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cuidado1
Introdução4
As discussões que trazemos aqui sobre “maternidade solo” são parte de uma pesquisa
sobre monoparentalidade feminina conduzida por Sabrina, centrada nas discursividades e nas
experiências monoparentais femininas que evocam os debates feministas contemporâneos e têm
reivindicado a terminologia “mãe solo” em substituição à estigmatizada expressão “mãe
solteira”. Desvinculando relações parentais da conjugalidade, a proposição da terminologia
1
Paper apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS, 2020, no GT30 - O cuidado na agenda política,
coordenado por Eugenia Brage (CEM,USP - CEBRAP) e Marcia Reis Longhi (UFPB).
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Professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia e do PPGAN/UFMG, pesquisadora do GESEX.
Agradeço ao CNPq pelo financiamento concedido à pesquisa “Maternidade solo”: parentalidades, conjugalidades
e noções de família.
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Mestranda em Antropologia na Universidade Federal de Minas Gerais (PPGAN/UFMG), pesquisadora do
GESEX. Bolsista CAPES.
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Traçamos reflexões conjuntas sobre duas pesquisas realizadas em separado por cada uma das autoras. Desse
modo, a depender do contexto, acionaremos, ao longo do texto, a primeira pessoa do singular ou do plural ou
indicaremos diretamente a qual das autoras a questão apresentada se refere.
1
“mãe solo” é acompanhada por uma problematização sobre relações de gênero e sobre os
sentidos amplos em torno da responsabilização em relação às crianças. Num segundo momento,
contudo, a questão que aparece em pauta diz também respeito às formas de coletivização do
cuidado e a uma crítica em torno da exclusão social de mães encarregadas pelo cuidado de
filhos/as pequenos/as.
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nessas produções, aqui enfocadas, também está em jogo uma discussão sobre noções
normativas de família, que supõem o exercício da parentalidade dentro de contextos conjugais,
a divisão de gênero em relação aos cuidados de crianças e as distintas expectativas sociais em
relação à maternidade e à paternidade. Embora a dimensão das desigualdades de gênero nas
relações parentais seja central, junto a ela vem também uma reivindicação pela constituição de
redes de apoio, levantando uma problematização sobre as dimensões jurídicas e burocráticas
dos direitos parentais. Desse modo, argumentamos que, no limite, as questões apresentadas
neste campo discursivo parecem anunciar que uma real igualdade de gênero não será alcançada
apenas com a divisão igualitária de tarefas parentais no âmbito doméstico, mas com uma
partilha social do processo reprodutivo que transcenda o par conjugal ou a rede de parentesco,
estando presente em todos os ambientes de uma sociedade e incluindo nessa divisão de tarefas
tanto as pessoas que têm como também aquelas que não têm e nem desejam ter filhos/as.
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por políticas que atendam demandas diversas, através de alianças entre familiares, profissionais,
políticos, entidades e associações para ações efetivas. Essas demandas de familiares de pessoas
com autismo se unem aos movimentos de pessoas com deficiência, estendendo essas redes.
Nessas experiências com o diagnóstico de autismo, as subjetividades e corporalidades são
valoradas a partir das disposições sociais sobre as deficiências, e esses reconhecimentos
reconfiguram as relações entre mães, pais e filhos/as, redesenhando os contornos da
parentalidade. Consequentemente, articulam-se também novas relações entre essas mães e
filhos/filhas no que concerne às noções sobre cuidado, autonomia e independência.
O cuidado pode ser pensado sobre aquele que recebe, mas também sobre aquele que
cuida. Essas atuações de mães podem ser descritas no que Clarice Rios aponta como
“micropolíticas do reconhecimento”, expressão do antropólogo Brendan Hart (2014), formas
sutis de práticas e ativismos que “assumem a forma de negociações diárias com os limites e as
possibilidades colocados pelo modo de ser autista e pelo ambiente sociocultural que estes
autistas e suas famílias habitam” (RIOS, 2018: 172). O cuidado, nesse contexto, passa a ser
entendido enquanto práticas cotidianas e de atendimento de necessidades, mas também uma
ação política na medida em que mães e pais buscam políticas públicas efetivas e direitos
garantidos, assim, o cuidado torna-se coletivo. Apresentando uma afirmação de uma das mães
que colaborou com a pesquisa: “quando eu luto pelos direitos do meu próprio filho, eu luto
pelos direitos de todos os filhos”.
