; cuidar de crianças, doentes ou
dependentes.
37 Após a aprovação da PEC das domésticas em 2013, os direitos adquiridos pelo
empregado doméstico a partir da Lei Complementar n0 150/2015 foram: adicional noturno, obrigatoriedade do
recolhimento do FGTS por parte do empregador, seguro-desemprego, salário-família, auxílio-creche e pré-escola, seguro contra acidentes de trabalho e indenização
em caso de despedida sem justa causa.

38 Informações disponíveis no ‘Relatório Anual Socioeconômico da Mulher-RASEAM’.


Secretaria de Politica para as Mulheres, Brasília, março, 2014 (p.18).
39 Informação publicada no Jornal Correio Braziliense, 10/09/2008 (p.11). Manchete:
“Retratos Brasileiros”. Média de salário de mulheres negras chega a ser menor do que a
metade de um salário mínimo. Elas recebem quase 60% a menos do que os homens. Até
no serviço publico são constatadas distorções por gênero.
40 Ver RASEAM/SPM, 2014 e BRUSCHINI, Cristina. Trabalho e Família: famílias urbanas
de baixa renda e políticas de apoio às trabalhadoras. São Paulo, FCC/DPE, 2008.
V
O TRABALHO FEMININO NA ERA
GLOBALIZADA: RITMO INTENSIFICADO E
PRECARIZAÇÃO41

Patrícia Tuma Martins Bertolin


Doutora em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo; com Pós-
Doutorado pela Superintendência de Educação e Pesquisa da Fundação Carlos
Chagas; Professora do Curso de Graduação em Direito e do Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Contato: p.bertolin@mackenzie.br.

Marilu Freitas
Doutoranda, Mestre e Especialista em Direito do Trabalho e da Seguridade Social
pela Universidade de São Paulo; Advogada. Contato:
freitascoutinhoadv@hotmail.com.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar os impactos da globalização da


economia sobre o trabalho feminino no Brasil. No país, a partir dos anos de 1970 e de
modo mais acentuado a partir da década de 1990, as mulheres viram agravadas as
condições em que costuma se dar a sua inserção no mercado de trabalho, preenchendo
ocupações a tempo parcial e/ou mal remuneradas, constituindo a maior parte dos
trabalhadores na informalidade e em outras formas precárias de trabalho. O período foi
marcado ainda pela intensificação do ritmo do trabalho, prestado muitas vezes para
empresas terceirizadas. O trabalho nessas condições constitui forte risco à saúde física e
mental dessas trabalhadoras, sobretudo em face de serem as mulheres as responsáveis
pela maior parte das atividades de cuidado com os filhos e a família, desenvolvidas no
espaço doméstico, como uma segunda jornada. Assim, as transformações acarretadas
pela globalização da economia às mulheres de baixa qualificação não romperam com a
divisão do trabalho, mas apenas a reconfiguraram.

Palavras-chave: trabalho da mulher, mercado de trabalho, terceirização, doença


ocupacional.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A globalização da economia gerou a interdependência
dos mercados e importantes transformações nos métodos e
condições de trabalho, marcadas pela precarização e
vulnerabilidade. Nesse contexto, a empregabilidade feminina
se ampliou no mundo todo, em face de as mulheres terem
estado historicamente sujeitas às condições de opressão,
exploração e subalternidade, dentro do que se convencionou
designar por divisão sexual do trabalho, um sistema
segregacionista e hierarquizante das atividades
desenvolvidas socialmente.
Consideraremos precarizados os trabalhos mal
remunerados, sem perspectiva de carreira e destituídos da
totalidade ou de parte dos direitos sociais dos trabalhadores
(HIRATA, 2000, p. 44), assegurados pela Constituição de
1988 e pela legislação infraconstitucional.
Neste artigo, analisaremos os reflexos da globalização
sobre o trabalho humano e, especificamente, sobre a
parcela feminina da mão de obra, e verificaremos que a
globalização, fenômeno de variados efeitos (econômicos,
sociais, políticos, culturais), longe de romper com a lógica da
divisão sexual do trabalho, apenas a atualizou, preparando-a
para o século XXI.

2. A GLOBALIZAÇÃO DA ECONOMIA E SEUS REFLEXOS


SOBRE O TRABALHO
Nas últimas décadas do século XX ocorreram
transformações substantivas no modo de produção e no
comércio entre os países: as revoluções tecnológica e da
informação e a intensificação, como jamais visto, das trocas
internacionais.
E um dos aspectos da vida social que mais sofreram os
impactos dessas transformações foi o trabalho, pois ele
ainda é um elemento central das sociedades humanas.
Segundo Castells (2006, p. 265):
a transformação tecnológica e administrativa do trabalho e das relações
produtivas dentro e em torno da empresa emergente em rede é o
principal instrumento por meio do qual o paradigma informacional e o
processo de globalização afetam a sociedade em geral.

A tecnologia, que trouxe inovações absolutamente


fascinantes, encurtou distâncias e promoveu possibilidades
de comunicação nunca antes imaginadas, também produziu
consequências nefastas nas mais diversas esferas: na
ordem internacional, os investimentos de capital e os
recursos científicos acentuaram a assimétrica polarização
Norte-Sul (SANTOS, 1995, p. 291); no interior dos países, as
desigualdades regionais foram agravadas e, no mundo do
trabalho, modernizaram-se os processos produtivos,
passando as indústrias de ponta a adotar o toyotismo, em
substituição ao método fordista-taylorista, caracterizado pela
produção em massa em linha de montagem.42
Os reflexos dessas transformações sobre os
trabalhadores e as trabalhadoras foram imediatos. Segundo
Ricardo Antunes e Giovanni Alves (2004):

Com a retração do binômio taylorismo/fordismo, vem ocorrendo uma


redução do proletariado industrial, fabril, tradicional, manual, estável e
especializado, herdeiro da era da indústria verticalizada de tipo taylorista
e fordista. Esse proletariado vem diminuindo com a reestruturação
produtiva do capital, dando lugar a formas mais desregulamentadas de
trabalho, reduzindo fortemente o conjunto de trabalhadores estáveis que
se estruturavam por meio de empregos formais.

Os salários foram achatados, impôs-se um ritmo frenético


no ambiente de trabalho e verificou-se rápido crescimento do
trabalho contingencial de meio período, do subemprego e do
desemprego tecnológico. Grande quantidade de
trabalhadores foi definitivamente excluída do mercado formal
de trabalho, tendo em vista a sua desqualificação para
operar os novos e sofisticados equipamentos, enquanto a
ideologia neoliberal contribuía para o enfraquecimento do
Estado e para o desmanche das políticas sociais. A
concorrência, que gerou grande reestruturação dos
mercados, tornou-se essencial à competitividade das
empresas, que cada vez mais precisaram inovar com
produtos de qualidade a preços baixos.
As inovações tecnológicas e o “enxugamento” das
empresas resultaram em desemprego, agravado pelo fato de
que as multinacionais, então reinventadas, migraram suas
plantas produtivas para países de terceiro mundo, não mais
por serem os celeiros do mundo (como o Brasil e Argentina
dos anos de 1970), mas porque neles produziriam pagando
baixíssimos salários, o que veio a acarretar “uma nova
divisão internacional do trabalho” (ANTUNES, 2004).
Ricardo Antunes e Giovanni Alves (2004, p. 337), em
acurada análise, destacam entre os efeitos da globalização
sobre o trabalho, o consequente aumento do proletariado
fabril e de serviços com diversas formas de trabalho
precarizado (trabalhadores terceirizados e subcontratados,
entre outros) e o significativo aumento do trabalho feminino,
que tem sido absorvido pelo capital, preferencialmente nas
modalidades de trabalho part-time43, precarizado e
desregulamentado.
Buscaremos compreender melhor os impactos da
globalização econômica e da revolução tecnológica sobre o
trabalho da mulher.

3. UMA NOVA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO?


Diversos autores salientam o expressivo aumento da
presença feminina no mercado de trabalho durante as
últimas décadas do século XX44. Alguns chegam mesmo a se
referir a uma “feminização do trabalho”, fenômeno mundial e
de repercussões particularmente importantes com relação à
América Latina, tendo em vista o imenso contingente de
mulheres que ingressaram no mercado de trabalho - de
forma mais evidente a partir da década de 1990 (ANTUNES,
2008).
Este aumento da presença feminina no mercado pode ser
atribuído ao fato de que as mulheres costumam concordar
em se submeter a trabalhos precários e/ou a tempo parcial,
seja devido à imposição das empresas de experiência
anterior, seja em razão dos períodos em que são forçadas a
permanecer afastadas em virtude das exigências da
maternidade, ou ainda devido à conciliação com as tarefas
domésticas (“múltiplas jornadas”), já que os cuidados com a
casa e os filhos, em geral, são por elas assumidos
(BERTOLIN; CARVALHO, 2010, p. 193).
Segundo Maria Rosa Lombardi (2010, p. 33-56), “essas
características de maior fragilidade do trabalho feminino
costumam recrudescer em momentos de transformação
social e econômica, sejam eles estruturais ou conjunturais
[...]”. Assim, as mulheres são oneradas, em ambas as
situações, com “oportunidades” de trabalho precário, que,
em face de uma série de fatores (como a disponibilidade
para trabalhar apenas meio período ou os às vezes longos
afastamentos do mercado de trabalho para atender
necessidades familiares), muitas delas não hesitam em
aceitar.
A intensa competição internacional e o desemprego
geram uma tendência à redução de empregos estáveis e à
precariedade, configurando uma situação de “crise do
paradigma do emprego estável e protegido” (HIRATA, 2002,
p. 147), aprofundando as desigualdades internas do sistema.
Isso levou Laís Abramo a constatar que o processo de
precarização está marcado por uma variável de gênero, e a
associá-lo à reestruturação e à abertura comercial
intensificadas nos anos de 1990 (ABRAMO, 1998).
Helena Hirata, ao tratar da flexibilidade, palavra
constantemente empregada – nem sempre com um sentido
muito cristalino – nos contextos de reestruturação dos
mercados, destaca a conotação ideológica e positiva do
termo, que significa adaptabilidade, maleabilidade. Desse
modo, “a degradação importante das condições de trabalho,
de salários e da proteção social seria, assim, disfarçada por
um termo positivo” (HIRATA; SEGNINI, 2007, p. 91).
A rigor, flexibilidade, seja em um contexto de organização
do trabalho, seja em outro de mercado de trabalho e
emprego, trata-se de sofisma a enevoar a relação siamesa
descrita nas lições de Hirata por “flexibilidade e precariedade
andam frequentemente juntas” (HIRATA; SEGNINI, 2007, p.
91).
A flexibilização de direitos se dá em um contexto de
Estado mínimo, apto a obstaculizar que direitos trabalhistas
sejam mantidos. Os sindicatos, enfraquecidos, tendem a
restringir cláusulas que tratam dos direitos “da maternidade”,
ignorando demandas isonômicas de gênero. Isto decorre,
pelo menos em parte, da fraca presença de mulheres em
espaços estratégicos no mundo do trabalho, como nas
diretorias dos sindicatos (BERTOLIN; KAMADA, 2013, on
line).
A desde sempre controvertida globalização da economia
produz reflexos avassaladores no mundo do trabalho,
principalmente sobre essa importante parcela da mão de
obra, a quem historicamente tem cabido uma grande parte
de trabalho não remunerado, que é realizado em nome do
amor à família.
É neste contexto que as mulheres viram multiplicarem-se
seus locais de prestação do trabalho, principalmente nos
anos de 1990, com a intensificação do trabalho em
domicílio45 ou do teletrabalho46, ou do trabalho para
empresas terceiras, aumentando a polêmica prática da
terceirização. Vale ressaltar a lição de Helena Hirata (2007,
p. 93): “Em todos os casos, a divisão sexual do trabalho é
precondição para a realização da flexibilidade do trabalho”.

4. DELINEAMENTOS DO TRABALHO FEMININO NA ERA


GLOBALIZADA
Não são poucos os trabalhos que apontam para uma
dupla caracterização da inserção feminina no mercado de
trabalho47, haja vista que há trabalhadoras – menos
numerosas, é verdade – com mais escolaridade que a
masculina, altamente qualificadas e, em alguns casos,
chegando a ocupar cargos de comando, antes exclusivos
dos homens. Em cotejo, em sua maioria, as trabalhadoras
têm média instrução, acumulam as tarefas domésticas ao
trabalho remunerado e sofrem mais diretamente a incidência
dos ajustes estruturais do Estado sobre áreas como saúde e
educação, ditados pelas políticas neoliberais.
Segundo Maria Rosa Lombardi (2010, p. 43):

A focalização das políticas de saúde, de educação e assistência social


teria resultado, assim, em maior carga de trabalho para as mulheres. No
nível da saúde, elas passaram a cuidar em casa dos idosos e doentes
que não são mais hospitalizados, pois esses atendimentos escapam da
atenção primária, prioridade do Estado.

Ao passo que a globalização da economia gerou o


enfraquecimento da produção industrial de países como o
Brasil, decorrente da competição dos produtos dos países
asiáticos – tema que, por si só, demandaria outro artigo –
acarretou o crescimento do setor de serviços, em que a
maior parte da mão de obra feminina se encontra alocada.
Contudo, como observa Liliana Segnini (1994, p. 43), as
empresas têm efetuado, em ambos os setores, permanentes
ajustes ao sabor das flutuações da demanda, em razão das
quais varia o número de trabalhadores por elas utilizado.
Essa estratégia, que exige constantes admissões e
dispensas de trabalhadores, abrange, entre outros
mecanismos de gestão da mão de obra, principalmente a
terceirização e o trabalho temporário.
A precarização seria a razão da visível preferência pela
mão de obra feminina, nesse contexto. Segundo Liliana
Segnini (1994, p. 60):
[...] o espaço privado, as tarefas domésticas deixam de ser limitadores
para a mulher nesse contexto de trabalho; ao contrário, passam a ser
elemento qualificador, face à possibilidade de ter adquirido socialmente
habilidades requeridas pelo trabalho flexível.

A autora, em estudo que envolveu uma pesquisa empírica


voltada à inserção feminina na automação bancária no
Brasil, constatou que os homens admitidos no setor
mostravam frustração, diferentemente das mulheres, mais
habituadas a tarefas que demandam pouca qualificação, são
repetitivas e têm baixa possibilidade de ascensão
profissional.
Verificamos o mesmo no âmbito da indústria têxtil
paulista, mais especificamente, na fiação e na tecelagem,
em anos mais recentes48. Constatamos que o piso salarial na
unidade produtiva de uma empresa multinacional, que está
entre as líderes do setor, foi reduzido consideravelmente, e
as condições de trabalho, de modo geral, precarizadas.
Naquela empresa, a maioria dos trabalhadores do sexo
masculino pediu demissão, mas as mulheres permaneceram
na empresa, mesmo em condições tão adversas. Sempre
que perguntadas sobre o motivo dessa adaptação, as
trabalhadoras entrevistadas explicaram que a empresa
pesquisada era a maior do município e, em razão das
demandas domésticas (cuidados com a casa e a família),
elas não poderiam buscar trabalho em outra localidade,
como boa parte dos homens fazia.
Assim, o componente da aceitação das péssimas
condições de trabalho tem estado de fato presente na mão
de obra feminina de baixa qualificação. Basta lembrar que
no final da década de 1990, um período-chave de
desregulamentação e flexibilização de normas trabalhistas,
36% da força de trabalho feminina brasileira se encontrava
alocada em nichos precários do mercado de trabalho, contra
10% da masculina (HIRATA, 2003).
5. TERCEIRIZAÇÃO: PALAVRA FEMININA
A terceirização configura-se como “fenômeno pelo qual se
dissocia a relação econômica de trabalho da relação
justrabalhista que lhe seria correspondente” (DELGADO,
2009, p. 407). Caracteriza-se pela interposição de terceiro
na relação jurídica, embora esta não se desnature enquanto
bilateral, porquanto, na terceirização está mantido, de um
lado, o trabalhador e, do outro, o capital, transmudado nas
figuras das empresas prestadoras e nas tomadoras de
serviço.
O fenômeno não é recente. A realidade histórica permite
constatar a sua existência em tempos distintos ao século
XX. Em que pese qualquer discussão que possa surgir a
respeito deste fato, Marx registrou, pelos idos de 1866, em
sua obra ‘O Capital’, a voracidade pelo mais-trabalho. E,
destacou a exploração do trabalho alheio feminino e infantil,
cravados no trabalho domiciliar, que, ao tempo do
surgimento da manufatura, constituiu-se em extensão da
fábrica e das grandes lojas (MARX, 2013, p. 542).
No Brasil, a terceirização ressurgiu sob a roupagem de
instrumento de luta para manutenção e ampliação do nível
de emprego e como meio de recuperação das forças
econômicas, políticas e sociais frente a um mercado acirrado
e competitivo da era globalizada. Ao integrar o mundo dos
fenômenos e envolver a vida dos indivíduos, a terceirização
se efetivou, muitas vezes, independente da consciência
deles em relação ao alcance do fato, expandindo-se no
momento em que a mão de obra feminina começou a ser
explorada com maior incidência. Ou seja, o capitalismo
encontrou na mão de obra feminina e pobre os braços
perfeitos para garantir a ampliação das empresas
terceirizadas, que se dedicam em grande parte à indústria
têxtil e ao mercado de serviços.
Assim, com o discurso histórico e socialmente arquitetado
em torno da fragilidade física, da habilidade e delicadeza das
mãos, da paciência, responsabilidade e maior capacidade de
concentração, além da possibilidade de adaptação
compatível com as tarefas do lar, as mulheres chegaram ao
ano de 2016 encabeçando o topo dos indivíduos que
compõem empresas terceirizadas.
O argumento de que por meio da terceirização ocorrerá o
aumento da produtividade, do número de postos de trabalho
e da competitividade da indústria nacional esconde o fato de
que este fenômeno implica a expansão da precarização do
trabalho, que sempre apresentou grande incidência de
rostos femininos (ASSUNÇÃO, 2011). Portanto, a
terceirização, mascarada pela reestruturação, é sinônimo de
mulheres em risco, pois esta prática reduz, ainda mais, os
salários, compromete as condições de trabalho e, por
conseguinte, piora a situação familiar já que é crescente o
número de famílias pobres monoparentais chefiadas por
mulheres.49

1. A intensificação do ritmo e da duração do trabalho e


seus reflexos sobre a saúde física e mental das
mulheres
Como visto, é característico do sistema toyotista de
organização do trabalho que os ritmos em que este é
prestado sofram uma aceleração. Muito embora esse
sistema não seja movido por esteiras em permanente
movimento, como nas linhas de montagem fordistas,
nele o trabalhador precisa ser multifacetado e célere,
para dar conta de várias atividades simultâneas.
As mulheres têm sofrido os efeitos de uma cobrança
incessante, dispondo de pouco ou nenhum tempo para
lazer e/ou descanso, uma vez que, em sua maioria,
acumulam as obrigações do trabalho remunerado com
as reprodutivas. Sendo assim, finda a jornada de
trabalho produtivo, se iniciam suas atividades no lar,
repetitivas e estressantes, não obstante invisíveis.
Ademais, subsistem ainda empresas fordistas, muitas
delas contratadas como terceirizadas por empresas
maiores e tendo como mão de obra preponderante a
feminina.
Por tudo isso, as mulheres são a maioria dos
trabalhadores vitimados pelas lesões de esforços
repetitivos (LER) e distúrbios osteomusculares
resultantes do trabalho (DORT), a ponto de tornar-se
recorrente o discurso de médicos e engenheiros do
trabalho sustentando que as mulheres seriam mais
propensas a essas patologias, por sua natureza
biológica. Esse argumento – que tem sustentado
estereótipos – é facilmente refutado, bastando para
tanto que verifiquemos as condições em que o trabalho
feminino é, em sua maior parte, prestado.
Questão ainda mais delicada concerne aos riscos
psicossociais do trabalho, que, segundo Luciana Veloso
Baruki (2015, p. 37), “emergem, neste início de século,
como verdadeira questão de saúde pública”.
Ao explicar a classificação da Organização
Internacional do Trabalho50 sobre a matéria, a autora
elenca as suas causas, que facilmente remetem ao
trabalho feminino. Seriam elas:

a) a sobrecarga quantitativa, traduzida em uma grande quantidade


de trabalho repetitivo para realizar em curto espaço de tempo; b) a
carga qualitativa insuficiente, sendo o trabalho monótono e
inexistindo estímulos para a sua prestação; c) o conflito de papéis
e funções, tendo como exemplo maior as condições de dona de
casa e mãe, cumuladas com o trabalho produtivo; d) a falta de
controle sobre a situação, sendo esta a condição daqueles que
não são ouvidos sobre os métodos e formas de prestação de
trabalho, determinados por outrem (e a grande maioria das
mulheres se encontra em condição subalterna); e) a falta de apoio
social, consistindo na falta de apoio por parte de familiares,
superiores ou colegas de trabalho; f) os estressores físicos, que
dizem respeito ao trabalhador saber-se exposto a riscos físicos,
químicos e biológicos diversos, vindo a desenvolver, por conta
disso, um risco psicossocial (BARUKI, 2015, p. 37-39).
Muitas mulheres estão submetidas a todos
esses fatores de forma intensa, em face da dupla
jornada, do trabalho doméstico, quase todo
repetitivo, além de exercerem, no mundo do
trabalho, atividade precarizada.
Luciana Veloso Baruki (2015, p. 113) observa
ainda ser muito comum, nesses casos, a prática
de culpabilização das vítimas:
O Estado colabora com esse processo quando trata a questão da
saúde ocupacional, notadamente a da saúde mental ocupacional,
como um problema que não lhe pertence, isto é, com indiferença.
[...] Não são apenas os empregadores e o Estado os únicos
responsáveis pela hipertrofia do discurso de culpabilização do
indivíduo. No âmbito organizacional, a falta de solidariedade entre
pares decorre muitas vezes da crença coletiva de que aquele que
se fragiliza, adoece e termina por ser vítima de assédio é, na
verdade um fraco e, nessa qualidade, portador de toda a
responsabilidade pela situação difícil que lhe sobreveio.

Assim, é importante se analisar as patologias e as


psicopatologias decorrentes do trabalho sob uma
perspectiva de gênero: o controle sobre o trabalho, se
exercido de modo a humilhar e constranger quem o
presta, é tão perverso quanto importante na destruição
da subjetividade dos trabalhadores e, em especial, das
trabalhadoras.

2. Informalidade e invisibilidade social


As mulheres, como quaisquer outros trabalhadores,
sofrem as consequências da contradição do sistema
capitalista e do desenvolvimento humano. No entanto, a
questão se agrava na esfera da informalidade. Este
fenômeno que, obviamente, não se restringe ao
universo feminino, alcança nele maior dimensão, em
face da relação que se estabelece entre o trabalho
precário e o exercido pela mulher.
A precariedade, conforme alhures já sublinhada, se
efetiva na má remuneração e na ausência de
expectativa de reconhecimento dos direitos sociais. O
trabalho feminino, por si só, possui esta característica.
Entretanto, a condição se sobressai, de modo
alarmante, na informalidade. Neste patamar, os salários
mostram-se bem menores do que os exercidos na
formalidade. Assoma-se a esta característica o fato de
que as mulheres, inseridas neste contexto, tendem a ter
maior dificuldade de voltar ao mercado formal de
trabalho, em face dos períodos às vezes longos de
afastamento, por maternidade ou outras demandas
familiares (OLINTO, 2004).
Em decorrência desta condição imposta às mulheres,
percebemos que a supressão maior de seus direitos
trabalhistas aumenta a carga de sofrimento. Não raro,
as mulheres sentem-se marginalizadas, inferiores em
relação aos trabalhadores. É um sofrimento invisível,
muitas vezes velado pela própria trabalhadora como
uma forma defensiva, uma estratégia de
autopreservação que, na maioria das vezes, reverte-se
em doenças psicossomáticas.
A invisibilidade incute nas trabalhadoras o sentimento
de “pouca significância”, fazendo com que elas se
sintam como não pertencentes à classe trabalhadora51,
mas, a depender do trabalho desenvolvido, não são
vistas sequer por seus pares.
Para além da aparência, prevalece o sentimento de
que o trabalho menos qualificado se reveste de
proporcional importância. Essa sensação comum de
irrelevância traz consigo um estigma social que
transfere ao indivíduo uma carga pejorativa de sua
capacidade, de seu mérito pessoal, que alcança a
compreensão de parcela significativa da sociedade a
ponto de erguer entre os diferentes estratos verdadeira
barreira de invisibilidade social.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seja por razões estruturais, como a intensificação da
concorrência gerada pela globalização, seja por fatores
conjunturais, como a atual crise econômica, o mercado de
trabalho tem recebido maciçamente mulheres, muitas das
quais costumam submeter-se a condições menos
vantajosas: salários mais baixos, empresas terceirizadas,
trabalhos a tempo parcial.
A vida profissional de numerosas mulheres resulta
onerada, em face das demandas do cuidado com a casa e a
família, principalmente os filhos menores, associadas às
exigências dos empregadores de experiência profissional e
aos períodos às vezes longos que elas permanecem fora do
mercado de trabalho.
Assim, as segregações e exclusões a que as mulheres
têm estado sujeitas no espaço da produção são reflexos da
sua condição subalterna no espaço reprodutivo, em que boa
parte do trabalho desenvolvido por elas é prestado
gratuitamente, em nome do afeto à família. Disso resulta
uma sobrecarga de trabalho intensa, que, muitas vezes,
aliada a fatores outros, causa o adoecimento das
profissionais do sexo feminino.
Quando é possível, as mulheres ingressam no mercado
de trabalho delegando seu trabalho na esfera doméstica a
outras mulheres, na maioria das vezes sujeitas a condições
vulneráveis, tendo em vista que ainda não tem ocorrido um
importante compartilhamento das responsabilidades
familiares.
É mantida, assim, a divisão sexual do trabalho, que gera
uma inserção precária das mulheres na esfera produtiva,
que, por sua vez, mantem mulheres em condição vulnerável,
em um perpétuo moto-contínuo.
Haverá solução para o trabalho precário dessas mulheres
dentro da velha divisão sexual do trabalho?
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41 FEMALE WORK IN THE GLOBALIZED AGE: INTENSIFIED RHYTHM AND


PRECARISATION
42 A indústria fordista propiciou a organização da classe trabalhadora em sindicatos e o
toyotismo favoreceu um sindicalismo de empresa, em que “a empresa é o lugar limitado da
organização dos assalariados” e “cuja característica essencial é ser reputado como bem
mais ‘cooperativo’ que conflitivo”. (CORIAT, 1994, p. 84 e 85).
43 Os trabalhadores em tempo parcial não costumam ter os mesmos direitos trabalhistas,
nem a mesma proteção social de que dispõem os contratados em período integral – e esse
parece ser um tipo de trabalho possível para muitas mulheres com responsabilidades
familiares, daí serem elas sempre a maior parte dos trabalhadores nessa condição.
44 Ver: ARAÚJO, Ângela Maria Carneiro; AMORIM, Elaine Regina Aguiar; FERREIRA,
Veronica Clemente. Os sentidos do trabalho da mulher no contexto da reestruturação
produtiva. Disponível em:
http://www.ces.uc.pt/lab2004/inscricao/pdfs/painel29/AngelaAraujo_ElaineAmorim_Veronica
Ferreira.pdf. Acesso em: 20 jan. 2015; HIRATA, Helena. Globalização e divisão sexual do
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http://www.scielo.br/pdf/cpa/n17-18/n17a06.pdf. Acesso em: 20 out. 2013; LOMBARDI,
Maria Rosa. A persistência das desigualdades de gênero no mercado de trabalho. In:
COSTA, Albertina et. al. Divisão sexual do trabalho, Estado e crise do capitalismo. Recife:
SOS CORPO, 2010, pp. 33-56.
45 Historicamente essa forma de trabalho foi predominantemente feminina, tendo em vista
a possibilidade de compatibilizar uma atividade remunerada com o trabalho de cuidado
com a própria casa e a família. Além disso, muitas das atividades eram as mesmas que já
desenvolvia no lar, a exemplo das costureiras prestando trabalho em domicílio.
46 “O teletrabalho é uma categoria de difícil definição. Muitas variáveis e suas
combinações abrem em demasia o leque de definições possíveis. A falta de uma
conceituação precisa sobre o que é o teletrabalho e sobre quantos são os
teletrabalhadores faz do conceito mais uma construção ideológica da realidade ou, no
máximo, uma tentativa de descrição dos diversos tipos ou modalidades de teletrabalho
existentes.” (ROSENFIELD, 2011, p. 215).
47 Maria Cristina Bruschini e Maria Rosa Lombardi (2000) denominaram de bipolaridade do
trabalho feminino a dupla realidade do trabalho feminino que analisaram no Brasil dos anos
de 1990: de um lado, mulheres em ocupações precárias, com baixos rendimentos e baixos
níveis de formalização e, de outro, mulheres com profissões de nível superior, salários
elevados, alta taxa de formalização e proteção social. A bipolaridade do trabalho feminino
no Brasil contemporâneo.
48 A pesquisa foi realizada sob a coordenação da Professora Doutora Darcy Mitiko Mori
Hanashiro, no âmbito do Projeto “Da exclusão social no acesso ao emprego à inserção
excluída: divisão sexual do trabalho de mulheres na indústria têxtil paulista”, e contou com
o financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).
49 Afirma Juliana Fruno (2015): “Segundo dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego
do DIEESE (2014), os trabalhadores que são terceirizados recebem uma média de 24,7%
a menos que os funcionários contratados diretamente pela empresa fim. Visto que as
mulheres ganham em geral somente 80% do salário dos homens, isso significa que seus
rendimentos seriam ainda menores! Além disso, as mulheres já são a maioria entre os
trabalhadores terceirizados, por um agravante histórico da construção do patriarcado, o
qual relega as mulheres – de forma naturalizada – uma posição subalterna no mercado e
as reserva às posições com piores rendimentos e mais desvalorizadas socialmente.”
50 Ante o espaço restrito deste artigo, optamos por mencionar apenas a classificação da
OIT, que, no entanto, não é a única.
51 Ricardo Antunes (1999, p. 196) a denomina como aquela que “compreende a totalidade
dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho e que
são despossuídos dos meios de produção”.
VI
ACESSO À JUSTIÇA E ESTEREÓTIPOS DE
GÊNERO NO JUDICIÁRIO: O CASO
PROPAGANDA “MUSA DO VERÃO 2006”52

Maria Cecília de Araujo Asperti


Doutoranda e Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo.
Professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – FGV
DIREITO SP.

Resumo: O artigo visa resgatar e repensar a agenda de pesquisa sobre acesso à justiça
com foco no reconhecimentode injustiças culturais e sociais contra as mulheres, como
passo necessário para efetivação desse direito e para prevenção e combate da violência
de gênero. Para tanto, além de uma breve revisão bibliográfica sobre o tema, propõe-se a
análise das decisões judicias proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo nos
processos que discutiram a abusividade da propaganda “Musa do Verão”, veiculada pela
cervejaria Skol no ano de 2006. A análise dos argumentos dos votos revela diferentes
posicionamentos sobre a reprodução e perpetuação de estereótipos e práticas de
objetificação da mulher. Conclui-se que a maior percepção social sobre a ofensividade
dessas práticas tem refletido no Judiciário, que deve também exercer um papel de
impulsionador das transformações necessárias para superação dessas injustiças.

Palavras-chave: Acesso à justiça. Violência de gênero. Estereótipos. Objetificação.


Publicidade abusiva.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Lei Maria da Penha (Lei nº 13.340/2006) é muito mais
lembrada por suas disposições de cunho criminal do que
pela política pública que pretende ver criada e aperfeiçoada,
a qual teria não só o intuito de coibir e prevenir a violência
doméstica e familiar (art. 1º), mas também para assegurar
direitos fundamentais às mulheres (arts. 2º e 3º),
promovendo-se, ao menos em teoria, uma mudança cultural
e social que propiciasse as transformações preconizadas.
Dentre os direitos fundamentais ressaltados pela lei está o
acesso à justiça, que não deve ser interpretado somente
como o acesso aos Juizados de Violência Doméstica e
Familiar – cuja implementação e consolidação ainda parece
longe de atingir o patamar almejado quando da criação da
lei53 – mas ao sistema de justiça como um todo, partindo-se
de uma concepção mais ampla e mais atual desse direito.
Promover o verdadeiro acesso à justiça para a mulher
significa compreender os motivos que levaram à proteção
legal que a Lei Maria da Penha visa assegurar. A violência
que se trata é aquela baseada no gênero, de modo que a
sua prevenção perpassa, necessariamente, pela
compreensão da discriminação baseada no gênero e no
efetivo reconhecimento de direitos às mulheres, em um
esforço que vai muito além da criminalização da violência.
Assim, o problema que se propõe aqui discutir é sobre como
o sistema de justiça e, mais especificamente, o Judiciário,
vem respondendo às discussões de gênero na atualidade.
Para iniciar essa análise, é necessário resgatar e
ressignificar a agenda de acesso à justiça, colocado de lado
os discursos de busca por efetividade e celeridade que
nortearam as últimas reformas institucionais e processuais.
A verdadeira consagração do acesso à justiça às mulheres
demanda que operadores do direito (e não só os penalistas)
voltem seu olhar para a atuação do Judiciário e do sistema
de justiça face às injustiças culturais e simbólicas que ainda
obstaculizam o acesso a direitos por parte de grupos
vulneráveis, como as mulheres. Discute-se a natureza
dessas práticas culturais e sociais, tais como a
discriminação, estereótipos e a objetificação da mulher, e
examinados exemplos tratados em pesquisas que
analisaram decisões judiciais e falas de operadoras/es do
sistema de justiça que reproduzem papéis de gênero e
subjugações da mulher.
Para além dessas manifestações institucionais, propõe-se
também a reflexão sobre o papel do Judiciário diante de
práticas socioculturais potencialmente discriminatórias às
mulheres.
O exemplo analisado é o da propaganda da AmBev para
a cerveja Skol, divulgada no ano de 2006, em campanha
intitulada “se o cara que inventou a Skol tivesse inventado a
musa do verão”. A campanha foi objeto de uma Ação Civil
Pública manejada pelo Ministério Público do Estado de São
Paulo (Proc. nº 583.00.2009.165466-9, 11ª Vara Cível do
Foro Central da Comarca de São Paulo) e de uma multa
aplicada pela Fundação de Proteção e Defesa do
Consumidor – PROCON/SP, em que se discutia seu caráter
abusivo e discriminatório face as mulheres. A multa em
questão foi objeto de uma ação ajuizada pela Companhia
Brasileira de Bebidas - AmBev (Proc. nº 0005431-
07.2010.8.26.0053, 9ª Vara da Fazenda Pública da Comarca
de São Paulo).
A análise dos principais argumentos dessas decisões
judiciais permite o aprofundamento da necessária reflexão
sobre como o Judiciário tem lidado com questões de gênero
e com os desdobramentos mais recentes desse debate.

2. O SISTEMA DE JUSTIÇA E AS MULHERES

1. Acesso à justiça e injustiças simbólicas e culturais


contra as mulheres
Se a pauta de acesso à justiça foi predominante
durante as discussões que culminaram na promulgação
da Constituição Federal de 88 e em legislações como o
Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Ação Civil
Pública, as décadas que se seguiram foram permeadas
por outros discursos, calcados, essencialmente, na
busca por maior efetividade e celeridade, valores esses
que seriam conducentes a um Judiciário mais propício
ao crescimento econômico (ALMEIDA; CUNHA, 2010).
Pensar em acesso, tal como proposto por Mauro
Cappelletti e Bryant Garth em seu famoso Projeto
Florença (CAPPELLETTI; GARTH, 1978), não parece
mais ser a tônica das reformas processuais e judiciárias,
mais focadas em reduzir o contingente de processos e
promover a uniformização e maior rendimento do
processo. Como Ugo Mattei discorre ao analisar a
agenda de pesquisa do acesso nos últimos anos, este
se tornou um “não-assunto”, ou um “non-issue”
(MATTEI, 2007, p. 2).
Uma “quarta onda renovatória” de acesso à justiça
pressuporia um cenário em que o “movimento universal
de acesso à justiça” (CAPPELLETTI, 1994) continuasse
em voga na agenda de reformas, o que não se
confirma. Discursos sobre excesso de litigiosidade54 e
da necessária busca por maior celeridade e rendimento
do processo poderia nos levar a crer que de fato o
acesso à justiça é um “não-assunto”, um obstáculo
superado. De outra ponta, o acesso à justiça em que se
busca a realização da justiça redistributiva também se
confunde com ativismo judicial, tornando-se alvo de
críticas por parte daqueles que consideram que o
protagonismo do Judiciário já foi longe demais.
Contudo, é possível afirmar que a pauta de acesso à
justiça está totalmente superada no Brasil? Uma
primeira constatação é a de que o congestionamento do
Judiciário não reflete uma multiplicidade de usuário,
dado que são poucos entes – primordialmente grandes
litigantes públicos e privados – que utilizam
excessivamente a justiça, seja demandando
judicialmente, seja sendo acionados repetidamente em
virtude de sua atuação massificada (SADEK, 2008, p.
273-274). Enquanto isso, a justiça continua inacessível
para as parcelas mais marginalizadas da população,
cujas demandas, principalmente por direitos sociais e
coletivos, continuam representando uma procura
suprimida, cujo acesso é dificultado por uma estrutura
burocratizada e ritualizada (SANTOS, 2011, p. 37-38),
propositadamente distanciada da população.
Mas mesmo que as estruturas do sistema de justiça
fossem de fato acessíveis, cabe refletir se é realmente
possível universalizar o acesso à justiça, tal como
preconizado por Cappelletti e Garth no Projeto Florença.
Marc Galanter traz interessante reflexão a esse
respeito, ao argumentar que a percepção de injustiça
“se expande dinamicamente com o crescimento do
conhecimento humano, com os avanços da viabilidade
técnica e os crescentes anseios de amenidade e
segurança” (GALANTER, 2010, p. 44).
A fronteira entre justiça e injustiça seria dinâmica e
insuperável, de modo que a busca por acesso nunca
cessaria, apenas ganharia novos contornos, conforme
as percepções de injustiça se alterem ao longo da
trajetória humana. Em outras palavras, o acesso nunca
será um “não assunto”, mas sempre um assunto a ser
rediscutido e ressignificado, sendo certo que a decisão
de ampliar ou restringir o acesso, ou, ainda, de priorizar
demandas e direitos, seria, sem dúvida, uma escolha
política (GALANTER, 2010, p. 46).
É essa ressignificação dos contornos e fronteiras do
acesso à justiça que a Lei Maria da Penha propõe ao
reconhecer a necessidade de mudanças estruturais e
culturais para superação da violência decorrente da
desigualdade e discriminação de gênero no Brasil. Se
em um passado não tão distante a violência doméstica
não era socialmente tida como uma injustiça (o famoso
bordão “em briga de marido e mulher ninguém mete a
colher” é sintomático), hoje se reconhece, ao menos
normativamente, o direito da mulher de acessar o
sistema de justiça contra essa violência55.
Entende-se, também, que essa violência não é fruto
de meras desavenças familiares, mas sim de um
sistema de dominação social, de discriminação56 e de
estereótipos reproduzidos e naturalizados que
perpetuam a inferiorização da mulher na sociedade em
seus mais variados âmbitos, inclusive no seio familiar.
A injustiça que a Lei Maria da Penha aponta não é
necessariamente social, tal como as injustiças que
pautaram a positivação de direitos sociais e as reformas
pautadas no “movimento pela universalização do
acesso à justiça”. Tratam-se, como Nancy Fraser
propõe, de injustiças culturais ou simbólicas, presentes
em padrões sociais de representação, interpretação e
comunicação associados à dominação cultural, ao
ocultamento e ao desrespeito com base em gênero,
raça ou orientação sexual (FRASER, 2001, p. 232).
Para sua superação, não bastam medidas de justiça
corretiva ou mesmo de justiça redistributiva, somente,
mas também de políticas de reconhecimento, que
envolvem transformações culturais para valorização da
diversidade e ruptura com padrões vigentes (FRASER,
1996, p. 7-8).
Se a discussão sobre as políticas de reconhecimento
já está de certa forma avançada, a pauta de acesso à
justiça não parece ter evoluído nesse sentido. Os
discursos ainda são dominados por uma perspectiva
quantitativa de acesso, por uma lógica corretiva e,
quando muito, redistributiva, mas sem qualquer
preocupação com a qualidade desse acesso, ou com
seu potencial de transformação simbólica e de
reconhecimento de direito de minorias social e
culturalmente oprimidas. Para que essa transformação
atinja efetivamente as instituições do sistema de justiça,
assegurando-se verdadeiramente o direito e a mudança
cultural preconizados na Lei Maria da Penha, é
necessário se perguntar como o Judiciário enxerga as
questões de gênero discutidas na atualidade. Há uma
vontade ou disposição institucional de se promover a
transformação simbólica e cultural necessária à
superação dessas injustiças?

2. Estereótipos e práticas discriminatórias como óbices


ao acesso à justiça
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção de
Belém do Pará”) preconizou que a proteção aos direitos
da mulher compreende o direito de “ser livre de todas as
formas de discriminação” e “ser valorizada e educada
livre de padrões estereotipados de comportamento e
práticas sociais e culturais baseadas em conceitos de
inferioridade ou subordinação” (art. 6º). Essa previsão
coaduna-se com a compreensão de que o combate à
violência contra a mulher perpassa pela erradicação da
injustiça cultural simbólica, expressada em práticas
culturais de difamação e desqualificação e
representações públicas de atribuição de características
ou papéis a alguém em virtude do seu pertencimento ao
um grupo social, depreciando categorias de pessoas e
qualidades com estas associadas (FRASER, 1996, p.
31; CUSACK, 2014, p. 2).
A institucionalização dessas práticas é especialmente
perniciosa quando se discute o acesso à justiça dos
grupos e categorias de pessoas sujeitas às injustiças
culturais e simbólicas, como as mulheres. Wânia
Pasinato (2015, p. 422-423) discute, a partir de
entrevistas com operadores jurídicos sobre a aplicação
da Lei Maria da Penha, afirmações que revelam
desconhecimento e falta de compreensão sobre a
violência baseada em gênero, como a de que mulheres
“mentem”, “inventam histórias” que não sabem o que
querem e que fazem o uso da lei com intuito de
prejudicar seus agressores. Essas posturas conformam
um cenário institucional desfavorável à consolidação de
políticas de gênero efetivas, tanto da perspectiva
repressiva, quanto preventiva.
Exemplos eloquentes também são identificados em
decisões judiciais, especialmente aquelas relativas à
interpretação e aplicação da Lei Maria da Penha.
Fabiana Mendes de Oliveira (2014, p. 13-15) analisa
estereótipos de gênero em decisões relacionadas à
aplicação da Lei Maria da Penha pelo Superior Tribunal
de Justiça e destaca, dentre outros exemplos, a questão
das “agressões mútuas”, ou seja, o argumento judicial
utilizado em episódios de violência física em que a
mulher também teria agredido o agressor, o que
afastaria a proteção estatal à mulher sob a égide da Lei
Maria da Penha.
O caso narrado provém do julgado do Conflito de
Competência nº 96.533/MG, de relatoria do Ministro Og
Fernandes, da Terceira Seção, conforme julgamento
realizado em 05.12.2008. Da leitura da decisão, extrai-
se que o Termo Circunstanciado de Ocorrência registra
o relato do réu de que a autora teria “quebrado seu
telefone celular, passando a agredi-lo com socos e
mordida em seu braço”. Já a autora narra que de fato
quebrou o aparelho celular, “tendo mordido o braço do
namorado para se defender da agressão que este
praticara contra ela”. No julgado, o STJ entendeu que
“sendo o motivo que deu origem às agressões mútuas
os ciúmes da namorada, não há qualquer motivação de
gênero ou situação de vulnerabilidade que caracterize
hipótese de incidência da Lei nº 11.340/06”, declarando
o Juizado Especial Criminal competente. Como Oliveira
(2014) conclui, esse tipo de entendimento conduz a um
paradoxo de que “se você deseja a proteção contra a
violência de gênero, deve apanhar quieta”, o que
novamente revela uma falta de compreensão com
relação à dinâmica da violência baseada em gênero,
além de um estereótipo de fragilidade da mulher, que
deve suportar a agressão passivamente.
A mulher, então, é frágil e passiva, deve sempre
buscar a paz familiar, e quando busca proteção em
situações de violência, é mentirosa e se usa do sistema
apenas para prejudicar o agressor. Essas assimilações,
quando perpetuadas pelo sistema de justiça, geram um
ambiente propício para a impunidade de situações de
abuso contra mulheres, além de dissuasório para
aquelas que estão inseridas nessas situações busquem
ajuda. Tratam-se, sem dúvida, de práticas mapeadas
pelos estudos citados representativas do que se chama
de injustiças culturais e simbólicas institucionais, que
inviabilizam o efetivo acesso da mulher e a postulação
de seus direitos.
O alcance e impactos dessas injustiças culturais e
simbólicas não podem ser de forma alguma
minimizados. É a reprodução de práticas de exclusão,
generalização, objetificação e subjugação da mulher,
que acarreta e naturaliza desde a discriminação em
ambientes profissionais e acadêmicos até a própria
violência física, moral e psicológica da qual é vítima
dentro e fora de seu núcleo familiar e afetivo.
É sintomático, por exemplo, que ainda o estudo do
IPEA sobre a “Tolerância social à violência contra as
mulheres” ainda revele um alto grau de concordância
(58,5% concordaram total ou parcialmente) por parte
dos entrevistados com a afirmação “se as mulheres
soubessem como se comportar, haveria menos
estupros”. Como o estudo coloca, essa manifestação é
reflexo da percepção social de que o corpo das
mulheres é de livre acesso aos homens “se elas não
impuserem barreiras, como se comportar e se vestir
‘adequadamente’” (IPEA, 2014, p. 22-23).
Por isso, para além das importantes reflexões sobre
estereótipos de gênero na aplicação da Lei Maria da
Penha, propõe-se também discutir a ação ou omissão
das instituições do sistema de justiça face à
perpetuação de estereótipos e de outras práticas
discriminatórias arraigadas culturalmente. O caso da
propaganda da “musa do verão 2006” é bastante
representativo das possíveis reações do Judiciário a
essas práticas, pois demonstra abordagens opostas de
julgados a um mesmo anúncio ao longo do período
entre 2012 e 2016. A seguir, a peça publicitária será
brevemente descrita, passando-se para a análise dos
julgados proferidos em Ação Civil Pública e em ação
para invalidação de multa administrativa em que se
discute sua alegada abusividade, em interpretação do
art. 37, §2º, do Código de Defesa do Consumidor.

3. A POSTURA DO JUDICIÁRIO ANTE A PERPETUAÇÃO


DE ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO: O CASO DA MUSA DO
VERÃO

1. A propaganda
Em 2006, a AmBev lançou uma campanha para a
Cerveja Skol conhecida por “Se o cara que inventou a
Skol...”, com uma série de motivos, dentre os quais a
“Musa do Verão 2006”57. No site da agência publicitária
que desenvolveu o anúncio descreve-se que

O filme mostra a musa de verão como uma mulher inacessível,


cheia de seguranças que a protegem dos fãs e fotógrafos. No
meio da multidão que se aglomera em volta do palco, montado na
praia, um cara lança a seguinte frase: “Se o cara que inventou a
Skol tivesse inventado a musa do verão, ela não seria assim.
Seria assim…”. Num laboratório, Bárbara Borges é clonada e na
sequência distribuída em várias casas, num sistema de delivery de
musa de verão.
No filme, enquanto a “musa do verão” possa para
fotografias, ela está no mundo real, protegida por
seguranças, dentre os quais um alerta os fãs e
fotógrafos para que “não toquem” a moça. Na cena
seguinte, a musa é clonada e entregue a diversos
homens. Um deles pergunta “se pode tocar” e outro
reclama, ao receber uma “musa” com bigode de que
“justo a minha veio com defeito”. Ao final, um senhor de
idade pergunta se a dele “é importada”.
A propaganda foi veiculada entre janeiro e março de
2006 e foi objeto de uma autuação por parte da
Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor
(PROCON/SP) e de uma Ação Civil Pública proposta
pelo Ministério Público de São Paulo, ambos por
abusividade da publicidade, que seria discriminatória e
ofensiva às mulheres, retratadas como objetos à
disposição de consumidores homens.

2. A Ação Civil Pública


Embasado em pareceres críticos à companha da
Skol, o Ministério Público do Estado de São Paulo
ingressou com a ação judicial em 2009, ou seja, três
anos após a sua transmissão na televisão. Em primeiro
grau, o processo foi extinto por prescrição, com
fundamento na hipótese do art. 206, § 3º, V, do Código
Civil (pretensão de reparação civil). O MP interpôs
recurso de apelação, distribuído para a 4ª Câmara de
Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, sob
a relatoria do Desembargador Ênio Santarelli Zuliani, e
julgado na sessão de 26 de abril de 2012 (Apelação nº
9000005-45.2009.8.26.0100).
Muito embora não tenha sido proferido em sede de
julgamento de casos repetitivos e tampouco possa ser
considerado um precedente à luz do quanto disposto no
artigo 927 do Código de Processo Civil de 2015, o
acórdão em questão representa o primeiro
enfrentamento judicial que se tem notícia da alegação
de abusividade em uma propaganda por discriminação
às mulheres. Daí porque de extrema pertinência a
análise da fundamentação da decisão, que consiste em
uma interpretação do conceito de publicidade abusiva e
discriminatória em casos de propagandas consideradas
ofensivas às mulheres. Em sendo a primeira vez que o
Tribunal de Justiça de São Paulo discutira o tema,
constrói-se uma interpretação claramente extensiva da
norma que embasa do pedido do MP, propondo-se
critérios ou requisitos não existentes em lei para
aferição da abusividade publicitária. Cabe discutir esses
critérios e demais argumentos do julgado a partir das
noções de injustiça simbólica e cultural aqui trazidas, a
fim de se questionar a interpretação conferida
judicialmente à peça publicitária, bem como a
compreensão dos julgadores acerca de seu papel no
combate ou na perpetuação de práticas de injustiça
simbólica e cultural contra as mulheres.
No julgamento da apelação, o voto afasta a
prescrição declarada em primeiro grau, entendendo-se
aplicável o prazo de cinco anos previsto no artigo 27 do
Código de Defesa do Consumidor, por se tratar de
demanda que discute a violação do artigo 37, §2º da lei
consumeirista. O dispositivo em questão estabelece a
proibição da publicidade abusiva, entendida como
aquela que, “dentre outras a publicidade discriminatória
de qualquer natureza”, argumento este utilizado pelo
Ministério Público em seu pleito, por entender que a
mensagem estimularia a “coisificação” feminina ao
colocar a mulher como “mero objeto de prazer sexual
masculino”.
Contudo, o acórdão não acolhe a argumentação do
Ministério Público, entendendo não haver ofensa ao art.
37, §2º (p. 12), e sustenta esse posicionamento a partir
de dois requisitos para se responsabilizar uma empresa
por uma propaganda alegadamente discriminatória:
contexto social em que a propaganda é vinculada e a
“intenção de ofender”. Para o Relator, acompanhado em
seu voto pelos demais membros da turma julgadora,
esses critérios não estariam configurados no caso da
propaganda da Skol, que se inseriu em um contexto
social que tornaria a propaganda aceitável (apesar do
“mau gosto” do anúncio) e não revelaria qualquer
“intenção pejorativa ou discriminatória”.
Do exame da decisão se extrai que a discussão
sobre a intervenção judicial na publicidade
potencialmente discriminatória não é o cerne da
motivação, que se desenvolve, essencialmente, na
interpretação da propaganda em si. O Relator não
discute, por exemplo, os limites da atuação do Judiciário
à luz do direito à liberdade de expressão, o que poderia
conduzi-lo à conclusão de que a propaganda seria sim
ofensiva, mas que não caberia à justiça estatal intervir
nesse âmbito. Pelo contrário: sustenta-se que a
despeito da existência de órgão de autorregulação,
“intervenção administrativa não repercute com força
vinculativa e cabe examinar com liberdade o referido
anúncio” (p. 5). Assim, o cerne da discussão judicial é o
caráter discriminatório da peça publicitária, ou seja, a
incidência de violação ao artigo 37, §2º, do CDC. A
baliza que se propõe é a da “ilicitude” (“o bom direito
não se coaduna com práticas semelhantes, embora não
se chegue a considerar uma ilicitude”), em uma clara
tentativa de racionalização de um critério legal
claramente discricionário, que é o da publicidade
abusiva.

