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Maternidades, cuidados e cuidadoras: a desprivatização do

cuidado1

Sabrina Finamori – UFMG2


Bianca Retes Carvalho – UFMG3

Introdução4

A partir de dois campos de pesquisa: a produção de “mães solo” na web sobre


monoparentalidade feminina e uma etnografia em uma associação para familiares de pessoas
no espectro autista, buscamos refletir sobre maternidade e cuidado por meio das
problematizações comuns que esses grupos, tão heterogêneos de mães, fazem em torno do
cuidado de filhos/as como socialmente marcado por gênero e circunscrito ao âmbito familiar.
As mulheres que propuseram a expressão “mãe solo” substituindo a estigmatizada terminologia
“mãe solteira” trazem reflexões, com viés feminista, sobre os sentidos sociais da maternidade.
As mães de pessoas no espectro autista, em suas lutas por direitos dos filhos/as, colocam em
questão a esfera do cuidado como privado e doméstico. A despeito da miríade de experiências
que marcam a maternidade em cada contexto particular, identificamos elementos comuns nas
reflexões e atuações dessas mães, marcadamente no que diz respeito a uma reivindicação pela
desprivatização do cuidado de filhos/as.

As discussões que trazemos aqui sobre “maternidade solo” são parte de uma pesquisa
sobre monoparentalidade feminina conduzida por Sabrina, centrada nas discursividades e nas
experiências monoparentais femininas que evocam os debates feministas contemporâneos e têm
reivindicado a terminologia “mãe solo” em substituição à estigmatizada expressão “mãe
solteira”. Desvinculando relações parentais da conjugalidade, a proposição da terminologia

1
Paper apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS, 2020, no GT30 - O cuidado na agenda política,
coordenado por Eugenia Brage (CEM,USP - CEBRAP) e Marcia Reis Longhi (UFPB).
2
Professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia e do PPGAN/UFMG, pesquisadora do GESEX.
Agradeço ao CNPq pelo financiamento concedido à pesquisa “Maternidade solo”: parentalidades, conjugalidades
e noções de família.
3
Mestranda em Antropologia na Universidade Federal de Minas Gerais (PPGAN/UFMG), pesquisadora do
GESEX. Bolsista CAPES.
4
Traçamos reflexões conjuntas sobre duas pesquisas realizadas em separado por cada uma das autoras. Desse
modo, a depender do contexto, acionaremos, ao longo do texto, a primeira pessoa do singular ou do plural ou
indicaremos diretamente a qual das autoras a questão apresentada se refere.

1
“mãe solo” é acompanhada por uma problematização sobre relações de gênero e sobre os
sentidos amplos em torno da responsabilização em relação às crianças. Num segundo momento,
contudo, a questão que aparece em pauta diz também respeito às formas de coletivização do
cuidado e a uma crítica em torno da exclusão social de mães encarregadas pelo cuidado de
filhos/as pequenos/as.

Propagadas sobretudo pelas produções da web, que abordam maternidade a partir de


uma perspectiva feminista, as discussões sobre o tema foram popularizadas especialmente por
meio das tirinhas da designer Thaiz Leão, criadora do projeto “Mãe solo”, presente em redes
sociais e em livros, e dos vídeos do canal de Youtube “Hel”, da cineasta Helen Ramos. Ambas
têm produções altamente influentes se considerarmos a repercussão de seus trabalhos, levando-
se em conta, por exemplo, o número de pessoas que acompanham suas publicações (inferida
via números de seguidoras, inscritas no canal ou visualizações, a depender do veículo) e
também a ressonância de suas produções em mídias tradicionais, como jornais, revistas e canais
de televisão.
Nesta ocasião, abordaremos a questão sobretudo a partir da produção e da atuação de
Thaiz Leão. As tirinhas feitas nos primeiros meses de vida de seu filho, retratam com humor
crítico sua experiência de maternidade, colocando em questão a imagem romantizada da
maternidade e os padrões de gênero. À medida que suas postagens sobre as dificuldades da
maternidade vão se popularizando, ela se torna também uma espécie de referência para
mulheres que buscavam auxílio jurídico, que relatavam violências ou mesmo que queriam
desabafar ou expressar o quanto se sentiam representadas pela forma como ela abordava sua
experiência materna. Seu ativismo ganha, mais recentemente, outras frentes com sua
participação, a partir de 2019, na Frente Parlamentar pela Primeira Infância na Assembleia
Legislativa de São Paulo (ALESP) e com a fundação do Instituto Casa Mãe, uma plataforma
que capta recursos e promove programas de apoio à maternidade e infância. Durante a pandemia
do Covid-19, a Casa Mãe e o Coletivo Massa deram início a um mapeamento de mulheres em
situação de vulnerabilidade que cuidam de crianças ou idosos. Nomeado “Segura a Curva das
Mães”, o projeto captou recursos, via doações, para um auxílio emergencial complementar.
Para além desta verba, o projeto oferece também apoio psicológico e jurídico.
É, então, a partir destas produções e atuações que abordaremos aqui a questão do
cuidado no contexto das “mães solo”. Se a proposição da expressão “mãe solo” condensa uma
crítica à forma de se nominar experiências maternas, suas intenções políticas levam adiante a
noção de que formas de categorizar o mundo são produtoras de efeitos sociais concretos. Assim,

2
nessas produções, aqui enfocadas, também está em jogo uma discussão sobre noções
normativas de família, que supõem o exercício da parentalidade dentro de contextos conjugais,
a divisão de gênero em relação aos cuidados de crianças e as distintas expectativas sociais em
relação à maternidade e à paternidade. Embora a dimensão das desigualdades de gênero nas
relações parentais seja central, junto a ela vem também uma reivindicação pela constituição de
redes de apoio, levantando uma problematização sobre as dimensões jurídicas e burocráticas
dos direitos parentais. Desse modo, argumentamos que, no limite, as questões apresentadas
neste campo discursivo parecem anunciar que uma real igualdade de gênero não será alcançada
apenas com a divisão igualitária de tarefas parentais no âmbito doméstico, mas com uma
partilha social do processo reprodutivo que transcenda o par conjugal ou a rede de parentesco,
estando presente em todos os ambientes de uma sociedade e incluindo nessa divisão de tarefas
tanto as pessoas que têm como também aquelas que não têm e nem desejam ter filhos/as.