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Bianca que tem acompanhado o movimento de mães e pais de pessoas no espectro autista. Ao
final, trazemos também nossas reflexões sobre um evento do qual participamos conjuntamente
e que contou com uma espécie de encontro entre esses dois campos de ativismos maternos.
Tomando, assim, discursos comuns de distintos campos de pesquisa, percebemos que questões
relativas ao gênero e, mais especificamente, ao exercício da maternidade, perpassam por
anseios, dificuldades e reivindicações muito próximas. De diferentes formas, buscam
problematizar relações de gênero no contexto parental e propor mudanças mais
macroestruturais em torno das práticas de cuidado ligadas à filiação. Repetido em vários
contextos de nossas pesquisas, o adágio “é preciso uma vila para criar uma criança” bem resume
a reivindicação por uma coletivização do cuidado. É sobre essa reivindicação que trataremos
aqui.
O debate feminista da segunda metade do século XX foi altamente influente para uma
reavaliação crítica de diversos campos de estudos acadêmicos. Nos estudos de família, em
particular, as críticas feministas foram fundamentais em uma variedade de disciplinas, como
antropologia, história, sociologia e psicologia, tendo levado a um movimento de historicização
da noção de família, que trouxe à tona a importância dos marcadores sociais da diferença, como
raça, classe, geração, gênero e sexualidade. Trouxe também a ressignificação do trabalho do
cuidado, a problematização das dimensões da violência que perpassam contextos familiares,
promovendo também um questionamento fundamental sobre a dicotomia público/privado ao
destacar que as famílias estariam ligadas à economia, ao Estado e a outras formas de
organização (THORNE, 1992).
A reelaboração crítica em torno da noção de família é central para uma série de estudos
que se debruçam sobre famílias e políticas públicas. Guita Grin Debert (1999; 2006) tem
abordado a questão em termos de uma reprivatização das questões políticas. Ao analisar as
políticas direcionadas aos idosos, Debert (1999) demonstra que tem havido uma devolução para
as famílias de problemas sociais relativos aos idosos como questões privadas que competem à
esfera familiar, cujos deveres são definidos e reforçados pelas políticas públicas. Em diálogo
com essa produção, Patrice Schuch (2013) levanta outras dimensões argumentando que esse
processo de reprivatizaçao de questões sociais corresponde também a uma “politização da
5
família”, na qual, a família é, a um só tempo, “sujeito político fundamental para a mobilização
de práticas de governo, mas também de luta por recursos, reputações e novas posições sociais”
(SCHUCH, 2013: 323).
Para além dos movimentos específicos de mães, suas pautas e posturas políticas
particulares, é também importante levar em conta as especificidades das atuações políticas no
século XXI, que dificilmente podem ser desvinculadas das redes sociais. Nos campos
discursivos dos feminismos contemporâneos, a internet tem sido um espaço social fundamental
6
para organização, criação de redes de comunicação e atuação política, que transcende
movimentos organizados tradicionais ou mesmo a circunscrição dessas articulações políticas a
centros urbanos, permitindo também uma espécie de popularização dos feminismos
(ALVAREZ, 2014; FERREIRA, 2015). Neste contexto, uma das pautas iniciais das
movimentações online em torno da interseção entre maternidade e feminismo foi o parto
humanizado (PULHEZ, 2015) e, na sequência, uma difusão de outros debates envolvendo
sobrecarga materna e formas de criação de filhos/as (MEDRADO e MULLER, 2018). É
também, neste contexto, que surgem discussões sobre maternidades solo. Mais recentemente,
essas atuações passam a se dar também por meio de plataformas de financiamentos coletivos e,
ainda, no âmbito da política representativa, através de mandatos coletivos para cargos
legislativos com pautas sobre maternidade e infância.
Se antes, essa politização em meios virtuais já era muito evidente, com a ocorrência da
pandemia de Covid-19, em 2020, essa atuação se intensifica devido às imposições de
isolamento social e a consequente transformação das práticas e relações de cuidados. A ação
no campo discursivo dos feminismos maternos se acentua trazendo à tona essas reflexões sobre
o cuidado ligado às múltiplas configurações de parentalidade, assim como as demandas de
cuidados específicos relacionados às deficiências, problemáticas expressivas nos contextos de
pesquisas aqui apresentados.