1. Contexto social e cultural e interpretação da


propaganda dentro do terreno do fantasioso
Ao examinar a alegada abusividade do anúncio,
o Relator sustenta que a propaganda deve ser
interpretada a partir de seu caráter inerentemente
fantasioso, o que permitiria maior liberdade ao
publicitário. A este, seria fundamental explorar a
associação do consumo da cerveja com elementos
como verão, praias, diversão, humor e flertes, como
reflexos de um “aspecto cultural da realidade
brasileira” que não poderia ser abandonado na
realização de “comercial proveitoso”. Esses
aspectos culturais e sociais justificariam a
retratação da “brincadeira sobre o desejo masculino
de uma musa do verão em linha de produção”, o
que não poderia ser interpretado literalmente.
O voto cita, nesse ponto, doutrina de cunho
jurídico para legitimação do argumento de que a
publicidade se desenvolve no terreno do fictício58,
do irreal, não podendo ser interpretado na sua
literalidade59. Argumenta que seria absurdo cogitar
que a intenção da peça publicitária seria “convencer
o telespectador de que a compra da cerveja ‘Skol’
acarreta a distribuição de mulheres bonitas
‘clonadas’ aos seus consumidores”.
Cabe refletir, nesse tocante, se realmente a
abusividade da publicidade reside somente na sua
literalidade, ou se pode ser transmitida na
mensagem subliminar que visa estimular ao
consumo. O próprio voto afirma ser “evidente que o
imaginário humano sofre a influência dos mais
variados tipos de mensagem e não se pode ignorar
que é possível que a publicidade colabore para
uma subjetividade distorcida”. Caberia analisar
dessa perspectiva a mensagem veiculada de modo
figurativo, ainda que não seja literal (aliás, quando
uma propaganda é literal?).
Não é necessário um grande exercício
interpretativo para se verificar que a mensagem da
propaganda é a de que a distribuição de mulheres
em domicílio seria algo desejável ao homem, tal
qual uma Skol (“se o cara que tivesse inventado a
Skol tivesse inventado a musa do verão, ela seria
assim [...]”). A literalidade da mensagem, ou seja,
da entrega de mulheres como brindes, seria,
claramente, absurda, porém é nítido que se apela a
um desejo masculino de possuir a mulher. De que a
mulher seja perfeita e estática, como uma
mercadoria entregue em domicílio, e que esteja à
disposição do homem, como um bem de consumo.
Daí porque a abusividade defendida pelo MP gira
em torno da objetificação da mulher.
O acórdão nega, contudo, que a propaganda
tenha fomentado a objetificação, ou “coisificação”
da mulher, afirmando que essa imagem estaria
restrita à figura de uma musa do verão específico e
que essa imagem estaria “fadada ao esquecimento
em virtude do próprio marco temporal
estabelecido”. É contraditório que, mesmo
afastando uma interpretação literal do anúncio, o
julgador se valha da literalidade para afastar a
objetificação, ao dizer que a mercantilização da
musa do verão estaria restrita a ela, e não se
estenderia às mulheres de modo geral. Não há,
portanto, a tentativa de ruptura com práticas
culturais estigmatizantes face às mulheres,
perpetuando-se a imagem do desejo masculino da
mulher objeto, que é legitimado por ser fantasioso
(e não literal) e por se inserir em um contexto social
de naturalização, que é apenas reproduzido pelo
anúncio.

2. A imposição de um critério subjetivo de


intencionalidade de se ofender e de se
discriminar
Ainda que o voto reconheça que o anúncio reproduz
estereótipos, a sua abusividade é novamente afastada
pelo argumento de não haver uma intenção de ofender
ou de discriminar60, não se estimulando que as pessoas
“sejam mais ou menos machistas”. Essa intenção seria
substituída pelo intuito humorístico, de brincadeira do
anúncio. Há diversos trechos em que esse argumento é
sustentado:

A defesa das mulheres pelo espaço merecido é uma luta contínua


e que somente vai se encerrar quando a sociedade, de maneira
unânime, reconhecer a isonomia. Porém, nem todos os
comentários, as manifestações e até certas brincadeiras sobre as
diferenças entres homens e mulheres devem ser entendidas como
sinônimo de ultrajes e desconsideração jurídica (p. 7);
O humor envolvendo as predileções, as qualidades, os defeitos e
os conflitos de homens e mulheres constitui uma realidade social
e, no mais das vezes, mostra caráter inofensivo, podendo até
refletir uma forma engraçada a conhecida “guerra dos sexos” [...],
desde que não ocorram exageros ou abusos (p. 7-8);
Nessas circunstâncias e considerando o que foi mostrado no filme
em comento, o objetivo não é de “coisificar” mulher nenhuma, mas
sim, causar impacto com humor, criar uma ficção para que os
consumidores dêem risada, façam comentários, enfim, lembrem
da marca e do produto divulgado (p. 9).
Um outro aspecto social que deve ser ressaltado é o de que o
consumo de cerveja no Brasil sempre foi associado ao verão e,
evidentemente, não poderiam faltar praias, piscinas e pessoas
exibindo, com pouca roupa, o corpo. A esse acrescente como
ingrediente indispensável um roteiro de diversão, flertes, festas,
vaidade, humor, alegria, apresentando-se, justamente nesse
contexto, a brincadeira sobre o desejo masculino de uma musa do
verão em linha de produção. Por mais talentosos que sejam os
departamentos publicitários não há como escapar dessas
diretrizes para um comercial proveitoso e isso deve ser
considerado para fins de apurar a técnica empregada (p. 9).

O tema da objetificação é complexo e comporta


diversas interpretações, mas pode ser compreendido,
essencialmente, como um tratamento em que seres
humanos são vistos de forma instrumental para
propósitos dos outros, remetendo-se a uma noção de
comoditização que nega a autonomia e a subjetividade
do indivíduo, dando margem a variadas violações de
fronteiras ou barreiras (NUSSBAUM, 1995, p. 290).
A objetificação da mulher implica em percebê-la
como um objeto sexual, apartado de suas
características não físicas, o que muitas vezes pode se
relacionar com sentimentos de propriedade ou quase
propriedade. É por meio de generalizações e
estereótipos que os indivíduos integrantes de um grupo
minoritário podem passar a ser “objetificados”,
considerados fungíveis, apartados de sua singularidade
e inseridos em pré concepções formuladas por grupos
opressores.
Não há, necessariamente, uma intencionalidade na
objetificação, assim como na perpetuação de
estereótipos de forma geral. Justamente por serem
práticas culturais, devem ser analisados pelos seus
efeitos, e não pela intenção daquele que as reproduz.
Certamente um anunciante não terá uma intenção clara
de subjugar mulheres, até porque – novamente – a
publicidade não atua por meio de mensagens literais,
mas sim subliminares, que apelam ao inconsciente.
Apelar ao desejo masculino por meio da negativa de
autonomia da mulher retratada pode não revelar um
intuito discriminatório por parte da empresa, mas
certamente acarreta efeitos discriminatórios, na medida
em que mulheres são colocadas como bens de
consumo de homens.
Percebe-se, assim, que a decisão judicial legitima o
estereótipo das mulheres perfeitas e estáticas,
conformadas em objetos ou mercadorias à disposição
dos homens, por sua inserção no terreno fantasioso e
humorístico da propaganda, em que não haveria
intenção de discriminar. Argumentos em sentido diverso
são percebidos como “moralistas” ou “radicais”, além de
contraproducentes na busca pela igualdade de gênero61.
3. A ação da AmBev contra a multa do PROCON
No ano de 2010, ou seja, seguinte ao ajuizamento da
Ação Civil Pública, a AmBev ajuizou ação referente à
multa imposta pelo PROCON/SP. Em 16 de outubro de
2013, ou seja, meses após o julgamento do recurso de
apelação da Ação Civil Pública, foi proferida sentença
na ação contra o PROCON/SP, em que o juízo, tendo
reconhecido a conexão entre as duas demandas,
entendeu que já teria havido pronunciamento judicial
sobre a alegada ofensa ao art. 37, §2º, do CDC, que era
o embasamento legal da autuação do PROCON/SP.
Julga, então, procedente o pedido da AmBev,
declarando a invalidade da autuação e da respectiva
multa, por entender ter “descaracterizada a prática de
propaganda discriminatória”.
O PROCON/SP apelou da sentença e teve seu
recurso distribuído para a 7ª Câmara de Direito Público
do Tribunal de Justiça, sob relatoria do Desembargador
Luiz Sergio Fernandes de Souza (Apelação nº 0005431-
07.2010.8.26.0053). Em sessão de julgamento realizada
em 11 de março de 2016 – ou seja, quatro anos após o
julgamento do recurso do caso anterior – a apreciação
judicial da propaganda foi completamente diversa,
entendendo-se ter havido abusividade e discriminação
no anúncio.
O voto vencedor, proferido pelo Relator, inicia-se
afastando qualquer alegação de coisa julgada pertinente
a apreciação do caráter ofensivo da propaganda “Musa
do verão 2006”, sob o argumento de que a interpretação
do art. 37, §2º, do CDC no caso integraria os motivos da
decisão, e não o seu dispositivo, não estando
compreendido, portanto, nos limites objetivos da coisa
julgada, conforme redação do art. 504, I, do CPC/2015,
que reproduz a redação do art. 469, I do CPC/197362.
Seria possível, portanto, rediscutir o tema.
Passa-se então à apreciação da abusividade da
propaganda, que é reconhecida pelo voto do Relator e
pelo voto convergente do Desembargador Moacir Peres,
restando vencido o Desembargador Sergio Coimbra
Schmidt.

1. Contexto social e cultural e impactos da


propaganda
Em diversas passagens, o voto vencedor rebate
diretamente a fundamentação do acórdão proferido
na ação coletiva. Nesse sentido, o voto do Relator
não nega o caráter fantasioso e lúdico da arte
publicitária, mas a caracteriza como um “fenômeno
cultural dito derivado”, que reflete “valores e
códigos da sociedade”. Contudo, assinala a
influência desta e o papel do direito de resguardar o
consumidor vulnerável da influência da mensagem
transmitida. Ainda sobre essa proteção legal, o voto
convergente sustenta que “qualquer pessoa pode
ser involuntariamente exposta à propaganda”, o
que justifica que a liberdade de expressão de
criação do anunciante não seja absoluta. A
mensagem da publicidade pode, portanto, ser
ofensiva, e possui impactos mesmo afastada de
sua literalidade.
Assim como no acórdão da ação coletiva, o voto
vencedor também preconiza uma interpretação
contextualizada do teor da campanha “musa do
verão”, porém conclui que “vai de encontro aos
valores que começaram a se formar, mercê do
processo de redemocratização da sociedade
brasileira, a partir dos anos 90, diante de marcos
civilizatórios que não convivem mais com
estereótipos e formas pré-concebidas”. Também de
modo similar, o voto convergente assinala a
repercussão de campanhas realizadas em redes
sociais (“como #primeiroassedio e a
#meuamigosecreto”), refletindo o acirramento da
luta pela igualdade de direitos da mulher. É nesse
contexto que conclui que a propaganda “faz
discriminação de gênero e ofende os valores de um
nicho grande da população”.

2. Irrelevância da intencionalidade
Novamente rebatendo os argumentos do
acórdão da Ação Civil Pública, o relator
expressamente afasta o elemento da
intencionalidade ou da má-fé do publicitário,
associando o exame da sua abusividade ao
potencial ofensivo, ou ao dano potencial63.
É interessante a ressalva feita também pelo voto
convergente quanto ao caráter humorístico da peça
publicitária. Sustenta o Desembargador que,
diversamente do que ocorre na publicidade, que
“invade” o dia-a-dia do consumidor, o espectador da
peça humorística escolhe presenciar aquela
representação, prevenindo-se quanto ao seu teor
potencialmente jocoso e até ofensivo.
Especificamente quanto ao potencial ofensivo ou
de danos às mulheres, tanto o voto vencedor
quanto o voto convergente reconhecem
expressamente a objetificação da mulher e
defendem a necessidade de se coibir
manifestações que reflitam a mercantilização ou
comoditização das mulheres como bem de
consumo dos homens.

Nesse contexto de mercantilização da mulher, não se pode


desconsiderar as questões de gênero para dizer, como faz a
autora, que a propaganda invoca apenas símbolos do verão,
a exemplo do Sol, do mar, cenário no qual homens e
mulheres aparecem festejando em trajes praianos. Na
verdade, o que se vê no filme publicitário são “mulheres
clonadas”, carregadas em carrinhos, do tipo que se vê em
supermercados, sendo entregues por homens para homens.
Nas palavras da própria autora, a ideia é transmitir a
mensagem de que, naquele mundo fantástico, mulheres
com o fenótipo de musa estariam à disposição de qualquer
homem, assim como as cervejas da marca Skol. O
argumento da peça publicitária é mais do que infeliz, pois
“coisifica” a mulher, servindo-a, mediante entrega, para
desfrute do consumidor. Em outras palavras, nela, o gênero
feminino transforma-se em objeto de consumo (p. 9);
Com isso, cria a ideia de que a mulher em questão é um
bem a ser produzido em série e livremente consumido pelos
homens. Coisificando a mulher, a peça discrimina, separa,
aparta os gêneros, tratando o sexo masculino como o
consumidor e o feminino como o bem a ser consumido, que
deve ser perfeito (a propaganda faz alusão a um exemplar
da “Musa” que teria “vindo com defeito”) para satisfazer aos
desejos dos consumidores (voto convergente, p. 20).

Finalmente, o voto vencedor repudia


expressamente os rótulos de radicalismo ou
moralismo, ou de “politicamente correto”
sustentados no voto da ação coletiva e nas
alegações da AmBev64. É invocado o dever da
sociedade como um todo de superar
“estereótipos grosseiros”, denunciando a
mensagem desagregadora da mensagem
publicitária e consignando que “a estética
feminina, por mais apreciável que seja, não
se confunde com lata de cerveja, produto que
as pessoas consomem e depois jogam fora”.

3. Voto vencido

Como mencionado, o julgamento do recurso de


apelação do PROCON/SP não foi unânime, tendo
o Desembargador Coimbra Schimdt declarado o
seu voto vencido. Inicia a sua argumentação
descordando da afirmação vencedora de que não
haveria coisa julgada no caso em questão, posto
que o novo julgamento seria conflitante com a
primeira decisão, criando-se uma situação de
“insegurança jurídica que compete ao Judiciário,
primordialmente, afastar das relações
socioeconômicas”.
Quanto à interpretação da peça publicitária, o
desembargador alinha-se com o posicionamento do
Relator da apelação referente à Ação Civil Pública,
relatando ter visto nesta

[...] uma peça bem-humorada permeada de completo non-sense


subjacente à absurda possibilidade de se reproduzir bela jovem,
eleita ‘Musa do Verão de 2006’ de modo a que cada sonhador
pudesse tê-la não como uma figura distante, imaginária, mas
como algo palpável, material, a seu alcance. Esforcei-me para não
rir, mesmo, quando em sessão examinava a peça, pois não a
conhecia (não sou dado a assistir televisão) (p. 26).

Além da questão do fantasioso, discutido em todas as


decisões aqui examinadas, o voto vencido também
aborda o contexto social, afirmando que “é fato que, nas
praias, os trajes femininos são cada vez mais sumários”.
Reconhece-se, ainda, ser a publicidade um subproduto
cultural, que, no caso, reproduziria “o ideal da musa
componente do imaginário masculino e isso desde
tempos bem antigos”. A publicidade teria trazido o real
para o irreal, com o “bom humor característico da
picardia do brasileiro associado à alegria imanente a
reuniões em cervejarias”.
Diversamente do voto do Relator no caso da Ação
Civil Pública, que em diversos momentos critica o
anúncio (apesar de não lhe considerar atentatório ao
art. 37, §2º, do CDC), o voto vencido elogia a peça,
ressaltando a criatividade e originalidade do publicitário
e o humor da peça. Nas palavras do desembargador, o
cerceamento à liberdade de expressão “apenas porque
alguns viram a ousadia como ofensa à condição
feminina” seria injustificado, representando uma ferida
“de morte” à publicidade brasileira e a “materialização
da pior das censuras: a autocensura! ”.

4. Mudança dos tempos?


Há, sem dúvida, uma diferença de perspectiva
nos julgados analisados, referentes a uma
mesma propaganda, porém separados
temporalmente por um período de quatro anos.
Seria esse lapso temporal a explicação para a
mudança do olhar ou o mero fato de se tratarem
de julgadores distintos (4ª Câmara de Direito
Privado e 7ª Câmara de Direito Público) explicaria
a divergência interpretativa?
A análise do segundo acórdão demonstra que
as mudanças culturais e comportamentais mais
recentes influíram na cognição sobre a matéria.
Ambos julgadores vencedores fizeram referência
ao contexto social da publicidade, o primeiro (da
Ação Civil Pública) para sustentar a aceitabilidade
da propaganda, seu tom jocoso e não ofensivo, e
o segundo (da ação para invalidação da multa)
para defender seu caráter discriminatório e
potencialmente ofensivo às mulheres. O voto
convergente é expresso ao reconhecer as lutas
de minorias no Judiciário (“o feminismo tem
acirrado sua luta pela igualdade de direitos”), em
sentido similar ao voto do Relator Luiz Sergio
Fernandes Souza, que consigna que a superação
de estereótipos faz parte da “luta pelo espaço
igualitário da mulher na sociedade”, e que não se
trata de um propósito de um setor radical, mas
sim de um dever de toda a sociedade.
Não é de se menosprezar os efeitos de uma decisão
judicial que se opõe à perpetuação de práticas culturais
discriminatórias e de estereótipos, consistentes com a
injustiça cultural e simbólica aqui discutida. Veja-se, por
exemplo, que em 2017 a Skol (AmBev) modificou
drasticamente sua estratégia de publicidade, investindo
em uma espécie de contrapropaganda lançada no Dia
Internacional da Mulher de 2017 com o slogan
“Redondo é sair do seu passado”65, em que artistas
mulheres fizeram novos pôsteres, substituindo os das
antigas campanhas. A cervejaria reconhece que seus
pôsteres antigos não mais a representam, mas não os
deslegitima em seu contexto. Conforme fala da diretora
de marketing em entrevista para site de notícias, “não é
uma forma de pedir desculpa, é uma forma de evoluir
junto com o mundo, sem negar o que aconteceu de
fato”66.
A Skol alega, portanto, que o contexto social mudou e
que a propaganda em questão se justificava no contexto
anterior. Tanto essa fala da cervejaria quanto as
decisões judiciais analisadas ressaltam a importância do
contexto social para aferição da abusividade da
publicidade, no que diz respeito à discriminação e a
objetificação da mulher. Seria possível, acatando-se um
raciocínio que inocenta a Skol, dizer que não podemos
condenar hoje uma propaganda veiculada em 2006. Os
tempos mudaram, e agora a publicidade dessa natureza
não é aceitável.
No entanto, é importante questionar qual seria o
motor das transformações socioculturais que levam a
percepção da inadequação e ofensividade das
propagandas e demais manifestações culturais de
cunho machista (ou racista, lgbtfóbico, opressor de
modo geral). Não caberia ao Judiciário, também, intervir
nessas práticas, sendo em si um agente ativo (e não
somente passivo) dessas transformações?

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo propõe, em linhas gerais, um resgate e
uma ressignificação da agenda de pesquisa sobre acesso à
justiça, atualmente colocada de escanteio em favor de
pautas economicistas de combate à morosidade e à falta de
efetividade do processo, sempre com um viés quantitativo e
de combate a uma suposta litigiosidade excessiva.
Há um abismo entre essa pauta norteadora das recentes
reformas judiciárias e processuais e as injustiças cada vez
mais escancaradas, que acometem minorias em geral,
especialmente as mulheres, cuja tutela de direitos ainda é
vista muito mais da perspectiva criminal do que da afirmação
e do reconhecimento de seu direito de uma paritária
participação em todas as esferas públicas e privadas
(FRASER, 1995). Essas demandas não estão refletidas
sequer nos marcos teóricos comumente referenciados no
Brasil (em especial o “Projeto Florença”, de Mauro
Cappelletti e Bryant Garth), cujo foco é muito mais
direcionado a uma justiça redistributiva do que a uma justiça
de reconhecimento.
Pensar acesso à justiça para as mulheres perpassa,
portanto, em refletir sobre práticas sociais e culturais
opressoras, e sobre o papel do Judiciário enquanto
replicador ou perpetuador dessas práticas. A análise do caso
da propaganda “musa do verão 2006” pretendeu discutir que
o Judiciário perpetua essas práticas não somente quando
reproduz estereótipos de gênero ou subjuga a mulher, mas
também quando é conivente com representações
opressivas, que objetificam a mulher, como é o caso do
anúncio em questão.
Como propõe Boaventura de Sousa Santos, um
verdadeiro acesso à justiça é aquele em que novas
demandas por direitos provocam a transformação do
sistema jurídico como um todo, em uma verdadeira
revolução democrática da justiça (SANTOS, 2011, p. 38).
Espera-se que essa revolução democratizante implique
também no reconhecimento das injustiças colocadas em
juízo (são novas demandas, mas não necessariamente
novas injustiças) e que o sistema de justiça se coloque como
um agente da transformação culturais e sociais necessária
para efetiva garantia de direitos às mulheres.

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SADEK, Maria Tereza. Acesso à justiça: visão da sociedade. Justitia. no. 65
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jan/jul 2008.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma Revolução Democrática da
Justiça. São Paulo: Cortez, 2011.

52 ACCESS TO JUSTICE AND GENDER STEREOTYPES IN BRAZILIAN COURTS: THE


CASE OF THE AD “SUMMER MUSE 2006”
53 Segundo pesquisa divulgada por meio da Nota Técnica nº 13 do IPEA, apenas 1,04%
dos municípios brasileiros possuíam, em 2013, juizados ou varas exclusivos ou não
exclusivos para o processamento de crimes de violência doméstica e familiar contra a
mulher (IPEA, 2015, p. 23).
54 A exposição do Anteprojeto do Código de Processo Civil de 2015 confirma essa
primazia do discurso de acesso de litigiosidade, que culmina em uma suposição de que o
acesso é um obstáculo ultrapassado: “Como vencer o volume de ações e recursos gerado
por uma litigiosidade desenfreada, máxime num país cujo ideário da nação abre as portas
do judiciário para a cidadania ao dispor-se a analisar toda lesão ou ameaça a direito?
Como desincumbir-se da prestação da justiça em um prazo razoável diante de um
processo prenhe de solenidades e recursos? Como prestar justiça célere numa parte desse
mundo de Deus, onde de cada cinco habitantes um litiga judicialmente? (BRASIL, 2010, p.
7).
55 Diz-se ao menos normativamente, pois como a pesquisa do IPEA sobre sobre a
“Tolerância Social à violência contra as mulheres” revela, o bordão “em briga de marido e
mulher, não se mete a colher” ainda possui grande permeabilidade social: questionados se
concordavam com essa afirmação, apenas 11,1% discordaram totalmente; 5,3%
discordaram parcialmente; 1,4% ficaram neutros; 23,5% concordaram parcialmente e um
surpreende percentual de 58,4% concordaram totalmente (IPEA, 2014, p. 15).
56 “As desigualdades de gênero entre homens e mulheres advêm de uma construção
sócio-cultural que não encontra respaldo nas diferenças biológicas dadas pela natureza.
Um sistema de dominação passa a considerar natural uma desigualdade socialmente
construída, campo fértil para atos de discriminação e violência que se “naturalizam” e se
incorporam ao cotidiano de milhares de mulheres. As relações e o espaço intra-familiares
foram historicamente interpretados como restritos e privados, proporcionando a
complacência e a impunidade (SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES,
Exposição de Motivos n° 016, 2010).
57 O vídeo da propaganda ainda pode ser acessado no Youtube (disponível
https://www.youtube.com/watch?v=IZlIdMPDlzw, acesso em 3 mai. 2017).
58 “A intervenção administrativa não repercute com força vinculativa e cabe examinar com
liberdade o referido anúncio, competindo, em primeiro plano, advertir que haverá sempre
algo de fantasioso nos filmes comerciais (“nenhuma lingerie é usada por mulheres feias”),
exemplifica FÁBIO ULHOA COELHO, in Doutrinas Essenciais: Responsabilidade Civil, RT,
coordenação de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, 2010, vol. VIII, p. 546.
Cabe ao espectador separar a ficção do que é real, filtrando o aceitável e rejeitando a
grosseria e a leviandade, sem se esquecer que a propaganda deve chamar a atenção e
despertar o desejo de consumo, caso contrário não alcança sua função. Um exemplo
citado como ofensivo é de se publicar, em jornais e revistas de intensa circulação, piadas
de estrangeiros classificados como burros (MARIA LUIZA DE SABOIA CAMPOS,
Publicidade: responsabilidade civil perante o consumidor, Cultural Paulista, 1996, p. 259)”.
(p. 5).
59 Cumpre observar que exemplo utilizado pelo autor citado no voto (“nenhuma lingerie é
usada por mulheres feias”) revela que não há, na referida doutrina, qualquer reflexo da
discussão dos efeitos culturais da perpetuação de estereótipos, debate esse do qual o
julgado se exime. Não se questiona ideário de beleza imposto pelas propagandas e a
objetificação da mulher como práticas potencialmente opressivas.
60 “Mesmo aproveitando um estereótipo de mulher que não corresponda à realidade e uma
espécie de desejo masculino que também não seja louvável ou generalizado, não há
intenção de menoscabar o sexo feminino” (TJSP, Apelação nº 9000005-45.2009.8.26.0100,
26.04.2012, p. 8).
61 “Essa opção de mercado não permite que se faça uma interpretação moralista ou
radical de tais situações, porque a própria conquista da igualdade dos sexos também deve
trazer o discernimento, o amadurecimento e a tolerância adequada para que se encarem e
se discutam os mais emblemáticos temas e manifestações envolvendo os gêneros,
respeitados os valores da seriedade e da decência” (p. 8).
62 O julgado cita o inciso III do antigo art. 469 (“Não fazem coisa julgada: III – A apreciação
da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo”), muito embora fale
expressamente que “os motivos invocados no julgamento não fazem coisa julgada”, do que
se infere que possivelmente houve um erro de referência ao inciso do dispositivo. De toda
forma, é importante pontuar que o CPC/2015 passou a prever a possibilidade de extensão
dos limites objetivos da coisa julgada a questões prejudiciais (ou seja, questões cuja
apreciação é prejudicial ao julgamento das questões de mérito) se presentes os requisitos
do art. 503, §1º: (i) questão decidida expressa e incidentemente no processo; (ii) de sua
resolução depender o julgamento do mérito; (iii) a seu respeito tiver havido contraditório
prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia; (iv) o juízo tiver competência em
razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal; (v) não houver no
processo restrições probatórias ou limitações à cognição que impeçam o aprofundamento
da análise da questão prejudicial. Esse dispositivo somente será aplicado a processos
judiciais ajuizados após a vigência do CPC/2015, conforme disposto nas suas disposições
transitórias (art. 1.054). Assim, ainda que se pretendesse arguir que a apreciação do
caráter ofensivo da publicidade seria uma questão prejudicial, o que não parece pertinente,
tendo em vista que não se discute a existência de relação jurídica (como se previa no art.
5º do CPC/1973), a extensão dos limites da coisa julgada às questões prejudiciais não
pode ser aplicada ao presente caso, em que ambas as demandas foram ajuizadas ainda
na vigência do CPC/1973.
63 “E o abuso, ou a configuração dele, independe do elemento subjetivo, vale dizer, da
intenção, da boa-fé ou da má-fé do idealizador da campanha publicitária ou do agente que
a patrocina, caracterizando-se a abusividade pelo dano potencial que pode causar a
valores não econômicos, não importando a extensão ou intensidade”. O voto convergente
também argumenta nesse sentido: “Observe-se que não se pretende aqui analisar a efetiva
ofensividade da peça publicitária (pois cada consumidor potencial reagiria diferentemente à
propaganda), mas, à semelhança do tratamento dado à publicidade infantil, busca-se coibir
o potencial abusivo da mensagem”.
64 “A luta pelo espaço igualitário da mulher na sociedade é tema que ganha cada vez mais
força no mundo. No momento em que a sociedade busca proscrever a ideia de que o
gênero feminino é mero objeto de prazer, não se pode legitimamente sustentar que a
valorização da mulher seja vista apenas como uma bandeira de determinado setor (radical)
da sociedade. Todos estão envolvidos com a superação de estereótipos grosseiros, lugar
comum sempre presente quando o assunto é publicidade.
Não se trata de exercer o direito de tolerância, tampouco de romper com uma certa
hipocrisia social, na linha do “politicamente correto”, mas de perceber que a estética
feminina, por mais apreciável que seja, não se confunde com lata de cerveja, produto que
as pessoas consomem e depois jogam fora. É certo que, em tempos de racionalidade
instrumental (Horkheimer) e de modernidade líquida (Bauman), tudo é disponível,
descartável. Mas a filosofia contemporânea, ao mesmo tempo em que interpreta o mundo a
nossa volta, denuncia, faz pensar. E é terrível perceber o quão desagregadora pode ser
uma mensagem publicitária, promovida a peso de ouro, que penetra na casa das pessoas
sem pedir licença. De mais a mais, a televisão é serviço público, atuando as empresas,
neste ramo, mediante concessão” (p. 14-15).
65 Conforme descrição da campanha no site da agência de publicidade F/Nazca: “O
mundo mudou. Evoluiu. E a SKOL, que vem incorporando cada vez mais a pluralidade, a
inclusão e o respeito em sua postura, sabe que algumas de suas peças publicitárias do
passado já não a representam mais. A cerveja iniciou o ano convidando todas as
pessoas a saírem do quadrado, da zona de conforto, e abrirem os olhares para novas
perspectivas e para a beleza que existe nas diferenças. Agora, SKOL cria o movimento
Redondo é Sair do seu Passado. O uso da figura feminina nas campanhas, como foi feito
no passado, não representa já há algum tempo o posicionamento da marca e este projeto
nasce para legitimar a evolução de SKOL. Oito artistas foram convidadas para fazerem
releituras de pôsteres antigos da marca e mostrarem, com a sua arte, as mulheres do jeito
que SKOL as vê, fortes e independentes. São elas: Eva Uviedo, Elisa Arruda, Carol
Rosseti, Camila do Rosário, Manuela Eichner, Tainá Criola, Sirlaney Nogueira e Evelyn
Queiroz, a Negahamburguer. Como resultado, surgiram diferentes visões e estilos, mas o
mesmo ponto em comum: a mulher empoderada. O processo de criação das novas peças
deu origem a um filme para o digital, que entrou no ar ontem a noite, Dia Internacional da
Mulher, na página da cerveja no Facebook. Além disso, no site da SKOL haverá
informações sobre as artistas e o trabalho que realizam, detalhes sobre a produção de
cada pôster e um espaço para as pessoas indicarem bares e outros pontos de venda
que eventualmente ainda tenham peças antigas, para que essas possam ser substituídas”.
Disponível em: http://www.fnazca.com.br/index.php/2017/03/09/reposter/. Acesso em: 5
mai. 2017.
66 “Skol lança ação para trocar cartazes machistas de bares”, G1, 13 mar. 2017.
Disponível em http://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/skol-lanca-acao-
para-trocar-cartazes-machistas-de-bares.ghtml. Acesso em: 5 mai. 2017.
VII
A NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DAS
POSIÇÕES DICOTÔMICAS SOBRE O
FEMINICÍDIO NO BRASIL: REFLEXÕES
INTRODUTÓRIAS67

Denise Almeida de Andrade


Pós-doutoranda (CAPES-PNPD) em Direito Político e Econômico pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutora e Mestre em Direito Constitucional
pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR.

Monica Sapucaia Machado


Doutoranda (CAPES-PROSUP) e Mestre pelo Programa de Mestrado e Doutorado
em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Especialista em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas. Advogada.

Humberto César Temoteo Ribeiro


Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Especialista em Direito Público pela
Universidade Anhanguera.

Resumo: O feminicídio foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei no


13.104/2015, e tem dividido opiniões sobre seu potencial de contribuir, significativamente,
para a diminuição dos altos índices de violência contra a mulher. Objetiva-se com este
texto realizar uma reflexão introdutória sobre os prováveis benefícios e perdas oriundos
desta alteração no Código Penal. O texto foi construído por meio de pesquisa bibliográfica,
em artigos e livros nacionais e estrangeiros, bem como da consulta e análise de
documentos produzidos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Para tanto,
será apresentado o panorama violência contra a mulher na cidade mexicana Ciudad
Juarez, que protagoniza quase três centenas de assassinatos de mulheres no período de
dez anos, o que destacou o México no cenário dos países latino-americanos. Em seguida,
serão indicados o conceito, a função e as características gerais que uma qualificadora
possui no arcabouço normativo nacional, para, ao final, serem pontuados os ganhos e
retrocessos que já podem ser observados pela inserção do feminicídio no artigo 121 do
Código Penal.
Palavras-chave: Ciudad Juarez. Feminicídio. Qualificadora.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No Brasil, assim como em vários países latino-
americanos, a violência de gênero contra a mulher68 ainda é
uma realidade a ser enfrentada. De acordo com o Mapa da
Violência (WAISELFISZ, 2015, on line), a estimativa é de
que, em 2013, tenham sido praticados, aproximadamente, 7
feminicídios diários no Brasil (considerando como autor, um
familiar).
Pretende-se, destarte, contribuir para uma melhor
compreensão do contexto em que se insere o feminicídio. A
situação vivenciada pelas mulheres brasileiras torna a
análise da Lei no 13.104/2015 (que inseriu o feminicídio no
inciso VI, do Código Penal brasileiro) essencial ao
entendimento sobre o real potencial desta alteração se
traduzir em ferramenta útil ao enfrentamento desse
problema. Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica,
com a consulta a artigos e livros nacionais e estrangeiros, e
documental.De início, o caso da Ciudad Juarez69, no México,
servirá de esteio para a demonstração de que o feminicídio
afeta toda a região da América Latina e guarda semelhanças
com a realidade de outros Estados, a exemplo do Brasil;
desta forma, esta experiência pode auxiliar no
amadurecimento das reflexões feitas sobre a realidade
brasileira.
Em seguida, entende-se relevante tecer breves
esclarecimentos sobre o conceito de qualificadora para o
Direito Penal nacional, bem como de suas características
gerais e de seu papel na tipificação dos delitos ou
recrudescimento das penas.
Por fim, ponderações contrárias e favoráveis à inserção
do feminicídio no CP brasileiro serão apresentadas, no
intuito de contribuir para o melhor conhecimento das
múltiplas facetas da questão, além de indicar que o
pensamento dicotômico não auxilia na superação da
violência contra a mulher, ao contrário, enfraquece os
debates e as ações dos atores efetivamente comprometidos
com o enfrentamento deste problema.

2. BREVES NOTAS SOBRE A EXPERIÊNCIA DE


TIPIFICAÇÃO DO FEMINICÍDIO: UMA REFLEXÃO SOBRE
O CASO DE CIUDAD JUAREZ - MÉXICO
A Organização das Nações Unidas – ONU define a
violência contra a mulher como “any act of gender based
violence that results in, or is likely to result in, physical,
sexual or psychological harm or suffering to women”70 (ONU,
1993). Nesse artigo, o Feminicidio será entendido como o
assassinato de mulheres motivado por sua condição de
pessoa do sexo feminino, por motivos de gênero, isto é, em
que sua condição de mulher influenciou o agressor.
Na década de 1990, a América Latina iniciava um
processo de alteração legislativa71 em que buscou
estabelecer novos parâmetros de atuação no enfrentamento
à violência contra a mulher. Percebeu-se, neste momento, a
preocupação com medidas preventivas e educativas,
alinhadas à urgente necessidade de compreensão, para
uma efetiva superação, das principais causas desta espécie
de violência72.
A maior visibilidade na mídia para a gravidade destes
crimes; a mitigação de falas e comportamentos que
contribuíam para a (re)vitimização das mulheres e
insensibilidade social “em briga de marido e mulher não se
mete a colher”; a proibição, no Brasil, da aplicação da Lei n°
9099 (referente aos crimes de menor potencial ofensivo) nos
casos de violência doméstica foram alguns dos ganhos
deste processo de mobilização social, que possibilitou,
inclusive, modificações legislativas no início do século XXI.
Todavia, o grande número de mulheres violentadas por
parceiros e ex-parceiros permaneceu alto, e em ascensão.
Neste sentido, a partir anos 2000, registrou-se uma
tendência, na América Latina, de tipificar o feminicídio -
homicídio de mulheres praticado por homens73, com os
quais, via de regra, mantinham relação próxima e/ou
afetiva74 - como um delito autônomo.
Feminicídio é a expressão extrema da violência contra a
mulher, indica que o homicida possui a compreensão
misógina de que a mulher é sua propriedade, não possui
autonomia ou liberdade, é menos capaz (ou incapaz) de
tomar decisões relevantes; e, por características particulares
de sua prática, este crime careceria de tratamento
diferenciado: “la forma más extrema de terrorismo sexista,
motivada por odio, desprecio, placer o sentimiento de
propiedad sobre las mujeres” (apud VÀSQUEZ, 2009).
Dentre várias justificativas favoráveis à retirada do
feminicídio do rol dos homicídios gerais, destacam-se: 1) o
alto índice registrado nos países latino-americanos dos
assassinatos de mulheres em razão de serem mulheres; e 2)
as especificidades que envolvem a prática delituosa, como
instrumentos utilizados contra a vítima e local do crime
(residência da vítima), circunstâncias que não se diferenciam
da maioria dos homicídios gerais, e que precisam ser
mapeadas a fim de que se avance em seu combate.
O antecedente direto da palavra feminicídio é a palavra
inglesa femicide, utilizada por Diana Russell75, em 1976, no
Tribunal Internacional sobre crimes contra as mulheres, em
Bruxelas, oportunidade que lhe garantiu repercussão
internacional. A autora (RUSSELL, 2011, on line) afirma ter
usado o termo para demonstrar que há um ódio mortal de
alguns homens contra as mulheres, que culmina por
autorizar seu assassinato.
A incorporação da palavra feminicídio na realidade latino-
americana deveu-se, prioritariamente, às contribuições de
Marcela Lagarde, deputada mexicana, quem cunhou o termo
feminicídio, ao traduzir o texto de Diane Russell (2011, on
line) sobre femicide, optando por feminicídio e não
femicídio76. Para Lagarde (2008, p. 216) “El feminicidio es el
genocidio contra mujeres y sucede cuando las condiciones
históricas generan prácticas sociales que permiten atentados
violentos contra la integridad, la salud, las libertades y la vida
de niñas y mujeres”.
A participação de Lagarde nas discussões sobre o
femincídio na América Latina, transcende a incorporação do
termo aos escritos e debates, pois apresentou, como
deputada, a primeira lei penal que tipificava o feminicídio
como delito autônomo, em fevereiro de 2006.
O Estado mexicano aprovou, em fevereiro de 2007, a Ley
General de Acceso de las Mujeres a una Vida libre de
Violencia77, que não manteve o texto original proposto por
Lagarde, mas estabeleceu parâmetros e obrigações de
atuação dos entes públicos, nas esferas da prevenção,
proteção e assistência às mulheres vítimas de violência,
bem como determinou que os órgãos de segurança pública
(municipais, estaduais ou federais) atuem de forma a prestar
um atendimento adequado e especial a todas as mulheres
vítimas desta espécie de violência (VÁSQUEZ, 2009, p.
110). Vale apontar que apesar de a Ley General não ter
incorporado expressamente o feminicídio ao arcabouço
normativo mexicano, a proposta de Lagarde é um marco nas
discussões sobre a violência contra a mulher.
Vale ressaltar que experiência do México se tornou
referência nos debates sobre feminicio, porque é uma
população que vive em meio a um panorama de altas taxas
de violência, de múltiplas espécies, e pulverizada em todo o
território do país (ALBUQUERQUE; VEMALA, [s d]).
É preciso salientar as razões que levaram a violência
contra a mulher a se destacar e demandar a atenção,
mesmo em uma realidade de violência endêmica no país,
inclusive, acarretando que o Sistema Interamericano de
Direitos Humanos elaborasse um relatório sobre a situação
dos direitos das mulheres na Ciudad Juarez (CIDH, 2003).
A realidade de Ciudad Juarez78, localizada na fronteira
com os Estados Unidos, pode ser traduzida no número de
26879 mulheres assassinadas entre os anos de 1993 e 2002
(ano de elaboração do documento), de acordo com relatório
publicado no ano seguinte (CIDH, 2003).
O relatório ratificou a situação de violência que afeta,
indistintamente, homens, mulheres e crianças, entretanto,
apontou a impunidade e a dificuldade/morosidade para a
apuração dos casos que envolviam a morte de mulheres
como diferença crucial entre as situações.

The present report deals with the situation of violence against women in
Ciudad Juárez. It looks closely at the killings that have taken place since
1993, and gives equal attention to other manifestations of violence
against women and to the different forms of gender-based discrimination
that underlie such violence. While Ciudad Juárez as a locality is
marked by a number of special challenges, including high levels of
violence that affect men, women and children, the levels of violence
against women, and the impunity in which most cases remain show
that the gender dimensions of this violence have yet to be
effectively addressed. (grifou-se) (CIDH, 2003).

O documento é resultado de uma visita à Ciudad Juarez e


da compilação de informações (documentos e estatísticas)
prestadas por diversas fontes, como a prefeitura da Ciudad
Juarez, organizações não governamentais, mídia, bem como
de entrevistas realizadas com representantes do poder
público, membros da sociedade civil e familiares das vítimas.
Desta forma, a CIDH pretendeu albergar a maior diversidade
possível de interlocutores atrelados, de alguma forma, às
vítimas e à apuração dos crimes.
A brutalidade e frequência com que as mortes ocorreram
desde 1993 exigiu a atenção da CIDH, especialmente, pela
percepção de que não estava sendo dado o devido
andamento à apuração dos assassinatos, em que pese a
truculência presente nos assassinatos, o que, via de regra,
mobiliza o aparato estatal de maneira mais eficiente.

When hundreds of nongovernmental organizations began contacting the


Special Rapporteur about the situation of women in Ciudad Juárez in late
2001, the key concern set forth was that the killing of over 200
women since 1993 had been left in impunity. The victims were killed
brutally: many were raped or beaten before being strangled or
stabbed to death. A number of the bodies bore signs of torture or
mutilation80. (grifou-se). (CIDH, 2003).

Os relatos de organizações não governamentais


denunciavam, ainda, que além de a maioria dos crimes
remanescer impune, significativa parte dos que estavam em
apuração eram encaminhados pelas autoridades
responsáveis de maneira inadequada, o que culminava,
muitas vezes, em um tratamento desidioso com os trâmites
de apuração e desrespeitoso/discriminatório aos familiares
das vítimas.
No que se refere às causas que motivaram a perpetração
de tantos homicídios, o próprio relatório da CIDH (2003, on
line) reconhece que as motivações que ocasionaram a morte
de quase 3 centenas de mulheres são, de fato, múltiplas e
perpassam desde o narcotráfico à fragilidade das instituições
do sistema de justiça, o que impede a indicação inequívoca
de um único fator.
Por outro lado, é possível afirmar que há um consenso,
inclusive entre Estado e diversos atores sociais, que a
maioria dos casos estão relacionados com manifestações de
violência de gênero. Esta afirmação pode ser corroborada
pelo significativo percentual de assassinatos nos quais foram
constatadas provas de violência sexual ou outra espécie de
violência doméstica

The killing of women in Ciudad Juárez is strongly linked to and


influenced by the prevalence of domestic and intrafamilial violence.
A review of official data, press reports and nongovernmental reports
indicates that a significant number of killings since 1993 evidently took
place in connection with situations of domestic and intrafamilial
violence. Violence within the family, including battery, sexual abuse and
rape, is certainly not unique to Ciudad Juárez, or to the Mexican State,
for that matter. However, the lack of reliable statistics remains one of
the obstacles in defining the scope of the problem. In fact, the
Special Rapporteurship has encountered no adequate data on the
prevalence of such violence in Ciudad Juárez81. (grifou-se) (CIDH,
2003).

A relação entre um histórico de violência doméstica e


familiar e as mortes em Ciudad Juarez alinha-se à realidade
de várias outras cidades e países latino-americanos. Desta
forma, a experiência mexicana, por meio do caso
paradigmático de Ciudad Juarez, pode ser considerada um
ponto de partida para as discussões sobre a inserção da
qualificadora do feminicídio no Brasil.
As similaridades não se cingem aos altos índices de
violência doméstica, estendem-se à ausência de estatísticas
claras e confiáveis, que impedem a elaboração e
implementação de medidas efetivas de enfrentamento à
violência contra a mulher; à impregnação de
comportamentos e falas machistas e preconceituosas que
revitimizam a família da mulher; à desídia com a apuração
dos crimes em razão da frequência com que ocorrem; estas
são apenas algumas das dificuldades comuns enfrentadas
por ambos os países.

3. CONCEITO E ESCLARECIMENTOS ACERCA DAS


QUALIFICADORAS NO DIREIRO PENAL BRASILEIRO:
UMA REFLEXÃO INICIAL SOBRE A QUALIFICADORA DO
FEMINICÍDIO
As situações previstas como qualificadoras de uma
infração penal conferem novo patamar de pena a
determinado tipo criminal. Isto significa que a(s)
qualificadora(s) estipula(m) novo parâmetro mínimo e
máximo de pena, o qual deve ser observado logo na fase
inicial de sua aplicação (artigo 68 do Código Penal
brasileiro82). Desta forma, o magistrado, já na fixação da
pena-base, (artigo 59 do CP), está adstrito aos limites
previstos de forma abstrata pelo tipo qualificado.
Neste escopo, é importante ressaltar que qualificadora e
causa de aumento de pena (também chamadas de
majorantes) são institutos distintos. De um lado, as
qualificadoras estabelecem a alteração da faixa de fixação
da pena (por exemplo: no homicídio simples a faixa de
fixação da pena é de 06 (seis) a 20 (vinte) anos. No
homicídio qualificado é de 12 (doze) a 30 (trinta); as
majorantes, por sua vez, preveem somente um aumento da
pena, o qual é mensurado na terceira fase da aplicação da
pena, momento em que o magistrado, com arrimo na pena
intermediária atribuída, fixa a pena definitiva.
É consenso na doutrina (FRAGOSO, 1982) que se
justifica a existência de qualificadoras no ordenamento
jurídico brasileiro em razão de situações mais graves do que
a prevista no tipo penal base/fundamental, devendo,
portanto, o legislador, prever e punir tais situações de forma
específica e mais severa, conferindo efetiva proteção ao
bem jurídico tutelado.
Ratifica a afirmação acima, o descrito na Exposição de
Motivos da Parte Especial do Código Penal (1940),
especialmente em seu item 38, ao tratar das qualificadoras
do delito de homicídio, a saber: “´[...] mas todas são
especialmente destacadas pelo seu valor sintomático: são
circunstâncias reveladoras de maior periculosidade ou
extraordinário grau de perversidade do agente” (grifou-
se).
Destarte, o conceito dos tipos qualificados pode ser
deduzido como sendo previsões legais que, em virtude de
circunstâncias específicas, conferem maior reprovabilidade
na conduta do agente criminoso, elevando o patamar
abstrato de pena, atribuído incialmente pelo crime base,
constituindo-se, portanto, em um novo tipo penal derivado
autônomo83.
Percebe-se que as qualificadoras de um crime estão
previstas na Parte Especial do Código Penal, bem como nas
legislações penais extravagantes, nunca na Parte Geral do
Código Penal (NUCCI, 2014). Há, neste escopo, outra
diferença entre qualificadoras e majorantes (causas de
aumento de pena), as quais estão descritas tanto na Parte
Especial do Código Penal e legislação extravagante, quanto
na Parte Especial do Código Penal.
Um crime pode ser qualificado em virtude de várias
circunstâncias, v.g., homicídio por motive torpe ou fútil
(ambas qualificadoras previstas no artigo 121, §2º, CP).
Neste ponto, destaca-se uma controvérsia presente na
doutrina e jurisprudência (conforme será indicado abaixo),
sobre a incidência das qualificadoras em diferentes
hipóteses no mesmo contexto fático criminoso. A seguir, três
posições serão brevemente apresentadas:
a. deve-se utilizar uma delas (qualificadora) para
qualificar o crime, sendo as demais utilizadas
como agravantes genéricas, na segunda fase
de aplicação da pena, desde que,
evidentemente, estejam previstas como tais –
artigos 61 e 62 do CP ou circunstâncias
judiciais desfavoráveis quando não previstas.
Esta é a corrente que prevalece nos Tribunais
Superiores, consoante precedentes, (STF, HC
100835, 1ª Turma, julgado em 27/04/2010; STF,
HC 85414, 2ª Turma, julgado em 14/06/2005),
dentre os quais se destaca o Habeas Corpus
220624/RS, impetrado junto ao Superior
Tribunal de Justiça, e julgado pela 5ª Turma, em
10/11/2015:
Conforme orientação jurisprudencial dessa Corte, havendo mais
de uma circunstância qualificadora reconhecida no decreto
condenatório, apenas uma deve formar o tipo qualificado,
enquanto as outras devem ser consideradas circunstâncias
agravantes, quando expressamente previstas como tais, ou
circunstâncias judiciais desfavoráveis, de forma residual (STJ, HC
220624/RS, 2015, on line).

b. utiliza-se uma como efetiva qualificadora, e as


demais como circunstâncias judiciais
desfavoráveis ao condenado, sendo aplicadas
ainda na primeira fase – fixação da pena-base;
c. considera-se que somente uma qualificadora
pode ser utilizada, devendo as demais serem
desprezadas; trata-se de corrente minoritária,
encontrando-se diversas críticas,
principalmente, por violar o princípio da
isonomia constitucional.
No que se refere ao inciso VI do artigo 121, do CP, inserto
pela Lei n no 13.104/2015, o qual criou o tipo qualificado do
feminicídio junto ao crime de homicídio, incluindo-o,
conforme as demais circunstâncias qualificadoras do
homicídio, como um delito hediondo (artigo 1º, I, da Lei n no
8072/1990), consoante parecer do projeto de Lei no 292 de
2013 do Senado Federal, o qual deu origem à referida
norma, observa-se como justificativa para sua criação:

O anseio pelo agravamento da punição penal nessas situações decorre


do aumento de homicídios praticados contra mulheres. No Brasil, entre
os anos de 2000 e 2010, 4.3 mil mulheres foram assassinadas, sendo
essa uma tendência em toda a América Latina. Entre 1980 e 2010,
dobrou o índice de assassinatos de mulheres no país, passando de 2,3
assassinatos por 100 mil mulheres para 4,6 assassinatos por 100 mil
mulheres. Esse número coloca o Brasil na sétima colocação mundial em
assassinatos de mulheres, figurando, assim, dentre os países mais
violentos do mundo nesse aspecto. [...] A tipificação do feminicídio ainda
visa impedir o surgimento de interpretações jurídicas anacrônicas e
inaceitáveis, tais como as que reconhecem a violência contra a mulher
como ‘crime passional’. Países como México, Guatemala, Chile, El
Salvador, Peru, Nicarágua e Argentina já incorporaram a figura do
feminicídio às suas legislações penais. [...] No nível internacional, a
Organização das Nações Unidas exortou seus países membros a tomar
ações nesse sentido, a fim de reforças sias legislações e,
consequentemente, assegurar a devida investigação e punição dos
agressores. A lei deve ser vista como um ponto de partida, e não de
chegada, na luta pela igualdade de gênero e pela universalização dos
direitos humanos.