Articulamos essas reflexões sobre a monoparentalidade feminina com discussões que


perpassam os cuidados com dependências e deficiências e que circunscrevem também a questão
de gênero. Essas discussões são levantadas através da pesquisa realizada por Bianca com
familiares de pessoas com transtorno do espectro do autismo. Acompanhando por um ano as
ações de uma associação para familiares e o envolvimento de seus integrantes com esferas do
poder público, ficam evidentes as complexidades das vivências de mães e pais frente a um
processo de diagnóstico que, para além do laudo médico, se materializa nas práticas cotidianas
e nos embates políticos. O Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) é caracterizado como
uma condição de neurobiológica com alterações em diferentes graus nas áreas de comunicação
e sociabilidade, podendo apresentar comprometimentos intelectuais. O TEA, no Brasil, ainda é
um tema muito incipiente nas esferas públicas. Apenas em 2012 o transtorno passa a ser
reconhecido como uma deficiência, assegurando assim certos direitos a pessoas com esse
diagnóstico. É notável como as promulgações de leis referentes aos direitos das pessoas com
autismo estão relacionadas ao engajamento de mães e pais, através dos movimentos sociais e
da criação de associações. A própria lei que reconhece o autismo enquanto deficiência, é
chamada de Lei Berenice Piana (Lei nº 12.764/2012), intitulada em homenagem a uma mãe que
participou de todo o processo de construção da lei e, hoje, garante direitos para autistas em todo
o Brasil.

Dessa forma, a etnografia realizada acompanha o movimento de mães e pais na


articulação de redes de acolhimento e na mobilização por direitos e políticas públicas para seus
filhos/as. O cuidado do âmbito privado e doméstico também se direciona ao público na busca

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por políticas que atendam demandas diversas, através de alianças entre familiares, profissionais,
políticos, entidades e associações para ações efetivas. Essas demandas de familiares de pessoas
com autismo se unem aos movimentos de pessoas com deficiência, estendendo essas redes.
Nessas experiências com o diagnóstico de autismo, as subjetividades e corporalidades são
valoradas a partir das disposições sociais sobre as deficiências, e esses reconhecimentos
reconfiguram as relações entre mães, pais e filhos/as, redesenhando os contornos da
parentalidade. Consequentemente, articulam-se também novas relações entre essas mães e
filhos/filhas no que concerne às noções sobre cuidado, autonomia e independência.

O cuidado pode ser pensado sobre aquele que recebe, mas também sobre aquele que
cuida. Essas atuações de mães podem ser descritas no que Clarice Rios aponta como
“micropolíticas do reconhecimento”, expressão do antropólogo Brendan Hart (2014), formas
sutis de práticas e ativismos que “assumem a forma de negociações diárias com os limites e as
possibilidades colocados pelo modo de ser autista e pelo ambiente sociocultural que estes
autistas e suas famílias habitam” (RIOS, 2018: 172). O cuidado, nesse contexto, passa a ser
entendido enquanto práticas cotidianas e de atendimento de necessidades, mas também uma
ação política na medida em que mães e pais buscam políticas públicas efetivas e direitos
garantidos, assim, o cuidado torna-se coletivo. Apresentando uma afirmação de uma das mães
que colaborou com a pesquisa: “quando eu luto pelos direitos do meu próprio filho, eu luto
pelos direitos de todos os filhos”.

O contexto de pesquisa é marcadamente perpassado pelo gênero, na medida em que as


deficiências e os cuidados são colocados como responsabilidade de mães e mulheres. Assim,
mesmo que haja uma participação ativa e de frente de alguns pais, os cuidados com as rotinas
domésticas, médicas e escolares ainda são parte das experiências de mães. O abandono paterno
é também recorrente diante dos diagnósticos de deficiências, impondo a algumas mães a
posição de maternidade solo – ou com uma rede de apoio prioritariamente de mulheres. As
atuações políticas de familiares no contexto do autismo também são marcadas pelo gênero,
sendo a maioria mães nas criações de associações, no aparecimento em esferas públicas ou
mesmo em atuações em microcontextos, como articulação de rodas de conversa em locais
municipais, ou requerimento de direitos às instituições de ensino, ou ainda, são as mães que
“ficam horas esperando na porta até serem atendidas”.

Para as proposições que apresentamos a seguir, consideramos, então, a produção e


atuação dos ativismos em torno da “maternidade solo” mencionados acima e a etnografia de

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Bianca que tem acompanhado o movimento de mães e pais de pessoas no espectro autista. Ao
final, trazemos também nossas reflexões sobre um evento do qual participamos conjuntamente
e que contou com uma espécie de encontro entre esses dois campos de ativismos maternos.
Tomando, assim, discursos comuns de distintos campos de pesquisa, percebemos que questões
relativas ao gênero e, mais especificamente, ao exercício da maternidade, perpassam por
anseios, dificuldades e reivindicações muito próximas. De diferentes formas, buscam
problematizar relações de gênero no contexto parental e propor mudanças mais
macroestruturais em torno das práticas de cuidado ligadas à filiação. Repetido em vários
contextos de nossas pesquisas, o adágio “é preciso uma vila para criar uma criança” bem resume
a reivindicação por uma coletivização do cuidado. É sobre essa reivindicação que trataremos
aqui.