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Cuidado, gênero, parentesco e geração
Presentes desde o início dos anos 1980 nos Estados Unidos, as discussões em torno do
cuidado ganham corpo, nos últimos anos, em variados campos teóricos (GUIMARÃES,
HIRATA e SUGITA, 2011). No Brasil, em particular, o crescimento em estudos nesta linha
ganha força na segunda década dos anos 2000 (FINAMORI e FERREIRA, 2018). Usualmente
grafado em inglês, o care, em suas múltiplas acepções, como prática e disposição moral, tem
sido debatido na filosofia, sociologia, antropologia, psicologia, serviço social, educação e em
variadas áreas da saúde. Como bem aponta Isabel Georges, o cuidado é uma categoria
emergente, multifacetada e heterogênea, cujos significados podem ser muito variáveis a
depender dos sujeitos que a acionam (GEORGES, 2019), permitindo uma ampla confluência
de debates. No Brasil, o cuidado tem sido abordado por meio de estudos sobre funções sociais
e questões de dependência. O cuidado enquanto potente categoria analítica permite repensar
formas de hierarquização e poder, assim como a possibilidade de “re-politizar o debate sobre a
questão social da dependência e do cuidado, de uma forma muito mais abrangente, política,
globalizada e interseccional” (GEORGES, 2019:141).
Uma das questões centrais quando se pensa sobre o cuidado é a dimensão relacional
entre quem oferta e quem recebe cuidados e suas dimensões de gênero, classe e raça (HIRATA,
2014). No caso brasileiro, em particular, as pesquisas sobre o tema têm se debruçado sobre os
serviços domésticos e de cuidado oferecidos por empregadas domésticas, enfatizando as
relações de poder em que os marcadores de gênero, raça e classe se constituem mutuamente
(SORJ e FONTES, 2012). Se esses marcadores sociais são fundamentais para se pensar
diferença e desigualdade nas práticas do care, argumentamos que a eles também devem ser
acrescentados geração e parentesco. Em outra ocasião (FINAMORI e FERREIRA, 2018),
Sabrina desenvolve, em conjunto a Flávio Ferreira, este argumento, propondo que a dimensão
de geração é crucial, especialmente, quando se interseccionam relações de cuidado a relações
de parentesco. A noção de cuidado tem sido bastante acionada em debates jurídicos e políticos
sobre direitos e deveres intergeracionais, nos quais é mobilizada em relação a outras noções
relativas ao parentesco, como consanguinidade, amor, abandono e responsabilidade.
8
esses/as mesmos filhos, e de modo mais específico filhas, cuidem de seus pais e mães na
velhice. Nas discursividades sobre maternidade solo, esta questão salta à vista quando
consideramos que as problematizações levantadas em torno da sobrecarga do cuidado de filhos
concentram-se sobretudo em experiências de maternidade de crianças pequenas. A questão em
pauta diz respeito ao fato de que a sobrecarga de trabalhos de cuidado e a exclusão de espaços
sociais é muito distinta se considerarmos uma mãe ou pai de uma pessoa adulta ou de uma
criança.
Essa assunção é, no entanto, posta em xeque em contextos nos quais filhos/as possuem
algum grau de dependência em virtude, por exemplo, de deficiências físicas ou cognitivas.
Considerando-se o curso esperado da vida, mães e pais, por serem mais velhos, terão maior
probabilidade em morrerem antes de seus/suas filhos/as. Nessa direção, coloca-se a questão:
quem cuidará dessas pessoas com algum grau de dependência quando mães e pais não tiverem
mais a possibilidade de exercer o cuidado ou não estiverem mais vivos? Como se conformam
os temores de mães e pais diante desse futuro possível e como, nas práticas concretas, a
necessidade de cuidados na velhice mistura-se, nessas vivências, com uma realidade em que
essas pessoas são também cuidadores/as de seus/suas filhos/as? São, dessa forma, processos
biológicos, reais e reconhecidos por sinais externos do corpo, mas elaborados simbolicamente
e consumados em sentidos políticos (MINAYO e COIMBRA JR, 2002: 15). Como aponta
Helena Fietz, em seu trabalho com mães que lutam por moradia assistida para seus filhos/as
com deficiência, com o curso da vida e o envelhecimento tanto das mães e pais quanto dos
filhos/as, as relações se complexificam reverberando na vida das famílias e reconfigurando
pressupostos dados no parentesco (FIETZ, 2017: 13).