Ainda sobre a violência contra a mulher no Brasil e a


dificuldade de sua superação: “a violência baseada no
gênero era naturalizada ou mesmo ignorada pelo direito
penal levando à conclusão de que os direitos humanos das
mulheres não eram objeto de proteção adequada”
(CAMPOS, 2015, p. 105).
Como consignado, na 57ª Sessão da Comissão sobre o
Status da Mulher da ONU, realizada em 15 de março de
2013, tem-se, no item E, a recomendação: “fortalecer a
legislação nacional, se for o caso, punir crimes violentos
relacionados com o gênero, assassinatos de mulheres e
meninas e integrar mecanismos ou políticas específicos para
prevenir, investigar e erradicar tais formas formas
deploráveis de violência baseada no gênero” (ONUMulheres,
2013, on line).
No âmbito internacional, uma série de tratados alçaram à
condição inequívoca de direitos humanos direitos
relacionados à defesa da igualdade entre homens e
mulheres e à erradicação da violência de gênero, dentre os
quais destacam-se: a) Convenção sobre a Eliminação de
todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(CEDAW), de 1979, ou Convenção da Mulher - promulgada
pelo Decreto no 89.460 de 20/03/1984; b) Protocolo
Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra a Mulher – promulgado pelo
Decreto no. 4.316 de 30/07/2002; c) Declaração sobre a
Eliminação da Violência contra as Mulheres – proclamada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução
48/104 de 20/12/1993, e; d) Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher,
denominada de “Convenção de Belém do Pará” –
promulgada pelo Decreto no 1.973 de 01/08/1996.
Destaca-se, nesse ponto, a discussão quanto à natureza
da qualificadora do feminicídio, e, consequentemente, a
possibilidade de ocorrer um femicídio-priviegiado. É pacífico
o entendimento de que é possível incidir no crime de
homicídio, ao mesmo tempo, privilégio(s) e qualificadora(s),
desde que esta(s) seja(m) de natureza objetiva (isto é,
refira(m)-se a um dos modos de exexução do crime). Nesse
caso, ter-se-á a figura do homicídio privilegiado-qualificado.
Os que defendem que a qualificadora possui natureza
objetiva salientam que a violência de gênero é uma condição
de fato que não se confunde com o motivo. Destarte, as
circunstâncias subjetivas previstas como privilégio (artigo
121, §1º, do CP) seriam compatíveis com circunstâncias
objetivas (ligadas ao modo, meio ou forma de execução),
possibilitando a formação da figura típica do feminicídio-
privilegiado.
Em contrapartida, os que sustentam tratar-se o feminicídio
de uma qualificadora subjetiva84 afirmam que a violência de
gênero não é um meio, um modo ou uma forma de execução
do delito, mas sim a razão pela qual o sujeito mata a pessoa,
no caso, uma mulher. Por essa razão, não seria possível
existir o tipo penal feminicídio-privilegiado.
Entende-se que, de fato, não se pode admitir o
feminicídio-privilegiado, uma vez que entendimento diverso
seria, incongruente, inclusive, com sua proposta teleológica.
Ressalta-se que a Lei no 13.104/2015, mantendo
conformidade com as demais qualificadoras do crime de
homicídio, também alterou a Lei no 8072/1990, em especial
o inciso I, do artigo 1º, o qual passou a prever igualmente
como crime hediondo o feminicídio.

4. A URGÊNCIA DE SE SUPERAR ANÁLISES


DICOTÔMICAS: LIMITAÇÕES E CONTRIBUIÇÕES DA
QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO PARA O
ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Reconhece-se a impossibilidade de as normas jurídicas
superarem problemas e injustiças sociais, especialmente,
quando se verifica a escassez de espaços e oportunidades
de discussão com a sociedade em geral, a fim de que as
diversas vivências possam ser partilhadas e consideradas
na elaboração das normas.
O arcabouço jurídico de uma sociedade é um dos vários
espectros que auxiliam na compreensão de como as
relações de poder se organizam, o que impacta diretamente
na forma de lidar com as heterogêneas relações sociais.
Parece haver um superdimensionamento do potencial
transformativo do Direito, uma vez que, não raro, tem-se a
expectativa de alteração de práticas socioculturais históricas
por meio da modificação de uma norma jurídica, seja penal,
cível, trabalhista, previdenciária etc.
Neste escopo, é que se entende que apontar possíveis
ganhos e prejuízos oriundos da tipificação do feminicídio no
Brasil é o primeiro passo para uma avaliação robusta sobre
referida inserção.
A priori é importante, contudo, reconhecer que quaisquer
resultados oriundos de alteração legislativa, seja simples ou
complexa, positivos ou negativos, não são aferidos de forma
imediata; considerando que a qualificadora do feminicídio foi
inserida há pouco mais de 2 anos no ordenamento jurídico
brasileiro, há uma limitação da análise aqui apresentada, o
que impõe a periodicidade de reflexões desta natureza, nos
próximos anos.
As atas85 do processo de aprovação da qualificadora do
feminicídio (artigo 121, VI, do CP) não serão objeto de
estudo neste artigo, todavia, merece ser dito que da leitura
dos referidos documentos afere-se a tentativa de se dar
continuidade aos avanços implementados pela Lei no
11.340/2006 – Lei Maria da Penha. Necessário que se
reconheçam as deficiências, especialmente no que se refere
à prevenção e medidas educativas, na aplicação da
mencionada Lei, mesmo após 11 anos de sua publicação.
Todavia, também se verifica ganhos, como a maior
visibilidade da violência contra a mulher.
Neste sentido, entende-se que a inserção do feminicídio
no CP brasileiro não foi uma ação desconexa, dissociada de
medidas já existentes; houve uma articulação com políticas
públicas (ainda que passíveis de críticas) em andamento,
bem como com legislação anterior (como a própria Lei Maria
da Penha e a alteração do CP, Lei no 12.015/2009, ao
modificar o texto de dispositivos e a denominação do título
VI para “dos crimes contra a dignidade sexual), o que se
contrapõe à crítica de que se tratou de uma alteração
isolada.
Organismos internacionais de defesa dos direitos das
mulheres, como a ONU Mulheres (2016, on line), tem se
posicionado de maneira favorável à inserção de tipos penais
específicos como o feminicídio, pois defendem que os altos
índices de homicídios praticados contra a mulher, em razão
de sua condição de pessoa do sexo feminino, exigem uma
atuação pública diferenciada.
Ao afastar esses crimes das estatísticas e avaliações
genéricas sobre homicídio, enfatiza-se a brutalidade
vivenciada cotidianamente pelas mulheres; ao mesmo
tempo, aumenta-se a exigência de elaboração de
estatísticas adequadas, as quais, para esta espécie de
crime, devem albergar informações sobre vítima e agressor
(sexo, idade, endereço, etnia, condição socioeconômica),
dados sobre o local e os meios utilizados para a prática do
ato delituoso, a relação da vítima com o agressor, o histórico
de agressões anteriores etc. dados essenciais para subsidiar
políticas públicas eficientes, que são menosprezados
quando se mantem o feminicídio no rol dos homicídios
comuns.
Um outro ganho apontado à presença do feminicídio no
CP é a sua contribuição para que se supere a aproximação
que ainda se faz entre o feminicídio e os denominados
crimes passionais. A mídia (seja a televisão como meio de
comunicação de massa, as redes sociais, revistas e jornais
impressos) mantem, não raro, manchetes e matérias
identificando o feminicídio com os crimes passionais.
Presta-se um desserviço à população e às instituições
que compõem o sistema de justiça brasileiro com essas
práticas, na medida em que se mitiga o principal fator para o
assassinato de mulheres por parceiros e ex-parceiros, que é
o machismo exacerbado, que despreza e coisifica a mulher.
Neste mesmo sentido, tem-se a tentativa (equivocada!) de
construir um estereótipo único para os homens agressores,
o de monstros. Ainda que o uso desta linguagem busque,
por vezes, maximizar o alerta para o descompasso da
conduta (v. g. tirar a vida de uma mulher porque ingressou
com o pedido judicial de divórcio), auxilia sobremaneira para
não se discutir o que está no bojo desses crimes, que se
acredita ser a misoginia, o desprezo pela mulher: “Fixation
on the pathology of perpetrators of violence against women
only obscures the social control function of these acts”
(CAPUTI; RUSSELL, 1992, p. 14).
Ambos os caminhos acima indicados, reforçam o silêncio
sobre os reais resultados de décadas de descaso com os
altos índices de violência praticados contra a mulher no
Brasil, especialmente, por parceiros e ex-parceiros. Neste
cenário, dispor de norma penal individualizada como o
feminicídio seria um meio de se romper a barreira da
indiferença.
Por outro lado lado, as discussões apresentadas,
preferencialmente, pelos defensores do direito penal mínimo
e do abolicionismo penal86 (ANDRADE, 2006) guardam
compromisso com a realidade brasileira, uma vez que a lei
penal tem historicamente como destinatário pessoas de
baixo poder social e econômico, haja vista as atuais
estatísticas sobre a população carcerária brasileira.
Ainda de acordo com as construções do direito penal
mínimo, para se ter um Estado Democrático de direito, é
imprescindível que o Estado tenha uma “estratégia da
máxima contenção da violência punitiva” (BARATTA, 2003,
p. 4), em especial porque os apenados tendem a ser a
população mais pobre e vulnerável.
Defende-se que o encarceramento do agressor não
resguarda a vítima, tampouco ressocializa o preso, ao
contrário, potencializa comportamentos violentos, os quais
serão reproduzidos se não com a mesma vítima (em caso de
reconciliação) com outras mulheres. Altera-se a vítima, mas
se mantém o cenário de violência contra a mulher.
O sexismo é uma construção cultural reforçada
diariamente por diversos ambientes como as escolas, os
meios de comunicação, a família, logo, seria necessário
modificar as estruturas sociais, promover a igualdade para,
de fato, transformar a vida das mulheres.
O direito penal simbólico entende, ainda, que a tipificação
não auxilia na garantia do direito das mulheres, mas sim
reforça seu lugar de vítima, como apontou Rosario González
Arias “reduz tudo a uma lógica binária de culpáveis e
vítimas, simplifica a cena social a uma ideia muito básica”
(CLADEM, 2012, p.208).
Outra reflexão contrária à tipificação da qualificadora do
Feminicídio é a de que não haveria real aumento de pena
(quando da aplicação da pena pelo magistrado), tendo em
vista que os homicídios desta natureza historicamente já era
qualificados por motivo torpe, e, por vezes, duplamente
qualificado, o que garantiria, inclusive, sua inserção no rol
dos crimes hediondos.
Em que pese esse argumento ser razoável, ressalta-se
que o enquadramento da conduta delituosa é da alçada da
autoridade policial, a partir de seu livre convencimento, não
havendo, pois, possibilidade de imposição de um
entendimento padrão, o que gera uma margem de
possibilidade para o não enquadramento desses crimes
como homicídios qualificados (ainda que se reconheça a
excepcionalidade dessa escolha). Ademais, o que se pode
afirmar é que não haveria um significativo aumento de pena,
contudo, é possível e provável que haja sim o
recrudescimento da pena, a depender do juízo.
O que se verifica, pois, é que tanto os argumentos
contrários quanto os favoráveis à tipificação do Feminicidio
não intentam absolver o agressor ou culpabilizar a mulher.
Há, na verdade, um esforço para pensar e elaborar
mecanismos eficientes de enfrentamento à violência contra a
mulher, o que, ressalte-se, não pode, de fato, se resumir à
esfera penal.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É imprescindível reforçar que identificar o feminicídio com
crimes passionais é uma excrecência, não apenas jurídica
mas também moral, pois justificar, no século XXI, o
assassinato de uma mulher que por descontrole oriundo do
excesso de amor, é, no mínimo, revitimizar a mulher e sua
família. Diante disto, todas as discussões que contribuam
para essa superação são relevantes e devem ser
respeitadas.
Ratifica-se a já mencionada limitação das reflexões aqui
apresentadas tendo em vista a recente alteração do CP, em
comento, que conta apenas com dois anos. Contudo,
acredita-se que se pode obter ganhos com um corpo
legislativo bem elaborado, que subsidie ações políticas e
judiciais comprometidas com a superação de problemas
históricos, como a violência contra a mulher, o demanda
uma contínua análise do arcabouço jurídico, incluindo as
primeiras impressões sobre uma alteração normativa.
Neste sentido, entende-se que todas as críticas, supra
indicadas, à inserção do inciso VI ao artigo 121 do CP são
pertinentes, pois impedem a estagnação dos esforços,
publicizam os recrudescentes desafios do sistema de justiça
brasileiro e denunciam a “seletividade” do sistema
penitenciário brasileiro, questões que não podem ser
alijadas das discussões sobre a violência contra a mulher.
É inequívoco que concentrar esforços na punição do
agressor dentro do atual modelo, na maioria das vezes, vai
tão somente mudar a vítima da agressão. Ao cumprir sua
pena, o agressor retoma suas relações sociais e íntimas e
reinicia o ciclo de violência com outra mulher. Construir
caminhos voltados à reabilitação do homem que agride é
atuar, diretamente, no enfrentamento à violência contra a
mulher.
Por outro lado, diante da necessidade de medidas
urgentes e que apresentem algum resultado a curto prazo,
entende-se como positiva a presença do feminicídio na
legislação penal, especialmente, como uma tentativa de
reforçar o compromisso do Estado com o tema e conferir
algum consolo à vítima e sua família, por perceberem que a
brutalidade desses crimes está devidamente reconhecida
pelo poder público.
Reconhece-se que esse passo é pequeno e restrito no
contexto complexo da violência contra a mulher, por isso a
relevância de se construir espaços de diálogos
colaborativos, a fim de que as contribuições das diversas
áreas do conhecimento e instituições públicas e privadas
que atendem mulheres vítimas de violência doméstica
possam redundar em alternativas possíveis de serem
implementadas e eficientes na redução dos altos índices de
feminicídio.

RFERÊNCIAS

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VASQUEZ, Patsilí Toledo. Feminicidio. Oficina en México del Alto Comisionado
de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos (OACNUDH): México,
2009.

67 THE NEED TO OVERCOME THE DICHOTOMOUS NARRATIVES ABOUT THE


FEMICIDE IN BRAZIL: INTRODUCTORY REFLECTIONS
68 A partir deste ponto, será utilizada a expressão violência contra a mulher como sinônimo
de violência de gênero contra a mulher.
69 De logo, destaca-se que se conhece a peculiaridade dos crimes praticados em Ciudad
Juarez, os quais apesentaram características singulares de perversão e brutalidade.
Apesar disto, pode-se apontar semelhanças as quais se entende que serão úteis para a
análise proposta neste texto.
70 “Qualquer ato de violência motivado pelo gênero que resulte (ou seja provável que
resulte) em agressão ou gere sofrimento físico, sexual ou psicológico” (tradução livre).
71 De acordo com Campos (2015, p. 105), uma primeira geração de leis, neste sentido,
ocorreu de maneira sequenciada: “[...] na Argentina (2009), Bolívia (1995), Brasil (2006),
Chile (2005), Colômbia (2008), Costa Rica (2007), Equador (1995), El Salvador (2010),
Guatemala (2008), Honduras (1997), México (2007), Nicarágua (2012), Panamá (2013),
Paraguai (2000), Peru (1997), dentre outros países”, todas comprometidas com o
enfrentamento da violência contra a mulher, especialmente, a praticada no âmbito
doméstico.
72 Pode-se indicar, como exemplo no Brasil, a Lei Maria da Penha, de 2006, por meio da
qual uma séria de alterações foram inseridas no ordenamento jurídico nacional que se
refere à apuração e ao julgamento dos crimes de violência doméstica contra a mulher, bem
como medidas educativas que visam prevenir a prática do delito e não, somente, minimizar
os efeitos de sua prática.
73 Uma mulher pode ser autora ou co-autora de um feminicídio, apesar de não se ter
registro, no Brasil, após a inserção desta qualificadora no Código Penal de situação que
albergue essa possibilidade.
74 De acordo com Campos (2015, p. 105), uma primeira geração de leis, neste sentido,
ocorreu de maneira sequenciada: “[...] na Argentina (2009), Bolívia (1995), Brasil (2006),
Chile (2005), Colômbia (2008), Costa Rica (2007), Equador (1995), El Salvador (2010),
Guatemala (2008), Honduras (1997), México (2007), Nicarágua (2012), Panamá (2013),
Paraguai (2000), Peru (1997), dentre outros países”, todas comprometidas com o
enfrentamento da violência contra a mulher, especialmente, a praticada no âmbito
doméstico.
75 A própria autora afirma ter primeiro ouvido a palavra femicide em 1974, quando uma
amiga lhe disse que uma autora americana pretendia escrever um livro com esse título. De
logo, Russell compreendeu a relevância da palavra, que seria uma maneira de ressaltar
que o homicídio contra a mulher, por ser mulher, carece de uma configuração não neutral
em relação ao gênero. Apenas anos depois, Russell afirma ter descoberto ser Carol Orlock
a autora mencionada por sua amiga nos idos de 1974 (RUSSELL, 2011, on line):
“Incidentally, when I finally discovered that Carol Orlock was the author who had planned to
write a book on femicide, but had never done so, she told me that she couldn’t recall how
she had defined femicide. She also expressed delight that I had succeeded in resurrecting
this term that now promises to eventually raise global awareness of the misogynist
character of most murders of women and girls, as well as mobilizing women to combat
these lethal hate crimes against us” (RUSSELL, 2011, on line).
76 Lagarde (2004, p. 5) justifica sua escolha pela palavra feminicídio, pois entende que ao
traduzir femicide para o castelhano a palavra perde força, e não confere a devida ênfase ao
“conjunto de delitos de lesa humanidade que contém os crimes e os desaparecimentos de
mulheres”.
77 O artigo 21 da Ley General define a violência feminicida como: “Es la forma extrema de
violencia de género contra las mujeres, producto de la violación de sus derechos humanos,
en los ámbitos público y privado, conformada por el conjunto de conductas misóginas que
pueden conllevar impunidad social y del Estado y puede culminar en homicidio y otras
formas de muerte violenta de mujeres” (VÁSQUEZ, 2009, p. 110).
78 Sabe-se que há pesquisas recentes que indicam que Ciudad Juarez, e outras cidades
de fronteira com os Estados Unidos, não se distanciam de outras grandes cidades no que
se refere aos elevados índices de violência contra a mulher. Ademais, considera-se
essencial que se supere a divulgação de dados e pesquisas que não publicizam a
metodologia utilizada. Todavia, não é o escopo deste artigo analisar referidos aspectos,
cingindo-se as reflexões à narrativa do cenário atual do México e os impactos de sua
trajetória na tipificação do feminicídio na América Latina. Sobre os temas indica-se
(ALBUQUERQUE; LAMADA).
79 Esse número é indicado pelo Estado mexicano, para o período de janeiro de 1993 a
janeiro de 2002, entretanto, a CIDH (2003) indica que há relatos de 285 mortes para o
período de janeiro de 1993 a outubro de 2002.
80 “Quando centenas de organizações não governamentais entraram em contato com o
Relator Especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para tratar sobre a
situação das mulheres na Ciudad Juarez em 2001, a principal preocupação se referiu aos
mais de 200 assassinatos de mulheres, desde 1993, que mantinham-se impunes. As
vítimas foram mortas de forma brutal: muitas foram estupradas ou surradas antes de serem
estranguladas ou esfaqueadas até a morte. Alguns dos corpos mostravam sinais de tortura
ou mutilação” (tradução livre).
81 “As mortes demulheres em Ciudad Juarez está fortelmente vinculada e influenciada pela
violência doméstica e intrafamiliar. Uma análise de dados oficiais, relatórios de imprensa e
relatórios de instituições não governamentais indicam que um número significativo de
mortes desde 1993 evidentemente ocorreram em conexão com situações de violência
doméstica e intrafamiliar. Violência dentro da família, incluindo espancamento, abuso
sexual e estupro, certamente, não ocorrem apenas em Ciudad Juarez ou no México.
Entratanto, a falta de estatísticas confiáveis mntem-se como um dos principais obstáculos
para se definir o escopo do problema. De fato, a relatoria especial não localizou nenhum
dado adequadamente tabulado sobre a prevaçência de violência em Ciudad Juarez.
(tradução livre).
82 A seguir, os autores utilizarão a sigla CP quando se referirem ao Código Penal
brasileiro.
83 “[...] é aquele que se estrutura com base no tipo fundamental, a ele se somando
circunstâncias que aumental ou diminuem a pena” (MASSON, 2011, p. 259).
84 Leia-se, diz respeito ao motivo que levou o agente a cometer o crime.
85 Em 2011, foi instaurada Comissão Parlamenta Mista de Inquérito – CPMI para investigar
fatores e falhas que contribuem para que os índices de violência contra a mulher no Brasil
sejam, assustadoramente, elevados. Em julho de 2013, foi publicado o relatório final da
CPMI, no qual mais de 70 recomendações, para asmais diversas instâncias e instituições
foram apostas, dentre as quais a alteração da legislação penal (SENADO FEDERAL, 2013,
on line).
86 A seguir definições da mesma autora, Vera Andrade (2006) sobre ambos: “Os modelos
minimalistas estão às voltas com a limitação da violência punitiva e com a máxima
contração do sistema penal, mas também com a construção alternativa dos problemas
sociais. É possível divisar, nessa perspectiva, duas linhas: a) modelos que partem da
deslegitimação do sistema penal (concebida como uma crise estrutural de legitimidade)
para o abolicionismo ou minimalismos como meio; e b) modelos que partem da
deslegitimação (concebida como uma crise conjuntural de legitimidade) para a
relegitimação do sistema penal ou minimalismos como fim em si mesmo” (ANDRADE,
2006, p. 174); “O abolicionismo, portanto, e isso deve ficar claro, não implica a ausência de
controle social [...]Trata-se de ultrapassar a mera cobertura ideológica de ilusão de solução
hoje simbolizada no sistema penal, para buscar, efetivamente, soluções (punir x solucionar)
deslocando o eixo tanto de espaço, do Estado para a comunidade, quanto de modelo, de
uma organização cultural punitiva, burocratizada, hierarquizada, autoritária, abstrata,
ritualística e estigmatizante para uma organização cultural horizontal, dialogal, democrática
e local de resposta não-violenta a conflitos que passa por uma comunicação não-violenta”
(ANDRADE, 2006, p. 173).
VIII
A IGUALDADE DE GÊNERO E A
DESDIFERENCIAÇÃO DOS SISTEMAS
SOCIAIS NO ISLÃ: O ESTIGMA DA MULHER
OPRIMIDA NO PANORAMA DOS DIREITOS
HUMANOS87

Tarin Cristino Frota Mont’Alverne


Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do
Ceará (UFC). Mestrado em Direito Internacional Público - Universite de Paris V
(2004). Doutorado em Direito Internacional do Meio Ambiente - Universite de Paris
V e Universidade de São Paulo (2008).

Silvana Paula Martins de Melo


Mestranda em Direito, com área de concentração em Ordem Jurídica
Constitucional no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal
do Ceará (PPGD/UFC). Especialista em Direito Constitucional pelo Complexo
Jurídico Damásio de Jesus.

Resumo: No presente escrito, discorreu-se inicialmente sobre o islã, tendo como pano de
fundo a Teoria dos Sistemas Sociais, esclarecendo confusões terminológicas. Logo após,
evocou-se o questionamento relacionado à (in)existência de igualdade de gênero no islã
compatível com a noção ocidental de direitos humanos que, por via de consequência,
ensejaria o quadro de opressão das mulheres muçulmanas. Na oportunidade, foram
analisadas as assimetrias do islã na materialização do Alcorão, decorrentes da
desdiferenciação dos sistemas sociais nos países muçulmanos. E por fim, fez-se um
recorte metodológico comparativo dos dispositivos inerentes à igualdade de gênero
presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nas Declarações islâmicas
sobre direitos humanos, bem como no Alcorão, na qualidade de fonte do sistema jurídico-
religioso do islã, a fim de averiguar se há ou não igualdade entre homem e mulher no
contexto islâmico consoante a noção ocidental de direitos humanos.
Palavras-chave: Igualdade de gênero. Islã. Direitos Humanos. Assimetrias.
Desdiferenciação
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na contextura da sociedade mundial hipercomplexa88,
emergem questões controvertidas acerca da possibilidade
de compatibilizar islã com a noção ocidental de direitos
humanos, principalmente, no que se refere à igualdade de
gênero e ao papel das mulheres muçulmanas. Aspectos
relacionados à evolução social e a modernidade, sobretudo,
no tocante a desdiferenciação89, em alguns países
muçulmanos90, dos sistemas jurídico, político e religioso,
bem como dos influxos do sistema cultural sobre estes,
refletem na noção islâmica dos direitos humanos no islã.
Utilizando como pano de fundo a Teoria dos Sistemas
Sociais91 nas perspectivas de Luhmann (2006a) e Neves
(2013b), pretende-se analisar neste escrito se inexiste
igualdade de gênero no islã compatível com a noção
ocidental de direitos humanos que, por via de consequência,
ensejaria o quadro de opressão das mulheres muçulmanas.
Dessa forma, objetiva-se desvendar se afirmações neste
sentido expressam a realidade ou se decorrem de
constantes generalizações e do desconhecimento das
assimetrias nos países muçulmanos por parte do senso
comum.
Impõe-se, portanto, tecer alguns esclarecimentos iniciais
restantes ao islã e ao modelo sistêmico para,
posteriormente, analisar dispositivos inerentes à igualdade
de gênero presentes na Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH) de 194892, na Declaração Islâmica
Universal dos Direitos Humanos de 198193 e na Declaração
dos Direitos do Homem no Islã, também conhecida
Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos no Islã de
199094, ambas inspiradas no Alcorão, compilado no século
VII95, na qualidade de fonte do sistema jurídico-religioso.
Sobre o tema islã96, normalmente existe um desalinho
terminológico97. Importante evidenciar que, primariamente,
se trata de uma religião, que surgiu há mais de 1.400 anos,
especificamente no século VII na Península Arábica e se
expandiu por três continentes e inúmeras sociedades,
encontrando condições vastamente diferentes entre si,
ensejando as assimetrias contemporâneas do islã. Os
seguidores da fé islâmica são denominados muçulmanos.
Essas pessoas anteriormente ao advento do islã eram
politeístas, até que Muhammad (Maomé)98, considerado
profeta, disseminou a ideia da existência de um só deus,
Allah e propôs a unidade de todos os fiéis em ummah, isto é,
única comunidade (AL-MUSAUI, 2006, p.25; AL-SHEHA,
[s.n.t]a, p. 27; AL-SHEHA, 2007, p.11; DEMANT, 2014, p.15-
24; HUSSEIN, 2005, p.35).
As manifestações de Muhammad, de inspiração divina99,
foram compiladas formando o livro sagrado do islã,
conhecido como Alcorão ou Corão100 (AL-SHEHA, [s.n.t]a;
AL-SHEHA, 2007, p.11; DEMANT, 2014, p. 14; CORDEIRO,
2017, on line), que se tornou o fundamento escrito da fé
islâmica, bem como da legislação em diversos países
muçulmanos101. Depreende-se o fato de que,
hodiernamente, há síntese entre fé religiosa e organização
sociopolítica em diversos países.
Em um segundo momento, o islã pode se expressar como
uma comunidade, modo de viver ou tradição que regula
todos os aspectos da vida102 e em sentido geopolítico
moderno103, em outras palavras, é uma doutrina que
influencia e tem pretensão de determinar a vida social,
econômica, política e as relações internacionais dos seus
seguidores. (DEMANT, 2014, p. 35, LE GOFF, 1990, p. 312).
Demant (2014, p. 14) é mais preciso no emprego
terminológico, ao relatar que o vocábulo muçulmano refere-
se a um fenômeno sociológico, enquanto islâmico diz
respeito especificamente à religião. No presente escrito,
utiliza-se a palavra islã de forma ampla para tratar de
questões relacionadas aos muçulmanos na sociedade
mundial.
A desordem terminológica é decorrente do caráter total do
islã, tendo em vista que vai além de um simples corpo de
crenças, pois, repita-se, se trata de algo que influencia e tem
pretensão de determinar toda a vida social e mesmo as
esferas da economia, da política e das relações
internacionais (DEMANT, 2014, p. 14)
Com o intuito de, na sequência, interligar as noções sobre
islã com o modelo sistêmico, destaca-se que o conceito de
sistema se contrapõe ao entendimento de ambiente (todos
os outros elementos não componentes do sistema). Assim, o
sistema se estabelece com amparo em uma espécie de
ruptura com o ambiente, capaz de criar nele uma estrutura
relativamente independente de todo o resto. Tal ruptura é
trabalhada por Luhmann (2006a, p. 471-490) como
diferenciação (MELO; CORREIA, 2016, p. 31).
O paradigma teórico luhmanniano defende a existência de
vários sistemas autopoiéticos104, entre eles os sistemas
político, jurídico, econômico, religioso, cultural e dos meios
de comunicação em massa (mídia), que figuram como os
mais relevantes ao estudo que se apresenta. Em sua
inteligência, a evolução social se materializa como
complexificação e diferenciação funcional dos sistemas
sociais (LUHMANN, 2006a, p. 560; MELO; CORREIA, 2016,
p. 31).
Objetivando explicar a evolução social, Neves (2006;
2013b) parte desses ensinamentos de Luhmann (2006a),
destacando que a efetiva diferenciação funcional dos
sistemas sociais ocorreu apenas na sociedade moderna, de
sorte que a sociedade se tornou mundial, multicêntrica ou
policontextural (LUHMANN, 2006a, p. 560; LUHMANN
2006b; NEVES, 2013b, p. 6-23).
Estabelecidos tais esclarecimentos, reporta-se ao estudo,
em linhas gerais, da evolução social nos países
muçulmanos, destacando o sistema jurídico-religioso e as
consequências na elaboração do direito islâmico. Consoante
mencionado há uma espécie de desdiferenciação dos
sistemas jurídico e religioso na maior parte dos países
muçulmanos e, em alguns se inclui também o sistema
político. Nas palavras de Demant (2014, p. 35-36) “tudo se
concentra num sistema jurídico-religioso total”. Além disso,
evidencia-se forte influência do sistema cultural de cada país
nestes sistemas, o que enseja assimetrias que repercutem
no tratamento dos direitos humanos.
Nessa conjuntura, sobre tratamento dispensado à
igualdade de gêneropelo islã, tornou lugar comum afirmar
que os países com maioria muçulmana se opõem aos
preceitos contidos na Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH) e, consequentemente, a sua adaptação
às respectivas legislações e práticas internas, legitimando,
dessa maneira, violações de inúmeros direitos,
principalmente os relacionados às mulheres muçulmanas.
Tal percepção é norteada pelas informações vinculadas no
sistema da mídia. Essas informações não devem ser
consideradas como válidas imediatamente, isto é, as
reproduções não devem ser acríticas.
Portanto, justifica-se a relevância social do tema pelo fato
de que o islã é a religião que mais cresce atualmente no
mundo (DEMANT, 2014, p. 193; LE GOFF, 1990, p. 293) e
que os muçulmanos - migrantes, descendente e revertidos
ao islã - se expressam em número elevado como parte da
população de países diversos do Ocidente105. Além disso, na
sociedade mundial hipercomplexa muitos eventos
contemporâneos remetem ao Oriente Médio 106
e a sua
situação política, como Primavera Árabe, ascensão do
DAESH107 (popularmente conhecido no Ocidente como
Estado Islâmico) e a atual crise de refugiados, ensejada pela
guerra civil na Síria. Dessa maneira é inegável que o islã
encontra-se no topo da agenda internacional no tocante aos
desafios das relações globais, isto é, que ultrapassam as
fronteiras.
A pesquisa desenvolvida neste escrito, de acordo com os
objetivos propostos, é no que concerne aos fins,
exploratória. No respeitante às fontes ou procedimentos, é
bibliográfica e documental com suporte em livros, artigos e
informações disponibilizadas em sítios eletrônicos. No que
se refere à abordagem do problema, qualitativa. No que diz
respeito à natureza, teórica (FERRAZ JR, 2011).
Assim, este ensaio se estrutura em dois tópicos, afora
introdução e conclusão. Inicialmente, faz-se uma exposição,
no contexto da sociedade mundial, das assimetrias dos
países muçulmanos e dos seus reflexos no direito,
especialmente, no que se refere a materialização do Alcorão
e a desdiferenciação dos sistemas sociais. Em seguida, faz-
se um recorte metodológico comparativo dos dispositivos
inerentes à igualdade de gênero - presentes na Declaração
Universal dos Direitos Humanos e nas Declarações
islâmicas sobre direitos humanos, bem como no Alcorão, na
qualidade de fonte do sistema jurídico-religioso do islã, a fim
de averiguar se há ou não igualdade de gênero no contexto
islâmico harmonizável com o entendimento ocidental. Com
tais premissas, passa-se ao estudo das assimetrias do islã.

2. O ISLÃ E AS ASSIMETRIAS NA MATERIALIZAÇÃO DO


ALCORÃO: DESDIFERENCIAÇÃO DOS SISTEMAS
SOCIAIS
Conforme evidenciado de maneira sucinta na introdução
deste escrito, os países que têm a base religiosa no islã
apresentam diversidade no que se refere à história, cultura,
etnia etc., decorrente do período de expansão da crença.
Isso causou impactos na teoria tradicional que propõe a
unidade de todos os fiéis em ummah, isto é, única
comunidade, o que também pressuporia unidade dos
sistemas político e jurídico. As diferenças fizeram com que
os países muçulmanos tornassem-se assimétricos, pois a
própria religião, a depender do país, é praticada de múltiplas
formas. Há contrastes não apenas nas formas visíveis,
rituais e sociais, mas até no núcleo das crenças e na
maneira de aplicá-las à sociedade (DEMANT, 2014, p. 15), o
que se reflete na criação e aplicação do direito islâmico,
especialmente, na noção de direitos humanos e,
consequentemente, na ideia de igualdade de gênero e
tratamento dispensado as mulheres muçulmanas.
Sobre as divergências do direito no contexto islâmico,
Bahlul (2006, p. 765) relata que o fato de o islã não significar
a mesma coisa para todos aqueles que o professam ou
praticam, sobressalta no âmbito do direito pela fragmentação
decorrente da multiplicidade de possibilidades de
interpretação da fé. Há consenso, no entanto, quanto à
posição sagrada do Alcorão que é considerado por todos os
muçulmanos como a principal fonte do islã. Assim, todas as
leis islâmicas devem buscar o fundamento de validade em
seus preceitos, não podendo contrariá-los. Trata-se de fonte
considerada sagrada e que, em regra, determinam o direito
islâmico (ANTES, 2003, p. 83). Sobreleva-se que as fontes
sagradas do islã, assim como as de outras religiões, estão
propícias a múltiplas interpretações, mas a diferença
consiste no lugar de destaque conferido ao Alcorão pelos
muçulmanos (DEMANT, 2014, p. 343).
O desenvolvimento dos países muçulmanos evidenciou
que apenas as prescrições alcorânicas não seriam
suficientes para solucionar os problemas, pois emergiram
situações que não tinham sido mencionadas no Livro
Sagrado, logo, houve a necessidade de outras normas
proporcionando o desenvolvimento do direito islâmico que,
conforme entendem alguns especialistas, é denominado
Shari’a108, que significa literalmente “caminho a seguir”
(ANTES, 2003, p.130; DEMANT, 2014, p. 48; EL SAWY,
2002, p. 65).
Tecnicamente este termo refere-se ao código de
comportamento ou sistema de vida apresentado pelo islã,
que estabelece o conhecimento dos direitos e deveres
individuais e sociais, bem como das leis e normas de vida
prescritas por Allah para a humanidade, em outras palavras,
trata-se de um sistema jurídico-religioso (DEMANT, 2014, p.
48; EL SAWY, 2002, p. 65), de uma lei baseada no Alcorão
(ANTES, 2003, p. 130). Outra perspectiva entende que a
utilização da Shari’a como sinônimo de direito islâmico é
uma simplificação excessiva da tradição jurídica islâmica
(GAMBARO; SACCO, 2013, p. 344; LAGE, 2016, p. 27).
Contudo, o presente estudo, para fins didáticos, opta pela
utilização da primeira corrente de pensamento que
compreende Shari’a como um sistema jurídico-religioso.
Como todo o direito, a Shari’a emana de fontes, mas
diante da complexidade do sistema jurídico islâmico, e em
virtude da existência de várias escolas jurídicas que sofrem
influência da divisão entre sunitas e xiitas109, há também
divergência quanto ao reconhecimento dessas fontes. Para
maior parte das escolas jurídicas do islã, são reconhecidas
como legítimas as seguintes fontes: Alcorão, sunna, ijma’
(consenso dos especialistas) e qiyas (conclusão por
analogia) (ANTES, 2003, p. 139; DEMANT, 2014, p. 46; EL
SAWY, 2002, p. 65, LAGE, 2016, p. 34; SILVA, 2017, on
line).
Importa sobressaltar que a pesquisa desenvolvida neste
escrito, por limitações de espaço, analisa somente o Alcorão
com fonte sagrada e principal fundamento de validade para
as legislações islâmicas que tratam dos direitos humanos,
principalmente, da igualdade de gênero, a fim de confrontar
com a noção ocidental. Mencionada fonte é constituída por
114 suras ou suratas, (capítulos) e mais de 6.000 ayas
(versos), sendo destas, aproximadamente 200 com caráter
normativo (EL SAWY, 2002, p. 67; ANTES, 2003, p. 124;
ARAÚJO; ZAIDEN, 2017, on line). Trata-se da base para a
construção do direito islâmico e, por via de consequência,
fonte de inspiração para as Declarações islâmicas sobre
direitos humanos, cosoante se esboçará no tópico seguinte.
Adentrando especificamente no terreno do sistema
jurídico islâmico, deve-se considerar que, na maior parte dos
países muçulmanos, as leis estão condicionadas ao sistema
religioso, materializando uma espécie de desdiferenciação
entre esses sistemas. Em alguns casos, a desdiferenciação
ocorre entre os sistemas político, jurídico e religioso. Mas
isto não é regra, como será demonstrado.
Na leitura de Antes (2003, p. 123) o islã busca a unidade
na fórmula din-dawla (religião e Estado) o que
impossibilitaria uma sociedade secular, contudo, destaca
que numa visão mais exata, as posições dos muçulmanos
são as mais variadas. Hofmann (1992, p. 114) observa que a
fórmula determinante não é no sentido de que a religião é o
Estado, mas a ideia de junção entre religião e Estado. Dessa
maneira, podemos observar que compreendem domínios
distintos que precisam ser conduzidos a uma relação
harmônica de maneira islâmica.
Para confirmar os argumentos trazidos e ilustrar a
fragmentação do sistema jurídico islâmico nos países
muçulmanos, destacam-se as ideias de igualdade de gênero
no islã e do tratamento dispensada às mulheres (pontos
delicados acerca do alegado quadro de oposição aos
direitos humanos) em três países, quais sejam: Arábia
Saudita, Egito e Turquia. Entretanto, a citação ocorre sem
pretensão de exaurir as particularidades desses países.
Tendo em conta que as leis islâmicas devem buscar o
fundamento de validade no Alcorão110 não podendo
contrariá-lo, sobre a igualdade de gênero e o tratamento
dispensado as mulheres, dispõe o Livro Sagrado: “No Islam,
a igualdade de condições entre os sexos, não somente é
reconhecida, como imposta veementemente” (ALCORÃO,
114; 210), “Entre os Seus sinais está o de haver-vos criado
companheiras da vossa mesma espécie, para que com elas
convivais; e colocou amor e piedade entre vós” (ALCORÃO,
30:21). Destas passagens, vislumbra-se a ideia de igualdade
de gênero e a noção de que as mulheres devem ser tratadas
com amor e piedade. Além disso, em todo o texto não existe
qualquer dispositivo atribuindo punições para os
denominados crimes de honra, para as vítimas de estupro,
ou mesmo permitindo a ablação/circuncisão feminina111 - que
é um costume tribal pré-islâmico -, tampouco, impõe o “véu”
islâmico como forma de submissão.
Na Arábia Saudita, país ultraconservador, a lei permite
punições para os denominados crimes de honra. Um caso
emblemático refere-se a uma mulher estuprada e
posteriormente condenada a receber “chibatadas”, pois na
ocasião em que foi vítima do estupro, estava dentro de um
carro com um homem que não era seu parente, o que é
proibido naquele país (DEMANT, 2014, p. 359; FROTA,
2017, on line; SAUDITA, 2017, on line). Não há, contudo,
permissão para extirpação dos genitais externos da mulher
(EL SAWY, 2002, p. 181).
No Egito, a lei islâmica se mescla com as leis
progressistas, logo, não se reconhecem oficialmente os
crimes de honra, embora se tenha notícia de alguns casos.
Quanto à ablação, esta é proibida pelo governo egípcio,
mas, há relatos de casos isolados, geralmente, realizados
por tribos com costumes pré-islâmicos, o que enseja
comoção estrangeira (EL SAWY, 2002, p. 181).
Em contrapartida, na Turquia as leis são progressistas e
as agressões, em regra, são proibidas (DEMANT, 2014, p.
331). Simboliza o país mais moderno no contexto do islã,
pois há separação entre Estado e a Religião desde 1924, ou
seja, entre os sistemas político e religioso, portanto, não se
utiliza a Shari’a, sendo a exceção ao fenômeno da
desdiferenciação (EL SAWY, 2002, p. 65).
No que se refere ao véu islâmico em suas mais variáveis
formas (burca, niqab, hijab etc.), trata-se de um dos
aspectos mais polêmicos e estereotipados no Ocidente, pois
se tem a imagem de opressão da mulher muçulmana.
Cumpre esclarecer que civilizações pré-islâmicas já
ostentavam o uso do véu, que no início estava mais
associado à classe social do que a religião. Cobrir o cabelo e
partes do corpo e da face era um símbolo de status.
Posteriormente, passou a ser usado apenas pelas esposas
de Muhammad. A adoção por todas as muçulmanas se deve
a vários fatores, tais como, a conquista de áreas onde ele
era comum na classe alta, o influxo de riqueza, a elevação
do status dos árabes e o fato de que as mulheres do profeta
eram exemplo de modéstia (AL-KHAZRAJL; 2008, p. 49; AL-
SHEHA, [s.n.t]b).
O Alcorão não especifica o tipo de véu a ser usado,
menciona apenas a utilização como símbolo de recato
(ALCORÃO, 24:31)112. Note-se que mais uma vez as
assimetrias ficam visíveis, pois existem tipos véus que são
utilizados apenas em determinados países, por exemplo, o
niqab é obrigatório na Arábia Saudita, já no Egito e Turquia
há diversidade e maior liberdade na questão da utilização do
véu (EL SAWY, 2002, p. 145).
Na inteligência de El Sawy (2002, p. 181) “se em outro
país muçulmano a mulher sofre restrições, por certo, a lei
em vigor não é a islâmica”. A autora não considera legitimas
as leis que não retiram o fundamento de validade do
Alcorão, sobrepondo costumes pré-islâmicos aos
dispositivos Sagrados. Mesma linha de pensamento é
manifestada por Nogueira (2007, p. 61), para quem a
circuncisão feminina “não é, portanto, uma prática religiosa,
e sim um costume de determinadas regiões”.
Não se desconhece a existência de outras passagens no
Alcorão que legitimam tratamento cruel, a título
exemplificativo, permissão para punições em caso de
adultério. Todavia, há que se esclarecer que tal punição é
destinada para homens e mulheres (ALCORÃO, 4:16)113,
diferentemente da noção propagada pelo senso comum
ocidental. Ademais, não se pretende fazer uma defesa
acrítica do islã, ao contrário, o que se objetiva é demonstrar
a complexidade da situação, a fim de evitar que sejam
apresentadas formas de compreensão equivocadamente
generalizantes.
Diante dessas considerações, será que se pode falar em
uma única Shari’a? Badran (2009) concebe que existem
duas modalidades de Shari’a, quais sejam, a que decorre do
Alcorão, no sentido de inspiração divina e princípios
condutores, sendo considerada sagrada e as leis que são
obra humana, portanto, abertas a questionamentos e
mudanças. Para ela, a modalidade sagrada precisa ser
apurada por meio do esforço humano. Tal posicionamento
abre caminho para se pensar na possibilidade de reforma ou
reinterpretação do direito islâmico, o que atualmente vem
sendo feito por mulheres muçulmanas de vanguarda que
tencionam realizar a releitura do direito islâmico a partir de
uma interpretação progressista do Alcorão.
É visível a fragmentação do direito islâmico, pois cada
país, ao elaborar suas leis nos seus respectivos sistemas
parciais jurídicos, tem influxo dos sistemas culturais parciais.
Muito embora, aparentemente, o sistema religioso seja
determinante, percebe-se que ele funciona como justificativa
para aplicar costumes pré-islâmicos à sociedade
contrastando com o núcleo da crença presente no Alcorão.
Em decorrência disso, muitas práticas culturais pré-
islâmicas vigentes nos dias atuais têm sido
inadequadamente associadas ao islã, como casamentos
forçados, mutilação genital feminina, crimes de honra que
ensejam apedrejamentos e até mesmo mulheres queimadas
vivas114 e a criminalização das vítimas de estupro. Tais
condutas receberam influxos históricos e culturais de
tradições tribais, servindo a religião de tentativa para
justificar as condutas mencionadas, o que não deveria se
sustentar, considerando a inexistência de previsão no Livro
Sagrado do islã (DEMANT, 2014, p. 150; NOGUEIRA, 2007,
p. 60).
O islã, tendo como principal fundamento o Alcorão,
constitui apenas um fator, e não necessariamente o maior,
que molda os reflexos e as escolhas dos países
muçulmanos, que diferem enormemente entre si em sua
história, estrutura socioeconômica, composição étnica,
cultura etc. Enfim, há muitos “islãs”, cujos valores
relacionados aos direitos humanos são variáveis (DEMANT,
2014, p. 335-336). Diante do que se expôs, a princípio,
entende-se que a alegação de incompatibilidade do islã com
a noção ocidental de direitos humanos e, por via de
consequência, com a ideia de igualdade entre homem e
mulher é uma generalização feita pelo senso comum
decorrente do desconhecimento das assimetrias dos países
muçulmanos. Não se pode aduzir de forma inequívoca que
todas as mulheres muçulmanas se encontram em situação
de subordinação e opressão. Atualmente, é crescente o
movimento das mulheres que declaram ter orgulho de ser
muçulmanas e que trabalham para ampliar as “vozes” das
demais mulheres. Elas exaltam a utilização do véu, não se
sentem oprimidas e ocupam posição de destaque na
sociedade mundial (BADRAN, 2009). Logo, não se pode
continuar a propagar essa visão Ocidental estereotipada
sobre as mulheres muçulmanas. Então, é possível
compatibilizar igualdade de gênero e islã? É o que se passa
a abordar.