Maternidades, feminismos e coletivização do cuidado

O debate feminista da segunda metade do século XX foi altamente influente para uma
reavaliação crítica de diversos campos de estudos acadêmicos. Nos estudos de família, em
particular, as críticas feministas foram fundamentais em uma variedade de disciplinas, como
antropologia, história, sociologia e psicologia, tendo levado a um movimento de historicização
da noção de família, que trouxe à tona a importância dos marcadores sociais da diferença, como
raça, classe, geração, gênero e sexualidade. Trouxe também a ressignificação do trabalho do
cuidado, a problematização das dimensões da violência que perpassam contextos familiares,
promovendo também um questionamento fundamental sobre a dicotomia público/privado ao
destacar que as famílias estariam ligadas à economia, ao Estado e a outras formas de
organização (THORNE, 1992).

A reelaboração crítica em torno da noção de família é central para uma série de estudos
que se debruçam sobre famílias e políticas públicas. Guita Grin Debert (1999; 2006) tem
abordado a questão em termos de uma reprivatização das questões políticas. Ao analisar as
políticas direcionadas aos idosos, Debert (1999) demonstra que tem havido uma devolução para
as famílias de problemas sociais relativos aos idosos como questões privadas que competem à
esfera familiar, cujos deveres são definidos e reforçados pelas políticas públicas. Em diálogo
com essa produção, Patrice Schuch (2013) levanta outras dimensões argumentando que esse
processo de reprivatizaçao de questões sociais corresponde também a uma “politização da

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família”, na qual, a família é, a um só tempo, “sujeito político fundamental para a mobilização
de práticas de governo, mas também de luta por recursos, reputações e novas posições sociais”
(SCHUCH, 2013: 323).

As distintas experiências e atuações de mães que abordamos aqui convergem, em


alguma medida, numa reivindicação pela desprivatização do cuidado, propondo o que temos
nomeado como coletivização do cuidado de filhos. Essas atuações são também, em alguma
medida parte de um movimento que se relaciona à politização da maternidade – e parentalidade,
de uma forma mais geral. No campo político e público, essa politização da maternidade se dá
na transformação da família como alvo preferencial e parceira estratégica na implementação de
políticas públicas (MEYER, 2010). A mãe, como figura fundamental das dinâmicas relacionais
e sociais do âmbito privado, faz também emergir problemas sociais com potencial para
construção de políticas e remodelações de ações governamentais.

A transformação das experiências maternas em instrumentos e atuações políticas


envolvem processos de aquisição de conhecimentos de áreas diversas que corroboram para uma
expertise das mães nas demandas por seus filhos (RIOS, 2017; FIETZ, 2018). Assim, esses
processos envolvem aprendizagem de concepções médicas, técnicas, processos jurídicos e
legislativos, trâmites burocráticos, linguagens emotivas, uso de suportes tecnológicos,
monetização de experiências, envolvimento político, dentre outros processos de conhecimento
que geram planos de discursos e relações de alianças entre atores diversos. É exemplar nessa
direção o caso da própria Berenice Piana, uma mãe ativista co-autora de uma lei federal e
idealizadora da primeira Clínica Escola do Autista do Brasil, sendo estes, frutos dessa expertise.
Ou de Thaiz Leão, que se torna conhecida por meio das tirinhas “mãe solo” e que leva as
problematizações e o emblema para outras instâncias políticas com a fundação do Instituto Casa
Mãe e a participação na política representativa. Outra constatação interessante é a significativa
presença de mães que se profissionalizam em áreas que correlacionam com as demandas do
autismo, como a psiquiatria, psicologia, terapia ocupacional, advocacia. Outro exemplo, que
torna claro o aprendizado sobre outras linguagens e conhecimentos, é a intensa atuação de mães
no ambiente virtual, através de redes sociais, que mobilizam grupos em todo o país.

Para além dos movimentos específicos de mães, suas pautas e posturas políticas
particulares, é também importante levar em conta as especificidades das atuações políticas no
século XXI, que dificilmente podem ser desvinculadas das redes sociais. Nos campos
discursivos dos feminismos contemporâneos, a internet tem sido um espaço social fundamental

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para organização, criação de redes de comunicação e atuação política, que transcende
movimentos organizados tradicionais ou mesmo a circunscrição dessas articulações políticas a
centros urbanos, permitindo também uma espécie de popularização dos feminismos
(ALVAREZ, 2014; FERREIRA, 2015). Neste contexto, uma das pautas iniciais das
movimentações online em torno da interseção entre maternidade e feminismo foi o parto
humanizado (PULHEZ, 2015) e, na sequência, uma difusão de outros debates envolvendo
sobrecarga materna e formas de criação de filhos/as (MEDRADO e MULLER, 2018). É
também, neste contexto, que surgem discussões sobre maternidades solo. Mais recentemente,
essas atuações passam a se dar também por meio de plataformas de financiamentos coletivos e,
ainda, no âmbito da política representativa, através de mandatos coletivos para cargos
legislativos com pautas sobre maternidade e infância.

O engajamento político de familiares de pessoas com deficiência no Brasil remonta a


algumas décadas; especificamente acerca do autismo, mães e pais se mobilizam desde o final
da década de 1980 nessa busca por direitos e assistências para seus filhos (LEANDRO e
LOPES, 2018). Inicialmente essas ações se dão através de cartas em meios de circulação
impressos, como jornais, que tem como desdobramento a criação de associações de mães e pais
– iniciadas principalmente por mães - ao redor do país. Desde o fim da década de 1980, portanto,
essas associações surgem como redes de acolhimento, assim como um meio de atuação política
de mães e pais de pessoas com autismo na busca por políticas públicas e na efetivação de
direitos. Entretanto, essas atuações também ganham um novo caráter com o advento das redes
sociais no século XXI e as associações e ações de mães ganham novos contornos em suportes
tecnológicos diversos. Assim, o engajamento dessas mães ganha outra visibilidade, além de
surgirem atuações direcionadas também aos discursos feministas e às relações com as
deficiências, que, para algumas, ainda é um debate tratado à revelia do esforço de intersecção
(MELLO e NUERNBERG, 2012).