Uma mãe que assume integralmente os cuidados por uma criança pequena ou uma mãe
que cuide de um/a filho/a adulto com algum grau de dependência estariam confirmando laços
de parentesco e correspondendo, em alguma medida, a uma visão normativa sobre
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parentalidade. Essas situações são permeadas não só pela positividade moral posta na ideia de
cuidado, mas pelos complexos imbricamentos entre parentesco, cuidado e modelos normativos
de família. Na visão social mais normativa e conservadora em termos de gênero, a imagem de
uma “mãe solo” pode supor um pai pouco presente (como tantos outros), mas a imagem de um
“pai solo” irá supor uma mãe abandonante (quase um monstro, na visão de alguns)5. As
acusações de abandono sofridas por mães que lutam por moradia assistida para seus filhos com
deficiência cognitiva são também exemplares dessa lógica (FIETZ, 2018).
Nas proposições que faz nos contextos de ativismo do qual toma parte, Thaiz Leão tem
pautado essa discussão sobre cuidado, parentalidade e gênero em seus pontos mais delicados.
Numa entrevista realizada no âmbito da pesquisa de Sabrina6, Thaiz aborda a dimensão política
e social da maternidade e da infância. Ela conta que tem entrado em boas discussões quando
levanta a temática, mesmo em meios ativistas, pois considera que parte da construção de uma
boa experiência em relação à maternidade e infância tem a ver precisamente com o
compartilhamento social de cuidados em relação às crianças e com uma reavaliação crítica
sobre o que constitui o amor e sobre as diferentes formas possíveis de maternar, não
necessariamente fundadas em constante presença parental. No curso da conversa, lembramos
que a questão é polêmica e todas nós já vivemos, como mães, pesquisadoras ou ativistas,
embates a este respeito. Recordamos de uma ocasião em que Sabrina, ao ser entrevistada por
um jornal para uma reportagem que tratava da exclusão de mães na universidade, havia
argumentado que o processo reprodutivo deveria deixar de ser visto como um encargo
exclusivamente feminino ou mesmo de modo tão individualista, defendendo a necessidade de
políticas públicas relativas à reprodução. Os comentários subsequentes dos leitores do jornal
foram aterradores, marcados por posições contrárias a qualquer investimento público em
questões reprodutivas e circunscrevendo, mais uma vez, a parentalidade à figura materna 7. Ao
ouvir este relato, Thaiz Leão complementa que mesmo em movimentos ativistas sobre
parentalidade não é incomum haver resistência em relação à partilha social do cuidado, mais
ainda, quando se levanta a possibilidade de experiências maternas menos ligadas ao “extremo
cuidado” ou à “extrema presença”. A visão social das mulheres e da maternidade como
5
A persistência da desigualdade de gênero nas visões sociais sobre as relações parentais reverbera em uma série
de outros contextos, tendo inclusive impactos em decisões jurídicas. A este respeito, ver, por exemplo, os casos
de alienação parental analisados por Malta, 2019.
6
A entrevista foi realizada em 2019 e dela também participou como pesquisadora de Iniciação Científica Thais
Teles Rocha, que compunha a equipe do projeto “maternidade solo”.
7
Ainda que não seja possível adentrar aqui, há também, em debates deste tipo, um julgamento acerca da
sexualidade da mulher, em comentários na linha: “fazer filho é fácil, difícil é cuidar”.
10
intrinsicamente vinculadas ao cuidado permanece em variados contextos e, alguma medida,
bloqueia a possibilidade de se discutir abertamente os encargos relativos ao processo
reprodutivo.
Desse modo, argumentamos aqui que cuidado diz respeito também a normas sociais e,
no contexto do parentesco, em particular, está relacionado a expectativas sociais em torno de
modelos de família. Mais do que apenas confirmar laços de parentesco, a mobilização da noção
de cuidado em certos contextos familiares produz também hierarquias entre modelos de família
e institui sofrimentos sociais entre aquelas pessoas que não correspondem ao ideal normativo.
Nenhuma criança é meramente problema privado de seus pais. (KITTAY, 2010: 410,
tradução nossa) 8.