3. IGUALDADE DE GÊNERO E ISLÃ NO PANORAMA DOS


DIREITOS HUMANOS
O tópico que se inicia, faz um recorte metodológico
comparativo dos dispositivos inerentes à igualdade de
gênero presentes na Declaração Universal dos Direitos
Humanos e nas Declarações islâmicas sobre direitos
humanos, bem como no Alcorão, na qualidade de fonte do
sistema jurídico-religioso do islã, a fim de averiguar se há
igualdade entre homem e mulher no contexto islâmico
consoante a noção ocidental de direitos humanos.
Sabe-se que a consolidação dos direitos humanos, nas
relações internacionais, surge no século XX, em decorrência
da Segunda Guerra Mundial, com o advento Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), aprovada em 10
de dezembro de 1948 pela Organização das Nações Unidas
(ONU)115. Os internacionalistas entendem que seu texto
consolida a afirmação de uma ética universal, ao consagrar
um consenso sobre valores de cunho mundial a serem
seguidos pelos Estados (PIOVESAN, 2012, p.185;
COMPARATO, 2015, p. 68-69).
Hunt (2009, p. 209) destaca que “formou-se aos trancos e
barrancos um consenso internacional sobre a importância de
se defender os direitos humanos. A Declaração Universal é
mais o início do processo do que o seu apogeu”. Assim, a
concepção internacionalista encontra alguns obstáculos para
concretização, dentre os quais: (a) o reconhecimento e a
efetivação dos direitos humanos depende da postura dos
Estados soberanos, (b) o questionamentos acerca da
legitimidade da Declaração, pois não foi ratificada pela
totalidade dos Estados nacionais, mas aprovada pela
Assembleia Geral da ONU, que não teria competência para
produção de direito internacional com base na Carta das
Nações Unidas e (c) a ausência de acolhimento, como
partes, de todas as comunidades jurídicas na produção de
tratados internacionais sobre direitos humanos, portanto,
não contariam com uma instauração universalista.
Para Piovesan (2007, p.16-31), existem sete desafios
centrais à implementação dos direitos humanos na ordem
contemporânea, a saber: (1) Universalismo vs. Relativismo
cultural; (2) Laicidade estatal vs. fundamentalismo religioso;
(3) Direito ao desenvolvimento vs. assimetrias globais; (4)
Proteção dos direitos econômicos, sociais, culturais vs.
dilema da globalização econômica; (5) Respeito à
diversidade vs. intolerância; (6) Combate ao terrorismo vs.
preservação de direitos e liberdades públicas; e (7) Direito
da força vs. força do Direito: desafios da justiça
internacional.
De acordo com Neves (2017, on line), o conceito de
direitos humanos na complexa e heterogênea sociedade
mundial, relaciona-se com a abertura dessa sociedade para
o futuro e com a ideia central de inclusão jurídica como
acesso ao Direito, pois a exclusão jurídica de amplos grupos
humanos denota-se exatamente como a dimensão negadora
dos direitos humanos.
Atualmente, existem várias correntes para compreender
os direitos humanos, dentre elas, emerge uma teoria crítica
dos direitos humanos116 que se contrapõe à teoria
tradicional. Há de se ressaltar, entretanto, que esta pesquisa
parte da noção ocidental da universalidade dos direitos
humanos, precipuamente, no que se refere à igualdade de
gênero para confrontar com a noção islâmica.
O preâmbulo da DUDH dispõe, sobra a igualdade entre
homem e mulher. O artigo 1° destaca que: “Todas as
pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotadas de razão e consciência e devem agir em relação
umas às outras com espírito de fraternidade”. A Declaração
trata, ainda, de aspectos relacionados à igualdade nos
artigos 2º, 7º, 10º, 16º n.º 1, 21.º n.º 2, 23 n.º 2117 (ONU,
2017, on line).
No que concerne à noção de direitos humanos no islã, é
preciso evidenciar que o Alcorão foi compilado no século VII,
com prescrições imutáveis em razão de sua origem divina.
Allah é único o legislador neste caso (DEMANT, 2014, p.
327; EL AED, [s.n.t], p. 5). No entanto, a interpretação do
Livro Sagrado é múltipla e ao servir de base para criação do
direito islâmico, ensejou ampla fragmentação, consoante
analisado no tópico anterior.
Quanto à adoção da Declaração Islâmica Universal dos
Direitos Humanos (DIUDH) e da Declaração dos Direitos do
Homem no Islã (DDHI), também conhecida Declaração do
Cairo sobre Direitos Humanos no Islã, ambas foram
inspiradas Alcorão. A primeira foi proclamada em 19 de
setembro de 1981, pelo Conselho Islâmico em Paris. A
segunda, foi compilada em 5 de agosto de 1990 pela
Organização de Cooperação Islâmica118 (CORDEIRO, 2017,
on line).
Motahari (2008, p. 128) relata que as normas islâmicas
sobre direitos humanos tratam dos direitos inatos, inegáveis
e inalienáveis dos homens que são pré-requisitos da
humanidade e que Allah as estabeleceu. Sobre igualdade
entre homem e mulher, o Alcorão (114;210)119 não somente
reconhece, como impõe, prescrevendo que a distinção dos
sexos é uma distinção fornecida pela natureza e não conta
em questões espirituais, nem nas distinções artificiais, tais
como: linhagem, riqueza, posição etc.
Por sua vez, a DIUDH em seu preâmbulo resguarda a
dignidade da pessoa humana, a misericórdia para com a
humanidade, a igualdade e a proteção dos direitos do
homem. A garantia específica da igualmente encontra
prescrições nos artigos III, VI e XX120, destacando a
igualdade de todos perante a lei e no acesso à justiça, a
concessão de salário igual para o exercício do mesmo ofício,
oportunidade de trabalho para todos e vedação a
descriminação de qualquer forma. Ao homem é atribuída a
responsabilidade pela manutenção familiar
(UNIVERSIDADE, 2017, on line).
Já a DDHI acerca da igualdade, preceitua, nos artigos 6º
e 19, “a”121 (ISLAM, 2017, on line) que a mulher é igual ao
homem em dignidade, tendo direito de possuir identidade
civil, independência financeira etc., atribui ao homem à
manutenção e bem-estar da família. Além disso, destaca
que todos os indivíduos são iguais perante a lei.
Diante da menção as normas que tratam da igualdade de
gênero, passa-se a comparação, a fim de averiguar se existe
ou não igualdade de gênero no contexto islâmico,
compatível com a noção ocidental no panorama dos direitos
humanos. Deste questionamento emerge, de maneira
secundaria, a dúvida se referidas legislações islâmicas de
direitos humanos, que abordam a igualdade entre homem e
mulher, teriam caráter simbólicos. Neves (2013a, p. 30)
define legislação simbólica como “produção de textos cuja
referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas
que serve, primariamente e hipertroficamente, a finalidades
políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico”.
Em outras palavras, na legislação simbólica a finalidade
política é latente (utilização do texto) e predomina sobre a
finalidade manifesta do sistema jurídico (texto). De forma
generalizada, não ocorre à finalidade manifesta, isto é, a
legislação não é feita para ser eficaz do ponto de vista
jurídico (ineficácia social generalizada), pois o uso do texto é
apenas instrumental para dar vazão à finalidade política.
Aqueles que defendem o caráter simbólico das
Declarações islâmicas sobre direitos humanos, destacam
que as mesmas não têm sido colocadas totalmente em
prática, pelo que consideram que os países muçulmanos
que manifestaram adesão, o fizeram com o intuito de figurar
positivamente no âmbito internacional (CORDEIRO, 2017,
on line). Além disso, relatam que as normas em comento
são apenas uma interpretação da DUDH à luz do Alcorão,
suprimindo direitos excessivos e acrescentando direitos que
o Livro Sagrado prevê.
Constatou-se, no entanto, que o Alcorão e as três
Declarações contemplam a igualdade de gênero.
Sobressalta-se que no contexto do islã, existe diferença
entre a ideia de igualdade e identidade. Igualdade significa
paridade, equidade, já identidade significa uniformidade, isto
é, que os direitos sejam exatamente os mesmos
(MOTAHARI, 2008, p. 115). Dessa forma, a mulher no islã
está numa situação diferente da situação do homem, isso
não significa, necessariamente, um aspecto negativo. O
próprio Alcorão (4; 34) deixa isso evidente quando relata que
“os homens são os protetores das mulheres, porque Allah
dotou uns com mais (força) do que as outras, e pelo o seu
sustento do seu pecúlio [...]”. Assim, a distinção entre
homem e mulher, de acordo com os princípios alcorânicos,
não se materializa no sentido de opressão, muito pelo
contrário, pois o homem exerce o papel de protetor,
cosoante evidenciado.
Contudo, diante das assimetrias dos países muçulmanos,
em muitos casos, a situação que deveria ser de proteção se
conduz a dominação e violência. Há também países mais
progressistas. O quadro de opressão parece não se justificar
dentro da crença, pois esta determina que todas as normas
retirem fundamento de validade do Alcorão, dessa forma,
costumes tribais e pré-islâmicos não têm legitimidade.
Regressando-se aos países adotados para fins
ilustrativos, na Arábia Saudita a mulher é obrigada a utilizar
o véu na modalidade niqab na esfera pública, é proibida de
conduzir automóveis e de estar acompanhada por um
homem que não seja da sua família, estando sujeita a
punições em caso de desrespeito (CORDEIRO, 2017, on
line). Nesse cenário, já existe um forte movimento, das
próprias sauditas, no sentido de reivindicar direitos em
consonância com Alcorão, bem como uma interpretação
progressista para fins de produção das leis que dele
decorrem.
O Egito, por sua vez, um dos cenários das manifestações
internacionalmente conhecidas como Primavera Árabe122,
muito embora se apresente com postura moderada, ainda
retrata casos isolados e clandestinos de práticas pré-
islâmicas de mutilação genital feminina. A prática foi
formalmente banida em 2008. Quanto ao véu, não há
imposição de uma modalidade, inclusive, existem
muçulmanas que não utilizam o véu naquele país (EL SAWY,
2002, p. 181).
Já a Turquia demonstra avanços legais e sociais no
sentido de coibir tratamentos violentos e degradantes contra
as mulheres muçulmanas. Enquanto no Ocidente, em geral,
o véu islâmico é visto como opressor e até mesmo motivo de
desconfiança, na Turquia é sinal de liberdade, pois foi
proibido durante algum tempo em virtude da posição
secularista do país, agora se encontra permitido. Veja-se
que não há obrigatoriedade em sua utilização, mas sim
liberdade de escolha (CILA, 2017, on line; EL SAWY, 2002,
p. 181).
Diante das considerações expostas, a princípio, constata-
se que existe aproximação entre a DUDH, Alcorão e as
Declarações islâmicas sobre direitos humanos no que se
refere a igualdade entre homem e mulher, mais do que isto,
o Alcorão há cerca de 1.400 anos concedeu direitos as
mulheres, dentre eles, contratuais, conjugais, como a
possibilidade de divórcio, o controle de forma independente
de sua fortuna e propriedades, o percebimento de
pagamento igual ao do homem, à manutenção do nome de
solteira etc., direitos semelhantes foram concedidos no
Ocidente somente no século XX (MONTAHARI, 2008b, p.
130). No entanto, a concretização de tais direitos encontra
inúmeros obstáculos, agravando os questionamentos sobre
o caráter simbólico dessas normas.
Motahari (2008, p. 131) afirma que todos os pontos
contidos na DUDH, foram antecipados há quatorze séculos
pelo islã. Sublinhando, ainda, que existem diferenças em
algumas partes é que isto é um assunto atraente e
interessante. Uma dessas diferenças materializada
exatamente nos direitos dos homens e das mulheres, onde o
islã aprova a igualdade, mas não concorda com a
uniformidade e exata similitude de direitos.
Importante referir para os defendem que as Declarações
islâmicas de direitos humanos são simbólicas, não são
apenas os países muçulmanos que encontram dificuldades
para implementação dos direitos humanos, países da
Europa e das Américas desrespeitam, constantemente,
direitos consagrados na DUDH. Feitas estas colocações,
segue-se para a conclusão do escrito.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De todo esse contexto, se objetiva com este escrito
acadêmico, chamar a atenção para as assimetrias do direito
islâmico nos países muçulmanos que repercutem na
concepção de direitos humanos no islã, especialmente, no
que se refere à igualdade de gênero, bem como para o fato
de que o Alcorão, fundamento de validade do sistema
jurídico-religioso islâmico e, por via de consequência, das
Declarações islâmicas, não somente reconhece, mas impõe
veementemente a igualdade de condições entre os sexos
(ALCORÃO, 114; 210).
Entretanto, constata-se que o Alcorão, mesmo sendo o
principal fundamento do islã, constitui apenas um fator, e
não necessariamente o maior, que molda os reflexos e as
escolhas dos países muçulmanos, que diferem
enormemente entre si em sua história, estrutura
socioeconômica, composição étnica, cultura etc. Enfim,
vislumbra-se que há muitos “islãs”, cujos valores
relacionados aos direitos humanos são variáveis, pois
receberam influxos de tradições tribais, servindo a religião
de tentativa para justificar as condutas opressoras, o que
não deveria se sustentar, considerando a inexistência de
previsão no Livro Sagrado (DEMANT, 2014, p. 150;
NOGUEIRA, 2007, p. 60).
Diante do que se expôs, a princípio, entende-se que a
alegação de incompatibilidade do islã com a noção ocidental
de direitos humanos e, por via de consequência, com a ideia
de igualdade de gênero é uma generalização decorrente do
desconhecimento das assimetrias dos países muçulmanos.
Não se pode aduzir de forma inequívoca que todas as
mulheres muçulmanas se encontram em situação de
subordinação e opressão. Atualmente, é crescente o
movimento das mulheres que declaram ter orgulho de ser
muçulmanas e que trabalham para ampliar as “vozes” das
demais muçulmanas. Elas exaltam a utilização do véu, não
se sentem oprimidas e ocupam posição de destaque na
sociedade mundial (BADRAN, 2009). Logo, não se pode
continuar a propagar essa visão Ocidental estereotipada
sobre as mulheres muçulmanas.
Percebe-se, no entanto, que embora o Alcorão e as três
Declarações contemplem a igualdade de gênero, no
contexto do islã existe diferença entre a ideia de igualdade e
identidade. Igualdade significa paridade, equidade, já
identidade significa uniformidade, isto é, que os direitos
sejam exatamente os mesmos (MOTAHARI, 2008, p. 115).
Dessa forma, a mulher no islã está numa situação diferente
da situação do homem, isso não significa, necessariamente,
um aspecto negativo. O próprio Alcorão (4; 34) deixa isso
evidente quando relata que “os homens são os protetores
das mulheres, porque Allah dotou uns com mais (força) do
que as outras, e pelo o seu sustento do seu pecúlio [...]”.
Assim, a distinção entre homem e mulher, de acordo com os
princípios alcorânicos, não se materializa no sentido de
opressão, muito pelo contrário, pois o homem exerce o papel
de protetor, cosoante evidenciado.
Contudo, diante das assimetrias dos países muçulmanos,
em muitos casos, a situação que deveria ser de proteção se
conduz a dominação e violência. Há também países mais
progressistas. O quadro de opressão parece não se justificar
dentro da crença, pois esta determina que todas as normas
retirem fundamento de validade do Alcorão, dessa forma,
costumes tribais e pré-islâmicos não teriam legitimidade.
Na leitura de Said (1990), em geral o Ocidente trata a
alteridade das muçulmanas de forma generalizante. Como
se todas fossem submissas, desconsideradas as diferenças
de padrões nacionais e culturais. Já a mulher ocidental é
caracterizada como independente. Muito embora essa seja a
leitura que o Ocidente faz de si mesmo, ela não representa a
realidade da grande maioria das mulheres ocidentais,
submetidas a graves problemas sociais e inferiorizadas em
relação aos homens em várias situações, como profissionais
e econômicas. Ademais, atualmente, mulheres muçulmanas
consideradas vanguardistas tencionam realizar a releitura do
direito islâmico a partir de uma interpretação progressista do
Alcorão, a fim de possibilitar a materialização da igualdade
de gênero (como paridade) nos países muçulmanos.

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Direito) – Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, Universidade de
São Paulo, 2004.

87 GENDER EQUALITY AND THE DEDIFERENTIATION OF SOCIAL SYSTEMS IN


ISLAM: THE STIGMA OF WOMEN OPPRESSED IN THE OVERVIEW OF HUMAN
RIGHTS
88 Neves, com base na Teoria dos Sistemas Sociais desenvolvida por Luhmann, entende e
trabalha a sociedade moderna como sociedade mundial, pois em sua inteligência, se
desvincula das organizações políticas territoriais. Sobressalta que a sociedade mundial é
hipercomplexa, multicêntrica ou policontextural, pois não há um centro da sociedade que
possa ter uma posição privilegiada, ou seja, não há um mecanismo ou sistema social a
partir do qual todos os outros possam ser compreendidos (LUHMANN, 2006a, p. 560;
NEVES, 2013b, p. 24-44).
89 Inocorrência de diferenciação funcional dos sistemas sociais.
90 Consideram-se países muçulmanos aqueles em que a população é constituída por mais
de 50% de muçulmano. A maioria deles é de membros da Organização de Cooperação
Islâmica (OCI). Citam-se alguns: Afeganistão, Arábia Saudita, Bangladesh, Egito,
Indonésia, Irã, Iraque, Paquistão, Síria, Turquia etc. Informações obtidas por meio de
consulta ao sítio eletrônico, Disponível em <http://www.islam.org.br/o_islam_hoje.htm>.
Para mais informações, verificar referências.
91 Teoria dos Sistemas tem origem nas Ciências Biológicas, na Teoria de Maturana e
Varela. Ao longo do tempo, foi sendo aplicada em diversos campos de estudos. Luhmann
inspira-se nas Ciências Biológicas para propor uma Teoria dos Sociais e uma Teoria da
Sociedade Contemporânea.
92 Na ocasião da aprovação da DUDH a ONU contava com 51 membros fundadores em
1945, desde então, passou a abarcar de maneira crescente e progressiva inúmeros outros
Estados, contando hoje com quase todos os países independentes do mundo (MAZZUOLI,
2012, p. 132). Fazem parte da atual composição da ONU, os países muçulmanos que
utilizamos neste trabalho a título ilustrativo, quais sejam: Arábia Saudita, Egito e Turquia.
Para mais esclarecimentos a respeito desta Declaração, fez-se necessária a consulta à
obra. Disponível em: < http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf >, conforme segue
nas referências ao final do trabalho.
93 Para mais esclarecimentos a respeito desta Declaração, fez-se necessária a consulta à
obra. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-
n%C3%A3o-Inseridos-nas-Delibera%C3%A7%C3%B5es-da-ONU/declaracao-islamica-
universal-dos-direitos-humanos-1981.html>, conforme segue nas referências ao final do
trabalho.
94 Para mais esclarecimentos a respeito desta Declaração, fez-se necessária a consulta à
obra. Disponível em: <
http://www.fmreview.org/sites/fmr/files/FMRdownloads/en/FMRpdfs/Human-
Rights/cairo.pdf>, conforme segue nas referências ao final do trabalho.
95 A compilação de todas as revelações dadas a Muhammad, segundo estudiosos do
tema, só recebeu sua versão definitiva trinta anos após sua morte, isto é,
aproximadamente no ano de 662 d.C.
96 Islam ou em português islã, significa exatamente submissão.
97 As considerações trazidas à baila se justificam pelo fato de que o islã é pouco
conhecido entre os ocidentais. Assim, suas relações no âmbito dos sistemas sociais seriam
incompreensíveis, sem que se fizessem tais esclarecimentos.
98 Sobre o Profeta mais importante para o islã, necessário mencionar que é conhecido no
Ocidente como Maomé. O nome também encontra outras grafias na doutrina islâmica, a
saber, Mohammad. Além disso, não há um consenso acerca da sua data de nascimento,
pois algumas obras indicam o ano 570 e outras 571 d.C.
99 Os estudiosos do tema relatam que o Profeta, aos quarenta anos, começou a ouvir
vozes e ter visões que acreditou ser do arcanjo Gabriel (Jibril) para lhe revelar a palavra de
Allah. Após a sua morte (632 d. C), seus seguidores se espalharam rapidamente pelas
regiões vizinhas e deitaram as bases de um grande Império, que entre os séculos IX e XII
foi um dos maios brilhantes que o mundo já viu. No entanto, as divergências entre
seguidores do islã foram acentuadas. Uma delas refere-se à linha sucessória da liderança,
que ensejou a divisão entre muçulmanos sunitas e xiitas que exerce influência até hoje
sobre as escolas jurídicas dentro do islã (SALINAS, 2009, p. 71). Posteriormente, a base
ocidental se expandiu pelo mundo, conquistou política, econômica e culturalmente as
demais sociedade, logo, houve o declínio do islã. Trata-se do conhecido processo de
colonização, que levou à exploração das sociedades não ocidentais (DEMANT, 2014, p.
318).
100 Formas variantes, em língua portuguesa, para designar o Livro Sagrado do islã. Alguns
autores defendem que “Corão” é a grafia correta, sob o argumento de que o “al”, em árabe,
corresponde ao artigo definido “o” em português. A pesquisa segue a terminologia adotada
por Demant (2014), portanto, optou-se pela utilização do termo “Alcorão”.
101 Consideram-se países muçulmanos aqueles em que a população é constituída por
mais de 50% de muçulmano. A maioria deles é de membros da Organização de
Cooperação Islâmica (OCI). Citam-se alguns: Afeganistão, Arábia Saudita, Bangladesh,
Egito, Indonésia, Irã, Iraque, Paquistão, Síria, Turquia etc. Informações obtidas por meio de
consulta ao sítio eletrônico, Disponível em <http://www.islam.org.br/o_islam_hoje.htm>.
Para mais informações, verificar referências.
102 É necessário sobrelevar, para que se evitem desacertos corriqueiros, que o conceito
de Mundo árabe difere da ideia de islã ou Mundo islâmico/muçulmano, pois está voltado
para os mais diversos aspectos como o da etnia, idioma, política e não tem uma ligação
necessária com a religião. Portanto, os árabes podem ser seguidores das mais diversas
crenças (cristianismo, judaísmo etc.), muito embora, grande parte tenha aderido ao islã.
103 Indica nação islâmica que, geralmente, se refere coletivamente à maioria muçulmana
em países, estados, distritos ou cidades. Dessa forma, necessário destacar o equívoco na
ideia de que os muçulmanos se encontram adstritos ao Oriente Médio, muito embora essa
região, atualmente, abrigue aproximadamente 400 milhões de muçulmanos (ZÜGE
JUNIOR, 2004, p. 4).
104 O conceito de autopoiese tem sua origem na teoria biológica de Maturana e Varela.
Significa, inicialmente, que o respectivo sistema é constituído pelos próprios componentes
que elabora. A concepção luhmanniana de autopoiese afasta-se do modelo biológico, pois
o ambiente não atua perante o sistema nem meramente como condição infraestrutural de
possibilidade da constituição dos elementos, nem apenas como perturbação, ruído;
constitui-se como o fundamento do sistema.
105 França, Alemanha, EUA, países do Reino Unido, Áustria, Bélgica, Dinamarca são
exemplos de população muçulmana no Ocidente (DEMANT, 2014, p. 403).
106 Na visão contemporânea geopolítica, região geográfica que liga por terra de três
continentes, África, Ásia e Europa, compreendendo parte do território asiático e parcela
territorial africana (ZÜGE JUNIOR, 2004, p. 4). Há que se ressaltar, ainda, que o Oriente
Médio não se trata de um local com única etnia (variedade étnica de árabes, curdos,
persas, azeris, turcos, armênios etc.), crença (variedade de crenças, dentre elas, judaísmo,
cristianismo e islã), idioma (mais de 20 idiomas são falados, entre eles, árabe, turco, persa
e hebraico. Turco, persa e árabe podem designar tanto idioma quanto etnia) ou cultura,
bem como que o termo comporta discussões por ser considerado eurocentrista, isto é,
como uma invenção do Ocidente, (DEMANT, 2014, p, 15; SAID, 1996, p. 13-15).
107 Anteriormente conhecido como Estado Islâmico no Iraque e na Síria (ISIS). Ganhou
notoriedade no ano de 2013, como braço da organização terrorista Al-Qaeda.
Posteriormente, os dois grupos romperam os laços, quando foi declarado um califado
(liderança) e a mudança de nome para o Estado Islâmico (EI). Atualmente, é considerado
um dos grupos mais perigosos do Mundo, com atividades brutais, dentre elas, sequestros,
torturas e assassinatos de civis, divulgação de vídeos com decapitações de prisioneiros e
ameaças de destruição de todos os que discordarem de seus preceitos. Concentram-se,
principalmente, no Iraque e na Síria e contam com relevante adesão de ocidentais
(ALVAREZ FILHO, 2015).
108 Nas pesquisas realizadas para este escrito deparou-se com várias formas de grafia
deste termo, entre elas, xaria, Charia, Sharia, Shari’a e Sharia’ah Al Islamia. Optou-se pela
utilização do termo Shari’a.
109 Indispensável sobressaltar que atualmente, em média 85% dos muçulmanos no
mundo são sunitas (ATLAS, 2007, p. 32).
110 Convém esclarecer que se utiliza neste trabalho a tradução do Alcorão para o
português de Samir El Hayek, disponível na página da Federação das Associações
Muçulmanas do Brasil: <http://www.fambras.com.br/nova/media/56080971ec522.pdf>. Para
mais informações, verificar referências.
111 Extirpação dos genitais externos da mulher em um processo doloroso e traumático.
112 Dize às fiéis que recatem os seus olhares, conservem os seus pudores e não mostrem
os seus atrativos, além dos que (normalmente) aparecem; que cubram o colo com seus
véus e não mostrem os seus atrativos, a não ser aos seus esposos, seus pais, seus
sogros, seus filhos, seus enteados, seus irmãos, seus sobrinhos, às mulheres suas servas,
seus criados isentas das necessidades sexuais, ou às crianças que não discernem a nudez
das mulheres; que não agitem os seus pés, para que não chamem à atenção sobre seus
atrativos ocultos
113 E àqueles, dentre vós, que o cometerem (homens e mulheres), puni-os; porém, caso
se arrependam e se corrijam, deixai-os tranquilos, porque Deus é Remissório,
Misericordiosíssimo.
114 Os denominados crimes de honra punidos com a morte são frequentes no Afeganistão
e Paquistão.
115 Na ocasião da aprovação da DUDH a ONU contava com 51 membros fundadores em
1945, desde então, passou a abarcar de maneira crescente e progressiva inúmeros outros
Estados, contando hoje com quase todos os países independentes do mundo (MAZZUOLI,
2012, p. 132). Fazem parte da atual composição da ONU, os países muçulmanos que
utilizamos neste trabalho a título ilustrativo, quais sejam: Arábia Saudita, Egito e Turquia.
116 Teoria crítica teve origem nas sociedades modernas. É comprometida com valores.
Denota como grandes expoentes: Alan Gewirth, Charles Beitz, James Griffin, Henry Shue e
Allen Buchanan.
117 Artigo II: 1 - Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor,
sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2 - Não será também feita nenhuma
distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que
pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo
próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. [...] Artigo VII: Todos são
iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm
direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e
contra qualquer incitamento a tal discriminação. [...] Artigo X: Todo ser humano tem direito,
em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente
e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer
acusação criminal contra ele. [...] Artigo XVI: 1. Os homens e mulheres de maior idade,
sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair
matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua
duração e sua dissolução [...]. Artigo XXI [...] 2. Todo ser humano tem igual direito de
acesso ao serviço público do seu país. Artigo XXIII [...] 2. Todo ser humano, sem qualquer
distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
118 A Organização de Cooperação Islâmica (OCI) é a segunda maior organização
intergovernamental do mundo, composta por 57 Estados espalhados por quatro
Continentes, configura a voz coletiva do mundo muçulmano. A Organização tem relações
consultivas e de cooperação com as Nações Unidas e outras organizações
intergovernamentais para proteger os interesses vitais dos muçulmanos e trabalhar para a
resolução de conflitos e disputas envolvendo os Estados-membros. Arábia Saudita, Egito e
Turquia, dentre outros, fazem parte da OCI. Para mais esclarecimentos a respeito dessa
Organização, fez-se necessária a consulta à página oficial. Disponível em: < http://www.oic-
oci.org/page/?p_id=52&p_ref=26&lan=en>, conforme segue nas referências ao final do
trabalho.
119 No Islam, a igualdade de condições entre os sexos, não somente é reconhecida, como
imposta veementemente. Se a distinção dos sexos, que é uma distinção fornecida pela
natureza, não conta em questões espirituais, muito menos contarão, certamente, as
distinções artificiais, tais como: linhagem, riqueza, posição, raça, cor, origem etc.
120 III – Direito à Igualdade e Proibição Contra a Discriminação Ilícita: a. Todas as pessoas
são iguais perante a lei e têm direito a oportunidades iguais e proteção da Lei. b. Todas as
pessoas têm direito a salário igual para trabalho igual. c. A ninguém será negada a
oportunidade de trabalhar ou será discriminado de qualquer forma, ou exposto a risco físico
maior, em razão de crença religiosa, cor, raça, origem, sexo ou língua. IV – Direito à
Justiça: a. Toda a pessoa tem o direito de ser tratada de acordo com a Lei e somente na
conformidade dela. b. Toda a pessoa tem não só o direito mas também a obrigação de
protestar contra a injustiça, de recorrer a soluções prevista em Lei, com relação a qualquer
dano pessoal ou perda injustificada; para a autodefesa contra quaisquer ataques contra ela
e para obter apreciação perante um tribunal jurídico independente em qualquer disputa
com as autoridades públicas ou outra pessoa qualquer. c. É direito e obrigação de todos
defender os direitos de qualquer pessoa e da comunidade em geral (hisbah). d. Ninguém
será discriminado por buscar defender seus direitos públicos e privados. XX – Direitos das
Mulheres Casadas. Toda mulher casada tem direito a: a. morar na casa em que seu marido
mora; b. receber os meios necessários para a manutenção de um padrão de vida que não
seja inferior ao de seu marido e, em caso de divórcio, receber, durante o período legal de
espera (iddah), os meios de subsistência compatíveis com os recursos do marido, para si e
para os filhos que amamenta ou que cuida, independente de sua própria condição
financeira, ganhos ou propriedades que possua; c. procurar e obter a dissolução do
casamento (khul’a), na conformidade da Lei. Este direito é cumulativo com o direito de
buscar o divórcio através das cortes; d. herdar de seu marido, pais, filhos e outros
parentes, de acordo com a Lei; e. segredo absoluto de seu marido, ou ex-marido se
divorciada, com relação a qualquer informação que ele possa ter obtido sobre ela, e cuja
revelação resulte em prejuízo a seus interesses. Idêntica responsabilidade cabe a ela, em
relação ao marido ou ao ex-marido.
121 ARTICLE 6: (a) Woman is equal to man in human dignity, and has her own rights to
enjoy as well as duties to perform, and has her own civil entity and financial independence,
and the right to retain her name and lineage. (b) The husband is responsible for the
maintenance and welfare of the family. ARTICLE 19: (a) All individuals are equal before the
law, without distinction between the ruler and the ruled.
122 Protestos que ajudaram a derrubar regimes que estavam consolidados no Oriente
Médio. Tiveram início na Tunísia em dezembro de 2010. Seguiram protestos no Egito,
conflitos na Líbia e marcou o início do conflito na Síria, país que hoje é palco de uma
guerra civil (LAGE, 2016, p. 108).
IX
A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MULHERES
E MENINAS EM CONFLITOS ARMADOS E
GENOCÍDIOS: O CASO DAS MENINAS
YAZIDIS123

Flávio de Leão Bastos Pereira


Doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Mestre em Direito Político e Econômico. Professor de Direitos Humanos e Direito
Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Professor convidado da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Componente do
rol de especialistas da International Nuremberg Principles Academy (Nuremberg,
Alemanha). Membro do Grupo de Pesquisas Arqueologia da Repressão –
UNICAMP/CNPQ. Membro da International Network of Genocide Scholars (INoGS).
Pesquisador do Grupo de Pesquisas Conflitos Armados, Massacres e Genocídios na Era
Contemporânea (EPPEN-UNIFESP).

Resumo: O artigo busca estabelecer a análise sobre o fenômeno da violência sexual


praticada contra meninas e mulheres durante conflitos armados, sem deixar de tangenciar
sobre a mesma espécie de violência em contextos marcados por processos genocidas, o
que gera distinções relevantes do ponto de vista analítico e científico para compreensão
desta modalidade de violência baseada no gênero e que é utilizada como instrumento com
distintos objetivos conforme o cenário levado em consideração: conflitos internacionais ou
intrafronteiras, e genocídios. A base primordial para as reflexões a seguir parte da
consideração aos estereótipos de gênero e sobre os papéis sociais reservados a homens e
mulheres em tempos de paz. Referidos estereótipos, deflagrados conflitos armados ou
processos genocidas, com o colapso das instituições e dos mecanismos de inibição da
violência, são potencializados e resultam na “tomada” do corpo da mulher vista como
“troféu” tomado ao inimigo ou, ainda, como instrumento para destruição e extinção de um
grupo por razões raciais, étnicas, nacionais, políticas ou religiosas. Do ponto de vista
antropológico e sociológico, o corpo da mulher traz sobre si um terrível simbolismo, desde
o período dos movimentos coloniais, visto como objeto e, em certos contextos históricos,
como impuro. Tal legado, que se faz presente em distintas situações e sob várias
circunstâncias, gera comportamentos letais para mulheres nos cenários de conflito acima
descritos. O recorte da análise é realizado sobre a situação das mulheres e meninas
Yazidis atualmente cativas sob o domínio do movimento terrorista Estado Islâmico (ISIS ou
DAESH).
Palavras-chave: Violência sexual. Conflitos armados. Genocídio. Yasidis.

“Pilhei a cidade e matei os homens. As mulheres e os tesouros [...] Dividi-os da


forma mais justa que pude entre todas as mãos [...]”.
Homero.

“We were registered. ISIS took our names, ages, where we came from and whether we
were married or not. After that, ISIS fighters would come to select girls to go with them.
The youngest girl I saw them take was about 9 years old. One girl told me that ´if they
try to take you, it is better that you kill yourself´[…]”124.
Menina de 12 anos sequestrada pelo ISIS.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
É célebre a frase de Ésquilo125 segundo o qual a verdade
é a primeira vítima das guerras.
No caso da violência sexual cometida contra mulheres e
meninas nos contextos das guerras e genocídios a verdade
não é vitimada, mas simplesmente tolerada.
Caracterizada uma guerra entre nações ou, ainda, mesmo
nos conflitos armados intrafronteiras, ao que podemos
acrescentar os processos genocidários, o grau de
sistematização na violência sexual perpetrada e de
sofrimento imposto às vítimas do sexo feminino tomadas por
tropas que as consideram troféus a serem expostos e
oprimidos, em completa situação de vulnerabilidade, não é
ignorado – pois o fenômeno é conhecido desde a
antiguidade – mas é objeto de indiferença, tanto pelas
autoridades e comandos que têm poder de decisão e
mantêm relação de poder hierárquico sobre suas tropas nos
palcos de operações, como também pelos agentes e
estruturas internacionais responsáveis pelo disciplinamento
e responsabilização dos perpetradores da referida violência,
segundo as normas globais e regionais protetivas dos
direitos humanos e definidoras das regras vigentes em
situações de combate (direito humanitário – o Direito de
Genebra e o Direito de Haia).
Significa afirmar que a despeito de encontrarmos uma
prática reiterada ao longo da história (incluídos os conflitos
dos séculos XX e XXI, até o presente), com padrões em
suas dinâmicas, dita conduta prossegue admitida por certas
instâncias e estruturas envolvidas nos respectivos conflitos,
ainda que a justiça penal internacional e o sistema do Direito
de Nova York (ONU), nas décadas recentes, tenham
assumido a posição de protagonistas em alguns avanços,
como no caso de condenações por estupros genocidas
impostas pelo Tribunal Criminal Internacional Para Ruanda,
apenas para lembrarmos um exemplo recente ou nas ações
das Nações Unidas para combate à violência sexual em
situações de conflitos armados (UN Action Against Sexual
Violence in Conflict, on line).
Aliás, a referida Corte Criminal Internacional para Ruanda
foi a primeira a reconhecer o estupro como instrumento para
cometimento de um genocídio (UNICTR, on line), no caso
Jean-Paul Akayesu, bem como o primeiro a condenar uma
mulher acusada de colaborar para o estupro genocida126 de
vítimas tutsis, no caso de Pauline Nyiramasuhuko (UNICTR,
on line)127.
A despeito de avanços tais - ainda tímidos mas sempre
bem-vindos - necessário é o estabelecimento de visões
críticas sobre as dinâmicas e sobre as causas que propiciam
a reiteração de crimes sexuais contra mulheres e meninas128
durante situações de conflitos e nas quais os mecanismos
de prevenção e inibição encontram-se em colapso.
Muito embora pouco se fale a respeito, necessária é a
compreensão de que as raízes na prática destes crimes hoje
considerados dentre os mais graves na ordem jurídica
internacional129, compõem categorias de violência
preexistentes às guerras e genocídios, vigentes em
sociedades em tempos de paz e presentes sob bases
patriarcais, com variantes relacionadas a cada uma delas e
de cunho religiosas, raciais, étnicas, nacionais ou políticas.
De fato, o modo pelo qual cada sociedade vê e considera
a mulher guarda íntima relação com a violência sexual
praticada por grupos armados, componham tais grupos as
forças oficiais ou grupos e milícias combatentes
paramilitares.
Fato é que, durante os conflitos ou após o desfecho de
combates e batalhas – e, em alguns casos, mediante prévio
estabelecimento de diretrizes para limpeza étnica, as
mulheres e meninas ainda no início de sua adolescência
passam a ser alvos imediatos nos dias atuais como se
observa no caso das mulheres Tutsis durante o genocídio de
Ruanda (1994); das mulheres bósnio-muçulmanas ao longo
da Guerra das Bósnia (1992-1995)130; das mulheres Yazidis
a partir dos 14 anos de idade, em poder do ISIS, no Iraque
(2011-dias atuais) ou, ainda, no caso das mulheres em
poder do grupo fundamentalista Boko Haram131, na Nigéria
(2002-dias atuais).
E, se a causa imediata pode ser identificada no conflito
em si, a motivação fundamental para tal violência em
períodos de guerra e genocídios relaciona-se muito mais
com a consideração ao sexo feminino como objeto e troféu a
ser conquistado, bem como instrumento de imposição de
humilhação ao país ou grupos armados derrotados (no caso,
v.g., dos estupros de guerra) ou, no caso dos processos
genocidários, como meios para destruição de grupos por
razões raciais ou étnicas (nas hipóteses dos denominados
estupros genocidas).
Considerações, portanto, aos objetivos almejados pelos
perpetradores; às dinâmicas e grau de sistematização
utilizados para a prática dos crimes sexuais; em relação à
composição étnica, racial, religiosa e política dos grupos
vitimados; ao contexto do conflito sob o qual ocorram as
violações sexuais contra mulheres e meninas vitimadas,
dentre outros, ajudam à definição da espécie de violência
sexual praticada e sua inserção no tipo legal e convencional
incidente.
As considerações a seguir buscarão apontar alguns
destes aspectos acima levantados, tendo por recorte, ainda,
a situação das mulheres e meninas Yazidis durante o conflito
no Iraque ao longo dos combates contra o Estado Islâmico
(ISIS).

2. O CORPO DA MULHER: IMPUREZA, DOMÍNIO E


EXTERMÍNIO
Na raiz da violência sexual contra as mulheres ao longo
de processos históricos marcados por conquistas,
colonizações, extermínios e guerras, a visão de pecado e
impureza imposta por colonizadores, sociedades e ordens
dominantes como inerentes ao corpo da mulher pertencente
aos grupos colonizados, exterminados e resistentes, parece
uma constante. Não sem razão, os movimentos feministas
contemporâneos inserem o corpo feminino como objeto de
discussão e questionamento da dominação masculina e dos
mecanismos patriarcais de manutenção de tal domínio
simbólico.
O exemplo da experiência da destruição dos povos
originários nas Américas, África, Ásia e Oceania constitui um
desses casos. A nudez como hábito de vida das nações
tradicionais e nativas ao redor do mundo em muito
distanciava-se dos pilares morais e religiosos dos
colonizadores. No imaginário destes a impureza marcava os
corpos e as mentes das nações indígenas, que eram por
vezes associados a povos bíblicos julgados pecadores132.
Conforme explica Andrea Smith, se os corpos das mulheres
indígenas eram considerados “sujos”, seriam eles
sexualmente “violáveis”:

Porque os corpos indígenas seriam sujos, eram considerados


sexualmente violáveis e estupráveis, e o estupro de corpos que eram
considerados naturalmente impuros e sujos, simplesmente não
importava. Por exemplo, prostitutas quase nunca são acreditadas
quando afirmam que foram estupradas, porque a sociedade dominante
considera que os corpos das profissionais do sexo são indignos de
integridade e, pois, violáveis a todo momento. Similarmente, a história
da mutilação dos corpos de indivíduos indígenas, vivos ou mortos,
evidencia que os mesmos não teriam direito à integridade corporal133
(tradução livre).

Note-se que a violência sexual perpetrada contra


mulheres indígenas ao longo do processo colonizador e
mesmo nos dias atuais apresenta alguns componentes
sobrepostos e comumente presentes em processos de
violações e extermínios, especialmente os elementos
referentes ao gênero e à etnia: estupra-se ou extermina-se
por ser mulher e também por pertencer a certa etnia.
Como dito, a violência sexual praticada contra mulheres e
meninas durante as guerras e genocídios não é novidade
entre as ferramentas de combate e destruição utilizados.
Assim, também durante a primeira guerra mundial e no
âmbito dos inúmeros conflitos que compuseram aquele
cenário hostil generalizado na Europa, não foi diferente.
Constitui o genocídio do povo armênio um dos mais
graves capítulos da referida guerra. Também neste primeiro
grande conflito mundial (1914-1918) o estupro mostrou-se
como uma das mais utilizadas armas pela gendarmeria
Otomana, com o escopo de humilhar e destruir a população
armênia que marchava rumo à morte em direção ao deserto
da Anatólia.
Assim, Heitor de Andrade Carvalho Loureiro (2013, p. 53),
ao explicar sobre as marchas da morte imposta ao povo
armênio, menciona que:

Depois de reunidos na cidade, os armênios marchavam rumo ao deserto


de Derel-Zor; ou seja, marchavam rumo à morte...O fato é que a maioria
dos armênios deportados sequer chegava aos campos de concentração.
As colunas de mulheres, crianças e idosos iam se desintegrando pelo
caminho, com muitos de seus componentes morrendo por inanição e
maus tratos. Muitas mulheres e crianças eram raptadas e levadas
para os haréns de muçulmanos, como parte do botim
conquistado... Outras tantas mulheres eram estupradas e mortas
em sequência [...] O estupro é uma arma usual dos genocidas.
(grifamos).

De fato, o rapto de mulheres e meninas pelas forças


Otomanas para serem levadas aos haréns, bem como o
estupro, puro e simples, foram técnicas de terror largamente
praticadas contra o povo armênio durante o primeiro
genocídio do século XX cometido por um Estado contra
cidadãos nacionais134.
No que se refere à segunda guerra mundial, podem ser
apontados alguns dos principais episódios de cometimento
de violência sexual em larga escala contra populações de
mulheres e meninas:
a. Em torno de 20.000 mulheres chinesas, a partir dos 8
anos de idade, foram estupradas em Nanquim (então
capital da China) com a invasão das tropas imperiais
japonesas àquela cidade, em 13 de dezembro de
1937. O fato é conhecido como o estupro de Nanquim
(MASSACRE DE NANQUIM, on line).
b. 200.000 mulheres de vários países da Ásia
(conhecidas como comfort women) foram traficadas e
mantidas como escravas sexuais pelo exército
imperial japonês135.
c. Em torno de 100.000 mulheres estupradas em Berlim
após a queda da cidade; em torno de 2 milhões em
toda a Alemanha136 (a produção cinematográfica
intitulada Eine Frau in Berlin, de 2008, direção de Max
Färberböck, narra tal dramática passagem137).
d. Mulheres judias, ciganas, russas, polonesas, eslavas,
oposicionistas etc. também padeceram sob violência
sexual praticada tanto nos campos de concentração e
de extermínio nazistas, quanto após a liberação dos
referidos campos138. Durante o Holocausto praticado
pelos nazistas as mulheres foram especialmente
vitimadas pela criação de estruturas voltadas apenas
para sua condição feminina, como o campo de
concentração de Ravensbrück, localizado a 90 km ao
norte da capital Berlim, na cidade de Fürstenberg.
Além de toda estrutura de tortura e morte das vítimas
do nazismo, o estupro foi também método de terror
amplamente utilizado contra as prisioneiras
consideradas inferiores pelas teorias racistas do
regime ou, ainda, em razão de seus posicionamentos
políticos e/ou religiosos. Conforme informa o United
States Holocaust Memorium Museum (USHMM), o
estupro e outras técnicas específicas de ataques à
condição feminina foram largamente utilizadas no
sistema concentracionário nazista:

Nos campos e nos guetos as mulheres eram particularmente


vulneráveis a espancamentos e estupros. As judias grávidas
tentavam esconder a gravidez para não serem forçadas a abortar.
As mulheres deportadas da Polônia e da União Soviética para
fazerem trabalhos forçados eram sistematicamente espancadas,
estupradas, ou forçadas a manter relações sexuais com alemães
em troca de comida e outras necessidades básicas. Muitas vezes,
as relações sexuais forçadas entre as trabalhadoras escravas
oriundas da Iugoslávia, União Soviética ou Polônia, e homens
alemães resultavam em gravidez, e se os ‘especialistas em raça’
determinassem que a criança a nascer não possuía ‘genes
arianos’ suficientes, as mães eram forçadas a abortar, ou eram
enviadas para darem à luz em maternidades improvisadas, onde
as péssimas condições de higiene garantiriam a morte do recém-
nascido (USHMM, on line).

Também em conflitos mais recentes o estupro como arma


de guerra foi comum. Pode-se mencionar alguns casos
relevantes:
a. Bangladesh, 1971 – durante os conflitos armados no
país, cerca de 200.000 mulheres e meninas foram
estupradas pelos soldados paquistaneses.
b. India, 1992 – 882 mulheres estupradas pelas forças
de segurança nas províncias de Jammu e Kashmir.139
c. Bósnia (1992-1995) – estima-se em 50.000 o número
de mulheres estupradas por combatentes sérvios nos
denominados rape camps, com o objetivo de impor a
alteração da composição étnica das populações
locais, portanto, o estupro como instrumento de
limpeza étnica140.
d. Genocídio de Ruanda (1994) - Estima-se entre
250.000 e 500.000 o número de mulheres e meninas
estupradas141, sendo que em torno de 67% das
vítimas violentadas contraíram AIDS em razão dos
estupros sofridos. Apenas 6% receberam tratamento
para a síndrome adquirida142. Segundo a Survivors’
Fund (entidade humanitária britânica), vivem hoje em
Ruanda em torno de 20.000 jovens nascidos dos
estupros genocidas143.
e. República Democrática do Congo – considerado o
pior local no mundo para as mulheres em razão da
altíssima taxa de estupros cometidos desde o início
das guerras que vêm devastando o país a partir dos
anos 90 e após o genocídio de Ruanda, com o qual
as guerras congolesas guardam conexões144. As
estatísticas em relação ao número de estupros
praticados naquele país africano demonstram a
gravidade da situação e o grau de vulnerabilidade de
suas mulheres e meninas, como se depreende pela
leitura de estudo da International Food Policy
Research Institute at Stony Brook University in New
York, publicado no American Journal of Public Health:

i. 48 mulheres estupradas a cada hora;


ii. 1.152 mulheres estupradas a cada dia;
iii. 12% da população de mulheres do país estupradas ao menos
uma vez;
iv. 22% das mulheres do país forçadas por seus parceiros a
manterem relações contra sua vontade.145
A gravidade da situação na República Democrática do
Congo levou o país a instalar o primeiro julgamento por
estupros de guerra naquele país (o Julgamento de Minovo),
pelo qual foram acusados 39 militares pelo estupro de 135
mulheres e meninas na cidade de Minovo. Contudo, apenas
dois acusados foram efetivamente condenados pela prática
de estupros de guerra146.
Jones refere-se ao processo grave e crescente de
estupros no Congo, ressaltando os níveis quantitativos de
estupros perpetrados neste país, superiores se comparados
ao genocídio de Ruanda:

Surpreendentemente, o recorde de estupros em massa no genocídio de


Ruanda foi alcançado e até superado nos anos posteriores ao
holocausto – no vizinho Congo, onde a violência sexual tem crescido até
os dias presentes. ‘Dezenas de milhares de mulheres, possivelmente
centenas de milhares, foram estupradas nos últimos anos,’ escreveu
Jeffrey Gettleman do New York Times em 2008. (JONES, 2011, p. 472)
(tradução livre). 147

Depreende-se, pois, por uma superficial análise histórica,


que os estupros praticados contra mulheres em situações de
conflitos armados, aqui incluídos os genocídios, constituem
estratégias de guerra ou, naquele segundo contexto
(genocídios), instrumentos para destruição dos grupos
vitimados.
Entendemos que, no caso das mulheres e meninas
Yazidis, ao longo da guerra travada em território iraquiano
contra o Estado Islâmico especialmente a partir de 2014,
ambas as hipóteses foram verificadas, como buscaremos
esclarecer.

3. OS YAZIDIS
Os Yazidis constituem um dos mais antigos grupos
humanos existentes no mundo, atualmente no ano 6.766 de
seu calendário148, com suas crenças e cultos baseados na
tradição oral vigentes já por cerca de 4.000 anos. Conforme
informação do Instituto Humanitas da Unisinos (2014, on
line):

[...] Os yazidis são uma comunidade curdófona que possui entre 100 mil
e 600 mil pessoas no Iraque, segundo estimativas. São dos povos mais
antigos da Mesopotâmia, onde sua crença surgiu há mais de 4.000
anos. Seu principal local de culto é Lalish, no Curdistão iraquiano, mas
milhares de yazidis moram na Síria, na Turquia, na Armênia e na
Geórgia, além da Europa, especialmente na Alemanha, onde vivem 40
mil yazidis [...].

Na realidade, as estimativas apontam a existência


de 1,5 milhão de indivíduos da etnia Yazidi no mundo.
Assim, é no Iraque que o povo Yazidi vive em sua
maioria, praticando suas crenças e exercendo sua fé
cuja religião agrega elementos tanto do Islamismo,
quanto do Cristianismo. A utilização de elementos
corânicos e cristãos, segundo o Professor Frédéric
Pichon, da Universidade François Rabelais, de Tours,
deve-se à busca por maior invisibilidade e que lhe
garantisse maior segurança (INSTITUTO
HUMANITAS UNISINOS, 2014, on line). Desde os
séculos XVI e XVII os Yazidis são apontados como
praticantes de cultos satânicos por parte de grupos
islâmicos (SCHAPIRO, 2014, on line), o que lhes
impôs – e ainda impõe – a tragédia de contarem com
algo em torno de 23 milhões de mortos nos últimos
700 anos, vítimas de inimigos islâmicos e outros
grupos. Viviam em torno de 2.000.000 de Yazidis há
apenas 200 anos atrás. Sua população vem sendo
reduzida drasticamente por conta de tais processos
de extermínio, atingindo a acima mencionada
estatística de 1.500.000 de indivíduos vivos
atualmente149.
É na região de Sinjar, na mesma região acima
indicada ao mencionarmos o local sagrado dos
Yazidis (Lalish), que de há muito vivia tal grupo, em
harmonia e plena convivência com seus vizinhos
árabes.
A tragédia Yazidi começa a ser concretizada no dia
3 de agosto de 2014, quando tropas do ISIS (Estado
Islâmico), a partir da cidade de Mossul (Iraque) já
tomada, lançam uma ofensiva militar contra Sinjar e
demais vilarejos habitados pelos Yazidis. A frágil
defesa curda (os combatentes Peshmerga150) não
resiste ao avanço organizado e avassalador dos
combatentes do ISIS. Com a queda de Sinjar, duas
opções restaram aos Yazidis: fugir em direção ao
monte Sinjar ou permanecer em suas casas
aguardando pelo incerto. Em torno de 200.000
pessoas fugiram em direção ao referido monte,
muitos morrendo no caminho (especialmente crianças
e idosos). Cercados pelas tropas do ISIS, começaram
a perecer pela falta de água e de alimentos, até que
França, Reino Unido, Estados Unidos e Austrália,
apoiados pelos combatentes Peshmerga e alguns
combatentes Yazidis estabeleceram um corredor
humanitário. Aeronaves, sob fogo antiaéreo do ISIS
buscavam atirar mantimentos aos Yazidis que
lutavam para sobreviver no monte Sinjar.
Combatentes do Estado Islâmico patrulhavam a
região em centenas de veículos tentando encontrar
Yazidis que ainda fugiam para sobreviver.
Estes, além daqueles que não fugiram, passaram a
ser submetidos a um sistemático processo genocida
nas mãos do ISIS. Fato é que, de imediato, milhares
de homens foram fuzilados ou degolados; em torno
de 5.000 meninas foram imediatamente aprisionadas
pelos soldados dos ISIS, após terem seus país
assassinados e suas mães separadas. Meninas a
partir dos 7 anos já eram consideradas como “troféus”
e passaram a ser vítimas das violações sexuais.