Se antes, essa politização em meios virtuais já era muito evidente, com a ocorrência da
pandemia de Covid-19, em 2020, essa atuação se intensifica devido às imposições de
isolamento social e a consequente transformação das práticas e relações de cuidados. A ação
no campo discursivo dos feminismos maternos se acentua trazendo à tona essas reflexões sobre
o cuidado ligado às múltiplas configurações de parentalidade, assim como as demandas de
cuidados específicos relacionados às deficiências, problemáticas expressivas nos contextos de
pesquisas aqui apresentados.

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Cuidado, gênero, parentesco e geração

Presentes desde o início dos anos 1980 nos Estados Unidos, as discussões em torno do
cuidado ganham corpo, nos últimos anos, em variados campos teóricos (GUIMARÃES,
HIRATA e SUGITA, 2011). No Brasil, em particular, o crescimento em estudos nesta linha
ganha força na segunda década dos anos 2000 (FINAMORI e FERREIRA, 2018). Usualmente
grafado em inglês, o care, em suas múltiplas acepções, como prática e disposição moral, tem
sido debatido na filosofia, sociologia, antropologia, psicologia, serviço social, educação e em
variadas áreas da saúde. Como bem aponta Isabel Georges, o cuidado é uma categoria
emergente, multifacetada e heterogênea, cujos significados podem ser muito variáveis a
depender dos sujeitos que a acionam (GEORGES, 2019), permitindo uma ampla confluência
de debates. No Brasil, o cuidado tem sido abordado por meio de estudos sobre funções sociais
e questões de dependência. O cuidado enquanto potente categoria analítica permite repensar
formas de hierarquização e poder, assim como a possibilidade de “re-politizar o debate sobre a
questão social da dependência e do cuidado, de uma forma muito mais abrangente, política,
globalizada e interseccional” (GEORGES, 2019:141).

Uma das questões centrais quando se pensa sobre o cuidado é a dimensão relacional
entre quem oferta e quem recebe cuidados e suas dimensões de gênero, classe e raça (HIRATA,
2014). No caso brasileiro, em particular, as pesquisas sobre o tema têm se debruçado sobre os
serviços domésticos e de cuidado oferecidos por empregadas domésticas, enfatizando as
relações de poder em que os marcadores de gênero, raça e classe se constituem mutuamente
(SORJ e FONTES, 2012). Se esses marcadores sociais são fundamentais para se pensar
diferença e desigualdade nas práticas do care, argumentamos que a eles também devem ser
acrescentados geração e parentesco. Em outra ocasião (FINAMORI e FERREIRA, 2018),
Sabrina desenvolve, em conjunto a Flávio Ferreira, este argumento, propondo que a dimensão
de geração é crucial, especialmente, quando se interseccionam relações de cuidado a relações
de parentesco. A noção de cuidado tem sido bastante acionada em debates jurídicos e políticos
sobre direitos e deveres intergeracionais, nos quais é mobilizada em relação a outras noções
relativas ao parentesco, como consanguinidade, amor, abandono e responsabilidade.

Assim, ao abordamos o cuidado em contextos parentais argumentamos pela centralidade


em se considerar a dimensão intergeracional do cuidado. Tacitamente, é esperado que filhos/as,
quando crianças, sejam cuidado/as por seus pais e, de modo recíproco, espera-se também que

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esses/as mesmos filhos, e de modo mais específico filhas, cuidem de seus pais e mães na
velhice. Nas discursividades sobre maternidade solo, esta questão salta à vista quando
consideramos que as problematizações levantadas em torno da sobrecarga do cuidado de filhos
concentram-se sobretudo em experiências de maternidade de crianças pequenas. A questão em
pauta diz respeito ao fato de que a sobrecarga de trabalhos de cuidado e a exclusão de espaços
sociais é muito distinta se considerarmos uma mãe ou pai de uma pessoa adulta ou de uma
criança.

Essa assunção é, no entanto, posta em xeque em contextos nos quais filhos/as possuem
algum grau de dependência em virtude, por exemplo, de deficiências físicas ou cognitivas.
Considerando-se o curso esperado da vida, mães e pais, por serem mais velhos, terão maior
probabilidade em morrerem antes de seus/suas filhos/as. Nessa direção, coloca-se a questão:
quem cuidará dessas pessoas com algum grau de dependência quando mães e pais não tiverem
mais a possibilidade de exercer o cuidado ou não estiverem mais vivos? Como se conformam
os temores de mães e pais diante desse futuro possível e como, nas práticas concretas, a
necessidade de cuidados na velhice mistura-se, nessas vivências, com uma realidade em que
essas pessoas são também cuidadores/as de seus/suas filhos/as? São, dessa forma, processos
biológicos, reais e reconhecidos por sinais externos do corpo, mas elaborados simbolicamente
e consumados em sentidos políticos (MINAYO e COIMBRA JR, 2002: 15). Como aponta
Helena Fietz, em seu trabalho com mães que lutam por moradia assistida para seus filhos/as
com deficiência, com o curso da vida e o envelhecimento tanto das mães e pais quanto dos
filhos/as, as relações se complexificam reverberando na vida das famílias e reconfigurando
pressupostos dados no parentesco (FIETZ, 2017: 13).

Nesta direção, Heike Drotbohm e Erdmute Alber (2015), inspiradas na proposição


teórica de Janet Carsten (2000; 2004) que toma o parentesco como relacionalidade e como algo
que é feito por práticas cotidianas mais do que por regras formais, problematizam o cuidado
como uma atividade que também pode presumir, produzir ou confirmar laços de parentesco.
Para elas (DROTBOHM; ALBER, 2015:7), há duas formas de se ligar cuidado e parentesco,
sendo elas: o cuidado como algo que confirma o parentesco já estabelecido e o cuidado como
uma forma alternativa para se criar laços de parentesco.

