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HISTORIOGRAFIA CRÍTICA
Esclarecimento e emancipação em tempos de neonacionalismos. A Escola de
Frankfurt e as metamorfoses da História
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O Instituto de Pesquisa Social foi fechado assim que os nazistas assumiram o poder, em 1933. Na
Alemanha saiu apenas o 1º. volume da revista. Os volumes 2 a 7 foram publicados em Paris (até que os
nazistas a ocupassem, em 1940), e os dois últimos volumes (8 e 9) , em Nova Iorque.
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fundados por Lucien Febvre e Marc Bloch em Estrasburgo, em 1929. Embora não se
encontre referência mútua entre as duas publicações nos anos 1930, bem se entende
como a realidade então contemporânea suscitava uma profunda revisão dos métodos de
abordagem da experiência social e histórica de um e de outro lado do Reno.
Antes da 1ª Guerra Mundial, com o Archiv, no intervalo das catástrofes, nos
anos 1930, com os Annales e a ZfSF, pairava sobre os empreendimentos a ânsia de
enfim emancipar pensamento e sociedade da imaturidade dolosa em que se haviam
mantido, apesar do alerta pungente de Kant, ao escrever, em 1784, que o esclarecimento
(Aufklärung) se destinava justamente a libertar a humanidade desse grilhão.2
No discurso de posse de 1924, o veterano Grünberg proclamou princípios
orientadores para o novo Instituto de Pesquisa Social diretamente hauridos no
unitarismo metodológico da filosofia neodespótica de Marx: “unicidade
[Einheitlichkeit] na formulação das questões e em sua resolução”.3 Essa unicidade
centralizadora não logrou o resultado objetivado por Grünberg. Não por falta de vontade
do autor, mas pelas circunstâncias políticas que envolveram a atualidade alemã do final
dos anos 1920 e do início dos anos 1930. Além do mais, Grünberg conservara uma
ligação direta com sua revista, podemos dizer: preferida, o Archiv. Somente após seu
afastamento e a chegada de Horkheimer à direção é que começam a se delinear os
contornos do que marca a Escola de Frankfurt: a teoria crítica.
Essa teoria não manteve o que Grünberg considerava, à época, ser uma espécie
de panaceia universal: o marxismo, mesmo em uma versão aparentemente mitigada.
Com efeito, a concepção de História como o caminho da atuação humana programada e
absoluta estava marcado, para ele e outros pensadores do austromarxismo, como Karl
Kautski ou Otto Bauer, pela inevitabilidade do determinismo socioeconômico marxista,
O caráter lacunar e inconclusivo desse determinismo já fora combatido por muitos
pensadores, mesmo se de modo indireto, como Max Weber, e foi fortemente ressaltado
por um contemporâneo, Ludwig von Mises. Em suas memórias, von Mises sublinhou o
fato de que a carência de opções na teoria econômica nos anos 1920 conduziu a um
interesse exagerado pelo determinismo marxista. Chegou mesmo a dizer de Otto Bauer
que, se não tivesse sido tão tacanhamente apegado ao marxismo de então, poderia ter-se
2
Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? Berlinische Monatsschrift. Dezember-Heft 1784. S. 481-
494. Ed. brasil. Via Verita, 2011. Há também a tradução de Luiz Paulo Rouanet em linha:
http://ensinarfilosofia.com.br/__pdfs/e_livors/47.pdf
3
Carl Grünberg, Discurso inaugural na instalação do Instituto de Pesquisa Social, em Frankfurter
Universitätsreden, vol. XX, Frankfurt am Main 1924, p. 8.
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Memoirs (1940). Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2009, p. 14.
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Uma breve e pertinente introdução ao Círculo de Viena: Mélika Ouelbani. O Círculo de Viena. São
Paulo: Parábola Editorial, 2009.
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Theodor W. Adorno/Max Horkheimer. Dialektik der Aufklärung. Philosophische Fragmente.
Amsterdam: Querido, 1947. Edição brasileira: A Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985. O livro foi redigido em cooperação entre Adorno e Horkheimer, entre 1939 e 1944, quando se
e o trava asilados os Estados U idos. O su título Frag e tos filosófi os sugere erto aráter
ensaístico, pois os textos são resultado das conversas entre os autores, registradas por escrito pela
esposa de Adorno, Gretel. Somente em 1969 foi reeditado, em alemão.
7
Em M. Horkheimer. Gesammelte Schriften (ed. Gu seli “ h id Noer , vol. , „Dialektik der
Aufkl ru g u d a dere “ hrifte 9 -1950. Frankfurt/Meno: DTV, 1987, p. 293-319.
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Jörn Rüsen. Historik. Theorie der Geschichtswissenschaft. Colônia-Viena: Böhlau, 2013, p. 215 e 260.