Região de Sinjar e de Lalish, no chamado Curdistão iraquiano: a maior


concentração de Yazidis no mundo.

A conquista de Sinjar pelas tropas do ISIS, dentre várias


consequências imediatas para o povo Yazidi e suas
mulheres, revelou ao mundo a brutalidade e as intenções
genocidas do referido grupo que busca estabelecer um
califado sob a ideologia Wahabista151 na região, dentre as
quais:
a. Imediata degolação dos homens Yazidis em poder do
ISIS em caso de negativa de conversão;
b. Assassinato das mulheres maiores de 60 anos;
c. Separação das famílias;
d. Separação entre homens e mulheres;
e. Transferência forçada de crianças e adolescentes,
meninas e meninos:
i. Meninas acima de 12 anos foram levadas,
após sua separação de suas mães;
ii. Meninas entre 7 e 12 anos foram depois
tomadas de suas mães;
iii. Meninos acima de 8 anos foram levados para
campos de treinamento militar para se
tornarem combatentes do ISIS.
f. Mulheres solteiras foram entregues aos combatentes;
g. Mulheres solteiras que se diziam casadas, se
descobertas, eram punidas ou mortas152;
h. Meninas e mulheres em posse dos combatentes do
ISIS foram levadas para distintas localidades e bases
do ISIS, sendo vendidas mais de uma vez;
i. Muitas das vítimas acima descritas cometeram ou
tentaram cometer suicídio.
As situações acima descritas ilustram apenas um pouco
do processo genocida em curso na região, por parte do
Estado Islâmico e que tem por alvo o povo Yazidi. Almeja-se,
claramente, a sua destruição.
Até meados de 2016 calculava-se a quantidade de
mulheres e meninas Yazidis ainda em poder do Estado
Islâmico em torno de 1.800 cativas153, número que chegou a
ser de 3.200 mulheres aprisionadas sob terríveis condições.

1. Violência sexual sistematizada e autorizada


Importante, neste ponto de nossa reflexão,
estabelecer a característica da tomada de mulheres e
meninas pelo Estado Islâmico e do tratamento conferido
a tais vítimas.
Neste sentido, conforme relato da Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas aqui já
mencionado
(http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/
CoISyria/A_HRC_32_CRP.2_en.pdf), não existem
relatos de violações sexuais em massa e aleatórias
contra as mulheres Yazidis. Tal fenômeno se deve à
sistematização e ao rígido controle, por parte dos
respectivos superiores hierárquicos do ISIS, sobre seus
soldados. Vale dizer: os vários casos relatados de
escravização sexual, estupros etc., apresentam como
contexto a violência individual contra as mulheres e
meninas Yazidis, claramente autorizadas pelas
respectivas esferas de comando. A despeito das bases
fundamentais patriarcais presentes na gênese da
violência sexual praticada pelo ISIS contra as mulheres
e meninas em seu poder, outro elemento fica patente
neste contexto: mulheres e meninas Yazides sequer são
consideradas humanas por seus raptores, mas simples
objetos que podem ser usados em distintas situações e
por distintos interesses, especialmente a satisfação
sexual e o lucro mediante a venda – e revenda - das
vítimas, que normalmente são vendidas uma dezena de
vezes, em muitos casos relatados por mulheres ou
meninas que conseguiram escapar. As mulheres e
meninas cativas são consideradas mercadorias,
normalmente vendidas em mercados de venda e tráfico
de seres-humanos considerados escravos pelo ISIS,
mercados tais existentes em Mossul (Iraque),
atualmente palco de batalha por sua libertação pelo
Exército Iraquiano, e até mesmo em países árabes
aliados do Ocidente, como a Arábia Saudita (país
muçulmano sunita e wahabista)154.
Tal processo, em termos de dinâmicas das violações,
guarda diferenças se comparado com estupros em
massa até hoje debatidos, como nos casos de violações
praticadas por soldados soviéticos ao entrarem em
território alemão, ao final da segunda guerra mundial ou
aqueles praticados pelas tropas japoneses em
Nanquim, em dezembro de 1937.
A realidade existente para as mulheres e meninas
Yazidis ainda em poder do Estado Islâmico, além do
trauma de terem sido separadas de suas famílias e do
assassinato de seus pais, mães e avós, implica no
suplício dos estupros e agressões diários e revendas
(com ou sem os filhos pequenos) para outros homens
do ISIS (grande parte das vítimas foi revendida
inúmeras vezes).
Entretanto, tal escravização sexual é controlada de
forma absoluta pelos respectivos comandos. Nada
ocorre sem sua ciência e apenas os homens
autorizados podem comprar suas vítimas e violenta-las
como desejar. Vale dizer: tais mulheres e meninas são
consideradas objetos, espólios de guerra e mercadoria.
Não são consideradas seres-humanos, por serem
mulheres e por serem Yazidis.
A combinação destes dois fatores, de gênero e
étnico, constitui o elemento autorizador do genocídio de
tal povo, para o ISIS e seus soldados.
Neste ponto, é preciso ainda ser apontado outro
instrumento de violência ao gênero feminino,
consistente na lavagem cerebral imputada às mulheres
muçulmanas ou convertidas que passam a compor a
chamada brigada feminina da ISIS (Al-Khansaa
Brigade), responsáveis pela fiscalização, exercício do
poder de polícia religioso em relação às demais
mulheres e imposição de estrita observância às leis da
Sharia segundo a versão adotada pelo ISIS,
principalmente. São estas mulheres radicalizadas e
militarmente treinadas as responsáveis por patrulhar as
ruas das cidades dominadas pelo ISIS, exigindo o
cumprimento das rígidas normas de comportamento
impostas pelo regime, bem como aplicando castigos
físicos, o que não deixa de ser outra forma de violência
voltada para as mulheres.
É evidente que tal brigada feminina não impede – não
tem poder para tanto - as violações sexuais perpetradas
contra as mulheres, especialmente as meninas Yazidis.
Neste ponto, pelo qual ressaltamos as dinâmicas de
violência sexual específicas sob rígido controle do ISIS,
praticadas contra as meninas Yazidis, torna-se
necessário estabelecer uma distinção quando da
violência sexual (ou mais especificamente o estupro)
praticada em palcos de operações de guerra, ou quando
praticados em situações de processos genocidas em
curso.

4. ESTUPROS DE GUERRA E ESTUPROS GENOCIDAS


(WAR RAPES E GENOCIDAL RAPES)
Assim, podemos distinguir a relação sexual forçada
(estupro) praticada num contexto de guerra ou aquela
praticada num contexto de genocídio, na medida em que
causas e objetivos podem ser distintos, ainda que a
dinâmica seja a mesma: a grave violência praticada contra
uma mulher ou contra uma menina, forçada a manter
relações sexuais com seu perpetrador.
Os estudos acerca dos estupros de guerra e estupros
genocidas, visam também esclarecer as suas
consequências na seara dos denominados core crimes155.
Acrescente-se como fonte que vem também impulsionando
tal evolução acadêmica os precedentes dos Tribunais
Criminais Internacionais para Ruanda156 e para a ex-
Iugoslávia157.
Neste sentido, podemos citar as lições da pesquisadora e
Professora Assistente da Faculdade de Filosofia da
Universidade do Kentucky, Dra. Natalie Nenadic e que
estabelece alguns delineamentos interessantes158. Assim, no
que tange aos estupros praticados contra mulheres e
meninas em situações de guerra, portanto, em meio ou ao
término dos combates, são características de tal contexto:
a. Excessos nos atos de guerra praticados por todos os
lados. Ex.: o tratamento brutal imposto aos
prisioneiros, combatentes e/ou civis e os estupros
praticados por soldados de ambos os lados. Eles
podem ocorrer de modo aleatório e em massa contra
as mulheres e meninas que vivam em certas regiões
de terras invadidas e tomadas aos inimigos e, em
outras regiões do mesmo país ou território,
simplesmente não ocorrerem, seja por decisão dos
próprios combatentes, seja por força de um comando
eficiente sobre os soldados comandados.
b. Os estupros, em casos tais, ocorrem em massa, sem
organização sistêmica e sem objetivos previamente
traçados. Não há, neste cenário, o prévio
estabelecimento de diretrizes traçadas pelas esferas
superiores de comando, quanto ao cometimento das
violações sexuais.
c. Nos cenários de guerras e combates, por força de
avanços da tropa sobre o território tomado, os
estupros podem ser cometidos em grande quantidade
(em massa) – como no caso de Nanquim (1937) ou
da Alemanha (1945) – ou, ainda, como dito acima, em
quantidades menores.
d. Do ponto de vista jurídico, os estupros praticados sob
tais cenários constituem violação às leis e costumes
de guerra. Estabelece, por exemplo, o inciso VI,
alínea “e”, ítem “2”, do artigo 8º do Estatuto de Roma,
que é conduta violadora das leis e costumes de
guerra o cometimento de atos de agressão sexual,
escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à
força, tal como definida na alínea “f” do parágrafo 2º
do artigo 7º; esterilização à força ou qualquer outra
forma de violência sexual que constitua uma violação
grave do artigo 3º comum às quatro Convenções de
Genebra159.
Já na hipótese dos estupros praticados contra mulheres e
meninas nos contextos genocidários, algumas
peculiaridades são também verificáveis:
a. Destruição sistêmica e planejada de um grupo étnico,
racial, nacional, religioso, praticada pelo lado
perpetrador. Não há ações aleatórias como ocorre
nas situações de estupros de guerra. Por exemplo, as
vítimas não são escolhidas a esmo, mas segundo seu
pertencimento a um dos grupos acima. Logo, neste
caso, além do fator gênero, conjuga-se o fator grupo,
como determinantes da escolha da vítima. No
genocídio de Ruanda (1994), muitas vezes a violência
sexual e o assassinato em sequência eram
precedidos de uma breve análise sobre pertencer a
vítima à etnia Hutu, Tutsi ou, ainda, ser mestiça.
b. Violência sexual também em massa, neste contexto,
porém com organização sistêmica e escopo bem
definido: destruir o grupo. No exemplo do caso
bósnio, em que pesem debates sobre ter se tratado
de um genocídio, ou não, fato é que não pairam
dúvidas sobre ter-se tratado de um processo de
limpeza étnica e que encontrou na gravidez forçada
instrumento para alteração da composição étnica da
geração nascida de tais violações sexuais. O objetivo
dos estupradores era claro e bem definido. Ainda no
caso de Ruanda, a prévia organização desceu ainda
a detalhes mais específicos com a finalidade de
buscar o extermínio de todas as mulheres Tutsis do
país: batalhões de estupradores infectados com vírus
HIV foram organizados antes do início dos
estupros160; a crueldade mediante as quais tais
violações eram cometidas (muitas vezes diante de
pais e filhos; ou mediante a obrigação imposta sob
armas, de um filho violentar a própria mãe, sendo
morto a seguir) tinha por escopo inviabilizar a
continuidade da vida para as mulheres vitimadas.
Neste sentido, correta a interpretação do Tribunal
Criminal Internacional para Ruanda em se considerar
o estupro como instrumento para prática do
genocídio, inclusive subsumindo a conduta ao
disposto pelo artigo 2º, alínea “b” da Convenção para
Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 9
de dezembro de 1948.
c. Os estupros ocorrem, via de regra, com alta
frequência e de modo uniforme no contexto de um
genocídio desencadeado, na medida em que há o
prévio estabelecimento de diretrizes e objetivos pelas
hierarquias superiores dos grupos perpetradores.
Assim ocorreu na região do Darfur (Sudão), durante o
extermínio dos grupos negros pelas forças oficiais do
governo árabe, bem como por forças paramilitares
(Janjaweed)161 ou durante o genocídio de Ruanda,
pelas milícias Interahamwe. A ação genocida é a
regra e os estupros um de seus principais
instrumentos. O objetivo final não é a submissão das
mulheres do inimigo (aqui uma das raízes culturais e
antropológicas na consideração da mulher como mero
objeto ou inferior ao homem) ou a satisfação sexual
do perpetrador. A finalidade almejada é o extermínio
dos indivíduos pertencentes ao grupo-alvo (Tutsis,
Yazidis, as populações negras no Sudão etc.).
d. Os estupros, sob tal contexto, poderão ser
considerados crimes de guerra, instrumento para a
prática de genocídio (crime de genocídio) e, também,
crimes contra a humanidade.
De qualquer modo, tanto nas hipóteses de estupros de
guerra, quanto na hipótese de estupros genocidas, a visão
patriarcal e de submissão nutrida por sociedades cujos
processos educacionais e culturais não estabelecem
parâmetros de formação baseados na igualdade e no
respeito entre os gêneros, encontra-se na raiz de padrões de
comportamento que, se em tempos de paz já se revelam
extremamente lesivos para as mulheres e meninas, tornam-
se trágicos e letais para o gênero feminino em tempos de
guerra, conflitos e extermínios.
Some-se a tal opinião, o fato das estruturas
internacionais, normativas e interventivas, basearem suas
decisões e ações em parâmetros traçados que consideram o
homem a principal vítima, sem consideração primordial às
mulheres, meninas, bem como a outro grupo-alvo já
tradicional em tais conflitos, quais sejam, os homossexuais e
transexuais.
Gradualmente, entretanto, a intersecção entre os crimes
sexuais cometidos em cenários de genocídios, como o caso
da meninas Yazidis, começam a ser reconhecidos pelas
esferas e autoridades internacionais, como no caso a
definição das Nações Unidas, que estabelece a violência
sexual em conflitos como aquela que ocorre durante ou após
o conflito, guardando com ele um nexo direto ou indireto de
causalidade162.
No mesmo sentido Torelly, que relaciona e especifica a
violência sexual nos conflitos armados como aquela ligada
ao fato da existência de tal conflito (TORRELY, on line), bem
como ressalta a presença dos estereótipos sociais que
recaem sobre a mulher em tempos de paz, ao citar Juan
Méndez, relator especial das Nações Unidas para a Tortura,
que critica a ausência de uma abordagem mais inspirada por
uma perspectiva de gênero, nos termos seguintes:

[…] Historicamente o conceito de tortura e maus tratos evoluiu em


resposta a práticas e situações que afetavam desproporcionalmente aos
homens. Assim, a análise … falha em adotar uma abordagem de gênero
ou interseccional, ou em avaliar adequadamente o impacto da
discriminação estrutural e de estruturas de poder e estereótipos de
gênero reproduzidos socialmente […] 163.

Portanto, devem ser considerados, na análise da


violência sexual praticada contra as mulheres em
contextos de conflitos armados e genocídios, bem
como na busca de aperfeiçoamento dos mecanismos
de inibição e proteção a tais vítimas, também alguns
erros de avaliação localizados numa provável
discriminação estrutural presente nas estruturas de
poder e nos estereótipos de gênero reproduzidos
socialmente (MENDEZ apud TORRELY, on line).
Em suma, os conflitos não “criam” tal violência;
potencializam-na. A violência tem origem e raízes em
momento que precede ao colapso das instituições e
dos mecanismos de inibição, durante guerras e
genocídios. Categorias tais de violência de gênero
presentes antes, durante e depois dos conflitos.

5. O ESTABELECIMENTO DE PADRÕES DE
COMPORTAMENTO BASEADOS NO GÊNERO E OS
RISCOS DAÍ DECORRENTES - GENDERCIDE
A despeito das novas análises fruto da atenção que vem
sendo despertada entre os estudiosos dos fenômenos das
guerras e genocídios sobre a violência sexual perpetrada
contra mulheres e meninas desde os conflitos mais antigos
na história da humanidade, até os dias atuais, algumas
considerações de ordem sociológica devem também ser
apresentadas na tentativa de se alcançar uma compreensão
mais completa e adequada sobre o fenômeno.
Assim, como dito acima, parece claro que a violência
sexual imposta às mulheres e meninas nos conflitos
armados encontram raízes em categorias de violência bem
anteriores ao citado conflito, em si mesmo considerado. Vale
dizer: as bases culturais, sociológicas, patriarcais etc. que
inserem a mulher numa situação reificada, preexistem aos
conflitos. Ao término destes, desaparecem os campos de
concentração e demais estruturas e figurações típicas de
períodos de conflagração, mas permanecem as bases
violentas acima mencionadas (entenda-se, violência não
necessariamente física) e que farão das mulheres e
meninas, novamente, as principais vítimas no próximo
conflito164.
Não sem razão, pelas mesmas causas, também
encontramos o recurso à violência sexual (especialmente os
estupros) e contra a condição feminina em geral, ao longo
de outros processos sócio-políticos traumáticos, como no
caso da repressão perpetrada em ditaduras contra mulheres
opositoras presas pelos respectivos regimes e consideradas
como inimigas internas, como ocorreu com as ditaduras do
Cone Sul165. Vale ressaltar que outras agressões à condição
feminina foram também sistematicamente praticadas nestes
contextos, como por exemplo o sequestro de bebês de
presas políticas encarceradas – clandestinamente, na
maioria das vezes, como no caso argentino166. É significativo
que um dos mais célebres movimentos de resistência
argentina no mundo, comprometido com a busca da verdade
e da justiça, seja exatamente a entidade de direitos
humanos conhecida como Las Madres de Plaza de Mayo167.
De fato, a visão que recai sobre a mulher nas sociedades
patriarcais e mais conservadoras a relega ao papel
secundário e de suporte ao homem. Este, o homem, quando
alcança o ápice social tem na posse da mulher o troféu e
símbolo de sucesso e poder.
Daí a utilização de táticas de guerra voltadas para a
conquista da mulher do inimigo, num primeiro estágio de
análise da violência sexual num contexto de combates: tal
domínio transmite mensagens ao inimigo, marca os
territórios conquistados (já que a mulher violentada,
estigmatizada pela comunidade e muitas vezes pela própria
família, jamais retornará à terra natal, abandonada às
pressas ou onde sofreu a violência) e, ainda, em certos
contextos, altera a composição étnica local, exatamente o
caso na guerra da Bósnia, o que é atualmente considerado
crime contra a humanidade pelo Estatuto de Roma168.
O crime do estupro em massa deve também ser
considerado, ainda, como instrumento de extermínio quando
suas dinâmicas e objetivos sofrem variações quanto ao grau
de crueldade e seus objetivos, conforme enfatizamos acima
ao tratarmos das distinções entre os estupros de guerra e os
estupros genocidas. Mas, trate-se de um, ou de outro, em
ambos os casos o desencadeamento de sua ação criminosa
guarda profunda relação com os papéis e expectativas
impostas pelas sociedades para o masculino e para o
feminino, ainda em tempos de paz.
Para alguns estudiosos, como Mary Anne Warren, que
cunhou o termo gendercide para definir o extermínio
deliberado de pessoas pertencentes a um particular sexo
(POWELL, 2011, p. 121), o estabelecimento de papéis
baseados no gênero possui consequências tão letais quanto
as rotulações baseadas nos preconceitos raciais, étnicos,
políticos, religiosos ou nacionais169. Informa Powell que
Warren, entretanto, conceituou o termo gendercide para
referir-se a outras estruturas de violências e de assassinatos
de gênero especificamente de pessoas do sexo feminino,
como o infanticídio de bebês do sexo feminino (comuns na
Índia e a China), perseguição a mulheres consideradas
bruxas ou feiticeiras em certas regiões do planeta, mutilação
genital feminina, proibição à mulher para reproduzir ou a
ideologias misóginas. A aplicação do termo gendercide para
assassinato de gênero seletivo em massa (que pode ser de
mulheres ou também de homens), resulta de interpretação
reformulada por Adam Jones, sobre a definição de Warren.
Jones, ao tratar da violência sexual contra mulheres em
situação de conflitos, discute o tema vislumbrando os
estupros seguidos de assassinatos em massa, bem como
seu uso deliberado para transmissão do vírus HIV, nas
hipóteses de prática de estupros genocidas (POWELL, 2011,
p.122), tal como ocorreu durante o genocídio de Ruanda.
De fato, se à mulher é destinado um papel social marcado
pela submissão ao homem, como ocorre em grande parte
dos países, a visão que prevalece ao longo do desenrolar
dos conflitos armados é exatamente a da tolerância para
com a violência sexual e a submissão das mulheres
pertencentes ao combatente inimigo. Vale dizer: a violência
sexual e contra a condição feminina – e, em nossa análise
presente, o estupro – são tolerados pois considerados efeito
colateral da guerra, e não um crime de guerra e contra a
humanidade em si próprio considerados e apenados
adequadamente, dada a sua gravidade. E ainda que
encontremos o reconhecimento do estupro como
instrumento para a concretização de tais crimes, inclusive
com condenações já registradas nos precedentes dos
tribunais penais internacionais, do ponto de vista sociológico
e cultural, é ainda considerado uma consequência própria da
condição submissa da mulher, considerada um troféu a ser
tomado ao inimigo.
A cultura prevalente sobre o papel da mulher em variadas
regiões do globo geram situações de violência sexual
praticadas mesmo por parte daqueles que deveriam zelar
pela segurança das referidas vítimas, conforme se observa
pelas narrativas, até mesmo, em relação às forças das
Nações Unidas que vêm se empenhando em combater tal
prática por parte de soldados componentes das referidas
forças internacionais, como se depreende pela leitura, a
título de exemplo, do Relatório Independente de Revisão
sobre Exploração Sexual e Abuso por Forças Internacionais
de Manutenção da Paz na República Centro-Africana
(Report of an Independent Review on Sexual Exploitation
and Abuse by International Peacekeeping Forces in the
Central African Republic).170
Nas hipóteses das guerras e genocídios, deve ser
ressaltado, os mecanismos de inibição da violência sexual
contra as mulheres e meninas encontram-se, via de regra,
colapsados. Não existe qualquer obstáculo institucional ou
legal entre o perpetrador e suas vítimas, entregues que são
à própria sorte. No caso de estupros e abusos sexuais
outros praticados por soldados componentes das missões
de paz das Nações Unidas, investigações e
responsabilizações são efetivadas. Não sem razão o
Conselho de Segurança da ONU adotou, em 2016, a
Resolução n° 2272171 visando coibir referida prática por
membros de suas missões de paz e diante das reiteradas
notícias de abusos sexuais contra as populações locais,
muitas verificadas nas regiões da África Central.
Daí a relevância do veredicto proferido pelo Tribunal
Criminal Internacional para Ruanda, na acusação contra
Jean-Paul Akayesu, na medida em que sua decisão
consistiu na primeira condenação da história por crime de
genocídio proferida por uma Corte Internacional; foi também
a primeira decisão na qual condenou-se autor de violência
sexual praticada durante uma guerra civil e, finalmente,
tratou-se do primeiro julgamento da história por um tribunal
internacional que reconheceu o estupro com um ato de
genocídio, com a intenção de destruir um grupo172. Como
afirmamos acima, a respectiva Câmara de Julgamento
entendeu que a prática dos estupros em massa contra
mulheres e meninas Tutsis ocorreu inserida num contexto no
qual o objetivo final era a destruição do grupo. Os requintes
de crueldade praticados pelos perpetradores radicais Hutus
visava não permitir a manutenção, na mente e no espírito
das vítimas, da viabilidade de continuidade e reconstrução
de suas vidas.
Ao comentar a referida histórica decisão, William A.
Schabas ressalta ponto importante neste reconhecimento (o
estupro como ato de genocídio) por um tribunal criminal
internacional, na medida em que tal resultado foi fruto de
pressão de entidades não-governamentais, especialmente
formada por mulheres, inclusive ruandesas, e não de
espontânea ação do procurador atuante no caso. Afirma
Schabas (2009, p. 187):
[…] Neste ponto, o julgamento de Akayesu constitui uma grande
contribuição para o progressivo desenvolvimento das normas sobre
genocídio. O reconhecimento de que a violência sexual se coaduna com
os graves danos corporais e mentais talvez não seja revolucionário. É
também preciso que se tenha em mente que as vítimas Tutsis
estupradas foram assassinadas, também, como regra geral...a Câmara
de Julgamento anotou, também, que na maioria dos casos os estupros
de mulheres Tutsis, na localidade de Taba, foram acompanhados da
intenção de matar aquelas mulheres. De qualquer forma, a histórica
banalização na prática de tais crimes violentos direcionados
especialmente contra mulheres gerou impactos nas acusações de
genocídio assim como ocorreu nos casos de acusações por crimes de
guerra e crimes contra a humanidade. O Procurador...” – Schabas se
refere ao acusador no caso Akayesu – “...não incluiu os crimes
baseados no gênero, no indiciamento inicial. Foi apenas no decorrer do
julgamento, após pressões de organizações não-governamentais, que o
indiciamento foi emendado [...]173. (tradução livre)

Referida constatação de Schabas demonstra, talvez, uma


certa falta de sensibilidade até mesmo por parte de
componentes das estruturas internacionais e de seus
mecanismos de inibição para melhor compreensão sobre os
elementos de gênero contidos em certas dinâmicas e em
alguns processos de imposição de violência sexual sobre
grupos-alvos, nos cenários de guerras e genocídios.
De qualquer modo, referido julgamento constitui um
marco para o aperfeiçoamento dos sistemas convencionais,
legais e judiciais protetivos das mulheres e meninas
presentes nos palcos de operação de guerra ou
genocidários.
Afinal, o caso Akayesu reconheceu a interseccionalidade
entre o crime de estupro genocida e o elemento da
etnicidade. O Tribunal Criminal Internacional para Ruanda
(ICTR) reconheceu que as mulheres vitimadas tornaram-se
alvos devido à sua etnia (Tutsis) e em razão das visões e
opiniões dos Hutus perpetradores sobre as mulheres Tutsis,
enquanto mulheres. Cuidamos, aqui, da evolução da idéia
do estupro como instrumento para o genocídio, além de
arma de guerra.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os avanços verificados pela sedimentação de
interpretações mais voltadas para uma perspectiva de
gênero acerca das violações sexuais e, em geral, contra a
condição feminina, em contextos de conflitos armados
internacionais e guerras civis, incluídos os genocídios, são
ainda tímidos e fruto dos esforços de movimentos não
governamentais feministas, de familiares das vítimas,
entidades de proteção aos direitos humanos, dentre outros,
como verificado no caso Akayesu, julgado pelo Tribunal
Internacional Criminal para Ruanda.
É necessário que os estudos e interpretações acerca das
dinâmicas que marcam os crimes de guerra, crimes contra a
humanidade e crime de genocídios passem a ter a
perspectiva de gênero como norte para sua mais completa
compreensão, tipificação e punição dos perpetradores.
No mesmo sentido, a Convenção para Prevenção e
Repressão contra o Crime de Genocídio de 1948 deve ter
sua interpretação ampliada para incluir o extermínio em
razão do gênero como elemento para caracterização do
referido crime (de genocídio), em que pese a bem-vinda
subsunção do estupro como ato de genocídio e atentado por
impor às suas vítimas graves danos corporais e mentais, tal
como disposto pelo artigo 2º, alínea “b” da referida
Convenção.
No que tange às normas internacionais e toda a sua
sistemática, também devem ter em consideração, quanto à
sua leitura e exegese, que as primeiras vítimas de tais
conflitos são civis e, dentre estes, as mulheres e meninas,
exatamente como ocorreu – e ainda ocorre – com as
meninas e mulheres Yazidis desde 3 de agosto de 2014
(data da invasão da região de Sinjar pelo Estado Islâmico),
vendidas – e revendidas - em mercados no Iraque e na Síria,
como escravas sexuais, não sem antes terem seus preços e
imagens catalogados na internet.
Neste cenário, no caso específico das meninas Yazidis
vitimadas durante a guerra da Síria, tanto em solo sírio
quanto iraquiano, necessário é que o sistema penal
internacional protetivo dos direitos humanos forneça uma
resposta efetiva no sentido do julgamento dos combatentes
– não apenas do Estado Islâmico – pela prática de estupros
de guerra e estupros genocidas, ao menos pelas violações
aos crimes de guerra (Direito de Genebra) e como ato de
genocídio.
Significa afirmar que o sistema internacional protetivo dos
direitos humanos não pode deixar de exercer e concretizar
sua principal função: romper com um status quo letal para as
mulheres e meninas em situação de conflitos armados.
Referido sistema deve caracterizar-se como fator de
mudanças e de eliminação com condutas toleradas já há
séculos durante as guerras, consistentes na prática de
crimes sexuais contra vítimas vulneráveis e indefesas, em
tais contextos. Neste sentido, a responsabilização das
estruturas de comando mostra-se, também, indispensável.
O desafio maior, entretanto, consiste no tratamento das
causas de tal espécie de violência, na medida em que a
origem da violência de gênero reside nos estereótipos
dominantes nas sociedades em tempos de paz,
especialmente as sociedades predominantemente
patriarcais e que impõem expectativas de comportamentos e
de papéis para homens e mulheres, meninos e meninas. Daí
a importância de disposições como o artigo 2º da
Convenção das Nações Unidas contra todas as formas de
discriminações contra as mulheres174 e que determina aos
Estados Partes que adotem todas as medidas apropriadas
para:
a. Modificar os padrões sócio-culturais de conduta de
homens e mulheres, com vistas a alcançar a
eliminação dos preconceitos e práticas
consuetudinárias e de qualquer outra índole que
estejam baseados na idéia da inferioridade ou
superioridade de qualquer dos sexos ou em funções
estereotipadas de homens e mulheres; e,
b. Garantir que a educação familiar inclua uma
compreensão adequada da maternidade como função
social e o reconhecimento da responsabilidade
comum de homens e mulheres no que diz respeito à
educação e ao desenvolvimento de seus filhos,
entendendo-se que o interesse dos filhos constituirá a
consideração primordial em todos os casos.
Demonstrado está, claramente, que referidos padrões
discriminatórios e baseados no gênero evoluem para
comportamentos absolutamente letais para o sexo feminino
quando do colapso das instituições e dos mecanismos de
inibição da violência sexual em cenários de guerras e
genocídios.
Os processos educativos devem ser revistos no sentido
da implementação da cultura de respeito à dignidade da
mulher, que não pode ser vista como uma categoria de
cidadãos cujos direitos, prerrogativas e poder de decisão
devam sempre ser considerados, respeitados e efetivados à
sombra das mesmas prerrogativas titularizadas pelos
homens.
A valorização e o respeito à dignidade da mulher e ao
gênero feminino mostra-se de vital importância neste
processo de revisão das linhas educacionais nas sociedades
contemporâneas, nas quais o grau de violência parece voltar
a crescer, especialmente em países como o Brasil175,
Índia176, Rússia (cuja Câmara Baixa – DUMA – aprovou
Projeto de Lei em janeiro de 2017, descriminalizando a
violência doméstica que não cause danos à saúde177), dentre
outros países. Nota-se, claramente, o predomínio da visão
que prepondera sobre as mulheres, relegando-as a um
papel privado da condição humana e de todas as garantias e
prerrogativas que lhes são inerentes. Tal cenário é o
combustível que impulsiona a prática dos estupros em
massa durante os conflitos armados e genocídios.
O modo pelo qual os meninos são educados deve ser
urgentemente revisto a partir de consensos internacionais e
nacionais; por meio da implementação de políticas públicas
de saúde, de educação, de cultura e, ainda, pela
maximização das estruturas públicas responsáveis pela
inibição de comportamentos sexistas, machistas e violentos
contra meninas e mulheres.
Conforme explica Ana Claudia Pompeu Torezan
Andreucci, ao comentar o Relatório da OIT intitulado
Trabalho e Família: Rumo a Novas Formas de Conciliação
com Corresponsabilidade Social, necessário é a busca por
uma cultura marcada pela predominância de maior
sensibilização cultural como norte construtor da cidadania:

As atitudes em relação às desigualdades e discriminações entre homens


e mulheres só sofrerão alteração quando se instaurarem mecanismos
de sensibilização e conscientização social. Lembrando-se, todavia, que
a discriminação não é uma decorrência apenas das leis, mas dos
condicionamentos psicoculturais advindos de mitos e crenças
enraizados na estrutura da sociedade patriarcal em que vivemos, contra
os quais homens e mulheres devem se insurgir. (ANDREUCCI, 2012, p.
195).

São exatamente tais alicerces culturais e patriarcais que


sustentam, pela raiz, as categorias de violência
preexistentes às guerras e genocídios que, durante o curso
destes, em face do colapso civilizacional próprio de tais
períodos, conduzem meninas e mulheres à absoluta
vulnerabilidade e ao seu extermínio, inclusive, por meio da
violência sexual.
É preciso que mulheres e homens lutem juntos para
efetivação de mudanças de padrões culturais que
obstaculizam a efetividade da dignidade de mulheres e
meninas inerentes à sua condição humana e tuteladas pelas
normas internacionais protetivas dos direitos humanos.
O que não se pode mais admitir é a indiferença;
indiferença em relação à violência discriminatória e de
gênero, cotidiana nas sociedades contemporâneas;
indiferença quanto à escravização sexual de meninas e
mulheres, vendidas em mercados abertos e com preços
tabelados na internet. Temos aí a barbárie oriunda da
indiferença pela humanidade, governos e organizações
internacionais.
E, como afirmou Ellie Weisel, o oposto da vida não é a
morte, é a indiferença.
O martírio de mulheres e meninas nas guerras e
genocídios resulta exatamente da indiferença e cumplicidade
das instituições, das sociedades, de homens e também
mulheres, que em tempos de paz alimentam e toleram, nem
sempre de modo consciente, os estereótipos letais ao
gênero feminino, privado de voz, de vontade e de projeção
no espaço público, o nos remete ao pensamento Arendtiano:

[...] Viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, estar
privado de coisas essenciais a uma vida verdadeiramente humana: estar
privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros,
privado de uma relação ‘objetiva’ com eles decorrente do fato de ligar-se
e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da
possiblidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A
privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o
homem privado não aparece, e, portanto, é como se não existisse. O
que quer que ele faça permanece sem importância ou consequência
para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de
interesse para os outros (ARENDT, 2013, p. 71).

É preciso que se dê a ruptura de tais estereótipos de


opressão, sob pena de permitirmos a continuidade dos
extermínios baseados na discriminação de gênero.

REFERÊNCIAS

ANDREUCCI, Ana Claudia Pompeu Torezan. Igualdade de Gênero e Ações


Afirmativas: Desafios e Perspectivas para as Mulheres brasileiras pós-
Constituição Federal de 1988, São Paulo: LTr, 2012.
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
BROWNMILLER, Susan. Against Our Will. Toronto: Bantam Books,1986.
DUHALDE, Eduardo Luis. Es Estado Terrorista Argentino. Buenos Aires:
Colihue, 2013.
INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. Quem são os yazidis, alvo dos jihadistas
do Estado Islâmico? 2014. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/534276-quem-sao-os-yazidis-alvo-dos-
jihadistas-do-estado-isl%C3%A2micoAcesso em: 13 mar. 2017.
JONES, Adam. Genocide: A Comprehensive Introduction. Routledge – Taylor &
Francis Group, New York, 2011.
LOUREIRO, Heitor de Andrade Carvalho. Genocídio Armênio (1915-1923:
Massacre, Deportações e Expropriação. Conflitos Armados, Massacres e
Genocídios: Constituição e Violações do Direito à Existência na Era
Contemporânea. In: ZAGNI, Rodrigo Medina Zagni; BORELLI, Andrea (orgs.).
Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.
PEREIRA, Flávio de Leão Bastos. O Genocídio de Srebrenica. Conflitos
Armados, Massacres e Genocídios: Constituição e Violações do Direito à
Existência na Era Contemporânea. In: ZAGNI, Rodrigo Medina Zagni; BORELLI,
Andrea (orgs.). Belo Horizonte: Fino Traço, 2013.
POWELL, Christopher John. Barbaric Civilization: A Critical Sociology of
Genocide. McGill-Queen´s University Press, 2011.
SCHABAS, William A. Genocide In International Law: The Crime of Crimes. 2.
ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.
SCHAPIRO, Avi Asher. Who Are the Yazidis, the Ancient, Persecuted
Religious Minority Struggling to Survive in Iraq?. National Geographic. 2014.
Disponível em: http://news.nationalgeographic.com/news/2014/08/140809-iraq-
yazidis-minority-isil-religion-history/. Acesso em: 1 mar. 2-017.
SMITH, Andrea. Conquest: Sexual Violence and American Indian Genocide, MA:
South End Press Cambridge, 2005.
TORELLY, Marcelo. Disponível em: https://youtu.be/a5grokGIEUY. Acesso em: 5
mar. 2017.
UN, A/65/592-S/2010/604,§05.

123 SEXUAL VIOLENCE AGAINST WOMEN AND GIRLS IN ARMED CONFLICTS AND
GENOCIDITIES: THE CASE OF YAZIDIS GIRLS
124 Depoimento de menina de 12 anos, cativa do ISIS por 7 meses e vendida 4 vezes,
constante do Relatório do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas de 15.6.2016
sobre a situação dos Yazidis em poder do ISIS –
http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/CoISyria/A_HRC_32_CRP.2_en.pdf
- acesso em 1.3.2017.
125 Dramaturgo na Grécia antiga, viveu entre 525 a.C. e 456 a.C.
126 Além do reconhecimento do estupro como crime de guerra e crime contra a
humanidade, o Tribunal Criminal Internacional Para Ruanda reconheceu o estupro como
instrumento para cometimento do crime de genocídio, quando tiver por objetivo a
destruição do grupo-alvo (Caso Akayesu, 1998). No caso, a Câmara de Julgamento
daquela Corte Criminal Internacional entendeu que os estupros praticados contra as
mulheres Tutsis (que foram violentadas por serem mulheres e Tutsis), seria subsumível à
descrição da Convenção Para Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, constante
da alínea “b” de seu artigo 2º, que reconhece como atos de genocídio aqueles que
traduzam grave atentado à integridade física e mental de membros de um certo grupo. A
gama de danos impostos às mulheres violentadas durante guerras, conflitos armados e
genocídios é variada e extensa, de difícil reparação, quando sobrevivem.
127 Veredicto de Pauline Nyiramasuhuko, Ex-Ministra de Relações Exteriores de Ruanda.
http://unictr.unmict.org/en/cases/ictr-98-42 - acesso em 21.2.2017.
128 A prática de crimes sexuais contra homens e meninos não é tampouco uma conduta
rara durante conflitos armados e que merece também análise aprofundada e apropriada.
129 Considere-se, por exemplo, a previsão do Estatuto de Roma constante da alínea “g”,
item 1 de seu artigo 7º.
130 “Entre 30.000 e 40.000 mulheres muçulmanas foram vítimas de estupro, na Guerra da
Bósnia. O estupro, na Guerra da Bósnia, entre 1992 e 1995, não foi um crime praticado por
iniciativa particular dos combatentes diante de vítimas indefesas; foi uma estratégia
previamente pensada, arquitetada e efetuada durante o conflito nos chamados ‘campos de
estupro’, bem como em locais e prédios transformados em prisões e locais de martírio para
as vítimas, muitas das quais cometiam suicídio antes ou após serem violentadas.”
(PEREIRA, 2013, p. 205-206). Exemplo de tal localidade é o Hotel Villina Vlas, em
Visegrad, onde em torno de 20.000 mulheres foram estupradas, torturadas e assassinadas
por tropas sérvias. Hoje, é ainda utilizado como hotel, gerando discussões relevantes sobre
a necessidade de memorialização dos crimes cometidos no local -
http://www.bbc.com/news/world-europe-35992642 . Acesso em 5.3.2017.
131 O termo Boko Haram significa “a educação não-islâmica/ocidental é pecado”, no
idioma Hausa, falado no norte da Nigéria.
132 “In the colonial imagination, Native bodies are also immanently polluted with sexual sin.
Theorists Albert Cave, Robert Warrior, H.C. Porter, and others have demonstrated that
Christian colonizers often likened Native peoples to the biblical Canaanites, both worthy of
mass destruction. What makes Canaanites supposedly worthy of destruction in the biblical
narrative and Indian peoples supposedly worthy of destruction in the eyes of their colonizers
is that they both personify sexual sin […]”. (SMITH, 2005, p.10).
133 “Because Indian bodies are ‘dirty’, they are considered sexually violable and ‘rapable’,
and the rape of bodies that are considered inherently impure or dirty simply does not count.
For instance, prostitutes are almost never believed when they say they have been raped
because the dominant society considers the bodies of sex workers undeserving of integrity
and violable at all times. Similarly, the history of mutilation of Indian bodies, both living and
dead, makes it clear that Indian people are not entitled to bodily integrity.” (SMITH, 2005,
p.10).
134 Consideramos o primeiro genocídio praticado no século XX o extermínio dos povos
Hereros e Namas pelas tropas imperiais alemãs, sob o comando do Gal. Lottar von Trotha,
entre 1904-1907, na Namíbia e para sufocar revolta dos referidos povos contra a
colonização alemã. Se considerada, entretanto, a ação genocida de um Estado contra seus
próprios cidadãos, o genocídio armênio foi o primeiro e com graus de sistematização mais
detalhados do que o genocídio dos Namas e Hereros, embora tenha apresentado este
extermínio, também, alguns métodos de assassinatos em massa bem sistematizados pelos
alemães, como o estabelecimento do primeiro campo de extermínio do século XX,
conhecido como Shark Island. Para uma leitura mais detalhada sobre o tema, acesse
http://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents/46046325/Territorios__Poderes_e_Ide
ntidades.pdf?
AWSAccessKeyId=AKIAIWOWYYGZ2Y53UL3A&Expires=1488132792&Signature=Q4ZCb
nd9Pxq8ByhHf2rbuTPz0cg%3D&response-content-
disposition=inline%3B%20filename%3DTerritorios_poderes_e_identidades_a_ocup.pdf#pa
ge=123 . Mesmo durante o extermínio dos Namas e Hereros, o estupro de mulheres e
meninas pelas tropas alemãs não foi deixado de lado, conforme informa Adam Jones:
“...After five months of sporadic conflict, about 1.600 German soldiers armed with machine
guns and cannons decisively defeated the Hereros at the Battle of Waterberg. After
vanquishing the Hereros, the German Army launched a ´mass orgy of Killing´…Herero men
were slowly strangled by wire and then hung up in rows like crows, while young women and
girls were regularly raped before being bayoneted to death…”. JONES, Adam, ob.cit.,
p.122.
135 Para mais informações, acesse http://heinonline.org/HOL/LandingPage?
handle=hein.journals/nylshr19&div=58&id=&page=
136
http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/05/150508_estupro_berlim_segunda_guerra_
fn – acesso em 26.2.2017,
137 Para mais informações acesse https://youtu.be/kKJqCYLoMq8 - acesso em 26.2.2017.
138 Para mais informações acesse https://books.google.com.br/books?hl=pt-
BR&lr=&id=nLdJEZGkwrkC&oi=fnd&pg=PP1&dq=russian+women+raped+by+nazi+troops&
ots=DssPfsgGIK&sig=totK6GRU8aDFk5Bu6l-
taKZC4mU#v=onepage&q=russian%20women%20raped%20by%20nazi%20troops&f=false
139 Para mais informações acesse http://scholarship.law.berkeley.edu/cgi/viewcontent.cgi?
article=1241&context=bjil – acesso em 26.2.2017.
140 Para mais informações acesse https://books.google.com.br/books?
id=e4MsBgAAQBAJ&pg=PA73&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false – acesso em
26.2.2017.
141 Para mais informações acesse
http://www.womenundersiegeproject.org/conflicts/profile/rwanda - acesso em 26.2.2017.
142 Para mais informações acesse
http://www.womenundersiegeproject.org/conflicts/profile/rwanda - acesso em 26.2.2017.
143 Para mais informações acesse
https://www.theguardian.com/world/2014/jun/08/rwanda-20-years-genocide-rape-children -
acesso em 26.2.2017.
144 1ª Guerra do Congo – 1996/1997; 2ª Guerra da Congo – a partir de agosto de 1998;
em 2008 – 5.4 milhões de mortos. O pior conflito no mundo, desde a 2ª guerra mundial –
45 mil mortos por mês - http://www.reuters.com/article/us-congo-democratic-death-
idUSL2280201220080122 – acesso em 26.2.2017.
145 Para mais informações acesse https://www.theguardian.com/world/2011/may/12/48-
women-raped-hour-congo - acesso em 26.2.2017.
146 Para mais informações acesse http://www.bbc.com/news/world-africa-27285268 -
acesso em 26.2.2017.
147 “Astonishingly, the record of mass rape in the Rwandan genocide was matched and
even surpassed in the years following the holocaust – in neighboring Congo, where sexual
violence has raged through to the present day. ‘Tens of thousands of women, possibly
hundreds of thousands, have been raped in the past few years,’ wrote Jeffrey Genttleman
of the The New York Times in 2008.”
148 O ano-novo Yazidi se dá a partir de 20 de abril, de cada ano. O mês de abril de 2017
marcará a chegada ao ano Yazidi 6.767. - http://ekurd.net/yazidi-celebrate-red-wednesday-
2016-04-20 - acesso em 3.3.2017.
149 Para mais informações acesse: http://www.yeziditruth.org/yezidi_genocide.
150 Aqueles que enfrentam a morte.
151 O Wahabismo consiste na ideologia islâmica fundada por Mohammed Ibn Abd al-
Wahhab (1703-1792) e que prega a absoluta soberania de Deus. Rejeita, ainda, qualquer
utilização de imagens, como Santos em tumbas, por exemplo, que devem ser destruídas.
Mohammed Ibn Abd-Wahhab era contrário a qualquer espécie de inovação ou
modernização na sociedade islâmica, que deve retornar às origens puras da primeira
geração do Islã – os Salafis (daí o termo Salafismo). O Wahabismo é a ideologia que
inspira o Estado Islâmico e demais ações fundamentalistas. É também a fonte ideológica
preponderante no Reino da Arábia Saudita. Para maior detalhamento sobre a ideologia
Wahabista, consulte: https://global.britannica.com/topic/Wahhabi - acesso em 1.3.17.
152 Muitas mulheres Yazidis, temendo o pior, se diziam casadas; para serem mais
convincentes, pediam a sobrinhos, sobrinhas e irmãos mais novos, que se dissessem seus
filhos. O ISIS providenciou uma médica para examinar e comprovar que em casos tais
estava-se diante de uma mulher não virgem, portanto, casada. Há relatos, ainda, dando
conta de que vizinhos árabes apontavam mulheres que eram, na verdade, solteiras.
http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/CoISyria/A_HRC_32_CRP.2_en.pdf
- acesso em 1.3.17.
153 Para mais informações https://www.hrw.org/news/2016/04/05/iraq-women-suffer-under-
isis - acesso em 1.3.17.
154 http://ahtribune.com/world/north-africa-south-west-asia/1221-yazidi-sex-slaves.html -
acesso em 4.3.17.
155 Crime contra a humanidade, crime contra as leis e costumes de guerra e crime de
genocídio.
156 Para mais informações acesse http://unictr.unmict.org/.
157 Para mais informações acesse http://www.icty.org/.
158 Para mais informações acesse https://youtu.be/zBOCPAzDA98.
159 Para mais informações acesse https://www.icc-cpi.int/nr/rdonlyres/ea9aeff7-5752-4f84-
be94-0a655eb30e16/0/rome_statute_english.pdf
160 Para mais informações acesse http://scholarship.law.berkeley.edu/cgi/viewcontent.cgi?
article=1241&context=bjil.
161 Para mais informações acesse http://www.un.org/News/dh/sudan/com_inq_darfur.pdf.
162 Para mais informações acesse UN, A/65/592-S/2010/604,§05.
163 Para mais informações acesse UN, A/HRC/31/57,§05 - https://youtu.be/a5grokGIEUY.
164 Gays, transexuais, lésbicas etc. também compõem grupo alvo muito visado durante
guerras, massacres e genocídios. Em relação aos homens heterossexuais e meninos,
costumam ser imediatamente assassinados (para eliminar combatentes resistentes) ou
tomados como força de treinamento para combates. Tais constatações revelam a
existência de dinâmicas próprias de extermínio de gênero nas guerras, conflitos armados e
genocídios.
165 Sugerimos a leitura do artigo O Uso Objetivo e Subjetivo da Violência Sexual Durante
a Ditadura de Segurança Nacional Brasileira, de Janaína. Athaydes Contreiras -
http://www.apers.rs.gov.br/arquivos/1482924634.2016.12.28_Anais_XIII_Mostra_Final.pdf#
page=103
166 Duhalde informa que em torno de 400 bebês foram sequestrados pelos militares
argentinos que atuaram nos órgãos clandestinos de sequestro, tortura e extermínio durante
o período de exceção que vigorou na Argentina (1976-1983): “Dentro del plan sistemático
de la Junta Militar, estuvo el secuestro y apropriación de los hijos de los desaparecidos:
más de 400 niños fueron sus víctimas. Botín de guerra dentro de la cosificada
deshumanización de las personas: matar a los padres y apropiarse de los hijos...El calvário
de aquellas madres es inenarrable: el saber que el hijo que tiene em sus entrañas lo
perderá al nacer, pero que también ello importará su propia muerte, es de uma crueldad
infinita...La natalidad tiene, em la naturaleza simbólica de las relaciones humanas, el
sentido opuesto a la mortalidad. El sentido de la natalidad pone em crisis al totalitarismo:
Ella representa la capacidad de los hombres para empezar algo nuevo, para añadir algo
próprio al mundo y ningún totalitarismo puede soportar esto [Arendt] (...).” (DUHALDE,
2013, p.89).
167 b Sobre a entidade, consulte: http://madres.org/.
168 Ver artigo 7º, item 1, alínea “d” combinado com item 2, alínea “f” do referido Estatuto.
Referido dispositivo define gravidez forçada como a privação ilegal de liberdade de uma
mulher que foi engravidada à força, com o propósito de alterar a composição étnica de uma
população ou de cometer outras violações graves do direito internacional.
169 Não é novidade, na sociologia, o debate acerca de eventual distinção entre o
significado do termo gênero e do termo sexo, mantendo aquele (sexo) conexão com
aspectos biológicos e fisiológicos, enquanto este último (gênero) designaria formulações,
papéis e expectativas sobre o feminino e sobre o masculino, impostas por sociedades e
culturas. Entretanto, referido debate, inclusive entre os estudiosos do fenômeno do
genocídio, vem perdendo força, sendo opinião crescente entre pesquisadores e ativistas a
complementariedade e a mútua interação entre as formulações de sexo e gênero.
170 Para mais informações acesse
http://www.un.org/News/dh/infocus/centafricrepub/Independent-Review-Report.pdf .
171 Para mais informações acesse http://www.refworld.org/docid/56e915484.html .
172 Para mais informações acesse https://www.hrw.org/news/1998/09/02/human-rights-
watch-applauds-rwanda-rape-verdict .
173 “...On this point, the Akayesu judgment constitutes a major contribution to the
progressive development of the law of genocide. The recognition that sexual violence
accords with serious bodily and mental harm is perhaps not revolutionary. It should also be
borne in mind that the Tutsi victims of rape were also murdered, as a general rule…the Trial
Chamber noted that ´in most cases, the rapes of Tutsi women in Taba, were accompanied
with the intent to kill those women´. Nevertheless, the historic trivialization of such crimes of
violence directed principally against women impacted upon the prosecution of genocide as
it did upon war crimes and crimes against humanity. The Prosecutor did not include gender-
based crimes in the initial indictment of Akayesu. It was only midway through the trial, after
pressure from non-governmental organizations, that the indictment was amended […].”
174 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4377.htm - acesso em 6.3.2017.
175 Uma mulher foi agredida a cada três minutos no carnaval de 2017 na cidade do Rio de
Janeiro - http://racismoambiental.net.br/2017/03/03/uma-mulher-foi-agredida-a-cada-3-
minutos-durante-o-carnaval-no-rio/ - acesso em 5.3.2017.
176 O debate sobre como combater a cultura de estupros na Índia é mundialmente
conhecido em face de casos de violência sexual praticada por gangues de estupradores e
que ganharam as manchetes de todo o mundo, demonstrando a vulnerabilidade das jovens
mulheres na Índia em face da cultura machista lá vigente, que inclusive dita o
comportamento de parte das autoridades responsáveis por investigar e punir eventuais
perpetradores - https://shorensteincenter.org/rape-culture-india-english-language-press/ -
acesso em 5.3.2017.
177 Para mais informações acesse http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,russia-
descriminaliza-violencia-domestica-que-nao-cause-danos-a-saude,70001643565 – acesso
em 5.3.2017.
X
O DIREITO INTERNACIONAL DOS
REFUGIADOS E AS QUESTÕES
RELACIONADAS À VIOLÊNCIA DE GÊNERO:
CONTRIBUIÇÕES DA CONVENÇÃO DE
ISTAMBUL NA PROTEÇÃO DE MULHERES E
CRIANÇAS REFUGIADAS178

Tarin Cristino Frota Mont’Alverne


Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Possui graduação em Direito pela Universidade de Fortaleza (2001), mestrado em
Direito Internacional Público - Université de Paris V (2004), doutorado em Direito
Internacional do Meio Ambiente - Université de Paris V e Universidade de São
Paulo (2008).