Uma mãe que assume integralmente os cuidados por uma criança pequena ou uma mãe
que cuide de um/a filho/a adulto com algum grau de dependência estariam confirmando laços
de parentesco e correspondendo, em alguma medida, a uma visão normativa sobre

9
parentalidade. Essas situações são permeadas não só pela positividade moral posta na ideia de
cuidado, mas pelos complexos imbricamentos entre parentesco, cuidado e modelos normativos
de família. Na visão social mais normativa e conservadora em termos de gênero, a imagem de
uma “mãe solo” pode supor um pai pouco presente (como tantos outros), mas a imagem de um
“pai solo” irá supor uma mãe abandonante (quase um monstro, na visão de alguns)5. As
acusações de abandono sofridas por mães que lutam por moradia assistida para seus filhos com
deficiência cognitiva são também exemplares dessa lógica (FIETZ, 2018).

Nas proposições que faz nos contextos de ativismo do qual toma parte, Thaiz Leão tem
pautado essa discussão sobre cuidado, parentalidade e gênero em seus pontos mais delicados.
Numa entrevista realizada no âmbito da pesquisa de Sabrina6, Thaiz aborda a dimensão política
e social da maternidade e da infância. Ela conta que tem entrado em boas discussões quando
levanta a temática, mesmo em meios ativistas, pois considera que parte da construção de uma
boa experiência em relação à maternidade e infância tem a ver precisamente com o
compartilhamento social de cuidados em relação às crianças e com uma reavaliação crítica
sobre o que constitui o amor e sobre as diferentes formas possíveis de maternar, não
necessariamente fundadas em constante presença parental. No curso da conversa, lembramos
que a questão é polêmica e todas nós já vivemos, como mães, pesquisadoras ou ativistas,
embates a este respeito. Recordamos de uma ocasião em que Sabrina, ao ser entrevistada por
um jornal para uma reportagem que tratava da exclusão de mães na universidade, havia
argumentado que o processo reprodutivo deveria deixar de ser visto como um encargo
exclusivamente feminino ou mesmo de modo tão individualista, defendendo a necessidade de
políticas públicas relativas à reprodução. Os comentários subsequentes dos leitores do jornal
foram aterradores, marcados por posições contrárias a qualquer investimento público em
questões reprodutivas e circunscrevendo, mais uma vez, a parentalidade à figura materna 7. Ao
ouvir este relato, Thaiz Leão complementa que mesmo em movimentos ativistas sobre
parentalidade não é incomum haver resistência em relação à partilha social do cuidado, mais
ainda, quando se levanta a possibilidade de experiências maternas menos ligadas ao “extremo
cuidado” ou à “extrema presença”. A visão social das mulheres e da maternidade como

5
A persistência da desigualdade de gênero nas visões sociais sobre as relações parentais reverbera em uma série
de outros contextos, tendo inclusive impactos em decisões jurídicas. A este respeito, ver, por exemplo, os casos
de alienação parental analisados por Malta, 2019.
6
A entrevista foi realizada em 2019 e dela também participou como pesquisadora de Iniciação Científica Thais
Teles Rocha, que compunha a equipe do projeto “maternidade solo”.
7
Ainda que não seja possível adentrar aqui, há também, em debates deste tipo, um julgamento acerca da
sexualidade da mulher, em comentários na linha: “fazer filho é fácil, difícil é cuidar”.

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intrinsicamente vinculadas ao cuidado permanece em variados contextos e, alguma medida,
bloqueia a possibilidade de se discutir abertamente os encargos relativos ao processo
reprodutivo.

Desse modo, argumentamos aqui que cuidado diz respeito também a normas sociais e,
no contexto do parentesco, em particular, está relacionado a expectativas sociais em torno de
modelos de família. Mais do que apenas confirmar laços de parentesco, a mobilização da noção
de cuidado em certos contextos familiares produz também hierarquias entre modelos de família
e institui sofrimentos sociais entre aquelas pessoas que não correspondem ao ideal normativo.

Noção de pessoa, direitos políticos e o cuidado

Nenhuma criança é meramente problema privado de seus pais. (KITTAY, 2010: 410,
tradução nossa) 8.

Eva Kittay, filósofa, mãe de uma mulher com deficiência cognitiva severa, tem
problematizado a concepção filosófica de pessoa tendo como ponto de partida diagnósticos de
significativos déficits cognitivos. Contrapondo-se a alguns filósofos9 que defendem que pessoas
com déficits mentais severos tenham um status de humanidade mais baixo do que aquelas com
capacidades cognitivas consideradas normais, Kittay (1999; 2010) tem problematizado as
consequências deste tipo de postura, tais como justificar cortes nos gastos com cuidado,
educação e habitação ou, de modo mais extremo, justificar experimentos com pessoas nestas
condições que possam resultar em sofrimento e morte. Carlson e Kittay (2010:18) lembram, no
entanto, que pessoas com significativa deficiência cognitiva não são os únicos seres humanos
que ficam aquém dos critérios filosóficos tradicionais sobre pessoa. Em situação similar,
estariam também pessoas em estágio avançado de demência e mesmo crianças pequenas.

A reflexão de Kittay, ao se contrapor aos argumentos destes filósofos, é na dupla


posição, como mãe e filósofa. Menos do que escolher um dos lados – sua experiência como
mãe versus sua posição como filósofa – é justamente sua relação pessoal que fundamenta seu

8
No original: “No child is simply the parent´s own private matter” (KITTAY, 2010: 410).
9
Não vamos nos aprofundar neste ponto pois foge ao escopo do trabalho. Entre os filósofos com os quais Kittay
trava esta interlocução estão Jeff McMahan e Peter Singer. Ver a este respeito o diálogo travado entre eles em:
CARLSON e KITTAY, 2010.