Eva Kittay, filósofa, mãe de uma mulher com deficiência cognitiva severa, tem
problematizado a concepção filosófica de pessoa tendo como ponto de partida diagnósticos de
significativos déficits cognitivos. Contrapondo-se a alguns filósofos9 que defendem que pessoas
com déficits mentais severos tenham um status de humanidade mais baixo do que aquelas com
capacidades cognitivas consideradas normais, Kittay (1999; 2010) tem problematizado as
consequências deste tipo de postura, tais como justificar cortes nos gastos com cuidado,
educação e habitação ou, de modo mais extremo, justificar experimentos com pessoas nestas
condições que possam resultar em sofrimento e morte. Carlson e Kittay (2010:18) lembram, no
entanto, que pessoas com significativa deficiência cognitiva não são os únicos seres humanos
que ficam aquém dos critérios filosóficos tradicionais sobre pessoa. Em situação similar,
estariam também pessoas em estágio avançado de demência e mesmo crianças pequenas.
8
No original: “No child is simply the parent´s own private matter” (KITTAY, 2010: 410).
9
Não vamos nos aprofundar neste ponto pois foge ao escopo do trabalho. Entre os filósofos com os quais Kittay
trava esta interlocução estão Jeff McMahan e Peter Singer. Ver a este respeito o diálogo travado entre eles em:
CARLSON e KITTAY, 2010.
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argumento filosófico e a leva a questionar como as problematizações abstratas sobre a noção
de pessoa encerram uma espécie de armadilha que obscurece a realidade. Ao situar a questão
desse modo, ela, como mãe, aponta que seu trabalho de maternidade apenas será possível se o
valor moral de sua filha for garantido e, do mesmo modo, isso não seria menos verdadeiro para
qualquer criança, independentemente de suas capacidades cognitivas.
Essas maternidades, que não correspondem ao ideal normativo, são ainda atravessadas
por categorias morais, sobre o que é ser uma boa mãe ou sobre quem tem ou não direito a
assumir a maternidade. Do mesmo modo, está também em questão o que é uma família, quais
as responsabilidades de uma família e o que constitui o cuidado e o abandono. Nesta direção,
ao proporem uma nova terminologia para nomear sua experiência social, as “mães solo” estão
enfrentando questões morais que subjazem o sentido social de maternidade, paternidade e
conjugalidade. Às mães de filhos/as com deficiência, cabe uma responsabilidade de cuidado
que coaduna o bem estar do filho, assim como a responsabilidade por uma suposta adequação
à considerada normalidade. Em ambos os casos, suas maternidades estão sob um julgamento
acerca de suas capacidades de cuidado: serão elas boas mães? A relação entre essas mães e seus
filhos/as, mesmo em situações díspares, evidenciam maternidades que escapam das disposições
sociais e morais recorrentes, e uma relação que não pode ser pensada com suas partes
dissociadas, pois corporalidades, subjetividades e posicionamentos são construídos nessas
relações frente ao social.
12
No caso das maternidades solo, outra dimensão pungente quando se discute a noção de
pessoas e direitos é também a interseção de raça e classe. Contextos monoparentais femininos
são estatisticamente muito mais frequentes entre a população mais pobre e negra. A própria
proposição da terminologia “mãe solo”, combatendo a expressão “mãe solteira”, traz uma
discussão sobre uma forma de estigmatização que correlaciona família, gênero, raça e classe.
Subjacente à imagem da mãe solteira, estão, na visão social mais conservadora, a pobreza e a
criminalidade entrelaçadas, a imagem da mãe que produz pessoas à margem. Pessoas que
estariam aquém dos direitos humanos. Presente até hoje na fala de políticos, com a do ex-
governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral e seu apoio ao aborto, não como direito, mas como
medida de prevenção à criminalidade10. Ou, de modo mais taxativo, na recente afirmação do
vice-presidente Hamilton Mourão quando avalia de modo categórico que casa “onde não há pai
e avô, é mãe e avó” é “fábrica de desajustados”11. Ao analisar a política de saúde no século
XVIII, Michel Foucault (1979) mostra o como a reorganização da medicina culmina na ideia
de o que par conjugal seria o centro produtor de indivíduos. Mais do que gerar uma
descendência, o casal deveria produzir seres humanos nas melhores condições possíveis. Na
lógica atual de discursos políticos mais conservadores, os humanos produzidos por “mãe” ou
por “mãe e avó” seriam, em alguma medida menos humanos e, portanto, menos sujeitos de
direitos.