Ana Carolina Barbosa Pereira Matos


Doutoranda em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em
Direito em Ordem Jurídica Constitucional pela Universidade Federal do Ceará
(UFC). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Fortaleza.
Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza. Professora do curso de Direito
do Centro Universitário Estácio do Ceará.

Resumo: É inegável que situações de deslocamento forçado são capazes de gerar efeitos
nefastos sobre os seres humanos, no entanto, homens e mulheres podem ser afetados de
maneiras diferentes. O presente artigo se limitará a analisar a necessidade de proteção
diferenciada em relação às mulheres e meninas refugiadas e solicitantes de refúgio. O
trabalho ora desenvolvido tem como objetivo principal discutir de que forma o direito
internacional tem contribuído para a diminuição da vulnerabilidade de refugiadas e
solicitantes de refúgio do sexo feminino. No que concerne ao método de investigação
adotado, a pesquisa construir-se-á a partir de análise bibliográfica e documental. Segundo
a utilização de resultados, trata-se de uma pesquisa aplicada. No que tange à abordagem,
a pesquisa é qualitativa, por fim, no que se refere aos objetivos, trata-se de uma pesquisa
explicativa. A pesquisa desenvolvida verificou a existência de uma lacuna legal no que
tange a tutela e proteção de direitos consagrados especialmente para a proteção de
mulheres e meninas refugiadas. Diante deste vácuo jurídico foi editada a Convenção de
Istambul que tratou expressamente da necessidade de serem estabelecidas práticas
diferenciadas e mecanismos de proteção especiais para a proteção das refugiadas. A
referida Convenção pode vir a representar um grande avanço para a proteção dos direitos
das mulheres dentro do regime legal internacional acerca do direito dos refugiados.

Palavras-chave: Convenção de Istambul. Direito internacional dos refugiados. Gênero.


Refugiadas e solicitantes de refúgio do sexo feminino.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Com a crise internacional de refugiados que se instaurou
no mundo, especialmente a partir do ano de 2014 com o
agravamento do número de deslocados oriundos da Síria, a
questão da proteção internacional dos refugiados ganhou
proporções semelhantes àquelas vistas no período da
Segunda Guerra Mundial.
De acordo com dados do Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados – ACNUR de Abril de 2017, em
relação aos sírios, do total de mais de 5 milhões de
deslocados, 48,5% são do sexo feminino179. Percentual
semelhante é verificado no que se refere ao número total
refugiados em todo mundo, destes aproximadamente 50%
são do sexo feminino (UNHCR, online).
No Brasil, segundo dados divulgados pela Cáritas, o
número de refugiados e solicitantes de refúgio do sexo
feminino vem crescendo, tendo passado de um percentual
de 13% do total no ano de 2013 para 36% no ano de 2016,
além de ser cada vez mais comum a chegada no país de
mulheres sozinhas ou acompanhadas apenas dos filhos
menores para solicitar refúgio (MELLO, 2017, online).
Em casos de refúgio, deslocamentos internos ou
apatridia, as mulheres são um dos grupos mais vulneráveis,
haja vista que o seu deslocamento forçado as expõem a
riscos muito maiores do que aqueles enfrentados pelos
homens nas mesmas condições.
Não é raro a mídia noticiar casos de estupro,
espancamento e desrespeito aos direitos humanos mais
básicos praticados contra mulheres e meninas deslocadas180-
181
– sejam estas deslocadas internas, solicitantes de refúgio
ou, ainda, refugiadas.
Ademais, o simples fato de ser do sexo feminino pode
dificultar bastante a busca por refúgio, sendo muitos os
fatores que podem dificultar que uma mulher se desloque
até outro país para solicitar o reconhecimento de sua
condição de refugiada.
Dentre as dificuldades que poderão vir a ser
experimentadas, destacam-se: as restrições quanto à sua
liberdade de locomoção em seu país de origem; a falta de
acesso a documentos de viagem, apenas por ser do sexo
feminino; o fato de muitas vezes serem vítimas de violência
sexual durante a travessia (ACNUR, 2009, p. 40).
Acrescente-se que, um dos motivos que podem ter levado
a essas mulheres a tentarem buscar refúgio em outro país
pode ter sido a falta de proteção estatal em seu país de
origem contra as violências de gênero182 sofridas.
Observa-se que homens e mulheres podem ser afetados
de maneiras diferentes no que se refere a questões de
deslocamento forçado, assim é essencial a concessão de
tratamento diferenciado para as solicitantes de refúgio e
refugiadas (WCRWC, 2010, p. 01).
Apesar de serem vislumbradas várias questões
relacionadas ao gênero que merecem ser discutidas no que
tange à proteção de vítimas de deslocamentos forçados
internos e apatridia, a pesquisa ora desenvolvida pretende
se debruçar sobre a análise da necessidade de proteção
diferenciada em relação às mulheres e meninas refugiadas e
solicitantes de refúgio, haja vista a urgência do tema diante
da crise atualmente instalada na Europa.
O presente artigo tem por escopo discutir de que forma o
direito internacional tem contribuído para a diminuição da
vulnerabilidade de refugiadas e solicitantes de refúgio do
sexo feminino.
Assim, a pesquisa está dividido em dois tópicos, no
primeiro abordar-se-ão as previsões relacionadas aos
direitos das mulheres constantes nas normas que integram o
regime legal internacional sobre o direito dos refugiados.
No segundo tópico serão discutidos os principais pontos
da Convenção de Istambul sobre a prevenção e o combate
da violência contra a mulher e da violência doméstica e a
suas possíveis contribuições como instrumento legal capaz
de mitigar a vulnerabilidade de mulheres e crianças em
situação de refúgio.

2. O DIREITO INTERNACIONAL DOS REFUGIADOS E A


PROTEÇÃO DE MULHERES E MENINAS
No presente tópico será feita uma análise dos principais
documentos internacionais de âmbito regional e universal,
que formam o chamado regime legal do direito internacional
dos refugiados, para se averiguar o tipo de proteção
conferida por tais documentos para as refugiadas e
solicitantes de refúgio do sexo feminino.
A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos
Refugiados de 1951, bem como seu protocolo adicional de
1967, não tratou expressamente de questões de gênero.
Em uma análise do texto da Convenção percebe-se que,
conforme exposto na introdução, as violências de gênero,
assim como o sexo, não foram previstas como motivo de
perseguição apto a garantir à vítima o reconhecimento de
sua condição de refugiada.
Ademais, ao tratar do dever de não discriminação dos
Estados contratantes o Estatuto dos Refugiados também
não mencionou expressamente a não discriminação quanto
ao sexo e/ou gênero.
A Convenção da Organização da Unidade Africana - OUA
também não mencionou em caráter expresso como cláusula
de inclusão prevista na definição de refugiado perseguições
em virtude do sexo, gênero ou de violências de gênero.
Da mesma forma que a Convenção de 1951, a
Convenção da OUA não consignou uma vedação expressa
de não discriminação por sexo ou gênero, mas apresentou
um texto mais amplo que aquela, prevendo a proibição de
discriminação por filiação em certo grupo social ou por
opiniões políticas.
Ressalte-se que, apesar da falta de previsão expressa
quanto às perseguições em razão do sexo ou gênero nos
documentos internacionais acima citados, o ACNUR já
reconheceu que o sexo pode ser incluído na categoria de
“grupo social”. Para o ACNUR (2002, p. 9), um grupo social,
para os fins da Convenção de 1951, deve ser entendido
como sendo um grupo de pessoas que compartilham uma
característica comum, além do risco de serem perseguidas,
sendo, muitas vezes, tal característica inata, imutável e
essencial para a identidade, consciência ou o exercício de
direitos humanos.
Em relação às mulheres, o ACNUR (2002, p. 9)
reconheceu que estas formam um grupo social definido por
características inatas e imutáveis, recebendo geralmente um
tratamento diferente daquele concedido a homens.
Portanto, se a perseguição se der em relação à pertença
ao sexo feminino, o que seria aplicável para vítimas de
violência de gênero, isto seria motivo suficiente para garantir
a proteção conferida pelo Estatuto dos Refugiados às
mulheres e meninas.
Ademais, o ACNUR também já se posicionou no sentido
de entender que o feminismo defendido por muitas mulheres
pode também ser considerado como opinião política passível
de perseguição e discriminação183. Logo, as duas
Convenções citadas de maneira implícita também teriam
garantido a proteção às mulheres quando a perseguição
contra elas se der com base neste tipo de opinião.
No que tange à vedação quanto às práticas
discriminatórias, diante do entendimento acima apresentado,
a Convenção da OUA ainda teria contemplado de forma
indireta a não discriminação contra refugiadas e solicitantes
de refúgio do sexo feminino, pois prevê a vedação no que se
refere à discriminação por pertença a um certo grupo social
e por opiniões políticas.
A Declaração de Cartagena não tratou da questão da não
discriminação de refugiados, no entanto, merece destaque o
seu texto quanto às cláusulas de inclusão consignadas para
a definição de quem deve ser considerado como refugiado,
haja vista que consagrou um conceito mais amplo, prevendo
que também devem ser considerados como refugiados
aqueles que tenham fugido dos seus países porque a sua
vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas por
violação maciça dos direitos humanos.
Apesar de não haver previsão expressa quanto à
perseguição por sexo ou questões de gênero na Declaração
de Cartagena, o regime internacional de direitos humanos
reconhece a necessidade de proteção diferenciada das
mulheres - tendo como principal fundamento legal a
Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher -, logo, a violação de direitos
básicos garantidos às mulheres e meninas deve ser
interpretada como uma grave violação de direitos humanos
e, portanto, como cláusula de inclusão na condição de
refugiado nos termos da Declaração de Cartagena184.
Além dos dispositivos já comentados, apenas a
Convenção de 1951 versou acerca da necessidade de
observância das peculiaridades femininas e, em decorrência
destas, de um tratamento diferenciado para refugiados e
solicitantes de refúgio do sexo feminino.
Tal previsão, no entanto, se deu de maneira muito tímida
e pontual, o Estatuto dos Refugiados, em seu artigo 24, que
versa acerca da legislação do trabalho e previdência social,
previu que os Estados Contratantes deverão dar aos
refugiados o mesmo tratamento que é dado aos nacionais
acerca da regulamentação, dentre outros temas, quanto ao
trabalho das mulheres.
A partir da análise do regime legal estabelecido pelo
Direito internacional dos refugiados, verifica-se que nenhum
dos documentos analisados tratou da necessidade de
proteção diferenciada e de práticas necessárias para se
garantir o bem-estar, a saúde e a integridade física de
refugiadas e de solicitantes de refúgio do sexo feminino, com
o fito de pôr um fim ao ciclo de vulnerabilidade em que estas
se encontram ao sair de seus países de origem e que, por
muitas vezes, acabam permanecendo quando têm seus
direitos humanos básicos desrespeitados nos países
receptores, sejam ou não em campos de refugiados ou
centros de detenção.
O Comitê CEDAW – Comitê para a Eliminação de todas
as Formas de Discriminação contra a Mulher defende que,
em certas circunstâncias, apenas o tratamento diferenciado
entre homens e mulheres poderá garantir a igualdade
material necessária para a proteção de direitos humanos
básicos das mulheres. Segundo o Comitê:

Não basta garantir às mulheres tratamento idêntico ao dos homens. Em


vez disso, as diferenças biológicas, bem como social e culturalmente
construídas entre mulheres e homens devem ser levadas em conta. Sob
certas circunstâncias, será necessário um tratamento não idêntico das
mulheres e dos homens para fazer face a essas diferenças. A busca do
objetivo da igualdade substantiva exige também uma estratégia eficaz
visando superar a subrepresentação das mulheres e uma redistribuição
de recursos e poder entre homens e mulheres185 (CEDAW,2004,
parágrafo 8º).

Acrescente-se, ainda, que em Outubro de 2002, o


Secretário Geral das Nações Unidas declarou que: “O
impacto diferenciado de conflitos armados e vulnerabilidades
específicas das mulheres podem ser vistos em todas as
fases de deslocamento” 186 (WCRWC, 2010, p. 01).
Infere-se que, em relação à proteção de refugiadas e
solicitantes de refúgio do sexo feminino, uma proteção
diferenciada é essencial e urgente, por mais que sua
previsão tenha sido negligenciada pelo regime legal que
trata acerca do direito internacional dos refugiados, o que
será aprofundado melhor no tópico a seguir.

3. A NECESSIDADE DE PROTEÇÃO DIFERENCIADA DAS


MULHERES PELO DIREITO INTERNACIONAL DOS
REFUGIADOS: A CONVENÇÃO DE ISTAMBUL NO
CONTEXTO EUROPEU
O Direito internacional dos refugiados surgiu no século XX
como uma ramificação do Direito internacional dos direitos
humanos187, estando a proteção dos refugiados baseada de
certa forma na soberania dos Estados receptores, mas
também em princípios humanitários derivados do direito
internacional geral (GOODWIN-GIL; MCADAM, 2007, p. 01).
Por se tratar de um sub-ramo do Direito internacional dos
direitos humanos, naquilo que o regime legal de proteção
estabelecido pelo Direito internacional dos refugiados ainda
for incompleto, poderão ser aplicados a este todos os
instrumentos legais e mecanismos de implementação
daquele (JUBILUT, 2007, p. 60).
De acordo com a análise feita no tópico anterior, observa-
se que o regime legal internacional acerca dos direitos dos
refugiados é deficiente no que tange ao estabelecimento de
garantias protetivas diferenciadas para mulheres e meninas,
mesmo estas sendo mais suscetíveis às violações de
direitos humanos que os homens.
Sendo assim, faz-se necessário a complementação de tal
lacuna a partir da interpretação de outras Convenções de
Direitos Humanos que tratem de forma mais específica os
direitos das mulheres.
Este foi inclusive o entendimento do ACNUR ao propor
diretrizes para a proteção de refugiadas:

Assegurar a proteção das mulheres refugiadas exige a adesão não só à


Convenção de Genebra de 1951 e o seu Protocolo de 1967, mas
também à outros instrumentos internacionais, como a Declaração
universal dos direitos humanos; As Convenções de Genebra de 1949 e
os seus dois Protocolos de 1977; As Convenções de Direitos Humanos
de 1966; A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres; Da Declaração sobre a Proteção das
Mulheres e das Crianças em Situações de Emergência e Conflito
Armado; A Convenção sobre o Consentimento ao Casamento, Idade
para Casamento e Registo de Casamentos; A Convenção sobre a
Nacionalidade das Mulheres casadas; E a Convenção sobre os Direitos
da Criança. Embora alguns Estados não sejam Partes de todos esses
instrumentos, eles formam um regime internacional de direitos humanos
para a realização de atividades de proteção e assistência com relação
às mulheres refugiadas188 (UNHCR, 1991, par. 6).

Os documentos mencionados pelo ACNUR em suas


diretrizes para a proteção de refugiadas, no entanto, não
enfrentam diretamente a proteção de mulheres e meninas
refugiadas vítimas de abusos nos países receptores.
Acrescente-se que o ACNUR e a Women’s Refugee
Comission - WCRWC desenvolveram uma série de
documentos que versam acerca da proteção de mulheres e
meninas refugiadas189, mas estes não possuem força
vinculante e servem apenas como diretrizes para as práticas
adotadas no âmbito de atuação de tais órgãos e como
orientações para a atuação dos Estados receptores.
Importante salientar que, além dos documentos de direito
internacional, as leis nacionais dos países receptores
também possuem um importante papel e irão contribuir para
a proteção das refugiadas e solicitantes de refúgio do sexo
feminino, inclusive, a fim de sancionar aqueles que
pratiquem algum tipo de violência contra a mulher (UNHCR,
1991, par. 8).
Observa-se que mesmo havendo um conjunto de normas
internacionais de caráter vinculante e não vinculante que
corroboram com a proteção de mulheres e meninas
refugiadas e solicitantes de refúgio, há um vácuo no direito
internacional em relação à existência de normas que
enfrentem de forma expressa e direta tal temática, o que
acaba criando diferentes formas de tratamento para
problemas semelhantes no âmbito da legislação dos países
receptores.
Considerando a existência do referido vácuo legal e com
o intuito de uniformizar o tratamento do tema nos Estados
integrantes da União Europeia o Conselho Europeu editou
em 2011 a Convenção de Istambul sobre a prevenção e o
combate da violência contra a mulher e da violência
doméstica.
Dentre outros temas a Convenção mencionada busca
garantir que a violência de gênero contra mulheres seja
reconhecida como uma forma de perseguição no sentindo
conferido pela Convenção de 1951 sobre o Estatuto dos
Refugiados ou que, pelo menos, tal violência dê origem a
uma proteção subsidiária190.
A Convenção de Istambul avança também no sentido de
estabelecer que as Partes Contratantes devem tomar as
medidas legislativas ou outras necessárias para desenvolver
procedimentos de acolhimento e serviços de apoio sensíveis
às questões de gênero, inclusive no que tange à
determinação do status de refugiado e a aplicação da
proteção internacional191.
Ao dispor acerca de um dos princípios basilares do direito
internacional dos refugiados, o princípio do non-refoulement,
a Convenção determinou que as Partes Contratantes devem
tomar todas as medidas medidas legislativas ou outras
necessárias para garantir que mulheres vítimas de violência
de gênero que precisam de proteção, independente de sua
condição migratória, não devem ser devolvidas em nenhuma
circunstância para países em que sua vida esteja em risco
ou no qual podem vir a ser vítimas de torturas ou de
tratamento desumano ou, ainda, de algum tipo de castigo192.
Importante destacar que o objeto da Convenção de
Istambul oferece um conjunto de normas amplo destinadas a
prevenir e combater a violência contra a mulher em suas
mais variadas formas, devendo tais garantias, nos termos do
art. 4º, item 3, do documento internacional em análise,
serem estendidas à todas as mulheres, sem qualquer
discriminação, inclusive para migrantes e refugiadas193.
Apesar de ser uma Convenção inicialmente de âmbito
regional, aplicável aos países membros do Conselho da
Europa e àqueles que, mesmo não sendo membros,
participaram da elaboração do documento, o seu artigo 76
prevê a possibilidade de adesão de outros Estados após a
sua entrada em vigor, o que aconteceu em 1º de agosto de
2014.
Infere-se a partir da leitura dos artigos 71194 e 73195 da
Convenção que a mesma não tem o propósito de substituir
outras Convenções que versem acerca dos mesmos temas
que esta e que contenham direitos mais favoráveis às
mulheres vítimas de violência de gênero, mas apenas
estabelecer um regime legal internacional complementar aos
que já existem, inclusive ao direito internacional dos
refugiados.
Mesmo já tendo sido assinada e ratificada por mais de
vinte países196, países que estão no centro da crise
internacional atual de refugiados ainda não a ratificaram, é o
caso do Reino Unido, da Grécia, da Hungria e da própria
Rússia.
Infere-se que a Convenção de Istambul, por se tratar de
um documento legalmente vinculante, pode vir a representar
um importante avanço na proteção de mulheres e meninas
refugiadas e solicitantes de refúgio, ao exigir que os
governos introduzam medidas de segurança práticas para as
mulheres não acompanhadas solicitantes de refúgio.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As peculiaridades relacionadas ao sexo feminino fazem
com que mulheres e meninas sejam mais suscetíveis a
práticas violentas e discriminatórias, situação que pode ser
agravada quando estas se encontram na condição de
refugiadas.
Em razão disso, é urgente o estabelecimento de ações
concretas para proteger refugiadas e solicitantes de refúgio
de situações desumanas e violentas as quais estas muitas
vezes são submetidas em seu países de origem ou, ainda,
ao saírem destes e procurem refúgio em outros Estados.
Não se defende, no entanto, o estabelecimento de projetos
desenvolvidos exclusivamente para mulheres, mas que
estes considerem os direitos destas, que ao longo dos anos
têm sido negligenciados.
Neste sentido, o trabalho ora desenvolvido buscou
realizar uma análise dos principais instrumentos jurídicos
integrantes do regime legal internacional acerca dos direitos
dos refugiados e verificou que estes não tratam de forma
expressa da tutela e proteção de direitos de refugiados
considerando as particularidades e dificuldades enfrentadas
especialmente pelas mulheres.
Diante deste vácuo jurídico o Conselho Europeu editou
em 2011 a Convenção de Istambul que, dentre outros temas
relacionados ao combate à violência contra mulheres, tratou
expressamente da necessidade de serem estabelecidas
práticas diferenciadas e mecanismos de proteção especiais
para a proteção das refugiadas.
Apesar de sua abrangência ainda limitada, tratando-se de
documento internacional essencialmente regional, a
Convenção de Istambul tem o condão de promover
importantes contribuições para o direito internacional dos
refugiados, de forma a completar uma importante lacuna no
que tange à defesa dos direitos das mulheres e a promoção
de uma igualdade substancial entre homens e mulheres no
que tange aos aspectos contemplados pelo Estatuto dos
Refugiados.

REFERÊNCIAS

ACNUR. Directrices sobre protección internacional: La persecución por


motivos de género en el contexto del Artículo 1A(2) de la Convención de
1951 sobre el Estatuto de los Refugiados, y/o su Protocolo de 1967, 2002.
Disponível em: <
http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/BDL/2002/1753.pdf > Acesso em
21 abr. 2017.
ACNUR. El desplazamiento, la apatridia y las cuestiones relacionadas con
la igualdad entre los géneros y con la Convención para la Eliminación de
Todas las Formas de Discriminación Contra la Mujer, 2009. Disponível em: <
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GOODWIN-GIL, Guy S.; MCADAM, Jane. The refugee in international law
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JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito internacional dos refugiados e sua aplicação
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em: < http://www.unhcr.org/publications/legal/3d4f915e4/guidelines-protection-
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Disponível em: < http://www.unhcr.org/protection/women/47cfa9fe2/unhcr-
handbook-protection-women-girls-first-edition-complete-publication.html > Acesso
em 24 abr. 2017.
WCRWC, Displaced Women and girls at risk: identifying risk factors and
taking steps to prevent abuse, 2010. Disponível em: <
https://www.womensrefugeecommission.org/images/zdocs/womrisksyn.pdf >
Acesso em 24 abr. 2017.

178 INTERNATIONAL REFUGEE LAW AND ISSUES RELATED TO GENDER VIOLENCE:


CONTRIBUTIONS OF THE ISTANBUL CONVENTION ON THE PROTECTION OF
WOMEN AND REFUGEE CHILDREN
179 Dados completos disponíveis em: < http://data.unhcr.org/syrianrefugees/regional.php >
180 Veja: Refugee Women and children ‘beaten, raped and starved in Libyan hellholes’.
Disponível em: < https://www.theguardian.com/world/2017/feb/28/refugee-women-and-
children-beaten-raped-and-starved-in-libyan-hellholes >
181 Veja também: Women and children ‘endure rape, beatings and abuse’ inside Dunkirk’s
refugee camp. Disponível em: < https://www.theguardian.com/world/2017/feb/12/dunkirk-
child-refugees-risk-sexual-violence >
182 “The term ‘gender’ refers to ‘the social attributes and opportunities associated with
being male and female and the relationships between women and men and girls and boys,
as well as the relations between women and those between men. These attributes are
socially constructed and are learned through socialization processes. They are
context/timespecific and changeable. Gender determines what is expected, allowed and
valued in a woman or a man in a given context. In most societies there are differences and
inequalities between women and men in responsibilities assigned, activities undertaken,
access to and control over resources, as well as decision-making opportunities. Gender is
part of the broader sociocultural context. Other important criteria for socio-cultural analysis
include class, race, poverty level, ethnic group and age”(UNHCR, 2008, p.19). Diante do
exposto, violência de gênero deve ser entendida como aquela praticada em decorrência
das peculiaridades associadas a pertença a um certo sexo, geralmente associada a
pertença ao sexo feminino. No presente trabalho, o termo é utilizado para se referir a
práticas violentas motivadas apenas pelo fato das vítimas pertencerem ao sexo feminino.
183 “Tanto el ACNUR y los Estados Unido han afirmado que el término ‘opiniones políticas’,
un motivo de la Convención, incluye opiniones sobre los roles de género. Esto incluye el
comportamiento no conformista (como las mujeres que se niegan a someterse a la
violencia) que le lleva a un perseguidor a imputarle una opinión política a esa persona. No
es necesariamente relevante si el individuo que solicita protección ha articulado la opinión
en cuestión. La violencia sexual en represalia por opiniones políticas reales e imputadas ha
sido reconocida como una forma de persecución”. (ACNUR, 2015, p. 38)
184 No que tange ao ordenamento jurídico brasileiro, destaque-se que a lei nº 9.474/97,
que implementou o Estatuto dos Refugiados no Brasil, não versou acerca da vedação
quanto a não discriminação, no entanto, adotou a definição mais ampla de refugiado
proposta pela Declaração de Cartagena, garantindo o reconhecimento da condição de
refugiado a toda pessoa que devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é
obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (Art. 1º, III).
Sendo assim, defende-se a possibilidade do reconhecimento da condição de refugiada a
mulheres e meninas vítimas de perseguição por questões de gênero pela legislação
brasileira.
185 “It is not enough to guarantee women treatment that is identical to that of men. Rather,
biological as well as socially and culturally constructed differences between women and
men must be taken into account. Under certain circumstances, non-identical treatment of
women and men will be required in order to address such differences. Pursuit of the goal of
substantive equality also calls for an effective strategy aimed at overcoming
underrepresentation of women and a redistribution of resources and power between men
and women”.
186 “The differential impact of armed conflict and specific vulnerabilities of women can be
seen in all phases of displacement” (WCRWC, 2010, p. 01).
187 “Assim, pode-se dizer que, hoje em dia, a pessoa humana conta com um grande
sistema de proteção, denominado comumente de Direito Internacional dos Direitos
Humanos lato sensu (ou Direito Internacional de Proteção da Pessoa Humana), que se
divide em três vertentes de proteção: o Direito internacional dos Direitos Humanos stricto
sensu, o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Refugiados”.
(JUBILUT, 2007, p. 59)
188 “Ensuring the protection of refugee women requires adherence not only to the 1951
Convention and its 1967 Protocol but also to other relevant international instruments such
as the Universal Declaration of Human Rights; the 1949 Geneva Conventions and the two
Additional Protocols of 1977; the 1966 Human Rights Covenants; the Convention on the
Elimination of All Forms of Discrimination Against Women; the Declaration on the Protection
of Women and Children in Emergency and Armed Conflict; the Convention on Consent to
Marriage, Minimum Age for Marriage and Registration of Marriages; the Convention on the
Nationality of Married Women; and the Convention on the Rights of the Child. While
individual States may not be parties to all of these instruments, they do provide a framework
of international human rights standards for carrying out protection and assistance activities
related to refugee women” (UNHCR, 1991, par. 6).
189 UNHCR, Guidelines on the Protection of Refugee Women; UNHCR, UNHCR
Handbook for the Protection of Women and Girls; WCRWC, UNHCR Policy on Refugee
Women and Guidelines on Their Protection; WCRWC, Displaced Women and Girls at Risk,
New York, 2006.
190 “Article 60 – Gender-based asylum claims. 1. Parties shall take the necessary
legislative or other measures to ensure that gender-based violence against women may be
recognised as a form of persecution within the meaning of Article 1, A (2), of the 1951
Convention relating to the Status of Refugees and as a form of serious harm giving rise to
complementary/subsidiary protection”.
191 “Article 60 – Gender-based asylum claims. (...) 3. Parties shall take the necessary
legislative or other measures to develop gender-sensitive reception procedures and support
services for asylum-seekers as well as gender guidelines and gender-sensitive asylum
procedures, including refugee status determination and application for international
protection”.
192 “Article 61 – Non-refoulement. (...) 2. Parties shall take the necessary legislative or
other measures to ensure that victims of violence against women who are in need of
protection, regardless of their status or residence, shall not be returned under any
circumstances to any country where their life would be at risk or where they might be
subjected to torture or inhuman or degrading treatment or punishment”.
193 “Article 4 – Fundamental rights, equality and non-discrimination. (...) 3. The
implementation of the provisions of this Convention by the Parties, in particular measures to
protect the rights of victims, shall be secured without discrimination on any ground such as
sex, gender, race, colour, language, religion, political or other opinion, national or social
origin, association with a national minority, property, birth, sexual orientation, gender
identity, age, state of health, disability, marital status, migrant or refugee status, or other
status”.
194 Article 71 – Relationship with other international instruments. 1This Convention
shall not affect obligations arising from other international instruments to which Parties to
this Convention are Parties or shall become Parties and which contain provisions on
matters governed by this Convention. 2The Parties to this Convention may conclude
bilateral or multilateral agreements with one another on the matters dealt with in this
Convention, for purposes of supplementing or strengthening its provisions or facilitating the
application of the principles embodied in it.
195 Article 73 – Effects of this Convention. The provisions of this Convention shall not
prejudice the provisions of internal law and binding international instruments which are
already in force or may come into force, under which more favourable rights are or would be
accorded to persons in preventing and combating violence against women and domestic
violence.
196 Albânia, Andorra, Áustria, Bélgica, Bósnia e Herzegovina, Dinamarca, Finlândia,
França, Itália, Malta, Mônaco, Montenegro, Países Baixos, Polônia, Portugal, Romênia,
San Marino, Sérvia, Eslovênia, Espanha, Suécia, Turquia.
XI
DIREITOS HUMANOS COMO PROCESSOS
DE LUTA À LUZ DA TEORIA CRÍTICA DO
DIREITO: APORTES PARA O
ENFRENTAMENTO DA INVISIBILIDADE
SOCIAL DE COMUNIDADES ISOLADAS197

Denise Almeida de Andrade


Pós-doutoranda (CAPES-PNPD) em Direito Político e Econômico pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutora e Mestre em Direito Constitucional
pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR.

Roberta Laena Costa Jucá


Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Constitucional pela
Universidade de Fortaleza. Pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Analista Judiciária do Tribunal Regional
Eleitoral do Ceará.

Resumo: Este breve ensaio aborda a potencialidade dos direitos humanos para minimizar
a desigualdade social, a exclusão e a invisibilidade de comunidades isoladas, a exemplo de
duas comunidades localizadas no Sertão Central do Estado do Ceará. Partindo da Teoria
Crítica dos Direitos Humanos desenvolvida por Joaquín Herrera Flores, objetiva encontrar
possibilidades de rupturas sistêmicas que proporcionem acessos igualitários a bens
essenciais e a modificação desse cenário de invisibilidade. Ao final, demonstra de que
modo os processos culturais de luta por dignidade podem ser concretizados pela prática da
educação em direitos humanos realizada por coletivos universitários de assessoria jurídica
popular. Para tanto, foi realizada pesquisa bibliográfica e exploratória de campo.

Palavras-chave: Comunidades isoladas. Direitos humanos. Invisibilidade social. Teoria


Crítica do Direito.

“Imaginemos nuevos mundos. Construyamos las


condiciones que nos permitan llegar a ellos. Empoderémonos
mutuamente. Luchemos por los derechos humanos como
procesos de lucha por la dignidad humana”.
Joaquín Herrera Flores

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Circunstâncias de extrema desigualdade social e exclusão
ainda são presentes em muitas localidades brasileiras. Não
são poucas as comunidades que vivem excluídas e
marginalizadas, sendo também - e por isso - alvo de
discriminação social. Esse panorama se agrava quando, nos
dias de hoje, nos deparamos com comunidades isoladas,
invisíveis, que vivem totalmente à margem do Estado, sem
acesso a direitos básicos e políticas públicas específicas
que, reconhecendo suas peculiaridades, promovam
condições mínimas a uma vida com dignidade, o que se
mostra mais danoso ainda quando encontramos grupos
isolados não protegidos pela legislação brasileira.
Essa situação de total invisibilidade e exclusão social foi
constatada no Sertão Central do Estado do Ceará: Cafundó
e Escondido são duas comunidades isoladas, localizadas a
165km da capital Fortaleza, não categorizadas como
indígenas, quilombolas ou outro tipo de comunidade
tradicional previsto da legislação, cujos moradores não são
destinatários de políticas públicas e sofrem discriminação
em razão de sua origem. Os moradores dessas duas
comunidades vivem em situação de extrema pobreza e, em
razão da condição geográfica e da falta de vias públicas de
acesso, além de não conviverem com as pessoas da cidade
mais próxima, sofrem discriminação por serem de tais
localidades198.
O contato com essa realidade de extrema vulnerabilidade
social nos levou a refletir sobre a possibilidade de encontrar
no direito, mais especificamente na esfera dos direitos
humanos, respostas e alternativas a esse panorama.
Considerando, todavia, que tais direitos em seu viés
universalista e normativista não dão conta de enfrentar as
situações de exclusão e de desigualdades sociais do nosso
contexto atual, assegurando a todos condições igualitárias
de acesso aos bens essenciais, optamos por abordar os
direitos humanos em sua perspectiva crítica, a partir da
teoria de Joaquín Herrera Flores. E, na tentativa de
demonstrar uma possibilidade prática dos processos de lutas
propostos pelo autor, abordamos a educação em direitos
humanos realizada por coletivos de assessoria jurídica
popular de universidade brasileiras.
Entendemos ser relevante nos debruçarmos sobre a
análise de situações reais e de temáticas locais,
especialmente de comunidades isoladas do nordeste
brasileiro, notadamente diante do fato de que a pesquisa
científica do Direito ainda é predominantemente teórica e
distante da realidade social. É primordial, também, que se
avance na compreensão instrumental dos direitos humanos
numa linha que se distancie da ideia eurocêntrica positivista,
universalista e abstrata, de modo que os processos culturais
de luta por acesso igualitário a bens essenciais sejam cada
vez mais possíveis.

2. INVISIBILIDADE E DISCRIMINAÇÃO EM
COMUNIDADES ISOLADAS DO SERTÃO CENTRAL DO
CEARÁ
No município de Choró, localizado a aproximadamente
140km em linha reta da cidade de Fortaleza, Estado do
Ceará, cerca de 40 (quarenta) famílias integram as
comunidades isoladas do Cafundó e do Escondido. Tais
grupos comunitários não são oficialmente categorizados
como indígenas, quilombolas ou outro tipo de comunidade
tradicional nos termos da legislação brasileira, e nunca
foram objeto de estudo sociológico ou antropológico para
fins de identificação e reconhecimento por parte do Estado.
Essas pessoas vivem no alto de uma serra a 600 metros
acima do nível do mar, a que se tem acesso apenas após
1h30min de subida íngreme a pé, em meio a vasta
vegetação e obstáculos naturais. Não há acesso às
comunidades pelos meios de transporte tradicionais, em
razão das peculiaridades geográficas e da falta de via
pública. (ANAIS..., 2014).
Os habitantes do Cafundó e do Escondido vivem isolados
do restante da população do município de Choró e, em
regra, só convivem com os demais munícipes uma vez por
mês, quando descem até a cidade em busca de alimentação
ou de algum tipo de serviço público. A regra é o isolamento:
não há convivência com os moradores da cidade,
notadamente porque a condição geográfica e a falta de vias
de acesso ao local dificultam sobremaneira a interação
social.
Essa condição territorial de isolamento torna as
comunidades do Cafundó e do Escondido parte do
fenômeno da invisibilidade social. Seu moradores são
pessoas que vivem à margem da cidade, sem a tutela do
Estado e sem acesso a direitos básicos, em uma situação de
extrema vulnerabilidade e exclusão que os tornam vítimas
de discriminação social e até de violência. Ou seja, para o
Estado, essas pessoas são invisíveis.
De fato, a regra nessas comunidades é o não acesso a
direitos básicos, tais como alimentação, saúde, educação,
saneamento básico, trabalho, lazer, assistência social etc. A
maior parte das crianças e dos adolescentes nunca passou
por consulta médica tampouco teve tratamento odontológico,
e os mais velhos pouco fazem uso de medicamentos, além
de não se consultaram com profissionais de saúde com
habitualidade.

Quando os velhos adoecem ou precisam ir à cidade, descem a serra


carregados numa rede, como se o tempo ali fosse ainda o das cavernas.
O povo do Cafundó vê o município de Choró, no semiárido do Ceará, do
alto, mas não se sente parte dele. É o povo da fome, onde as crianças
crescem tomando garapa e os adultos tentam, em vão, exercitar a
esperança. (REDE DE EDUCAÇÃO CIDADÃ, 2008).

A maioria das pessoas que habitam as duas localidades é


analfabeta e apenas algumas crianças estudam em escola
localizada fora das comunidades, a qual se chega após o
percurso de mais de 1 hora de caminhada. Uma escola local
foi fechada recentemente, interrompendo o programa de
educação de jovens e de adultos e concentrando o acesso a
qualquer informação sobre o mundo na televisão, presente
em algumas poucas casas, após a instalação de postes de
energia elétrica pelo Programa Luz para todos, ocorrido no
ano de 2011 (QUEIROZ, 2011).
As casas são de taipa e inexistem saneamento básico e
sistema de água encanada nas duas comunidades. Não há
qualquer tipo de comércio ou local para fornecimento de
alimentação e apenas alguns jovens trabalham em alguma
cidade próxima. Os habitantes das duas comunidades vivem
da agricultura de subsistência, por meio do plantio de milho,
feijão, verduras e outros gêneros alimentícios, que nem
sempre é suficiente para suprir a demanda da família
durante o mês.
Todas essas condições sociais, agregadas ao isolamento
territorial e às peculiaridades culturais, importam para os
moradores do Cafundó e do Escondido o enfretamento do
preconceito e da discriminação em razão da origem e da
identidade. Eles são identificados pelas pessoas da cidade
como o “povo do Cafundó” e inferiorizados em razão dessa
condição, enfrentando dificuldades tanto no trato com o
Estado como nas relações com os particulares.
Se para o Estado essas pessoas são invisíveis, para a
população da cidade mais próxima os moradores do
Cafundó e do Escondido são hierarquicamente inferiores,
além de temidas por sua origem. Ou seja, além do abandono
e do esquecimento por parte do Estado, perceptível pela
carência dos bens da vida mais essenciais a uma
sobrevivência digna, evidencia-se a discriminação social em
razão da origem: os moradores do Cafundó e do Escondido
são subalternizados pelos demais habitantes da região pelo
fato de pertencerem a tais comunidades.
Diante desse cenário de extrema vulnerabilidade social,
apresentamos os seguintes questionamentos: podem os
direitos humanos contribuir para redução/eliminação dessa
invisibilidade? Que teoria dos direitos humanos está apta a
indicar alternativas a esse cenário de exclusão e
desigualdade e de que modo?

3. A TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS EM


HERRERA FLORES: OS PROCESSOS DE LUTA POR
DIGNIDADE
Tradicionalmente, direitos humanos são considerados
direitos universais, inalienáveis, indivisíveis, irrenunciáveis e
imprescritíveis, previstos em normas internacionais e
internalizados em constituições internas como direitos
fundamentais, cujo fundamento está na dignidade da pessoa
humana. Essa concepção universalista199 de matriz
eurocêntrica200 se cristalizou com a Declaração Universal do
Direitos Humanos, em 1948, cuja promulgação representou
uma tentativa de encontrar parâmetros universais que
impedissem a repetição dos horrores ocorridos na 2a Guerra
Mundial – em seu preâmbulo, uma das justificativas está no
fato de que “o desprezo e o desrespeito pelos direitos
humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a
consciência da humanidade” – sendo, até hoje, o documento
mais importante em termos de proteção internacional dos
direitos humanos. “Por mais de cinquenta anos ele tem
estabelecido o padrão para a discussão e ação
internacionais sobre os direitos humanos”. (HUNT, 2009, p.
206).
Ocorre que essa concepção tradicional dos direitos
humanos vem se mostrando ineficaz na resposta às
questões de fundo que estão para além da mera
normatização jurídica, como a redução das desigualdades
sociais e da exclusão. A ideia abstrata de que temos direitos
simplesmente pelo fato de sermos humanos, sem
consideração das condições sociais e do contexto no qual
estamos inseridos, acaba por mistificar uma concepção
prévia que pressupõe que todos temos direitos assegurados,
não explicando o fato de que muitos não possuem condições
materiais para o exercício de tais direitos (HERRERA
FLORES, 2009). Ademais, os direitos humanos nessa
perspectiva prometem ser uma segurança individual e
coletiva principalmente em face do Estado, quando o próprio
Estado se apresenta como o maior violador desses direitos.
Assim, a Teoria Crítica201 dos Direitos Humanos propõe
uma ruptura epistemológica que possibilite a reconstrução
da concepção de direitos humanos no contexto do
pluralismo e da globalização capitalista. Questiona o
universalismo diante da pluralidade de realidades e a
desconsideração das desigualdades reais de classe, raça,
gênero e outros fatores decorrentes do contexto capitalista.
Para os teóricos críticos dos direitos humanos, na
concepção tradicional os direitos humanos não se conectam
com as realidades sociais específicas e desconsideram
problemas estruturais do sistema capitalista, como a
desigualdade social, não impedindo a violação de direitos
por parte dos próprios Estados e pelas classes dominantes.

[…] ao não levar em conta as assimetrias inerentes à sociedade, esta


concepção transfere todos os questionamentos sobre direitos humanos
à esfera de implementação, como se as violações a direitos humanos
fossem meramente uma questão de vontade política, e não uma
questão estrutural no âmbito da sociedade capitalista. (BERNER;
LOPES, 2014).
Na teoria crítica, os direitos humanos assumem, pois, a
missão de possibilitar uma transformação social por meio de
processos culturais de luta e pelo reconhecimento das
diferenças aos grupos historicamente excluídos,
ultrapassando a clássica visão universalista de matriz
individualista e subjetivista, em que direitos universais para
todos são concedidos a partir de uma concepção formal de
igualdade.
É nesse prisma que Joaquín Herrera Flores202 nos traz a
ideia de direitos humanos como processos de luta por
dignidade. Em sua obra A (re)invenção dos direitos
humanos, Herrera Flores elabora uma crítica à concepção
hegemônica de direitos humanos, propondo a desconstrução
do ideal utópico normativista dominante e a adoção de um
novo conceito: “Os direitos humanos, mais que direitos
‘propriamente ditos’, são processos; ou seja, o resultado
sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam
em prática para ter acesso aos bens necessários para a
vida”. (HERRERA FLORES, 2009, p. 34).
Assim, para Herrera Flores (2009), direitos humanos não
são direitos previstos na legislação internacional ou nacional,
mas práticas sociais que buscam condições materiais e
imateriais – sociais, econômicas, políticas, jurídicas, culturais
- de acesso aos bens necessários a uma vida digna
(educação, saúde, moradia, trabalho, lazer etc.) que podem
ou não se materializar em normas jurídicas. Mais importante
que as normas são as lutas pelo acesso aos bens
essenciais, que também podem resultar em reconhecimento
fora do âmbito jurídico.
Nesse sentido, a finalidade dessa luta é romper com as
divisões sociais injustas do fazer humano oriundas do
sistema capitalista, já que não estamos todos numa mesma
situação de igualdade, e possibilitar o acesso a bens
essenciais de forma igualitária e não hierarquizada “a priori”,
assegurando a todos uma vida com dignidade – mas não
uma dignidade ideal e abstrata: “A dignidade é um fim
material. Trata-se de um objetivo que se concretiza no
acesso igualitário e generalizado aos bens que fazem com
que a vida seja ‘digna’ de ser vivida” (HERRERA FLORES,
2009, p. 37).

Creemos urgente la tarea de construir una cultura de derechos en la que


prime la indignación frente a las injusticias y la exigencia de una praxis
alternativa a las situaciones que constituyen las causas de la explotación
y la marginación de la gran mayoría de los habitantes de nuestro
planeta. Para ello, tal cultura de derechos humanos deberá de nutrirse
de las categorías de responsabilidad y de deber con los que han venido
sufriendo las opresiones, injusticias y explotaciones, las cuales tienen su
origen en las posiciones subordinadas que ocupa gran parte de la
humanidad en los procesos de división social, sexual, étnica y territorial
del hacer humano. (HERRERA FLORES, 2005a, p. 7).

O autor espanhol não desconsidera a importância da


normatização e da proteção jurídica, mas enfatiza a
necessidade de combatermos a suposta neutralidade
normativa que despreza as condições reais de vida e o
contexto de desigualdade e injustiça no qual estamos
imersos. Se vivemos em um mundo hierarquizado e
desigual, em que grupos foram historicamente oprimidos e
colocados à margem, resultando numa divisão social que
ainda hoje hierarquiza, discrimina e não viabiliza o acesso a
bens essenciais de modo igualitário, não podemos
desconsiderar tais fatos quando falamos em direitos
humanos. Do mesmo modo, devemos sempre lembrar que
normas são positivadas de acordo com valores e interesses
do sistema dominante – no caso, o capitalista neoliberal – e,
por esse motivo, não priorizam o acesso a bens de forma
igualitária a todas as classes sociais.
Por isso, Herrera Flores propõe uma teoria crítica que,
partindo da realidade social e do contexto em que estamos
inseridos, entenda os direitos humanos como instrumento de
luta por acesso a bens essenciais para uma vida digna e que
possibilite o empoderamento dos cidadãos, notadamente
dos grupos oprimidos e excluídos ao longo da história.
Assim, é fundamental a compreensão de que direitos
humanos não são conquistados apenas por normas, mas
sobretudo por meio de lutas e práticas sociais
emancipatórias que buscam acesso igualitário a grupos
historicamente discriminados, na tentativa de fissurar
práticas tradicionais de hierarquização, divisão,
invisibilização e exclusão.
Compreendendo os direitos humanos nesse viés crítico,
Herrerra Flores (2005a) desenvolve também uma teoria
crítica da cultura, destacando a potencialidade do fazer
humano para criar, recriar e transformar o mundo em que
vivemos. Para ele, esse potencial de reagir criativamente
diante das relações com os outros, com a natureza e com
nós mesmos é o que nos define e nos possibilita transformar
a realidade. É o que ele denomina de “o cultural”: nossa
capacidade de construir e dar significado à realidade, de
reagir frente às relações que temos com nós mesmos, com
os outros e com a natureza, que exsurge como elemento
central nos processos culturais de luta por direitos e
dignidade e contra os bloqueios ideológicos que, ao longo da
história, fissuram nossas habilidades criativas de atuar no
mundo. Ou seja, é nessa capacidade reativa e criativa diante
dos processos hegemônicos de dominação que está a chave
dos processos de luta por acesso a bens essenciais em prol
de uma vida com dignidade.