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argumento filosófico e a leva a questionar como as problematizações abstratas sobre a noção
de pessoa encerram uma espécie de armadilha que obscurece a realidade. Ao situar a questão
desse modo, ela, como mãe, aponta que seu trabalho de maternidade apenas será possível se o
valor moral de sua filha for garantido e, do mesmo modo, isso não seria menos verdadeiro para
qualquer criança, independentemente de suas capacidades cognitivas.

Guardadas as devidas distâncias entre essa argumentação e as questões que abordamos


aqui, vale levantar a partir dela algumas reflexões. Primeiramente, tratamos de campos em que
os sujeitos são colocados em um status social adjacente aos critérios tradicionais da noção de
pessoa, como coloca Carlson e Kittay; em nossos contextos olhamos para práticas de cuidados
e políticas de assistência referentes às crianças pequenas e pessoas com deficiência. Em
decorrência disso, as mães que atuam nessa perspectiva que nomeamos aqui como uma
coletivização do cuidado – seja em redes de apoio ou políticas públicas para suporte de filhos/as
de mães solo ou para filhos/as com diagnóstico de autismo – lidam com um cenário social que
carrega estigmas em ambas as situações. A suposição de outra noção de pessoa sobre crianças
e pessoas com deficiência na sociedade produz o próprio esforço dessas mães em deslocar as
práticas de cuidado do privado para o público. E ainda, em se tratando dessa outra “categoria”
de pessoa, as próprias discussões em torno de suas corporalidades, subjetividades e agências
são colocadas em questão diante das noções de individualidade, racionalidade e autonomia na
sociedade contemporânea.

Essas maternidades, que não correspondem ao ideal normativo, são ainda atravessadas
por categorias morais, sobre o que é ser uma boa mãe ou sobre quem tem ou não direito a
assumir a maternidade. Do mesmo modo, está também em questão o que é uma família, quais
as responsabilidades de uma família e o que constitui o cuidado e o abandono. Nesta direção,
ao proporem uma nova terminologia para nomear sua experiência social, as “mães solo” estão
enfrentando questões morais que subjazem o sentido social de maternidade, paternidade e
conjugalidade. Às mães de filhos/as com deficiência, cabe uma responsabilidade de cuidado
que coaduna o bem estar do filho, assim como a responsabilidade por uma suposta adequação
à considerada normalidade. Em ambos os casos, suas maternidades estão sob um julgamento
acerca de suas capacidades de cuidado: serão elas boas mães? A relação entre essas mães e seus
filhos/as, mesmo em situações díspares, evidenciam maternidades que escapam das disposições
sociais e morais recorrentes, e uma relação que não pode ser pensada com suas partes
dissociadas, pois corporalidades, subjetividades e posicionamentos são construídos nessas
relações frente ao social.

12
No caso das maternidades solo, outra dimensão pungente quando se discute a noção de
pessoas e direitos é também a interseção de raça e classe. Contextos monoparentais femininos
são estatisticamente muito mais frequentes entre a população mais pobre e negra. A própria
proposição da terminologia “mãe solo”, combatendo a expressão “mãe solteira”, traz uma
discussão sobre uma forma de estigmatização que correlaciona família, gênero, raça e classe.
Subjacente à imagem da mãe solteira, estão, na visão social mais conservadora, a pobreza e a
criminalidade entrelaçadas, a imagem da mãe que produz pessoas à margem. Pessoas que
estariam aquém dos direitos humanos. Presente até hoje na fala de políticos, com a do ex-
governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral e seu apoio ao aborto, não como direito, mas como
medida de prevenção à criminalidade10. Ou, de modo mais taxativo, na recente afirmação do
vice-presidente Hamilton Mourão quando avalia de modo categórico que casa “onde não há pai
e avô, é mãe e avó” é “fábrica de desajustados”11. Ao analisar a política de saúde no século
XVIII, Michel Foucault (1979) mostra o como a reorganização da medicina culmina na ideia
de o que par conjugal seria o centro produtor de indivíduos. Mais do que gerar uma
descendência, o casal deveria produzir seres humanos nas melhores condições possíveis. Na
lógica atual de discursos políticos mais conservadores, os humanos produzidos por “mãe” ou
por “mãe e avó” seriam, em alguma medida menos humanos e, portanto, menos sujeitos de
direitos.

Eva Kittay também propõe pensar o cuidado enquanto uma questão de justiça social,
por entender a interdependência das relações humanas. E é nesse sentido que a autora questiona
os ideais de autonomia e independência enquanto universais e absolutos (KITTAY, 1999). A
autora defende que a dependência é parte da condição humana e, portanto, garantia de
manutenção de vida e de dignidade. Como coloca Anahí Mello e Adriano Nuernberg (2012) a
respeito do trabalho de Kittay, essa noção de interdependência como valor humano implica
pensar o cuidado também como uma responsabilidade do Estado e da sociedade, desvinculando
a ética do cuidado como naturalmente feminina e a redesenhando pautada nos direitos humanos.
Dessa forma, reconhecendo as dependências e deficiências como condições inerentes à
diversidade humana. Colocar o cuidado como uma questão de justiça social, portanto, implica
em considerar as dependências das relações, e de uma forma prática, por exemplo, elaborar

10
FREIRE, Aluizio. Cabral defende aborto contra violência no Rio de Janeiro. Portal G1. Acesso em 12/11/2020.
Disponível online via: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-
CABRAL+DEFENDE+ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html.
11
GIELOW, Igor. Casa só com 'mãe e avó' é 'fábrica de desajustados' para tráfico, diz Mourão. Folha de S. Paulo,
17/09/2018. Disponível online via: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/casa-so-com-mae-e-avo-e-
fabrica-de-desajustados-para-trafico-diz-mourao.shtml. Acesso em 12/11/2020.

13
políticas públicas e direitos que visem não apenas as práticas de cuidados e assistências
relacionadas aos dependentes e pessoas com deficiência, mas também às famílias e suas
cuidadoras. Trata-se dessa forma, de uma desprivatização do cuidado.