Eva Kittay também propõe pensar o cuidado enquanto uma questão de justiça social,
por entender a interdependência das relações humanas. E é nesse sentido que a autora questiona
os ideais de autonomia e independência enquanto universais e absolutos (KITTAY, 1999). A
autora defende que a dependência é parte da condição humana e, portanto, garantia de
manutenção de vida e de dignidade. Como coloca Anahí Mello e Adriano Nuernberg (2012) a
respeito do trabalho de Kittay, essa noção de interdependência como valor humano implica
pensar o cuidado também como uma responsabilidade do Estado e da sociedade, desvinculando
a ética do cuidado como naturalmente feminina e a redesenhando pautada nos direitos humanos.
Dessa forma, reconhecendo as dependências e deficiências como condições inerentes à
diversidade humana. Colocar o cuidado como uma questão de justiça social, portanto, implica
em considerar as dependências das relações, e de uma forma prática, por exemplo, elaborar
10
FREIRE, Aluizio. Cabral defende aborto contra violência no Rio de Janeiro. Portal G1. Acesso em 12/11/2020.
Disponível online via: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-
CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html.
11
GIELOW, Igor. Casa só com 'mãe e avó' é 'fábrica de desajustados' para tráfico, diz Mourão. Folha de S. Paulo,
17/09/2018. Disponível online via: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/casa-so-com-mae-e-avo-e-
fabrica-de-desajustados-para-trafico-diz-mourao.shtml. Acesso em 12/11/2020.
13
políticas públicas e direitos que visem não apenas as práticas de cuidados e assistências
relacionadas aos dependentes e pessoas com deficiência, mas também às famílias e suas
cuidadoras. Trata-se dessa forma, de uma desprivatização do cuidado.
14
Nesse contexto, emergem atuações dessas famílias de pessoas com autismo no âmbito
público, sendo que as mobilizações por políticas públicas ou efetivação de direitos revelam uma
faceta do cuidado – tão múltiplo – como político. Assim, as mobilizações de mães por direitos
garantidos também se fundamentam em uma premissa da coletivização do cuidado. Aqui, não
mais como uma coletivização apenas em torno de redes de apoio, mas como uma
responsabilização do Estado para a inclusão de seus filhos na sociedade considerando suas
particularidades e promovendo a autonomia e independência. Após o evento da pandemia de
Covid-19, e os debates sobre o isolamento das pessoas – carregando suas tantas problemáticas,
dificuldades, dores e resiliências – pessoas com deficiência e algumas mães trouxeram à tona a
proximidade de suas experiências: “pessoas com deficiência e suas famílias, sempre estiveram
em isolamento”.
Thaiz Leão discorreu sobre suas lutas políticas de apoio à maternidade e infância,
entrelaçando sua experiência materna às ações políticas que têm desenvolvido. Enfatizou as
desigualdades de gênero, as situações de violência que atendeu, tendo focado principalmente
as dimensões mais desafiantes da maternidade. Enquanto esta e outras falas, baseadas em um
viés feminista, discutiam sobre a maternidade compulsória e padrões de comportamentos
sociais e morais impostos às mães, uma das participantes deu um relato que colocava em xeque
muitas dessas questões sobre as configurações de parentalidade. Minimamente, sua fala e as
divergências exaltadas refletiam o quão desafiante, teórica e politicamente, pode ser o debate
sobre cuidados e parentalidade.
12
I Seminário Famílias, Políticas e Direitos: desafios contemporâneos. Realizado na Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFMG, em novembro de 2019.
15
A mãe contou sobre o processo de diagnóstico de autismo do filho e como isso mudou
suas relações de maternidade. Afirmou que, por muito tempo, achou que não daria conta de ser
mãe, mas que deixou a profissão, os projetos e trabalhos que desenvolvia e foi “ser mãe e cuidar
da família”. De alguma forma ela colocava como suas percepções sobre a maternidade foram
reconfiguradas diante do diagnóstico, e outra possibilidade de maternagem foi acolhida por ela.