[…] la cultura a lo largo de la historia, lo que aquí denominamos el


“proceso cultural” – para distinguirlo de las posiciones que sólo ven unas
coordenadas culturales como las universals - siempre ha consistido en
la lucha por humanizar, esto es, por reconducir hacia las necesidades y
exigencias de lo humano, el conjunto de relaciones que históricamente
se han ido construyendo con la sociedad, con nosotros mismos y con la
naturaleza. Y esa humanización no tiene más contenido ni más objetivo
que la apertura constante de las posibilidades y las capacidades de
reaccionar culturalmente – humanamente - ante los diferentes contextos
sociales, económicos, políticos y geográficos en los que vivimos.
(HERRERA FLORES, 2005b, p. 33).
Partindo dessas ideias, Herrera Flores elenca atitudes
transgressoras fundamentais para a prática de sua proposta,
dentre as quais destacamos a visibilização de tudo o que é
ocultado e marginalizado pelos processos ideológicos
hegemônicos colonialistas e imperialistas. Para ele, dar
visibilidade ao que não é visível, identificando opressões,
discriminações e desigualdades, é parte essencial dos
processos de luta por dignidade. Dar visibilidade para
desestabilizar e transformar. “Todo poder sin controles
democráticos reales tiende a hacer invisibles e inaudibles a
todos aquellos que se oponen a él. Si en realidad
pretendemos interrelacionar la cultura con la dignidad,
debemos luchar contra esas invisibilidades y esos silencios”.
(HERRERA FLORES, 2005a, p. 23).
E continua afirmando que, uma vez visibilizadas as
opressões, devemos partir para as diversas formas de
produzir e simbolizar o mundo, assegurando a todos meios
de acesso igualitário a bens essenciais à dignidade humana.
Nesse ponto, a perspectiva crítica dos direitos humanos
de Herrera Flores apresenta uma possibilidade de
enfrentamento da invisibilidade social que afeta
determinados grupos sociais. A luta por dignidade se
apresenta também como a luta por dar visibilidade ao que é
invisível, pela busca do reconhecimento e da inclusão social.
Nos processos culturais, o fazer humano e a nossa
capacidade de ação e reação no mundo possibilitam revelar
o que está oculto pelas opressões sistêmicas,
desestabilizando os processos ideológicos de dominação e
abrindo caminhos para a transformação da realidade.
Sabemos que os invisíveis sociais203 são aqueles que não
são socialmente visíveis para o Estado e para as classes
dominantes, além de considerados inferiores quando
minimamente vistos, sofrendo discriminação em razão de
alguma especificidade cultural, quando “[...] os que dominam
expressam sua superioridade social através da não-
percepção dos que são dominados” (CITTADINO, 2007, p.
2). Ou, nas palavras de Fernando Costa (2004, p. 63), “A
invisibilidade pública, desaparecimento intersubjetivo de um
homem no meio de outros homens, é expressão pontiaguda
de dois fenômenos psicossociais que assumem caráter
crônico nas sociedades capitalistas: humilhação social e
reificação”, sendo esta a identificação do valor de todas as
coisas, inclusive das pessoas, com seu valor econômico, e
aquela, a inferiorização intersubjetiva das classes pobres em
todos os aspectos da vida.
Via de regra, associamos essa invisibilidade social a
grupos minoritários historicamente discriminados, excluídos
e marginalizados por alguma condição particular, como
mulheres, populações negras e indígenas. Mas essa
invisibilidade pode atingir também outros grupos
juridicamente não categorizados, a exemplo dos moradores
de comunidades isoladas aqui identificadas: são os invisíveis
dos invisíveis, que, por uma condição geográfica de
isolamento – e pela falta de políticas públicas específicas -
são totalmente desconsiderados por parte do Estado e
fortemente discriminados por parte da sociedade.
Com esteio na proposta de Herrera Flores, entendemos
que romper com essa invisibilidade social é uma etapa
fundamental para a luta por acesso a bens essenciais.
Somente a partir do empoderamento e da conscientização
dos moradores dessas localidades para a importância dessa
ruptura é que vislumbramos possibilidades de redução da
exclusão social e de acesso a condições materiais e
imateriais de dignidade. E, para isso, precisamos estimular o
fazer humano criativo, nossa capacidade reativa, nosso
“poder fazer”, nosso “poder criar”, nossa habilidade de
ressignificar o mundo por meio de nossas ações e reações.
Assim, de nada adianta a mera normatização na
legislação nacional, “concedendo” direitos humanos
abstratos de forma verticalizada, como se a positivação
fosse capaz de retirar tais pessoas da invisibilidade. Nenhum
tipo de determinação impositiva nesse sentido seria
suficiente para modificar esse panorama. Apenas os
processos e as práticas de luta desencadeados pelos
moradores invisibilizados, após tomada de consciência de
sua capacidade de ação, reação e transformação das
relações existentes, podem resultar em conquistas em
termos de igualdade de acesso e inclusão social. É nessa
perspectiva que compreendemos os direitos humanos como
instrumento de transformação social.

4. EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS E ASSESSORIA


JURÍDICA POPULAR: CAMINHOS PARA A
CONCRETIZAÇÃO DOS PROCESSOS CULTURAIS DE
LUTA
Se a solução aparenta ser simples, na prática a
concretização desses processos de luta encontra muitos
obstáculos. Vivemos em uma sociedade com enorme deficit
educacional e ainda distante de uma efetiva educação em
direitos humanos204 - aqui entendida na perspectiva de Paulo
Freire (1987), de desenvolvimento da autonomia dos
oprimidos para práticas libertadoras das formas de
opressão. Não obstante os planos e políticas públicas dos
últimos anos205, ainda não alcançamos êxito em concretizar
medidas educacionais permanentes envolvendo direitos
humanos na maioria dos Estados brasileiros, tampouco
conseguimos realizar ações eficazes e abrangentes de
formação política para os direitos humanos. Como adverte
Aida Silva (2012, p. 43) “[...] na maioria dos Estados, no
Brasil, esses conteúdos sejam trabalhados em forma de
projetos, ações pontuais e em conteúdos vivenciados nas
datas festivas do calendário escolar, sem, contudo, ter
organicidade e articulação com a estrutura curricular”.
Se muitos são os problemas no sistema de educação de
um modo geral, pouco se tem em termos de efetivação real
– e eficaz – das políticas de educação em direitos humanos,
notadamente em localidade menos desenvolvidas, distantes
dos grandes centros, que nem sempre são beneficiáriass do
sistema de educação formal.
Assim, ainda temos um cenário no qual boa parte das
pessoas desconhecem até mesmo o que são direitos
humanos, enquanto outra parcela tem uma visão totalmente
deturpada desse conceito. Poucos são os que, de fato, têm
convicção da relevância dos processos de luta por acesso
igualitários aos bens, situação esta que não se distancia
muito do quadro de falta de consciência da desigualdade de
classe, das condições de opressão e exclusão em que vivem
a maioria dos brasileiros.
Nesse contexto, pensar em processos emancipatórios de
luta que possibilitam a atuação criativa e libertadora do
indivíduo pode parecer utópico. Se, em termos gerais, não
temos educação para direitos humanos, não temos
consciência crítica para a necessidade de exercício da
cidadania, não temos consciência de classe e não temos
autonomia para atuar criativamente, os processos de luta
por dignidade parecem irrealizáveis. Afirmar que a situação
de invisibilidade e exclusão social pode ser modificada
mediante processos de luta por dignidade, nessas
circunstâncias, pode parecer mais um idealismo, se
desacompanhado de descrições objetivas dos meios reais
de ação.
Assim, precisamos de instrumentos eficazes e realizáveis
que supram a omissão estatal. Diante da ineficiência das
políticas públicas de educação – e considerando que há
localidades que sequer possuem acesso ao sistema
educacional - é fundamental que tenhamos outras formas de
resistência.
Nessa conjuntura, a assessoria jurídica popular realizada
pelas ações extensionistas de universidades vem se
apresentando como importante meio de realização da
educação em direitos humanos, notadamente em
localidades marginalizadas e isoladas. Atualmente, inúmeros
coletivos universitários realizam assessoria popular em todo
o Brasil, em articulação com movimentos sociais, seguindo a
linha iniciada originalmente pelos pioneiros SAJUs da Bahia
e do Rio Grande do Sul (LUZ, 2014). No Ceará, por
exemplo, atuam o CAJU-UFC, o NAJUC-UFC, o SAJU-
UNIFOR, o CAJUP SITIÁ-Quixadá206 e o PAJE-Juazeiro do
Norte.
A assessoria jurídica universitária popular possibilita que
acadêmicos dos cursos de Direito e de outras áreas realizem
atividades de educação popular e assessoramento jurídico
para comunidades vulneráveis, juridicamente
desamparadas, auxiliando-as na busca e na efetiva
conquista de direitos básicos. Identifica-se, assim, com os
serviços legais inovadores na tipologia apresentada por
Campilongo (2000), propondo-se a tentar superar a prática
paternalista do assistencialismo e incentivar a práxis da
cidadania por parte dos assessorados. Como esclarece
Santos (2011, p. 60), “as assessorias jurídicas universitárias
[...] remetem para uma prática desenvolvida por estudantes
de direito que tem hoje uma capacidade nova de passar da
clínica jurídica individual [...] para uma forma de assistência
e de assessoria atenta aos conflitos estruturais e de
intervenção mais solidária e mais politizada.”
Nas palavras de Christianny Maia (2006, p. 88),

[...] a Assessoria Jurídica Popular realiza um trabalho de emancipação


humana, a partir da conscientização e organização comunitária, através
de uma educação jurídica popular, [...] potencializando, assim, os
espaços de participação dos litigantes no processo da luta por direitos,
no qual o verdadeiro protagonista é o povo.

Realizando educação popular em direitos humanos em


comunidades vulneráveis, as assessorias universitárias se
materializam, pois, como meios eficazes de abertura para
uma consciência crítica e para uma cultura emancipatória,
possibilitando, consequentemente, o desenvolvimento da
autonomia e das habilidades criativas do fazer humano
necessárias aos processos de luta por dignidade propostos
por Herrera Flores. Apesar de suas limitações, e longe de
representar uma solução única e definitiva ao problema, as
práticas de assessoria universitária popular mostram-se
como uma possibilidade eficaz de conscientização para a
cidadania e para as condições de exploração e opressão do
sistema capitalista que precisam ser combatidas.
Não desconhecemos as críticas e dificuldades das
assessorias jurídicas universitárias na realização da
educação em direitos humanos207, como a possibilidade de
realização conjunta de um trabalho assistencial paternalista
que pouco tem a contribuir para a emancipação dos
envolvidos, o risco de reprodução de opressões e exclusões
sistêmicas, a imposição de pautas alheias às demandas
reais e urgentes das comunidades, a falta de
aprofundamento crítico do assessores nas abordagens
escolhidas, a descontinuidade das ações propostas etc. No
entanto, as experiências brasileiras, nas mais diversas
universidades, tem demonstrado mais acertos do que erros,
confirmando o potencial emancipatório das práticas de
assessoria junto às comunidades assessoradas.
Portanto, a prática universitária da assessoria jurídica
popular no Brasil vem se mostrando como instrumento eficaz
na educação popular em direitos humanos, notadamente em
comunidades vulneráveis. E, nesse sentido, tem contribuído
para a conscientização e a emancipação necessárias aos
processos de luta por dignidade com potencial para
transformar realidades subjugadas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os direitos humanos na perspectiva universalista
tradicional não respondem aos anseios de sociedades
marcadas pela desigualdade social e pela exclusão no
contexto capitalista. O paradoxo entre a legislação
positivada que concede direitos a todos os seres humanos e
existência de um grande parcela da população vivendo sem
acesso a bens essenciais a uma vida digna não encontra
respostas na teoria tradicional do direito.
Apenas com os aportes da teoria crítica dos direitos
humanos conseguimos encontrar caminhos para a
compreensão dessa questão. A concepção de direitos
humanos como processos de luta por dignidade da forma
proposta por Herrera Flores mostra-se como possibilidade
de enfrentamento do tema, na medida em que considera a
realidade social e o contexto em que estamos inseridos e
possibilita o empoderamento dos cidadãos oprimidos e
excluídos para a luta por acesso igualitário aos bens
essenciais, bem como o desenvolvimento da nossa
capacidade criativa de agir e reagir diante do mundo. Os
processos culturais possibilitam o desvelamento de
insivibilidades e opressões e, em consequência, o
reconhecimento, a inclusão e possibilidade de luta contra a
discriminação social, especialmente no caso de
comunidades isoladas que vivem à margem do Estado,
como as comunidades do Cafundó e do Escondido,
localizadas no Sertão Central do Ceará.
E se é verdade que no Brasil esses processos de luta por
dignidade encontram entraves na precária situação das
políticas de educação em direitos humanos, não é menos
verdade que algumas experiências atuais de assessoria
jurídica popular universitária conseguem realizar a proposta
de Herrera Flores ao contribuírem para o desenvolvimento
da autonomia, da capacidade de crítica e de reconhecimento
das condições sociais em que vivemos no contexto
capitalista, estimulando uma cultura de cidadania e de luta
por dignidade com potencial transformador e emancipatório.

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Disponível em: <http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/285.pdf.>. Acesso em: 6 jun.
2017.

197 HUMAN RIGHTS AS FIGHTING PROCESSES IN THE LIGHT OF THE CRITICAL


THEORY OF LAW: CONTRIBUTIONS TO THE FACING OF THE SOCIAL INVISIBILITY
OF ISOLATED COMMUNITIES
198 A identificação das duas comunidades se deu após o conhecimento in loco da
realidade das famílias do Cafundó e do Escondido, no ano de 2015, em razão de atividade
de extensão do Coletivo de Assessoria Jurídica Universitária Popular – CAJUP Sitiá, do
Centro Universitário Católica de Quixadá - UNICATÓLICA, do qual uma das autoras
participou na condição de professora orientadora. A quase totalidade dos dados descritos
foi colhida em pesquisa exploratória de campo, mediante relato de moradores. Raras são
as fontes de pesquisa sobre a realidade estudada.
199 O universalismo dos direitos humanos é alvo de inúmeras críticas, mesmo pelos
autores da teoria tradicional do direito. Um dos mais relevantes questionamentos foi feito
por Hannah Arendt (1989), em sua obra As origens do totalitarismo, na qual a autora expõe
a incapacidade de direitos inalienáveis “independents de governos” serem assegurados a
indivíduos sem vínculos com um Estado soberano, como os apátridas e refugiados.
200 Boaventura de Sousa Santos (2013a, p. 56) é um dos autores que denuncia a
insuficiência da visão ocidental do mundo, de cunho universalista: “Ao pensamento
convencional dos direitos humanos faltam instrumentos teóricos e analíticos que lhe
permitam posicionar-se com alguma credibilidade em relação a estes movimentos [de
resistência]”.
201 “O termo ‘teoria crítica’ foi cunhado por Max Horkheimer, em meados dos anos 1930,
no Instituto de Pesquisa Social, na Escola de Frankfurt, junto à Universidade de Frankfurt.
[...]A teoria crítica viu-se confrontada com a tarefa de pensar “radicalmente outro” e tinha
por objetivo criticar a teoria científica tradicional, que procurava separar o conhecimento da
realidade, o que a tornava, na verdade, um instrumento de dominação da classe
dominante. Sua pedra de toque era o entendimento de que a separação do objeto da teoria
tradicional equivale à falsificação da imagem, conduzindo ao conformismo e à submissão”.
(BERNER; LOPES, 2014).
202 Não obstante a Teoria Crítica dos Direitos Humanos tenha expoentes como Helio
Gallardo, Frantz Hinkelammert, Manuel Gándara Carballido, Ruben Manente, entre outros,
utilizaremos aqui o aporte teórico de Joaquín Herrrera Flores.
203 Para Juliana Tomás (2008, p. 3), “O desprezo social e o não-reconhecimento dão
origem ao sentimento de invisibilidade. Na sociedade do espéctaculo na qual nós vivemos,
o invisível tende a significar o insignificante [...] e ‘os invisíveis’ são criados pela percepção
colectiva, que não só os cria mas também os transforma e os revela acompanhando os
preconceitos da altura”.
204 “A Educação em Direitos Humanos é entendida como um processo sistemático e
multidimensional com vistas à formação de sujeitos de direitos, articulando as seguintes
dimensões: a apreensão de conhecimentos específicos da área; a afirmação de valores,
comportamentos e atitudes na defesa intransigente dos direitos de todos; a formação de
uma consciência cidadã que possibilite ultrapassar o pensamento cognitivo e se materialize
em ações; de práticas coletivas que possam gerar instrumentos de ampliação e
fortalecimento dos direitos humanos.” (SILVA, 2012, p. 41).
205 Em 2003, o Brasil promulgou como política pública o Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos (PNEDH), ampliado em 2006. Não obstante em 2010 os Estados terem
sido estimulados pelo Ministério da Educação a realizar ações que colocassem em prática
o PNEDH na educação formal, é certo que a educação em direitos humanos não formal,
também prevista no plano e realizada por movimentos sociais e ONGs, mostra-se como
mais eficaz na consolidação de uma cultura de direitos humanos. (SILVA, 2012).
206 O CAJUP Sitiá realiza, deste 2015, práticas de educação em direitos humanos nas
comunidades isoladas do Cafundó e do Escondido, no Sertão do Ceará. Por meio de rodas
de conversas, palestras e reuniões pautados na pedagogia de Paulo Freire e no viés crítico
dos direitos humanos, os alunos extensionistas dialogam com os moradores das
comunidades sobre a importância da cidadania e dos processos de luta, estimulando o
desenvolvimento da autonomia e da conscientização acerca das desigualdades sociais
existentes, bem como das possíveis ferramentas de enfrentamento à discriminação, à falta
de acesso a bens essenciais e à invisibilidade social. Apesar da dificuldade de acesso às
localidades, que impede uma maior frequência das atividades, o coletivo vem conseguindo
estimular a reflexão para a importância das lutas sociais e dos direitos humanos.
207 Para um estudo aprofundado das críticas e paradoxos da assessoria juridica popular,
conferir LUZ, 2014.
XII
MEGAEMPREENDIMENTOS E IMPACTOS
SOCIOAMBIENTAIS: MULHERES, CRIANÇAS
E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE
VULNERABILIDADE208
Solange Teles da Silva
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2 e Professora Doutora da
Pós-graduação Stricto Sensu em Direito Político e Econômico da Universidade
Presbiteriana Mackenzie.

Jana Maria Brito


Bolsista CAPES/ PDSE; Doutoranda em Direito Político e Econômico na
Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Nathalia Lima
Bolsista CAPES/ PROSUP; Mestranda em Direito Político e Econômico na
Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Resumo: Há uma relação intrínseca entre megaempreendimentos e impactos


socioambientais, notadamente no que diz respeito ao abuso sexual das mulheres, crianças
e adolescentes nas proximidades dos canteiros de obras desses empreendimentos.
Contudo essa questão permanece invisível mesmo existindo no ordenamento jurídico
instrumentos para a avaliação de impactos socioambientais para a instalação de tais
empreendimentos. Levantar o véu sobre essa questão permite refletir sobre as
possibilidades de prevenir essas situações, notadamente com o empoderamento das
mulheres, crianças e adolescentes e seu p protagonismo no processo decisório. Toma-se
como estudo de caso a construção da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte, analisando-
se o caso da Boate Xingu. Identifica-se, outrossim, os passos necessários a serem
observados nos estudos prévios de impacto ambiental para a proteção de mulheres e
crianças no contexto de megaempreendimentos.
Palavras-chave: Impactos socioambientais. Megaempreendimentos. Mulheres.
Vulnerabilidade.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A instalação de megaempreendimentos na região
Amazônica necessita ser amplamente debatida,
notadamente em razão dos impactos socioambientais
negativos que pode provocar, sendo necessário indagar-se
igualmente sobre qual desenvolvimento tais
megaempreendimentos podem trazer para a região. É certo
que há no ordenamento jurídico brasileiro instrumentos
voltados para avaliação desses impactos, tais como estudos
prévios de impacto ambiental, existindo, todavia, problemas
que acabam não sendo abordados em tais estudos e que
figuram como questões sensíveis que atingem grupos mais
vulneráveis, tais como as mulheres, crianças e
adolescentes, permanecendo na maioria dos casos
invisíveis. Esses grupos sofrem com a marginalização social
e exclusão econômica, encontrando-se geralmente mais
expostos aos impactos socioambientais ocasionados pela
instalação de obras de infraestrutura de grande porte, como
é o caso das hidroelétricas na Amazônia.
O presente artigo tem como objetivo levantar o véu sobre
essa questão e, realizar uma discussão sobre os impactos
socioambientais negativos, provocados pela ausência ou
deficiência de um planejamento preventivo, que possibilite
garantir o respeito à integridade física e psicológica das
mulheres, crianças e adolescentes afetadas pelo abuso
sexual nas proximidades dos canteiros de obras desses
empreendimentos de infraestrutura de grande porte. Com a
finalidade de compreender as possíveis causas dessa
invisibilidade será estudado o procedimento de
licenciamento ambiental para construção da Usina
Hidroelétrica de Belo Monte (UHE de Belo Monte).
Uma pesquisa exploratória permitirá analisar se nos
principais instrumentos do licenciamento ambiental da obra,
quais sejam, o Relatório de Impacto Ambiental e as licenças
(prévia e de instalação), houve a previsão de abuso sexual
como um provável impacto negativo na população
indiretamente afetada pelo projeto e, se dentre as
condicionantes apresentadas nas licenças foram
estabelecidas medidas a serem adotadas com relação aos
possíveis danos decorrentes dessa violação a atingir
mulheres, crianças e adolescentes. Nesse contexto, as
contribuições de Kimberlé Williams Crenshaw209 e sua
análise do conceito de insterseccionalidade auxiliará
igualmente na compreensão dos eixos de discriminação,
presentes na classe, raça e gênero, dentre outros, que
devem ser identificados separadamente, mas considerados
de maneira conjunta no momento de fortalecimento das
instituições e elaboração das políticas públicas destinadas a
mitigar as desigualdades e discriminações, bem como os
danos sofridos, principalmente, pelas mulheres, crianças e
adolescentes socialmente marginalizadas e
economicamente excluídas, que se tornam mais vulneráveis
no cenário das grandes obras. E, para complementar nossa
análise, realizaremos um levantamento legal dos
compromissos que o Brasil assumiu em relação à proteção
de mulheres, crianças e adolescentes, indagando-se sobre
os passos necessários para auxiliar na identificação das
vulnerabilidades desses grupos e ao mesmo tempo oferecer
balizas para o monitoramento e controle de impactos
socioambientais de megaempreendimentos.

2. MEGAEMPREENDIMENTOS NA AMAZONIA,
MULHERES, CRIANCAS E ADOLESCENTES: POR QUE
DEVEMOS DISCUTIR ESSAS QUESTÕES?
A atual experiência da instalação de
megaempreendimentos na Amazônia é marcada por
discussões controversas acerca dos seus impactos
socioambientais negativos e das violações constatadas, sem
a devida resposta jurídica. Observa-se que o processo de
tomada de decisão desse tipo de empreendimento não
considera, de forma adequada, os impactos socioambientais
negativos e, em particular a violação a direitos de
determinados grupos vulneráveis como os das mulheres,
jovens e crianças. Ao analisar, por exemplo, as fases do
processo de implementação do projeto da Usina de Belo
Monte (UHE Belo Monte), quer dizer, do licenciamento
ambiental – planejamento, instalação e operação –, o que se
pode observar é uma ausência do diálogo com esses grupos
vulneráveis e distanciamento dos compromissos nacionais e
internacionais que deveriam orientar a tomada de decisão.
O licenciamento ambiental da UHE Belo Monte
apresentou inúmeras questões sobre os prováveis impactos
desse megaempreendimento que integraram o leque de
condicionantes; mas, em nenhuma delas vislumbrou-se
especificamente a discussão dos impactos negativos
gerados em relação às mulheres, crianças e adolescentes,
principalmente no que diz respeito a questões envolvendo a
sua exploração sexual. Isso acabou por não possibilitar o
contínuo monitoramento dessa questão.
Ocorre que, em março de 2013, o Ministério Público
Federal (MPF) ofereceu denuncia de seis pessoas ligadas a
Boate Xingu, estabelecimento que ficava próximo ao
canteiro de obras da UHT Belo Monte, junto a Justiça
Federal de Altamira, pelos seguintes crimes: trabalho
escravo, tráfico de pessoas, exploração sexual, corrupção
de menores e formação de quadrilha. 210 Os acusados foram
identificados pelas vítimas, mulheres e meninas, que se
encontravam em situação precária e desumana, e que foram
libertadas da boate em fevereiro, depois de operação da
Polícia Civil do Pará. (MPF, 2013). Essas mulheres e
meninas tinham sido traficadas para o local com a promessa
de alta rentabilidade, para trabalharem na barragem. As
vítimas eram inseridas em condições análogas a de escravo,
onde eram obrigadas a exercer atividade sexual para pagar
o quarto onde dormiam, sua alimentação e produtos de
higiene pessoal. Para além desses custos, ainda havia o
pagamento de uma comissão em cima do valor de cada
“programa”.211 De acordo com relatos do MPF, “Além da
precariedade das instalações, as vítimas foram colocadas
em quartos sem janela e sem ventilação, o que se torna
desumano, quando considerarmos as temperaturas locais e
o fato de que o gerador de energia era mantido desligado
após encerramento das atividades da boate” (MPF, 2013).
Relatos de impactos socioambientais negativos como
esse são recorrentes em locais em que
megaempreendimentos são instalados, principalmente
quando o local de instalação já apresenta algumas
vulnerabilidades decorrentes de um sistema de gestão
público ainda pouco estruturado para lidar com essas
questões. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do
tráfico de pessoas analisou inúmeros casos e relatos que
sintetizam essas questões, sendo possível extrair alguns
consensos presentes nos relatos, tais como: o acirramento
da violência doméstica, a não priorização das mulheres nas
políticas de reassentamento das populações atingidas, a
inclusão deficitária dessas mulheres no mercado de trabalho
nas grandes obras, o aumento da exploração sexual, a
precarização da convivência familiar, a exclusão produtiva
de crianças e adolescentes. Trata-se portando de uma
realidade incontestável, sendo que pesquisa realizada pela
Universidade Federal de Sergipe e Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, em parceria com a Childhood Brasil
(instituto WCF), sobre “Os homens por trás das grandes
obras do Brasil” indicou que “no Norte [a exploração sexual
de crianças e adolescentes] é pior, [tal qual avaliaram] (...)
40% dos entrevistados” (SANTOS, 2013, p. 339). Esses
impactos socioambientais também foram identificados no
relatório de atividades produzido pelo GVCes, em 2016,
sobre as grandes obras na Amazônia que trouxe um
diagnostico da “pouca ou nenhuma conexão [dos
megaempreendimentos] com as reais demandas sociais
geradas local e regionalmente, numa visão de futuro
compartilhada [tendo como resultado uma tendência] (...) a
violação de direitos”. (GVCes, 2016, p. 7). Pode-se extrair
dai uma visibilidade e previsibilidade da emergência desses
impactos e danos sociais vis-à-vis da invisibilidade dessas
questões no processo de tomada de decisão, o que impede
que um planejamento preventivo eficiente.
As reflexões sobre o papel do Estado e a
responsabilidade da empresa sobre os impactos
socioambientais negativos e sobre as eventuais condutas a
serem adotadas para prevenir e igualmente reparar os
danos provocados são necessárias. A discussão sobre a
reparação, sem dúvida é absolutamente relevante, e
mereceria um estudo específico sobre o tema, mas são
questões de cunho preventivo e dentre elas aquelas que se
relacionam com um momento especifico: o do processo de
tomada de decisão e os fatores que devem orientar esse
processo podem alterar essa dinâmica.
O Brasil ratificou inúmeros tratados assumindo a
obrigação de promover e estimular o respeito dos direitos
humanos, sobretudo em relação a grupos historicamente
reconhecidos como vulneráveis como mulheres212, crianças
e adolescentes213. Para além desses tratados e legislações
nacionais que podem ser aplicadas ao caso, o Brasil aderiu
em 2011, aos Princípios Orientadores da Organização das
Nações Unidas (ONU) sobre Empresas e Direitos humanos.
Nesse documento, foi estabelecido que a vulnerabilidade
deve ser considerada como um critério para a priorização
em duas esferas: na esfera privada, orientando a ação
empresarial para o conhecimento e controle dos seus
impactos; e na esfera púbica, sendo o Estado um ator
econômico, que atua na condição de regulador e licenciador
de empreendimentos. Para que isso seja alcançado, em
primeiro lugar é fundamental definir e identificar
vulnerabilidades, assim como de compreender alguns
passos importantes nesse processo.
3. IMPACTOS, INTERSECCIONALIDADE E
VULNERABILIDADE
Se considerarmos o contexto do processo de
licenciamento para construção da UHE de Belo Monte
podemos identificar diversos impactos que decorreram do
aumento populacional na região e acarretaram a
vulnerabilização das condições de vida. Esses impactos
foram ocasionados pelo aumento da demanda social pelo
acesso às instituições e políticas públicas que eram
insuficientes para absorver toda demanda, tanto pelo
aspecto quantitativo quanto pelo aspecto qualitativo.
(OLIVEIRA, 2013)
Boa parte da insuficiência se deve pela falta de
planejamento e ausência de uma gestão adequada dos
impactos socioambientais gerados pelo empreendimento. No
processo de licenciamento existem alguns mecanismos para
traçar as diretrizes das medidas preventivas e mitigatórias
destinadas a sanar os efeitos dos danos ocasionados ou
atuando no sentido de evitá-los.
Dentre os instrumentos que permitem realizar uma
avaliação dos impactos encontram-se os Estudos Prévios de
Impacto Ambiental que darão origem aos Relatórios de
Impacto Ambiental (EIA/RIMA), destacando-se ainda as
condicionantes estabelecidas pelas licenças prévia, de
instalação e de operação. Contudo, nem sempre todos os
impactos negativos são considerados no EIA/RIMA e todas
as medidas preventivas e mitigatórias exigidas. Há questões
que são simplesmente invisibilizadas, colocando em risco a
população mais vulnerável e mais exposta aos impactos
gerados pela obra.
Durante o processo de licenciamento214 da UHE de Belo
Monte as populações locais foram poucos são escutadas,
seja pela ineficiência dos instrumentos de participação
previstos pela legislação215 seja pela falta de interesse em
aplicar tais mecanismos. Assim, as ferramentas que
garantem o direito de participação passam a funcionar como
mera etapa de um procedimento, com o objetivo único e
exclusivo de obter a licença para autorização da exploração
de recursos naturais ao invés de assumirem um papel
fundamental nas tomadas de decisão. 216A exclusão da
participação dos grupos afetados pelo empreendimento
pode gerar a ausência de medidas compensatórias217 que se
destinem a esses grupos, uma vez que as demandas sequer
serão colocadas em pauta nas consultas públicas.
De acordo com as informações presentes no Relatório de
Impacto Ambiental sobre o Meio Ambiente/RIMA elaborado
para identificar os principais impactos gerados pela
construção da UHE Belo Monte, tem-se que 19.242 pessoas
seriam afetadas diretamente pelo alagamento de áreas
devido a construção das barragens no rio Xing, por conta do
deslocamento dos municípios de Altamira, Brasil Novo,
Senado José Porfírio e Vitória do Xingu. (RIMA Vol. 23, p.
37). Com relação, as pessoas indiretamente afetadas pela
obra, não fica claro, no RIMA, quais são os possíveis
impactos nem tampouco são identificadas dentre as
condicionantes estabelecidas pelas licenças (prévia e de
instalação) medidas para prevenir ou compensar os danos
sofridos.
Essa falta de clareza demonstra a fragilidade dos estudos
de impacto ambiental, uma vez que os referenciais não
podem ser traçados apenas numa perspectiva objetiva de
definição geográfica dos danos socioambientais, pois tratam-
se de elementos subjetivos e culturais que permeiam de
maneira coletiva ou individual, as formas dos impactos a
serem sofridos pelas vítimas do atual modelo de crescimento
econômico, em especial o núcleo populacional
marginalizado, que sofre quando exposto a mais
vulnerabilidades, tais como as mulheres, crianças e
adolescentes. (OLIVEIRA, 2013)
No que diz respeito a prostituição a única previsão no
RIMA foi com relação a esse problema nas terras indígenas
(TIs) durante a etapa de construção, provavelmente, por
conta da instalação dos canteiros de obra. Segundo o
relatório “o aumento da chegada de pessoas à região tende
a provocar o aumento das pressões sobre as TIs e seus
recursos naturais, o aumento da disseminação de doenças
sexualmente transmissíveis e outras. Além disso, os
indígenas ficam mais expostos ao alcoolismo, à prostituição
e às drogas. ” (RIMA, 2009, p. 85). Nada previu quanto a
possibilidade de exploração sexual de mulheres, crianças e
adolescentes no entorno das obras.
O fato de não existir uma previsão da probabilidade de
exploração sexual de mulheres, crianças e adolescentes em
decorrência desse megaempreendimento no Relatório de
Impacto Ambiental/RIMA e nas medidas compensatórias
previstas nas Licenças Prévia e de Instalação218 levou ao
descompasso entre a dinâmica socioambiental
desencadeada pela implantação dessa obra e a capacidade
institucional de prever e compensar os impactos negativos
gerados. Desse modo, ficou prejudicado a definição de
problemas relativos a exploração sexual como um pré-
requisito fundamental para o planejamento estratégico das
políticas públicas destinadas as mulheres, crianças e
adolescentes.
Com relação às condicionantes previstas para a obtenção
das licenças, tem-se que na Licença de Prévia nº 342/2010
foram definidas 40 condicionantes socioambientais e na
Licença de Instalação nº 795/2011, 23 novas condicionantes.
Essas medidas devem ser realizadas pelo empreendedor
antes e durante a instalação da hidroelétrica para garantir a
minimização dos impactos socioambientais e proporcional o
desenvolvimento local. No caso da UHE Belo Monte, as
medidas compensatórias destinadas a população
indiretamente atingida só foram previstas na licença prévia:

Estender aos municípios da Área de Influência Indireta - AII as ações do


Plano de Articulação Institucional relativas a: i) criar mecanismos de
articulação e cooperação entre entidades e instituições federais e
estaduais que possibilitem o estabelecimento de parcerias para a
indução do desenvolvimento regional; ii) capacitar as equipes das
administrações municipais; iii) fortalecer a prática do planejamento
participativo; iv) ampliar a articulação entre as diferentes áreas da
administração municipal e destas com outras esferas de governo, até
que o Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável do Xingu cumpra
essas funções. (Licença Prévia nº 342/2010, p. 4).

Apesar da previsão de uma condicionante que tem o


objetivo de fortalecer as instituições e o atendimento às
populações, com relação aos servidores públicos que atuam
na rede de proteção municipal- como Centros de Referência
e Assistência Social (CRAS) ocorreu uma evasão massiva
da rede pública no sentido de procurar trabalho nas diversas
empresas terceirizadas da Norte Energia S.A. A evasão de
profissionais das instituições públicas locais impactou
diretamente na capacidade do Estado de gerenciar os
problemas presentes no território afetado pela obra.
Esta incapacidade institucional e operacional pode ser
identificada de maneira explícita na operação para resgate
de 34 (trinta e quatro) mulheres que eram mantidas em
prostituição forçada numa boate nas proximidades do sítio
Canais e Diques da UHE Belo Monte. A tentativa de resgate
ocorreu em fevereiro de 2013 na cidade de Altamira. A boate
que mantinha essas mulheres com a finalidade de realizar
exploração sexual, estava com alvará de liberação de
funcionamento emitido pela Polícia Civil, a qual só possuía
uma pessoa para realizar este serviço em toda área de
competência, o que prejudicava as vistorias que eram
realizadas de forma superficial e descontínua. (OLIVEIRA,
2013)
A falta de capacidade institucional e de planejamento de
políticas públicas para absorver as demandas relativas as
vulnerabilidades a que estavam expostas as mulheres,
crianças e adolescentes emergiu nos dados apresentados
pelo Conselho Tutelar de Altamira, que demonstra um
crescimento expressivo nos casos de prostituição, estupro e
abuso sexual no período de 2008 a 2012, que abrange a
concessão das licenças prévia e de instalação dos canteiros
da obra.

Tabela Comparativa do atendimento do Conselho


Tutelar de Altamira.
Dados/Ano 2008 2009 2010 2011 2012

Prostituição, estupro e abuso sexual 12 29 43 75 169

Fonte: OLIVEIRA (2013, p. 293)

Somado aos dados do Conselho Tutelar temos os


processos judiciais que versam sobre os crimes sexuais
contra crianças e adolescentes na 3ª e 5ª Varas do Fórum
de Justiça da Comarca de Altamira. Os dados indicam um
crescimento da violação de direitos e vulnerabilização social
de crianças e adolescentes no município de Altamira no
período de 2010 a 2012.

Figura 1

Fonte: OLIVEIRA (2013, p294.)


As populações mais vulneráveis, tais como as mulheres e
crianças, que sofrem com a marginalização social e
exclusão econômica ficam mais expostas aos impactos
socioambientais ocasionados pelas obras de infraestrutura
de grande porte, como é o caso das hidroelétricas na
Amazônia, com consequências permanentes, que
demonstram que o crescimento econômico estruturado pelo
sistema capitalista, sem considerar o desenvolvimento social
e a conservação ambiental, se dá necessariamente com a
geração de vários danos aos grupos sociais e locais
vulneráveis.
Esse diagnóstico que pode ser observado na prática
quando analisamos as circunstâncias do contexto ao qual a
obra de Belo Monte está inserida. Essa vivência prática é um
termômetro fundamental para o planejamento do
fortalecimento institucional e a elaboração de políticas
públicas, destinados a atender os grupos mais vulneráveis e,
portanto, mais expostos aos impactos da obra. Com relação
ao abuso sexual sofridos por essas mulheres, crianças e
adolescentes é possível identificar dois eixos que se
sobrepõe no sentido de ampliar a vulnerabilidade a que
estão expostas, são eles: classe e gênero, que nesse caso
devem ser observados de maneira conjunta ao traçar as
medias preventivas ou compensatórias.

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação


contra as Mulheres (Cedaw) aborda, principalmente, questões
relacionadas a violações dos direitos humanos das mulheres, da mesma
maneira que a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial aborda questões raciais. Um dos
objetivos é identificar mecanismos para que instituições trabalhem em
conjunto para garantir que a discriminação racial que afeta mulheres e a
discriminação de gênero que afeta mulheres negras sejam consideradas
mutuamente e não de uma maneira excludente. (CRENSHAW, 2004, p.
9).

A essa conjuntura de sobreposição de eixos que tornam a


desigualdade mais acirrada e, portanto, intensificam a
exclusão e a marginalização, podemos chamar de
interseccionalidade. Segundo Crenshaw “a
intersecionalidade sugere que, na verdade, nem sempre
lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com grupos
sobrepostos”. (CRENSHAW, 2004, p. 10).
Figura 2

Fonte: CRENSHAW (2004, p. 10)

A sobreposição do grupo das mulheres com o das


pessoas negras, o das pessoas pobres e também o das
mulheres que sofrem discriminação por conta da sua idade
ou por ser pessoa com deficiência, possibilita identificar uma
zona de maior vulnerabilidade que se encontram no centro.
Esse diagnóstico possibilita traçar um planejamento mais
adequado ao pensar nas políticas públicas e nas medidas
tomadas para atender esse grupo social.
A interseccionalidade cria a discriminação e dificulta o
acesso as oportunidades no ramo econômico e social. Mas,
além da discriminação temos o problema da invisibilidade
dessa discriminação no movimento político e nas políticas
intervencionistas. As análises nem sempre consideram como
gênero e/ou a classe social contribuem para gerar mais
desigualdades. Segundo Crenshaw, “as vítimas da
discriminação tendem a ser mulheres socialmente
marginalizadas, as que não têm condições de concorrer
adequadamente no mercado em decorrência dos poucos
empregos disponíveis a elas”. (CRENSHAW, 2004, p. 14).
Diante dessas premissas, podemos considerar que a falta
de previsão dos problemas que afetaram a população
indiretamente impactada pela obra decorre da invisibilidade
dada a essas interseccionalidades que são fundamentais
para a elaboração, execução, controle e avaliação das
políticas públicas destinadas a prevenir ou mitigar os
impactos causados pelo empreendimento. Segundo o
pensamento de Crenshaw, possíveis soluções para tornar
visível essas questões, são:

Precisamos reconfigurar nossas práticas que contribuem para a


invisibilidade intersecional. Isso inclui a integração dos diversos
movimentos (CRENSHAW, 2004, p. 15).
Precisamos adotar uma abordagem de baixo para cima na nossa coleta
de informações. [...] A intersecionalidade oferece uma oportunidade de
fazermos com que todas as nossas políticas e práticas sejam,
efetivamente, inclusivas e produtivas. (CRENSHAW, 2004, p. 16).

Ou, em outras palavras, há a necessidade de um maior


dialogo e articulação, seja por parte dos movimentos sociais,
seja em relação a políticas e práticas participativas e
inclusivas.

4. PROTAGONISMO EM PROL DA MITIGAÇÃO DE


IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS
O direito à participação nos processos de tomada de
decisão é uma das principais ferramentas nos processos de
tomada de decisão. Trata-se de garantir o conhecimento dos
principais aspectos relacionados a todos os atores que estão
envolvidos diretamente ou indiretamente no processo.
Esse aspecto procedimental não só constitui um processo
de reconhecimento desses atores, como pode ser entendido
como um diagnóstico dos coletivos e das organizações
locais, que possuem direitos específicos e um amplo
conhecimento da área afetada e de suas dinâmicas locais.
Esses atores figuram em uma dupla dimensão de
importância que comporta em primeiro lugar a dimensão de
proteção dos seus direitos e em segundo lugar sua
capacidade de figurar como verdadeiros especialistas no
território abrangido.
Outra questão que não pode deixar de ser compreendida
é que existem processos e procedimentos específicos para a
proteção de grupos vulneráveis como mulheres, crianças e
adolescentes, mais do que isso, já existem diretrizes
construídas coletivamente para orientar a integração desses
grupos, garantindo a ampla participação. Não se pode
ignorar que há condições peculiares de vida que muitas
vezes dificultam o acesso ao espeço público de fala.
Para que esse processo seja o mais prático e eficiente
possível há que se observar determinadas diretrizes. Nesse
sentido, o Centro de Estudos em Sustentabilidade (GVCes)
sistematizou algumas dessas diretrizes como segue abaixo,
a partir de encontros e diálogos com populações, empresas,
ONGs e demais interessados nesse processo.
Quadro – Diretrizes para Participação de Mulheres,
Crianças e Adolescentes em espaços de decisão sobre
grande empreendimentos
Procedimentos de participação de crianças e adolescentes devem levar
em consideração as seguintes orientações
Priorizar a participação e a escuta no âmbito escolar ou comunitário, ao invés
de municipal e escalas geográficas mais amplas, visando à inserção em
espaços de maior mobilização local de crianças e adolescentes, e, na medida
do possível, de forma separada dos adultos, e numa representação numérica
que contemple amostragem quanti-qualitativa satisfatória da população infanto-
adolescente do território;
Quando não for possível priorizar o âmbito escolar ou comunitário para a
participação e escuta de crianças e adolescentes, deve-se envidar esforço para
que o ambiente de participação e escuta de crianças e adolescentes, seja
estruturado de modo a permitir-lhes que se sintam respeitados e seguros
quando expressem livremente suas opiniões sobre assuntos relacionados aos
grandes empreendimentos;
Adequar a linguagem e os meios de comunicação (especialmente através de
redes sociais digitais), com uso preferencial de imagens, coloquialismo, vídeos
explicativos, dinâmicas de grupo, teatro, eventualmente com apoio de
adolescentes capacitados para facilitar a interação com o publico e informar as
questões de modo mais adequado;
Quando a participação e escuta de crianças e adolescentes envolvam a
externalização de assuntos de caráter íntimo e/ou com carga de sofrimento,
devese evitar a repetição do relato para não ocasionar revitimização, assim
como ofertar a opção da escuta ocorrer em condições de confidencialidade,
desde que assim o queira;
Assegurar transporte para deslocamento entre moradia e local do evento,
assim como alimentação durante o evento com cardápio contendo alimentos
saudáveis;
Levar em consideração o estágio de desenvolvimento e especificidades
étnicoculturais, para definição e adequação dos procedimentos, com especial
atenção à inclusão de crianças e adolescentes pertencentes a povos indígenas,
comunidades tradicionais e quilombolas;
Promover o devido registro do posicionamento das crianças e adolescentes e
assegurar o retorno, em curto ou médio prazo, de como as opiniões foram
consideradas nas decisões tomadas sobre os grandes empreendimentos;
Estabelecer meios para assegurar a acessibilidade das crianças e dos
adolescentes com deficiência, seja para presença nos espaços, seja para
entendimento do conteúdo da discussão.
Os procedimentos de participação de mulheres devem levar em consideração
as seguintes orientações:
Assegurar mínimo de 50% do público nos espaços de decisão constituído por
mulheres, bem como oportunidade de fala às mulheres presentes;
Oportunizar transporte para deslocamento até o local do evento e alimentação
saudável durante a realização da atividade;
Assegurar espaço e profissionais habilitados para cuidar das crianças
pequenas, enquanto as mães participam do evento;
Garantir meios de comunicação e de informação às mulheres sobre assuntos
relacionados aos grandes empreendimentos, seus impactos socioambientais e
medidas interventivas, especialmente com a utilização das redes sociais
digitais (WhatApps, Facebook, Twitter, entre outros);
Levar em consideração a condição familiar e as especificidades étnico-
culturais, para definição e adequação dos procedimentos;
Promover o devido registro do posicionamento das mulheres e assegurar o
retorno, em curto ou médio prazo, de como as demandas foram internalizadas
nas decisões tomadas sobre os empreendimentos;
Estabelecer meios para assegurar a acessibilidade das mulheres com
deficiência, seja para presença nos espaços, seja para entendimento do
conteúdo da discussão.
Priorizar o fortalecimento técnico e financeiro do Conselho dos Direitos da
Criança e do Adolescente e a criação e fortalecimento do Conselho dos Direitos
da Mulher nos municípios a serem afetados por grandes empreendimentos,
tornando-os interlocutores obrigatórios nos processos de tomada de decisão.
Criar no âmbito do planejamento territorial, do licenciamento ambiental e do
financiamento de grandes empreendimentos condicionalidades normativas ou
contratuais que assegurem o direito à participação de crianças, adolescentes e
mulheres.
Os empreendedores devem atuar na comunicação e na interação direta com a
comunidade local para assuntos referentes aos impactos em direitos humanos,
especialmente de crianças, adolescentes e mulheres, fazendo ressoar as
demandas apreendidas às instâncias de decisão empresarial.

Fonte: GVCes, 2016


Essas diretrizes podem contribuir para que a participação
seja efetiva e não se limite ao seu aspecto procedimental.
Em realidade, essa participação tem uma importância impar
e seu valor substantivo pode legitimar decisões a respeito de
futuros megaempreendimentos, seus impactos e possíveis
medidas de intervenção. A depender de como todos esses
fatores sejam analisados uma grande obra pode significar
desenvolvimento regional, oportunidade melhoramento do
mercado de trabalho e um relevante passo para o
reconhecimento de grupos até então marginalizados.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao levantar o véu sobre a situação das mulheres, crianças
e adolescentes no caso da instalação de
megaempreendimentos e de sua vulnerabilidade algumas
questões permitem avançar nas reflexões sobre essa
temática.
Há uma relação intrínseca entre a instalação de
megaempreendimentos e a exploração sexual de mulheres,
crianças e adolescentes, ou seja, há probabilidade que em
canteiros de obras ocorram situações de exploração sexual
desse grupo de pessoas vulneráveis, ou em outras palavras
a instalação de megaempreendimentos tem como um de
seus impactos perversos a exploração sexual de mulheres,
crianças e adolescentes. E, apesar de normativas existentes
que preveem que sejam considerados os impactos
socioambientais dos megaempreendimentos, essa temática
ainda permanece invisível no processo de tomada de
decisão. Ao invés de um amplo diálogo e articulação desses
tipos de impactos no momento de planejamento do
megaempreendimento, essas questões passam a ser
discutidas em face de violações posteriores ao momento de
instalação do empreendimento e desconectadas de uma
eventual responsabilidade dos empreendedores e do Poder
Público. Há, portanto, a necessidade de considerar-se uma
matriz de responsabilidades mais alargada.
Evidencia-se, particularmente, a fragilidade dos estudos
de impacto ambiental, uma vez que os referenciais não
podem ser traçados apenas numa perspectiva objetiva de
definição geográfica dos danos socioambientais, pois tratam-
se de elementos subjetivos e culturais que permeiam de
maneira coletiva ou individual, as formas dos impactos a
serem sofridos pelas vítimas do atual modelo de crescimento
econômico, em especial o núcleo populacional
marginalizado, que sofre quando exposto a mais
vulnerabilidades, tais como as mulheres, crianças e
adolescentes.
Por fim, deve-se ressaltar que a construção de espaços
de fala e discussão bem como o empoderamento de
mulheres, crianças e adolescentes pode ser uma relevante
ferramenta para assegurar que todos os seus direitos e
interesses, sejam não somente respeitados, mas tomados
como diretriz para a construção de um processo de tomada
de decisão mais coerente, inclusivo, preventivamente
protetivo.

REFERÊNCIAS

CARDIA, Ana Cláudia Ruy. Empresas, direitos humanos e gênero: desafios e


perspectivas na proteção e no empoderamento da mulher pelas empresas
transnacionais. Porto Alegre: Buqui, 2015.
CRENSHAW, Kimberle W. (2004). A intersecionalidade na discriminação de
raça e gênero. In: VV.AA. CRUZAMENTO: RAÇA E GÊNERO. BRASÍLIA:
UNIFEM. DISPONÍVEL EM:
HTTP://WWW.ACAOEDUCATIVA.ORG.BR/FDH/WP-
CONTENT/UPLOADS/2012/09/KIMBERLE-CRENSHAW.PDF . ACESSO EM
06/06/2017
FARIA, Ivan Dutra. Compensação ambiental: os fundamentos e as normas; a
gestão e os conflitos. Texto para discussão n. 43 Consultoria Legislativa do
Senado Federal. Brasília, julho/2008. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-
estudos/textos-para-discussao/td-43-compensacao-ambiental-os-fundamentos-e-
as-normas-a-gestao-e-os-conflitos Acesso em 06/06/2017
GVCes. Grandes Obras a Amazônia: Aprendizados e Diretrizes. São Paulo:
2016.
MARTSON, Ama. Women, Business and Human Rigths: a background paper
for the UN Working Group on Discrimination Against Women in LAW AND
PRACTICE. NOVA IORQUE: MARTSON CONSULTING, 2014.
OLIVEIRA, Assis Costa. Consequências do neodesenvolvimentismo brasileiro
para as políticas públicas de crianças e adolescentes: reflexões a partir da
implantação da Usina de Belo Monte. In Revista de Políticas Públicas: a
questão do neodesenvolvimentismo e as Políticas Públicas: o debate
contemporâneo. Maranhão: Edfuma, v. 17, 2013. Semestral. Disponível em:
<file:///C:/Users/ASUS/Downloads/Textos_completos_da_RPP.pdf>. Acesso em:
02 jun. 2017.
SANTOS, Elder Cerqueira. Os homens por trás das grandes obras do Brasil In
Childhood Brasil & Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça
e Defensores Públicos da Infância e da Juventude (ABMP). (Orgs.). Violência
sexual contra a criança e adolescente: novos olhares sobre diferentes
formas de violações. São Paulo: Childhood Brasil, 2013, pp. 337-345.
Disponível em: http://www.childhood.org.br/wp-
content/uploads/2013/06/violencia-sexual_childhood_final_ISBN.pdf Acesso em
06/06/2017.