À guisa de conjunções reflexivas sobre maternidade e desprivatização do cuidado

Se as problematizações postas na produção da web sobre “mães solo” tendem a se focar


nas desigualdades de gênero nas relações parentais e na constituição de redes de apoio,
formadas por pessoas amigas ou da família, nos desdobramentos políticos deste debate a
questão se estende para outras dimensões, como a licença parental, as creches em período
integral, as políticas das empresas relativas à parentalidade, o acesso de pessoas com crianças
pequenas a ambientes sociais dos mais diversos. Uma questão que tem sido central nas reflexões
políticas contemporâneas sobre maternidade, diz respeito à infância e ao modo como a
sociedade se estrutura em relação a ela, evidenciando a dimensão do público versus privado em
relação ao cuidado de filhos/as. Uma perspectiva feminista dessas reflexões pondera que uma
boa experiência de maternidade e uma boa infância devem ter como condição o
compartilhamento social de cuidados em relação às crianças e uma reavaliação crítica sobre as
diferentes formas possíveis de maternar.

Em uma perspectiva semelhante, mas com alguns pontos divergentes, as atuações de


mães de pessoas com deficiência têm evidenciado problematizações a respeito dessa outra
maternagem. Diante de uma maternidade que desvia das expectativas construídas socialmente,
essas mães desenham outras formas de maternar. Em paralelo à perspectiva tratada pelos
discursos feministas sobre um cuidado e criação que não sejam exclusivamente destinados às
mães, no contexto das deficiências, a presença constante e a persistências dessas mães em
relação aos cuidados são vistas como formas de se opor às premissas sociais de que suas
maternidades são incompletas ou problemáticas. Especificamente em relação ao autismo, essas
relações se tornam mais complexas na medida em que ainda há, no imaginário social, a ideia
de que as causas do autismo advêm de uma má criação dos pais, uma falta de amor ou
comprometimento. Sendo essa teoria refutada por estudos médicos, as práticas e atuações da
maioria dessas mães também desmentem esse imaginário de uma “mãe geladeira”. Mais uma
vez, as disposições sociais e morais sobre a “boa mãe” são colocadas à prova.

14
Nesse contexto, emergem atuações dessas famílias de pessoas com autismo no âmbito
público, sendo que as mobilizações por políticas públicas ou efetivação de direitos revelam uma
faceta do cuidado – tão múltiplo – como político. Assim, as mobilizações de mães por direitos
garantidos também se fundamentam em uma premissa da coletivização do cuidado. Aqui, não
mais como uma coletivização apenas em torno de redes de apoio, mas como uma
responsabilização do Estado para a inclusão de seus filhos na sociedade considerando suas
particularidades e promovendo a autonomia e independência. Após o evento da pandemia de
Covid-19, e os debates sobre o isolamento das pessoas – carregando suas tantas problemáticas,
dificuldades, dores e resiliências – pessoas com deficiência e algumas mães trouxeram à tona a
proximidade de suas experiências: “pessoas com deficiência e suas famílias, sempre estiveram
em isolamento”.

Para finalizar, trazemos um evento emblemático de todas as discussões apresentadas até


aqui, que correlacionam as maternidades e as dependências, assim como as dimensões políticas
e coletivas acerca das práticas de cuidado. Em 2019, o GESEX (Grupo de Estudos de Gênero
e Sexualidades) do qual fazemos parte, organizou, na UFMG, um seminário12 sobre famílias e
direitos com o objetivo de trazer uma interlocução entre pesquisas acadêmicas e movimentos
sociais. Nesse evento, nossos campos se encontraram: Thaiz Leão, a criadora do projeto “Mãe
solo” e uma mãe e um pai da associação para familiares de pessoas com autismo compunham
a mesa de debates sobre famílias, direitos e cuidados. Outras pesquisadoras também
compunham a mesa que prezava pela diversidade de experiências, tanto pessoais como de
campos de pesquisa, a partir das quais as relações familiares eram enfocadas.

Thaiz Leão discorreu sobre suas lutas políticas de apoio à maternidade e infância,
entrelaçando sua experiência materna às ações políticas que têm desenvolvido. Enfatizou as
desigualdades de gênero, as situações de violência que atendeu, tendo focado principalmente
as dimensões mais desafiantes da maternidade. Enquanto esta e outras falas, baseadas em um
viés feminista, discutiam sobre a maternidade compulsória e padrões de comportamentos
sociais e morais impostos às mães, uma das participantes deu um relato que colocava em xeque
muitas dessas questões sobre as configurações de parentalidade. Minimamente, sua fala e as
divergências exaltadas refletiam o quão desafiante, teórica e politicamente, pode ser o debate
sobre cuidados e parentalidade.

12
I Seminário Famílias, Políticas e Direitos: desafios contemporâneos. Realizado na Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da UFMG, em novembro de 2019.

15
A mãe contou sobre o processo de diagnóstico de autismo do filho e como isso mudou
suas relações de maternidade. Afirmou que, por muito tempo, achou que não daria conta de ser
mãe, mas que deixou a profissão, os projetos e trabalhos que desenvolvia e foi “ser mãe e cuidar
da família”. De alguma forma ela colocava como suas percepções sobre a maternidade foram
reconfiguradas diante do diagnóstico, e outra possibilidade de maternagem foi acolhida por ela.
Apontou como assumiu muitos papéis que lhe eram impostos na maternidade, principalmente
em uma “maternidade atípica”, mas que isso não recaía para ela como um problema, um fardo,
ou algo com necessidade de mudança. Ela concluiu: “eu tenho muito orgulho de ser mãe e fazer
isso tudo”.