Apontou como assumiu muitos papéis que lhe eram impostos na maternidade, principalmente
em uma “maternidade atípica”, mas que isso não recaía para ela como um problema, um fardo,
ou algo com necessidade de mudança. Ela concluiu: “eu tenho muito orgulho de ser mãe e fazer
isso tudo”.
16
pequenas, já vivemos e objetivamos analiticamente, em muitas ocasiões, os sentimentos
ambíguos que permeiam a experiência materna. Experiência esta que não é estritamente
individual, mas fundamentalmente histórica e social (SCOTT, 1998). Dimensões estas que não
estão desvinculadas uma da outra, como bem aponta Avtar Brah (2006: 364) “na prática, a
experiência como relação social e como o cotidiano da experiência vivida não habitam espaços
mutuamente exclusivos”. Isto é, a experiência de maternidade de uma mulher branca brasileira,
de camada popular, moradora de uma periferia urbana, que se considera “mãe solo” diz respeito,
a um só tempo, às relações mais amplas de gênero, classe e raça no Brasil contemporâneo e às
vivências específicas daquela mulher nas quais essas categorias se atualizam na prática.
Como construções culturais, as experiências são também permeadas por valores morais.
Expô-las é também expor-se a possíveis julgamentos. Tudo isso diz respeito ainda à própria
categoria maternidade, como um termo que abarca uma multiplicidade de experiências, que,
mesmo quando similares, nunca serão idênticas. A mesa, com sua heterogeneidade de
experiências, permitiu refletir sobre a importância de políticas públicas eficientes que sejam
interseccionais, que percebam as diversidades e particularidades e que abarquem as
possibilidades da maternidade. Na mesa, irrompiam pedaços de vivências tão diversas e tão
complexas que iam ao encontro das nossas próprias experiências e nos levavam a perceber o
quão complexos são os debates acerca de um tema tão fundante do nosso social, a parentalidade
e as relações de interdependência. Em uma mesa repleta de conhecimentos teóricos e
acadêmicos, mas também de práticas e vivências cotidianas, os embates das posições de
mulheres e mães colocavam uma reflexão sobre o complexo sistema de significação que
constrói a maternidade como categoria cultural. Diante de acordos ou contradições, as
construções sociais, morais e políticas sobre as experiências das maternidades eram perpassadas
por ideias, corpos, ventres e historicidades. Naquele contexto, a complexidade das questões
referentes às maternidades, incluindo a responsabilização social do processo reprodutivo, a
reconfiguração da parentalidade ou a coletivização do cuidado, se tornavam ainda mais
evidentes, assim como a profusão dos sentidos do cuidado. As maternidades que não cabem em
uma palavra apenas, que nem mesmo o plural pode sustentar. Experiência, importante lembrar,
é também uma construção cultural, longe de ser uma diretriz para a “verdade”, é uma “prática
de atribuir sentido, tanto simbólica como narrativamente” (BRAH, 2006: 360).
Uma última reflexão perpassa todas essas discussões aqui levantadas: qual o papel
dessas mães nos processos de transformação sociocultural? Suas atuações políticas se colocam
muitas vezes em colaboração com as disposições do Estado, já que, como apontado
17
anteriormente sobre a politização da maternidade, cada vez mais na América Latina, a atenção
às famílias tem sido meio de intervenção humanizada de assistência, além de construção de
políticas inclusivas. Uma reflexão ficou marcada naquela mesa sobre famílias, direitos e
cuidados: a ideia de famílias como potências, quaisquer que sejam essas famílias.
Fechamos com uma reflexão de Thaiz Leão, que situa, de modo contundente a
necessidade de refletirmos criticamente sobre a interdependência e a responsabilização social
mais ampla sobre os processos reprodutivos:
A gente vai viver a gravidade, vai viver os tempos, vai chover pra todo mundo, vai. A
criança também é uma imposição do mundo, você pode escolher não ter filho, você
pode escolher não ter uma criança na sua casa, você pode escolher o diabo que for,
mas você vai ter que negociar consigo mesmo, o quanto você vai pagar essa dívida
em relação a essa criança aqui, porque essa criança aqui é você, essa criança aqui é a
galera que está em volta, essa criança aqui vai ser quem vai te atender quando você
estiver idosa, é isso que vai acontecer, essa criança tem função social inclusive para
você. [Thaiz Leão, entrevista concedida no âmbito da pesquisa de Sabrina Finamori,
em 2019].
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