208 MEGA PROJECT AND SOCIAL ENVIRONMENTAL IMPACTS: WOMEN, CHILDREN


AND ADOLESCENTS IN VULNERABILITY SITUATION
209 Professora de Direito da Universidade da Califórnia e da Universidade de Columbia,
nos Estados Unidos e uma importante pesquisadora e ativista norte-americana nas áreas
dos direitos civis, da teoria legal afro-americana e do feminismo. (CRENSHAW, 2004, p. 7).
210 MPF. Denúncia. Processo: 0000598-60.2013.4.01.3903. Justiça Federal de Altamira.
Cf. acompanhamento processual disponível em:
<http://processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/processo.php?
proc=2971620134013903&secao=ATM&nome=Solide&mostrarBaixados=N> Acesso em 06
jun 2017.
211 “Da esperança de lucro fácil, as vítimas tornaram-se objeto do lucro alheio. Além do
aluguel do quarto em que dormiam, a cada programa pagavam comissão à Boate.
Adquiriam os produtos que necessitavam, em regra, diretamente dos denunciados, em
cantina da própria Boate, sendo obrigadas a se sujeitar a pagar, por exemplo, 5 reais por
uma lata de refrigerante”, segue a narrativa, confirmada por depoimentos das vítimas.
Processo: 0000598-60.2013.4.01.3903. Justiça Federal de Altamira.
212 Comentário Geral no. 28 do Comitê para Eliminação da Discriminação Contra a
Mulher, de 2013, que estabelece um conjunto de recomendações aos Estados a partir da
interpretação do artigo ٢º da CEDAW, e especificamente a alínea “e” que reforça como
obrigação a ser imputada pelo Estado aos agentes públicos e privados, visando à
eliminação da discriminação contra a mulher e a promoção da igualdade de gênero; no
artigo 7o, alínea “b” dos PO/ONU, há determinação de que as empresas que atuam em
regiões afetadas por conflitos devem ter assistência especial dos Estados para avaliar e
tratar os principais riscos de violação de gênero e sexual; adicionalmente na CEDAW, no
artigo 7º, parágrafo ٢º, contendo a obrigatoriedade dos Estados de adotar medidas
apropriadas para eliminação da discriminação contra a mulher na vida política e publica do
país, o que envolve a condição de assegurar a participação das mulheres na formulação de
políticas governamentais e na execução destas, o que englobaria também as políticas de
desenvolvimento; Pacto Global, de 2000, taxativamente no princípio 6º que estabelece
“[e]liminar a discriminação no emprego”, e possui validade para todas as formas de
discriminação no ambiente de trabalho, especialmente a de gênero, racial e sexual;
Princípios de Empoderamento das Mulheres, de 2010, estabelecido pela ONU, contendo 7
princípios que visam empoderar as mulheres para que participem plenamente da vida
econômica, cada um deles contendo subitens de proposições práticas de como implantá-
los na dinâmica empresarial; Convenção no. 100, de 1951, referente à igualdade de
remuneração de homens e mulheres por trabalho igual, Convenção no. 111, de 1958,
relativa à discriminação em matéria de emprego e profissão, Convenção no. 156, de 1981,
sobre a igualdade de tratamento dos trabalhadores com responsabilidades familiares, e a
Convenção no. 183, de 2000, referente à proteção do emprego e acesso aos serviços de
saúde das mulheres grávidas ou lactantes, todos estes instrumentos normativos da OIT;
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, de
1994, que disciplina, no artigo 2o, parágrafo 2o, a violência contra a mulher como incluindo
“aspectos físicos, sexuais e psicológicos que tenha ocorrido na comunidade e seja
perpetrada por qualquer pessoa” (OEA, 1994), o que envolveria, tal qual a interpretação da
proteção integral para crianças e adolescentes, a inserção das empresas como pessoas
jurídicas inseridas no conceito de comunidade, definindo, a partir disso, a
responsabilização de suas práticas; Constituição Federal de 1988, especificamente no
artigo 5o, inciso I, que estabelece a igualdade de direitos e obrigações entre homens e
mulheres, com impossibilidade de discriminação na família, no trabalho e na sociedade,
entre outros dispositivos constitucionais relacionados à igualdade de gênero; Consolidação
das Leis Trabalhistas (CLT – Decreto no. 5.452/1943), Lei Maria da Penha (Lei no.
11.340/2006) e Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, de 2011,
também apresentam aspectos que podem ser utilizados como reforço direito ou indireto às
garantias jurídicas de mulheres em situações de implantação de grandes
empreendimentos. CARDIA, 2015; IWRAW Asia Pacific, 2014; MARTSON, 2014.
213 Direitos das Crianças e Princípios Empresarias da UNICEF, de 2012, primeiro
documento internacional de formulação de obrigações às empresas para garantia dos
direitos das crianças, com especial atenção ao Princípio 1: “[t]odas as empresas devem:
assumir a sua responsabilidade de respeitar os direitos das crianças e se comprometer a
apoiar os direitos humanos das crianças” (UNICEF, 2012); Comentário Geral no. 16 do
Comitê dos Direitos da Criança da ONU, de 2013, sobre a obrigação dos Estados em
relação aos impactos das atividades empresariais nos direitos das crianças, contendo
diretrizes vinculadas aos quatro princípios gerais (direito a não discriminação; interesse
superior da criança; direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento; e, direito da
criança ser escutada) da Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, para oportunizar
ferramentas para a responsabilização das empresas para adoção da devida diligência (due
diligence) na identificação, prevenção e reparação aos direitos de crianças e adolescentes
nos negócios (ONU, 2013; ICJ, 2015); Convenção no. 138 de 1973, relativa à idade mínima
para admissão no trabalho, e Convenção no. 182 de 1999, de enfrentamento das piores
formas de trabalho infantil, ambas da Organização Internacional do Trabalho (OIT);
Protocolos Facultativos à Convenção dos Direitos da Criança referente à venda de
crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil (Decreto no. 5007/2004) e relativo ao
envolvimento de crianças em conflitos armados (Decreto no. 5006/2004), ambos de 2000;
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei no. 8.069/1990), que recepciona no
artigo 4o o mesmo preceito identificado no texto constitucional do artigo 227, devendo ser
interpretado de maneira similar para identificar a obrigação das empresas; Plano Decenal
dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, de 2011, produzido pelo Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), contendo o Objetivo
Estratégico 2.1 que estabelece a necessidade de “priorizar a proteção integral de crianças
e adolescentes nas políticas de desenvolvimento econômico sustentável, inclusive com
clausulas de proteção nos contratos comerciais nacionais e internacionais” (CONANDA,
2011); Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e
Adolescentes, de 2013, em que os itens 7 e 8 do Eixo Prevenção definem o estímulo a
responsabilidade social das empresas com vista à prevenção do abuso e/ou exploração
sexual de crianças e adolescentes, além de definir a importância de inclusão de cláusulas
e/ou condicionalidades preventivas nos contratos firmados para execução de grandes
empreendimentos.
214 Escolhido o local adequado para construção da usina e realizados os estudos técnicos,
sociais e ambientais, bem como a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), é
concedida a Licença Prévia (LP) pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (IBAMA) para realização do leilão pela Agência Nacional de Energia
Elétrica (ANEEL), sendo que a empresa que ganhar o leilão deve construir e operar a
usina, com o compromisso de colocar em prática todas as medidas propostas no EIA/Rima
e nas condicionantes da Licença Prévia (LP). (RIMA, 2009, p. 6).
215 A audiência pública consiste em uma das etapas do processo de licenciamento
ambiental e funciona como um instrumento utilizado para possibilitar o acesso às
informações colhidas durante a elaboração do RIMA. De acordo com a
RESOLUÇÃO/Conama/N.º 009, de 03 de dezembro de 1987Art. 1º - A Audiência Pública
referida na RESOLUÇÃO/Conama/N.º 001/86, tem por finalidade expor aos interessados o
conteúdo do produto em análise e do seu referido RIMA, dirimindo dúvidas e recolhendo
dos presentes as críticas e sugestões a respeito
216 Diagnóstico obtido durante a realização da pesquisa exploratória realizada em 2015
para elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso “Direito de consulta prévia: limites e
possibilidades” de autoria da aluna Nathalia Lima como requisito para obtenção do grau de
bacharel em Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie
217 “As medidas compensatórias, portanto, são aquelas destinadas a compensar impactos
negativos, tomadas voluntariamente pelos responsáveis por esses impactos, ou exigidas
pelo órgão ambiental competente. (...) Distinguem-se das denominadas ‘medidas
mitigadoras’, destinadas a prevenir impactos adversos ou a reduzir aqueles que não podem
ser evitados.” (FARIA, 2008, p. 70).
218 Licença Prévia nº 342 de 2010 e Licença de Instalação nº 795 de 2011.
XIII
AS DEFICIÊNCIAS DA RESPONSABILIDADE
CIVIL COMO FATOR DE AGRAVAMENTO DA
VULNERABILIDADE AMBIENTAL219

Germana Parente Neiva Belchior


Doutora em Direito Ambiental pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará
(UFC). Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em
Direito do Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7). Coordenadora do Grupo de
Pesquisa Ecomplex: Direito, Complexidade e Meio Ambiente, da UNI7. E-mail:
germana_belchior@yahoo.com.br

Diego de Alencar Salazar Primo


Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Integrante do
Grupo de Pesquisa Ecomplex: Direito, Complexidade e Meio Ambiente, da UNI7.
Advogado. E-mail: dasp55@gmail.com.

Resumo: A vulnerabilidade ambiental torna as comunidades humanas mais suscetíveis


aos danos ambientais e, consequentemente, agrava o potencial de violação a direitos
básicos, como a vida, a saúde e a propriedade. Para mitigar esse quadro, o Direito tem
adotado mecanismos de combate às causas dessa vulnerabilidade, mas o papel da
responsabilidade civil nessa mitigação ainda é pouco debatido. O objetivo principal deste
artigo é investigar como e em que medida as deficiências da responsabilidade civil por
dano ambiental contribuem para o agravamento da vulnerabilidade ambiental, à luz do
paradigma da complexidade. Para tanto, realiza-se pesquisa documental e bibliográfica de
natureza teórica, descritiva e explicativa, com abordagem qualitativa e amostragem não-
probabilística, empregando-se predominantemente os métodos dedutivo e sistêmico.
Verifica-se que as deficiências da responsabilidade civil ambiental, por comprometerem a
sua efetividade, impedem que ela exerça sua função preventiva e que produza o chamado
efeito dissuasório de forma adequada, o que permite uma maior proliferação de riscos
ambientais e, consequentemente, o agravamento da vulnerabilidade ambiental. A
identificação e o enfrentamento das falhas da responsabilidade civil por danos ao meio
ambiente, portanto, mais do que uma exigência de equidade, ligada ao dever de reparação
de prejuízos, constitui também um passo importante na redução da vulnerabilidade
ambiental, mediante controle social e prevenção de atividades potencialmente poluidoras.
Palavras-chave: Efeito dissuasório. Função preventiva. Responsabilidade civil ambiental.
Riscos ambientais. Vulnerabilidade ambiental.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O recrudescimento dos riscos ambientais na
contemporaneidade e o aumento na vulnerabilidade de
diversos grupos sociais aos danos decorrentes desses
riscos têm ocasionado eventos ambientais catastróficos, que
violam direitos humanos básicos, como a saúde, a
propriedade, a moradia e o trabalho, além, é claro, do direito
a um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.
A vulnerabilidade ambiental representa um fenômeno
complexo por excelência, na medida em que constitui o
efeito de uma pluralidade de causas inter e transdisciplinares
que não seguem um processo de atuação linear e tampouco
podem ser isoladas ou decompostas de maneira
absolutamente objetiva, o que desafia o reducionismo típico
da racionalidade moderna, cartesiana.
Embora muito se tenha falado sobre medidas preventivas
e precaucionais como elemento de combate à
vulnerabilidade ambiental, não se tem dado suficiente
destaque à importância do efeito dissuasório da
responsabilidade civil por danos ambientais para a redução
dos índices desses prejuízos e o incremento da resiliência
das sociedades humanas, o que justifica a necessidade
desta pesquisa.
A efetiva produção desse efeito dissuasório, relacionado à
função preventiva da responsabilidade civil, exige, porém,
que esse instrumento jurídico reparatório funcione a
contento, o que pressupõe, dentre outras coisas, que sejam
reconhecidas suas principais deficiências e, mais do que
isso, que sejam envidados esforços para, na medida do
possível, transpô-las. Diante disso, o trabalho tem como fio
condutor a seguinte pergunta de partida: como e em que
medida as deficiências da responsabilidade civil por dano
ambiental contribuem para o agravamento da
vulnerabilidade ambiental, à luz do pensamento complexo?
Desenvolver-se-á, para tanto, pesquisa de natureza
teórica, descritiva e explicativa, com abordagem qualitativa,
orientada pelo paradigma epistemológico da complexidade,
abordado de forma transversal. Quanto às fontes, a
pesquisa será documental e bibliográfica e trabalhará com
amostragem não-probabilística, do tipo intencional puro,
definida com base em critérios de homogeneidade e de
pertinência em relação ao objetivo geral. Em relação aos
métodos, serão predominantemente empregados o dedutivo
e o sistêmico.
Uma tentativa de resposta adequada à questão central
deste artigo exige o cumprimento de determinadas etapas
prévias, que constituem verdadeiros objetivos específicos a
serem perseguidos em cada um dos tópicos do trabalho, a
fim de que se chegue a uma conclusão coerente.
Não há como tratar da relação entre as deficiências da
responsabilidade civil e o agravamento da vulnerabilidade
ambiental sem, antes, identificar, de forma tão precisa
quanto possível, quais são essas deficiências, ou as
principais delas, sendo esse o objetivo do primeiro tópico do
trabalho.
Em um segundo momento, serão abordadas as funções
reparatória e preventiva da responsabilidade civil,
relacionando-as ao funcionamento regular desse instituto
jurídico reparatório. Em seguida, no terceiro tópico, analisar-
se-á, sob a óptica do pensamento complexo, o conteúdo
jurídico da expressão “vulnerabilidade ambiental”,
demonstrando-se em que medida a responsabilidade civil
pode contribuir para a sua redução.
Por fim, à guisa de conclusão, buscar-se-á estabelecer
uma correlação entre as deficiências da responsabilidade
civil identificadas na pesquisa com o agravamento da
vulnerabilidade ambiental, tal como concebida no terceiro
tópico, de modo a atender ao objetivo geral do trabalho.
2. PRINCIPAIS DEFICIÊNCIAS DA RESPONSABILIDADE
CIVIL POR DANO AMBIENTAL
Nem sempre as medidas tradicionais de prevenção e
precaução, como o controle da poluição e o licenciamento
ambiental, são suficientes para a proteção integral do meio
ambiente e dos bens jurídicos passíveis de serem
reflexamente atingidos. Há casos em que as lesões
ambientais concretizam-se e excedem os limites de
tolerabilidade, impondo-se que o equilíbrio ecossistêmico
seja reestabelecido.
A principal ferramenta jurídica empregada pelos Estados
para reparar os prejuízos decorrentes das lesões ambientais
é a responsabilidade civil, instrumento típico dos danos ditos
“tradicionais”, ligados ao Direito Privado, o qual, após um
período de surpreendente resistência (BENJAMIN, 1998, p.
78), foi importado para o campo dos danos ambientais dado
o advento da crise ambiental e o reconhecimento da
inidoneidade do Direito Público para dar conta, por si só, da
proteção do meio ambiente (BENJAMIN, 1998, p. 80).
Embora constantes adaptações venham sendo feitas
nesse instituto, de modo a adequá-lo às peculiaridades dos
danos ambientais contemporâneos, de estrutura causal
complexa, cumulativa e sinérgica e de efeitos muitas vezes
transfronteiriços, transtemporais e potencialmente
catastróficos, elas não têm sido suficientes para assegurar
um grau de efetividade satisfatório, de modo que a efetiva
contribuição da responsabilidade civil para a tutela do meio
ambiente encontra-se aquém do seu potencial.
De fato, apesar dos esforços doutrinários, legislativos e
jurisprudenciais, a responsabilidade civil ainda padece de
deficiências que a tornam um mecanismo reparatório
incompleto e, portanto, incapaz de exercer plenamente as
suas funções – inclusive a preventiva, relacionada ao efeito
dissuasório, de que se tratará no próximo tópico.
Uma síntese da literatura especializada permite afirmar
que as principais deficiências inerentes à responsabilidade
civil por dano ambiental ou por ela enfrentadas são as
seguintes: dificuldade de comprovação do nexo causal entre
conduta e dano, o que torna muitas vezes impossível a
identificação do poluidor; o problema dos danos cumulativos
e dos danos latentes ou transtemporais, ante óbices legais
como a prescrição; os casos de insolvência do responsável;
a demora e o custo dos processos judiciais por meio dos
quais a responsabilidade civil é imposta; a dificuldade de
aplicação aos casos de danos ambientais internacionais ou
transfronteiriços e, ainda, a questão da valoração econômica
dos prejuízos ambientais.
Há casos em que, dada a complexidade dos processos de
formação e dos efeitos dos danos ambientais, não é possível
estabelecer com segurança um nexo de causalidade entre
esses prejuízos e os agentes que os provocaram, pelo
menos não sob a óptica clássica, voltada aos danos
comuns, de causalidade linear.
A isso se tem chamado de “o problema do nexo causal”
em matéria de dano ambiental, que é, segundo Steigleder
(2011, p. 71), o “pressuposto mais importante da
responsabilidade civil por dano ambiental”; nos dizeres de
Catalá (1996, p. 247), o seu “problema primordial”, ou, ainda,
nas palavras de Benjamin (1998, p. 126), o seu “calcanhar
de Aquiles”.
Passando pela inversão do ônus da prova (agora admitida
de forma genérica, no ordenamento jurídico brasileiro, pela
Lei nº 13.105/2015, que instituiu o Novo Código de Processo
Civil), pela adoção da chamada “teoria do risco integral”,
pela utilização de presunções jurídicas (SAMPAIO, 2003, p.
209), pelas teorias da responsabilidade coletiva, da pollution
share liability (OLIVEIRA, 2007, p. 31), da condição perigosa
(BAHIA, 2015, p. 628), das probabilidades (LEITE; AYALA,
2015, p. 195) e do escopo da norma jurídica violada
(LEMOS, 2010, p. 155), tem-se buscado abrandar a
exigência da prova do nexo causal, de modo a impedir que o
dano ambiental lesado remanesça sem qualquer reparação.
Não obstante, seja pela ausência de alterações
legislativas concretas, seja pela novidade e singularidade do
tema, seja, ainda, por um apego dos tribunais à tradição
mais formalista, ligada aos cânones clássicos do Direito
Civil, o fato é que a exigência de se provar o nexo causal
para fins de imputação do dever de reparar os danos
causados ao meio ambiente ainda constitui uma dificuldade
à plena efetivação da responsabilidade civil como
instrumento reparador.
Por outro lado, uma das peculiaridades dos danos
ambientais é a possibilidade de que seus efeitos se projetem
no futuro (LEITE; AYALA, 2015, p. 215), protraindo-se no
tempo. Os chamados danos ambientais cumulativos e os
danos latentes ou transtemporais desafiam a
responsabilidade civil, na medida em que o passar do tempo
agrava a dificuldade na identificação do poluidor.
Segundo Prieur, esses danos “tardios” tornam mais difícil
o estabelecimento do nexo de causalidade (2004, p. 926).
Além disso, os prejuízos deles decorrentes são mais
suscetíveis ao desamparo jurídico, considerando que a
praxe dos ordenamentos jurídicos é o estabelecimento de
prazos prescricionais, como forma de promover segurança
jurídica. Esses prazos podem ter escoado muito tempo antes
que os efeitos do dano ambiental se manifestem e que ele
seja descoberto.
Note-se que, ao contrário do que ocorre no Brasil, onde o
Superior Tribunal de Justiça, com amparo na doutrina de
Mazzilli (2007, p. 540-541), já pacificou o entendimento de
que é imprescritível a ação reparatória de caráter coletivo
em matéria ambiental (BRASIL, 2009), a tese da
imprescritibilidade em matéria de dano ambiental não é
acatada em todos os países.
Um outro fator que compromete a efetividade da
responsabilidade civil é a insolvência do poluidor. Ainda que
este seja identificado, processado e condenado, de nada
adiantará o “penoso caminho judicial” (PERALES, 1997, p.
253) – que, por si só, costuma ser demorado e custoso
(PERALES, 1997, p. 279-280) – se, afinal, o causador do
dano ambiental não tiver meios econômicos para repará-lo.
Nesses casos, à míngua de um improvável seguro de
responsabilidade civil ambiental, é de se admitir que a
responsabilização será, simplesmente, inútil para reparar os
prejuízos causados.
Há, ainda, a questão dos danos ambientais
transfronteiriços, em especial os danos internacionais. Assim
como os riscos ambientais abstratos que lhes dão origem, os
danos ambientais contemporâneos não conhecem fronteiras
físicas. Seus efeitos são, muitas vezes, globais,
manifestando-se de forma difusa, como sói ocorrer, por
exemplo, com os prejuízos decorrentes do aquecimento
global.
Nesses casos, mesmo que identificável a fonte poluidora,
a sua localização territorial pode acarretar um acréscimo na
dificuldade para responsabilizá-la civilmente e compeli-la a
reparar o dano, tendo em vista a diversidade de ordens
jurídicas e a vigência do postulado básico da soberania, que
rege o Direito Internacional Público.
Some-se a isso o fato de que a responsabilidade civil é
incapaz de oferecer uma resposta segura à questão da
fixação do quantum debeatur. A estipulação precisa do
montante pecuniário necessário para fazer frente aos
prejuízos ambientais (quando não for possível a restauração
in situ ou a compensação ecológica, mediante substituição
por equivalente) é tarefa intrincada, em virtude da falta de
parâmetros legais para a avaliação do bem ambiental e da
complexidade do desenvolvimento de metodologias capazes
de fixar valores de troca, mesmo porque a salubridade do
meio ambiente como macrobem não tem preço (LEITE;
POLLI; MELO, 2015, p. 583).
No entender de Sendim (2002, p. 52-53 apud SILVA,
2012, p. 218-219), os métodos existentes não permitem uma
avaliação rigorosa do dano ambiental, pois levam em conta
uma diversidade de fatores que envolvem opções pessoais,
presentes e futuras, pesquisadas geralmente em mercados
hipotéticos, estando, por esse motivo, sujeitos a uma
infinidade de distorções, além de apegarem-se
demasiadamente à capacidade de uso humano dos
recursos, amesquinhando a importante capacidade funcional
ecológica dos bens ambientais.
Todos esses fatores obstaculizam o exercício regular das
funções da responsabilidade civil ambiental, bem como a
plena produção dos efeitos que lhes são próprios,
notadamente, no que interessa a este trabalho, o efeito
dissuasório, relacionado à função preventiva, de que ora se
passa a tratar.

3. A FUNÇÃO PREVENTIVA DA RESPONSABILIDADE


CIVIL AMBIENTAL E A DESEJÁVEL PRODUÇÃO DE
EFEITO DISSUASÓRIO (DETERRENCE)
Segundo Dias (2011, p. 14), a finalidade-mor da
responsabilidade civil é restabelecer o equilíbrio econômico-
jurídico alterado pelo dano. No mesmo sentido, Gonçalves
entende que se trata de uma “regra elementar de equilíbrio
social” (2012, p. 53).
A reparação do dano, com o retorno do prejudicado ao
status quo ante, é a função por excelência da
responsabilidade civil (CAVALIERI FILHO, 2012, p. 14), ou,
no entender de Farias, Rosenvald e Braga Netto, a sua
função “clássica e ainda dominante” (2016, p. 62).
Fala-se, assim, em função reparatória (ou ressarcitória,
ou, ainda, indenizatória) da responsabilidade civil: o objetivo
aqui é apagar o prejuízo econômico causado, minorar o
sofrimento infligido ou compensar a ofensa a outrem
(NORONHA, 2010, p. 460).
Não obstante, reconhece-se que a responsabilidade civil
não se resume à ideia de reparação. Além da função
ressarcitória, reconhecida de forma quase unânime pelos
autores clássicos, ela compreende também uma função
sancionatória e outra preventiva, as quais, em consonância
com as premissas do pensamento complexo, não podem ser
apreendidas de forma isolada.
A compreensão dessas funções requer visão sistêmica,
que abranja, simultaneamente, as partes e o todo, o uno e o
múltiplo, pois elas são, por natureza, imbrincadas, atuam de
forma interdependente, fugindo, assim, à compartimentação
tipicamente operada pela racionalidade cartesiana (MORIN,
2015, p. 59).
Como ensinam Farias, Rosenvald e Braga Netto, a
responsabilidade civil, na contemporaneidade, é
multifuncional: inexiste um isolamento entre as suas três
funções, as quais, embora conservem sua autonomia
dogmática e suas aptidões específicas, possuem diversas
intersecções, que conduzem à sua irremediável conjugação
(2016, p. 62).
Assim, ao exercer a função reparatória, impondo ao
agente o dever de ressarcir os prejuízos causados, a
responsabilidade civil traz em si sanções, que podem ser
repressivas, quando visam infligir castigo ao causador do
dano, ou restitutivas, quando se destinam a restituir a
situação alterada pelo dano (DIAS, 2011, p. 97).
Para Diniz (2012, p. 24), o aspecto sancionatório da
responsabilidade civil é um corolário da máxima da restitutio
in integrum: a fim de reparar integralmente os prejuízos
causados, aplica-se ao agente uma sanção, entendida como
a consequência jurídica acarretada pelo descumprimento de
uma obrigação pré-estabelecida. Sob essa ótica, a
responsabilização é uma verdadeira sanção civil prevista e
aplicada pelo ordenamento jurídico.
De fato, enquanto ordem social coativa, o Direito tem o
condão de aplicar sanções a indivíduos que pratiquem atos
ilícitos (KELSEN, 2009, p. 37), a exemplo das práticas de
degradação que acarretam danos ambientais. E é
precisamente do caráter sancionatório da responsabilidade
civil que deriva a noção de prevenção, como verdadeira
“exigência econômico-política” (DIAS, 2011, p. 99).
O crescente protagonismo da função preventiva da
responsabilidade civil deve-se à percepção de que, do ponto
de vista das vítimas, melhor do que reparar o dano já
consumado é evitar que ele ocorra. Daí porque, hoje, chega-
se mesmo a considerar a prevenção não apenas como uma
função, mas como o próprio “cerne da responsabilidade civil
contemporânea”, um verdadeiro princípio regente da
responsabilidade civil, que reside em todos os seus confins e
orienta todas as suas funções (ROSENVALD, 2014, p. 16).
Na esteira da crescente humanização do Direito a partir
do segundo pós-guerra, fruto da sua reconciliação com a
Moral, a preocupação contemporânea da responsabilidade
civil, como ensina Hironaka (2000, p. 2), deve centrar-se no
indivíduo, a fim de que ele sequer venha a sofrer o dano, o
que impõe que ela assuma, em paralelo ao espaço
tradicionalmente ocupado pela função reparatória, um
caráter de prevenção.
No âmbito do Direito Ambiental, o reconhecimento da
existência e da relevância da função preventiva na
responsabilidade civil é ainda mais acentuado, já que a
responsabilidade civil ambiental

[…] não se fundamenta na proteção de interesses particulares no


estreito espaço da autonomia privada, concebida como uma área de
proteção a um indivíduo isolado, mas tem em vista a exigência de uma
fundamentação intersubjetiva das normas de proteção, recuperação e
melhoria do ambiente. (BARACHO JÚNIOR, 2000, p. 295)

Se os danos tradicionais, de natureza individual, devem


ser prevenidos, dentre outras maneiras, por intermédio da
responsabilização civil, por muito maior razão os danos a
direitos difusos, como o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, também o devem, já que,
nesses casos, os prejuízos terão espectro mais amplo e
serão potencialmente mais graves, dada a ligação do bem
ambiental com direitos de primeiro escalão, como a vida e a
saúde (BELCHIOR, PRIMO, 2016).
Ademais, a função preventiva da responsabilidade civil
ambiental é uma decorrência dos próprios princípios
jurídicos que informam o Direito Ambiental, notadamente os
princípios da prevenção, da precaução e, ainda, do poluidor-
pagador (DESTEFENNI, 2005, p. 141-142).
Especificamente quanto a esse último princípio, é preciso
ter em conta que ele não exerce função exclusivamente
repressiva, servindo, antes, como verdadeiro instrumento de
política pública, que aconselha o agente potencialmente
poluidor a uma racionalização no uso dos subsídios naturais,
com vistas à proteção do meio ambiente (BELCHIOR, 2011,
p. 214). Como de há muito assinala Benjamin, o princípio do
poluidor-pagador tem vocação eminentemente preventiva
(1993, p. 236).
Outrossim, dada a esgotabilidade dos recursos
ambientais e a frequente irreversibilidade das lesões ao
meio ambiente, o princípio da solidariedade intergeracional,
que, dado seu aspecto diacrônico, impõe o dever de defesa
a preservação do bem ambiental também para as futuras
gerações (MILARÉ, 2013, p. 259-260), também recomenda
que a prevenção seja a regra em matéria de
responsabilidade civil por dano ambiental, mesmo porque,
como ressalta Belchior, a relação jurídico-ambiental é
continuativa, projetando-se no tempo (2017, p. 226), muitas
vezes para além da existência do agente poluidor.
Afora tudo isso, a máxima “é melhor prevenir do que
remediar” tem especial aplicabilidade no campo do Direito
Ambiental, segundo Aragão (2015, p. 73), por três motivos
principais, de ordem prática: a) depois de ocorrido o dano, é
impossível remover a poluição e reconstituir naturalmente a
situação anterior; b) mesmo quando possível a
reconstituição in natura, ela é, com frequência, tão onerosa
que seria pouco razoável exigi-la do poluidor; c) do ponto de
vista econômico, prevenir é muito mais vantajoso do que
reparar.
Assim, tal como na responsabilidade civil tradicional, a
responsabilidade civil que se estabelece em razão de danos
ambientais também é dotada de uma função preventiva, a
qual se assenta sobre bases semelhantes: os agentes serão
inibidos de praticar a conduta danosa ao meio ambiente em
razão, sobretudo, da punição civil econômica que lhes será
imposta (LEITE; AYALA, 2015, p. 132; SENDIM, 1998, p. 49
apud LEITE, 2015, p. 224). Como bem pontua Rodrigues
(2005, p. 244), “trata-se de reparar prevenindo”.
Carvalho (2013, p. 100), chega mesmo a defender, com
base na função preventiva da responsabilidade civil, sob a
forma de uma chamada “preventividade direta”, a
possibilidade de responsabilização por dano ambiental
futuro, mediante imposição de obrigações de fazer e de não-
fazer, quando excedidos limites de tolerabilidade dos riscos
ambientais.
Essa opinião é endossada por Pinho, para quem a
responsabilidade civil ambiental, justamente porque
informada pelos princípios jurídicos da prevenção e da
precaução, adquire “funções preventivas novas, que vão
além da função dissuasória, para incorporar a prevenção
direta, que atua no enfrentamento do risco ambiental ilícito”
(2010, p. 249).
A responsabilidade civil ambiental, portanto, “supera a
função preventiva tradicional, visando a imprimir um padrão
de desenvolvimento sustentável às atividades econômicas,
com o adequado gerenciamento de riscos considerados
toleráveis” (STEIGLEDER, 2011, p. 168).
De qualquer forma, o importante, para os fins deste artigo,
é perceber que o efeito dissuasório da responsabilidade civil
ambiental, intrinsecamente relacionado à sua função
sancionatória, dialoga com a psicologia normativa e com os
estudos jurídico-sociológicos no campo do controle social
(PARKINSON, 2005, p. 19), baseando-se na premissa de
que a conduta dos indivíduos tende a variar em função de
estímulos ou reforços externos, positivos ou negativos.
Se o indivíduo tem ciência de que será sancionado e
forçado a reparar os danos que vier a causar a terceiros –
reforço negativo –, a tendência é que ele procure agir de
forma a evitar que de sua conduta decorram danos, os quais
ensejariam sua responsabilização.
De fato, a prévia experiência com situações análogas é
fator que influencia as reações pessoais e a prática de atos
pelos seres humanos. Se, no passado, o ato foi objeto de
reprimenda, a chance de que o sujeito o repita é menor
(MIRA Y LOPEZ, 2015, p. 43).
Ao agir de forma mais cautelosa e precavida, o agente
minimiza a chance de que sua conduta venha a causar
prejuízos, o que, evidentemente, contribui para a redução
dos danos sofridos pela coletividade, com ganhos para a
pacificação social, para a segurança jurídica e, no caso da
responsabilidade civil ambiental, para o equilíbrio ecológico
do meio ambiente.
Precisamente em razão disso é que se diz que a função
preventiva da responsabilidade civil está atrelada à produção
do chamado efeito dissuasório, que consiste na aptidão de
fazer com que os agentes potencialmente infratores mudem
de ideia e/ou de postura e sejam convencidos a agir de
conformidade com o Direito.
Em países de Common Law, o efeito dissuasório (ou
deterrence) é frequentemente identificado como uma das
principais funções da Tort law (MADDEN, 2005, p. 12;
CANE, 1997, p. 206-207; HARPWOOD, 2009, p. 13), que
corresponde, guardadas algumas peculiaridades, ao que os
países de tradição franco-germânica entendem por
responsabilidade civil: o ramo do direito que define as
condutas ilícitas e as circunstâncias e formas sob as quais
as vítimas de danos podem obter reparação (GOLDBERG;
SEBOK; ZIPURSKY, 2012, p. 3).
Segundo Noronha (2010, p. 463), esse efeito dissuasório
da responsabilidade civil desempenha uma dúplice função
preventiva, geral e especial, na medida em que, ao obrigar o
agente a reparar os prejuízos que tenha causado, está-se
coibindo a prática de outros atos danosos não apenas pelo
mesmo infrator, mas por todos os outros indivíduos que dela
tomem conhecimento, para os quais, então, a sanção civil
servirá de exemplo.
De fato, o efeito dissuasório da responsabilidade civil
ambiental faz com que “tanto o efetivamente responsável
pela geração de riscos, quanto aquele que poderia vir a
gerá-los evitem a perpetração de situações desfavoráveis ao
meio ambiente” (LEITE; MELO, 2009, p. 74).
Trata-se de uma manifestação do chamado controle social
institucionalizado, por meio do qual os aparelhos de poder
estatal influenciam “o comportamento das pessoas
orientando-as aos padrões preestabelecidos através de
normas jurídicas” (SABADELL, 2002, p. 132).
De fato, os remédios legais são moldados a fim de que: a)
tenham força coercitiva suficiente para tornarem altamente
improvável a violação dos direitos a eles subjacentes; b)
forneçam algum grau de compensação às vítimas nas
hipóteses em que seus direitos, forem, não obstante,
violados, com vistas a restabelecer a situação quo ante e/ou
fazer com que o violador se arrependa da transgressão
praticada (REIFF, 2005, p. 42).
Traçando-se um paralelo com o que Brown, Esbensen e
Geis (2013, p. 153-154) ensinam sobre a produção de
“deterrence” quanto a delitos criminais, pode-se afirmar que,
também no que toca à responsabilidade civil, o ponto central
da ideia de dissuasão reside na premissa de que o sujeito
considera as perspectivas de sanções punitivas antes de
tomar a decisão de cometer o ato ilícito.
O agente avalia os prós e os contras (custo-benefício) da
conduta antijurídica – no caso sob análise, a atividade
potencial ou efetivamente causadora de danos ao meio
ambiente – sopesando-os segundo critérios de
proporcionalidade, visto que “a proporcionalidade, assim,
como a razoabilidade, é princípio inerente não apenas ao
direito, mas à conduta de uma maneira geral, frente à vida.
Toda pessoa racional e de bom senso o concretiza a cada
passo, a cada escolha realizada” (MACHADO SEGUNDO,
2017, p. 24).
Daí porque o requisito fundamental para que as
desvantagens acarretadas pela responsabilização civil
pareçam, aos olhos do potencial poluidor, maiores do que as
vantagens proporcionadas pela violação às normas
ambientais é a introjeção da crença de que ele, muito
provavelmente, será efetivamente responsabilizado e
compelido a arcar com o ônus reparatório acaso pratique a
conduta.
No mesmo sentido, Diniz (2000, p. 32 apud BETIOL,
2010, p. 121) entende que “para que venha prevalecer (sic)
esta função preventiva, mister se faz um sistema de
responsabilização civil que traga a certeza e efetividade de
que a sanção civil será imposta ao agente causador”.
Se o agente não acredita que sofrerá uma reprimenda em
virtude de sua atuação antijurídica, não haverá, pelo menos
da parte da responsabilidade civil, estímulo externo
suficientemente forte para que ele deixe de praticar as
condutas que entende vantajosas, mas que são ilegais e/ou
potencialmente deletérias.
Somente essa crença na aplicação da sanção jurídica é
que permite que a responsabilidade civil ambiental
desempenhe a contento sua função preventiva, incutindo
nos agentes o receio do ônus reparatório, que atua como
mote para a adequação do seu comportamento à legislação
e reduz, assim, a produção de riscos ambientais.
A mera previsão legal, em abstrato, da responsabilização
civil e de mecanismos processuais que viabilizam sua
imposição (ação reparatória, ação civil pública etc.) não
basta. Para que se incuta nos agentes um temor
sancionatório suficiente, capaz de fazer com que o índice de
riscos e danos diminua tanto quanto possível, é preciso que
a responsabilidade civil seja implementada com efetividade:
a imposição do dever reparatório deve ser certa, ágil e
eficiente, a fim de que a conduta ilícita venha a tornar-se
realmente desvantajosa ao potencial poluidor.
É verdade que, como assinala Cooke (2011, p. 13), a
produção do efeito dissuasório da responsabilidade civil
pode ser enfraquecida se o ônus da sanção civil for arcado
por terceiros, como companhias seguradoras, bem como se
o dano for tipicamente inevitável, fruto, por exemplo, de
acidentes que excedam as possibilidades de cuidado do
agente.
Ocorre que, em se tratando de danos ambientais, tem
sido extremamente comum a adoção, pelos ordenamentos
jurídicos, da teoria objetiva da responsabilidade civil
(REZENDE; GUIMARÃES, 2015), de modo que o agente
sabe de antemão que, ainda que não tenha agido com
culpa, será responsabilizado pelos danos ambientais
relacionados à sua atividade, o que o impele a se esforçar
ao máximo para evitar a consumação de danos, mesmo
quando possam derivar de fatores alheios à sua vontade.
Por outro lado, embora isso possa ser uma realidade em
muitos países desenvolvidos, a cobertura de riscos
ambientais pelas apólices de seguro não é a regra em todo o
globo. No mercado brasileiro, por exemplo, embora
crescente, a quantidade de sociedades empresárias que
contratam seguros ambientais específicos ainda não é
expressiva (POLIDO, 2015, p. 41).
Parece claro, assim, que a responsabilidade civil
ambiental continua tendo aptidão para produzir relevante
efeito dissuasório de riscos ambientais. Por outro lado, as
deficiências identificadas no tópico antecedente, por
inviabilizarem, muitas vezes, que o poluidor seja forçado a
reparar o dano (frustrando o exercício da função
ressarcitória), impedem, da mesma forma, que o efeito
dissuasório, típico da função preventiva, seja
satisfatoriamente produzido, o que acarreta um
recrudescimento dos riscos ambientais.
Essa ausência de adequado cumprimento das funções
reparatória e preventiva da responsabilidade civil, ao
aumentar o índice de riscos ambientais, acaba por agravar a
vulnerabilidade das comunidades humanas sujeitas aos
danos deles recorrentes, em um círculo vicioso que precisa
ser interrompido.

4. VULNERABILIDADE AMBIENTAL, COMPLEXIDADE E


RISCO: RELAÇÃO COM A RESPONSABILIDADE CIVIL
De acordo com o United Nations International Strategy for
Disaster Reduction (UNISDR), órgão vinculado à
Organização das Nações Unidas (ONU), criado em 1999,
com a finalidade de servir de ponto focal do sistema ONU
para a coordenação da redução de desastres, a expressão
“vulnerabilidade” pode ser entendida como o conjunto de
características e circunstâncias de uma comunidade,
sistema ou bem que os tornam suscetíveis aos efeitos
danosos de um risco (UNISDR, 2009).
Especificamente quanto à vulnerabilidade humana, é
digna de nota a definição proposta pelo United Nations
Development Programme (UNDP), segundo o qual o termo
pode ser entendido como “a condição ou processo humano
resultante de fatores físicos, sociais, econômicos e
ambientais, os quais determinam a probabilidade e a escala
de danos causados pelo impacto de determinado risco”
(2004, p. 136).
No campo do Direito, Favier e Bertoncello ressaltam que a
noção de vulnerabilidade exsurge tanto quando há
necessidade de se compensar desigualdades consideradas
naturais, decorrentes de um fato considerado objetivo (idade
ou estado de saúde), tanto quando essas desigualdades
resultam de uma situação voluntária instituída entre pessoas
privadas (2013, p. 15).
Nesse horizonte, o emprego do termo “vulnerabilidade” no
ordenamento jurídico brasileiro parece ter origens no Direito
do Consumidor. De fato, há quase 30 anos, o art. 4º, I, da
Lei nº 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor – já
elencava o “reconhecimento da vulnerabilidade do
consumidor no mercado de consumo” como um princípio a
ser atendido pela Política Nacional das Relações de
Consumo.
Com amparo em semelhantes razões de justiça, outros
ramos do Direito viram-se forçados a incorporar em seus
discursos a noção de vulnerabilidade, como instrumento
facilitador do combate às desigualdades e da promoção de
justiça.
No Direito Ambiental, essa tendência coincide com o
recrudescimento da crise ambiental e com a difusão da
teoria ecológica da justiça ambiental, na década de 1980, a
qual condena uma repartição não equânime dos riscos
ambientais, que tendem a recair com maior gravidade
precisamente sobre as populações menos dotadas de
recursos financeiros, políticos e informacionais (ACSELRAD;
MELLO; BEZERRA, 2009, p. 9).
Não à toa, a noção de vulnerabilidade ocupa, atualmente,
papel central no chamado Direito dos Desastres, seara em
que os danos decorrentes da concretização dos ricos
ambientais alcançam magnitude mais elevada, acarretando
violações mais graves a direitos básicos, como o direito à
vida, à saúde, à moradia e à propriedade.
A noção de vulnerabilidade é, tanto em sua formação
quanto em sua aplicação, complexa. Seus elementos
carregam conceitos com alta densidade de conteúdo
(suscetibilidade, dano, risco, sistema etc.), sua configuração
decorre da ocorrência simultânea de uma multiplicidade de
fatores, e sua aplicação varia conforme a ótica sob a qual
seja analisada: a vulnerabilidade é concebida e estudada de
formas diferentes, embora não estanques, pela Sociologia,
pela Análise de Sistemas, pela Engenharia Digital, pelo
Direito etc.
Como bem ressalta Santos (2007, p. 12), tratando
especificamente da vulnerabilidade ambiental,

[...] a vulnerabilidade do sistema e os desastres ambientais nunca


dependem de um único fator ou variável, mas de um conjunto deles, que
determinam as condições do meio. Desta maneira, eles conduzem à
conclusão que, para tomar decisões em um território, mesmo que sob a
perspectiva de um único fenômeno, é necessário compreender a
intrincada rede de componentes, variáveis e funções que determinam o
fenômeno e compõem a paisagem. Essa é uma tarefa complexa, pois
exige uma leitura criteriosa baseada em conhecimentos
multidisciplinares. Além disso, exige uma compreensão simultânea de
aspectos naturais e humanos historicamente polarizados.

Essa compreensão da vulnerabilidade como produto de


uma “rede intrincada” rompe com as noções de causalidade
linear, de decomposição e isolamento da realidade e de
separação do objeto em relação ao seu ambiente, típicas do
paradigma da simplificação (MORIN, 2014, p. 330-331), e
admite que a vulnerabilidade ambiental obedece a um
princípio de causalidade complexa, o que representa um
primeiro passo na tentativa de adequado entendimento do
fenômeno.
É crucial que o estudo da vulnerabilidade ambiental
reconheça – e não rechace – as interretroações, os atrasos,
as interferências, as sinergias, os desvios, as reorientações
(MORIN, 2014, p. 332), em suma, a incerteza na sua
formação e no modo como ela se relaciona com o Direito.
Ao estudar a vulnerabilidade ambiental, o sujeito
cognoscente deve ter ciência de que as tentativas de
clarificação e remediação do fenômeno serão sempre
parciais, incompletas. Especialmente no campo da redução
de vulnerabilidades ambientais, as contribuições da
pesquisa científica operam de forma inevitavelmente
limitada, mas nem por isso devem ser abandonadas ou
desprestigiadas.
O combate às vulnerabilidades ambientais é uma
necessidade: por serem atreladas a uma maior exposição ou
suscetibilidade a danos, representando circunstâncias
negativas e indesejadas, é intuitivo que as comunidades
humanas adotem estratégias para identificar e remediar as
vulnerabilidades. Essas técnicas integram um conceito
maior, denominado “gestão de vulnerabilidades”, que pode
ser definido como “a prática cíclica de identificar, classificar,
remediar e mitigar vulnerabilidades” (FOREMAN, 2010, p. 1).
De acordo com Foreman (2010, p. 1), a gestão de
vulnerabilidades lida com riscos resultantes de falhas em
sistemas, processos e estratégias, e procura, dentre outras
coisas, mitigar ou reduzir esses riscos, evitando que se
concretizem ou reduzindo os impactos negativos de sua
concretização.
Alwang, Siegel e Jorgensen (2001, p. 2) entendem que
vulnerabilidade começa com a noção de risco: no caso da
vulnerabilidade ambiental, o foco reside na gestão dos riscos
ambientais. No mesmo sentido, no campo do Direito dos
Desastres, Carvalho e Damacena (2013, p. 57) defendem
que a vulnerabilidade é um conceito intimamente ligado à
noção de risco. Para Hagihara e Asahi, a vulnerabilidade,
em matéria de desastres, refere-se à relação entre pobreza,
risco e esforços de gestão de riscos (2016, p. 9).
Na literatura sobre gestão de desastres, existe mesmo
quem aponte que são dois os elementos cruciais no conceito
de vulnerabilidade: mitigação dos riscos e assistência ou
alívio pós-desastre (ALWANG; SIEGEL; JORGENSEN,
2001, p. 20).
Ora, se a mitigação dos riscos ambientais constitui
estratégia central da gestão de vulnerabilidades ambientais,
isto é, se riscos menores ensejam um desejável
abrandamento da vulnerabilidade, é forçoso reconhecer que
as medidas jurídicas de prevenção do dano ambiental (que
nada mais é do que o produto da concretização de riscos
ambientais) contribuem para a redução da vulnerabilidade
ambiental.
Nesse contexto, ao exercer uma função preventiva,
dissuadindo os potenciais poluidores de adotarem condutas
arriscadas, passíveis de acarretar a consumação de danos
ambientais, o instituto da responsabilidade civil ambiental
contribui para a redução ou mitigação dos riscos ambientais
e, consequentemente, ajuda a reduzir o grau de
vulnerabilidade das pessoas e do meio ambiente a esses
riscos.
Quanto mais eficiente for o sistema de responsabilização
civil de determinado ordenamento jurídico, maior será a
eficácia da sua função preventiva, maior será o efeito
dissuasório de riscos e danos ambientais produzido e, por
consequência, menor tenderá a ser o grau de
vulnerabilidade ambiental da comunidade sujeita a essas
normas responsabilizadoras.
Partindo dessas premissas, o raciocínio dedutivo, por
meio de silogismo lógico, leva à conclusão de que eventuais
falhas na responsabilidade civil ambiental, a exemplo
daquelas apontadas no primeiro tópico deste artigo, por
minarem a eficiência desse instituto, comprometerão o
desempenho de sua função preventiva, o que tenderá a
agravar a vulnerabilidade ambiental, ante a inoperância
desse fator de inibição de riscos ambientais.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora ocupe papel de destaque entre os instrumentos
jurídicos de reparação dos danos ambientais, a
responsabilidade civil, importada do Direito Privado para o
campo do Direito Ambiental, ainda reclama adaptações
significativas para que adquira maior efetividade.
A dificuldade de comprovação do nexo causal entre
conduta e dano, o que torna muitas vezes impossível a
identificação do poluidor; o problema dos danos cumulativos
e dos danos latentes ou transtemporais, ante óbices legais
como a prescrição; os casos de insolvência do responsável;
a demora e o custo dos processos judiciais por meio dos
quais a responsabilidade civil é imposta; a dificuldade de
aplicação aos casos de danos ambientais internacionais ou
transfronteiriços e, ainda, a questão da valoração econômica
dos prejuízos ambientais são algumas das principais
dificuldades enfrentadas pela responsabilidade civil
ambiental na contemporaneidade.
Atualmente, parece haver um certo consenso na doutrina
quanto à multiplicidade de funções exercidas pela
responsabilidade civil. Além da clássica função reparatória,
ela também desempenha papel relevante na punição dos
infratores e, consequentemente, na prevenção de danos.
A prevenção ocorre por meio da produção do chamado
efeito dissuasório (“deterrence”), fruto de técnicas de
controle social sancionatórias, que se assentam na premissa
de que os sujeitos consideram as perspectivas de sanções
punitivas e avaliam os prós e os contras (custo-benefício) da
conduta antijurídica antes de tomar a decisão de infringir a
ordem jurídica.
Essa função preventiva tem particular importância na
responsabilidade civil ambiental, seja em razão da maior
gravidade dos danos ambientais, dada a sua complexidade
e a sua estreita ligação com direitos de primeiro escalão,
como a vida e a saúde; seja em face dos princípios jurídicos
que informam o Direito Ambiental, notadamente a
prevenção, a precaução, o poluidor-pagador e a
solidariedade intergeracional, em uma perspectiva de
relação jurídico-ambiental continuativa.
A produção de efeito dissuasório e o adequado
cumprimento da função preventiva por parte da
responsabilidade civil pressupõem, todavia, a efetividade do
sistema de responsabilização, de modo a tornar concreta a
ameaça de sanção em caso de descumprimento da
legislação ambiental, impelindo o agente a evitar
comportamentos geradores de riscos ambientais.
Por outro lado, os riscos compõem o núcleo da noção de
vulnerabilidade ambiental, entendida como uma complexa
situação de maior suscetibilidade aos danos ambientais
decorrentes desses riscos. Diminuindo-se os riscos, menor
será a vulnerabilidade. Uma das formas de implementar
essa diminuição é, precisamente, o manejo do efeito
dissuasório da responsabilidade civil.
Se a efetividade da responsabilidade civil ambiental
estiver comprometida, menor será o seu potencial de
prevenção de riscos ambientais e, consequentemente, de
redução da vulnerabilidade ambiental. Daí porque as
deficiências apontadas no primeiro tópico deste artigo
merecem ser objeto de reflexão científica mais aprofundada,
a fim de que se estruturem possíveis maneiras de mitigá-las,
fortalecendo-se o papel da responsabilidade civil na gestão
de vulnerabilidades ambientais.
Pensar em alternativas ao modelo atual de
responsabilidade civil ambiental é um dos maiores desafios
enfrentados pelo Direito Ambiental na atualidade, mas,
surpreendentemente, a abordagem desse problema tem
levado em conta precipuamente a perspectiva reparatória,
olvidando-se da relevante função preventiva desempenhada
por esse instituto e do seu papel na redução da
vulnerabilidade ambiental. Essa perspectiva, diante de tudo
que foi exposto, deve ser levada em conta e preservada
quando da realização de adaptações no modelo atual e da
implementação de novos mecanismos jurídicos de
reparação do dano ambiental, complementares à
responsabilidade civil.
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