Ainda sobre esse deslocamento das percepções sobre a maternidade em contextos de


deficiências, a mãe também enfatizou como o discurso da pena e/ou da realização perpassa por
muitas falas se referindo às mães de pessoas com deficiência, com ênfase ela afirmou “detesto
que me chamem de guerreira, detesto”. Para quem ali conhecia a obra de Thaiz Leão, a despeito
das distâncias entre as posições das duas mulheres, era impossível não se lembrar de que
também Thaiz detesta o rótulo guerreira. Em uma série de ocasiões, em sua obra e em
entrevistas, problematizou o quanto o rótulo, que supostamente seria um elogio, esconde uma
naturalização social de que os filhos são encargo exclusivo das mães.

O debate foi se tornando enérgico, algumas das interlocutoras da mesa exaltavam as


divergências de experiências e contestavam uma “maternidade romantizada”, uma maternidade
que não é homogênea e muito menos privilegiada. Algumas discussões, práticas e teóricas,
foram levantadas a respeito dos cuidados impostos às mulheres e mães, foi evidenciado como
ali se materializam práticas cotidianas dentro das famílias, acerca das diversas ações de mães,
e que, por vezes, se relevam como consequências de questões estruturais amplas acerca da
parentalidade, das imposições de gênero e da desprivatização dos cuidados de filhos/as. De
modo intenso, o seminário, que propôs uma interlocução entre pesquisas acadêmicas e
movimentos sociais, trouxe à tona problematizações teóricas encarnadas em experiências
concretas das pesquisadoras tanto quanto das ativistas e afetou profundamente as pessoas
engajadas naquela conversa. Na saída, um homem, ainda emocionado, comentou com Bianca
que tem uma filha que foi “mãe solo” e que percebeu, a partir daquelas falas, que ela poderia
ter passado por experiências que ele nunca imaginou.

A conjunção de reflexões e experiências maternas que se encontraram ali afetou a nós


mesmas, Sabrina e Bianca. Como pesquisadoras de questões parentais e mães de crianças

16
pequenas, já vivemos e objetivamos analiticamente, em muitas ocasiões, os sentimentos
ambíguos que permeiam a experiência materna. Experiência esta que não é estritamente
individual, mas fundamentalmente histórica e social (SCOTT, 1998). Dimensões estas que não
estão desvinculadas uma da outra, como bem aponta Avtar Brah (2006: 364) “na prática, a
experiência como relação social e como o cotidiano da experiência vivida não habitam espaços
mutuamente exclusivos”. Isto é, a experiência de maternidade de uma mulher branca brasileira,
de camada popular, moradora de uma periferia urbana, que se considera “mãe solo” diz respeito,
a um só tempo, às relações mais amplas de gênero, classe e raça no Brasil contemporâneo e às
vivências específicas daquela mulher nas quais essas categorias se atualizam na prática.

Como construções culturais, as experiências são também permeadas por valores morais.
Expô-las é também expor-se a possíveis julgamentos. Tudo isso diz respeito ainda à própria
categoria maternidade, como um termo que abarca uma multiplicidade de experiências, que,
mesmo quando similares, nunca serão idênticas. A mesa, com sua heterogeneidade de
experiências, permitiu refletir sobre a importância de políticas públicas eficientes que sejam
interseccionais, que percebam as diversidades e particularidades e que abarquem as
possibilidades da maternidade. Na mesa, irrompiam pedaços de vivências tão diversas e tão
complexas que iam ao encontro das nossas próprias experiências e nos levavam a perceber o
quão complexos são os debates acerca de um tema tão fundante do nosso social, a parentalidade
e as relações de interdependência. Em uma mesa repleta de conhecimentos teóricos e
acadêmicos, mas também de práticas e vivências cotidianas, os embates das posições de
mulheres e mães colocavam uma reflexão sobre o complexo sistema de significação que
constrói a maternidade como categoria cultural. Diante de acordos ou contradições, as
construções sociais, morais e políticas sobre as experiências das maternidades eram perpassadas
por ideias, corpos, ventres e historicidades. Naquele contexto, a complexidade das questões
referentes às maternidades, incluindo a responsabilização social do processo reprodutivo, a
reconfiguração da parentalidade ou a coletivização do cuidado, se tornavam ainda mais
evidentes, assim como a profusão dos sentidos do cuidado. As maternidades que não cabem em
uma palavra apenas, que nem mesmo o plural pode sustentar. Experiência, importante lembrar,
é também uma construção cultural, longe de ser uma diretriz para a “verdade”, é uma “prática
de atribuir sentido, tanto simbólica como narrativamente” (BRAH, 2006: 360).

Uma última reflexão perpassa todas essas discussões aqui levantadas: qual o papel
dessas mães nos processos de transformação sociocultural? Suas atuações políticas se colocam
muitas vezes em colaboração com as disposições do Estado, já que, como apontado

17
anteriormente sobre a politização da maternidade, cada vez mais na América Latina, a atenção
às famílias tem sido meio de intervenção humanizada de assistência, além de construção de
políticas inclusivas. Uma reflexão ficou marcada naquela mesa sobre famílias, direitos e
cuidados: a ideia de famílias como potências, quaisquer que sejam essas famílias.

Fechamos com uma reflexão de Thaiz Leão, que situa, de modo contundente a
necessidade de refletirmos criticamente sobre a interdependência e a responsabilização social
mais ampla sobre os processos reprodutivos:

A gente vai viver a gravidade, vai viver os tempos, vai chover pra todo mundo, vai. A
criança também é uma imposição do mundo, você pode escolher não ter filho, você
pode escolher não ter uma criança na sua casa, você pode escolher o diabo que for,
mas você vai ter que negociar consigo mesmo, o quanto você vai pagar essa dívida
em relação a essa criança aqui, porque essa criança aqui é você, essa criança aqui é a
galera que está em volta, essa criança aqui vai ser quem vai te atender quando você
estiver idosa, é isso que vai acontecer, essa criança tem função social inclusive para
você. [Thaiz Leão, entrevista concedida no âmbito da pesquisa de Sabrina Finamori,
em 2019].

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