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O livro de M. Horkhei er, E lipse of Reaso , de 9 7, foi traduzido para o alemão com o título de
Críti a da raz o i stru e tal Zur Kritik der instrumentellen Vernunft. Frankfurt/Meno: Suhrkamp,
1967).
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Crítica da Razão Pura (1787), B 779.
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SILVA, Franklin Leopoldo e. Conhecimento e Razão Instrumental , Psicol. USP, São Paulo, v. 8, n. 1,
1997. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-65641997000100002.
12
Christoph Halbig/Tim Henning (orgs.). Die neue Kritik der instrumentellen Vernunft, Frankfurt/Meno:
Suhrkamp, 2012.
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Ernst Bloch. Das Prinzip Hoffnung. Obras completas. Frankfurt/Meno: Suhrkamp, vol. 5, 1985. Escrito
durante o exílio nos Estados Unidos, entre 1938 e 1947, foi publicado inicialmente na antiga Alemanha
Oriental, entre 1954 e 1959. Edição brasileira: São Paulo: Contraponto Editora, 2005.
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Ver Estevão de Reze de Marti s. Utopia: uma história sem fim , e Marcos Antônio Lopes; Renato
Moscatelli (orgs.). Histórias de países imaginários. Variedades dos lugares utópicos. Londrina: Editora da
Universidade Estadual de Londrina, 2011, p. 11-19.
15
Hans Jonas. Das Prinzip Verantwortung: Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation.
Frankfurt/Meno: Suhrkamp, 1979.
16
Erkenntnis und Interesse. Frankfurt/Meno: Suhrkamp, 1968. Technik und Wissenschaft als „Ideologie“.
Frankfurt/Meno: Suhrkamp, 1968
17
Civilisation matérielle, économie et capitalisme. Paris: A. Colin, 1979, 3 vols..
18
Huis clos [Entre quatro paredes] (1944). Extrato em
http://www.philo5.com/Les%20philosophes%20Textes/Sartre_L%27EnferC%27EstLesAutres.htm
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19
M. Horkhei er. Ges hi hte u d Psy hologie 9 , e A. Schmidt (org.). Kritische Theorie. Eine
Dokumentation. Frankfurt/Meno: S. Fischer, 1968. Vol. I, p. 9-30.
20
Theodor W. Adorno. Dialética negativa. Rio: Jorge Zahar, 2009 [Or. alemão 1996], p. 278.
21
Ver Theodor W. Adorno e outros. Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie. Neuwied/Berlim:
H. Luchterhand, 1966.
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Nesse sentido a ideia de Horkheimer, de subsumir Descartes em Marx, por exemplo, como escreve no
pós-escrito de 1942 ao artigo Teoria tradicional e teoria crítica (1937), vai nessa direção. Por certo o
contexto de então, como já lembrado, tem peso específico na análise do autor. Ver Bárbara Freitag.
Teoria crítica: ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 38 ss.
23
Ver J. Rüsen, o. cit., p. 131.
24
Ver J. Rüsen, o. cit., p. 128, nota 105; p. 141.
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por horizonte a humanidade como contexto e a humanização como projeto. Uma agenda
que provém do modelo pragmático idealizado no século 18, como motivo e modelo do
esclarecimento. Uma razão esclarecida é uma razão crítica, uma razão crítica é o modo
no qual o agente racional humano se torna historicamente consciente e praticamente
atuante.
Rememorar essa agenda e reformulá-la para hoje, no que aqui segue brevemente,
é uma forma de situar o plano do debate em que a perspectiva crítica ganhou foro de
padrão metódico da História em geral e da historiografia em particular.
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25
Culture and Imperialism. Nova Iorque: Vintage Books, 1994.
26
Ver Bernd Witte. Friedrich Nicolai, em Deutsche Dichter. Leben und Werke deutschsprachiger Autoren.
Stuttgart: Reclam, 1988, vol. 3, p. 254-265.
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das fontes de formação de Kant e de sua geração.27 O espírito das Luzes informou o
interesse social e científico pela história, em particular no aspecto da crítica da tradição
e a sensibilidade individual e coletiva quanto à mudança, à educabilidade, ao
aperfeiçoamento.
Independentemente das interpretações restritivas, deterministas ou fatalistas
construídas ao longo do século 19 e fortemente politizadas durante o século 20, a
posição iluminista trouxe para a ciência histórica moderna quatro inovações de monta:
(a) a ideia corrigida de progresso – isto é, a humanidade, tomada enquanto
coletivo-singular (nas duas acepções enunciadas acima) – como referência de
perfectibilidade constante do agente, de suas razões, de seus motivos, de seus objetivos;
(b) os métodos rigorosos de controle da validade das asserções, cujo fundamento
é a pesquisa empírica e a intersubjetividade;
(c) a perspectividade do conhecimento histórico – vale dizer: qualquer
conhecimento histórico é sempre construído (embora não inventado) a partir de certo
ponto de vista (habitualmente teórico) e carece de sustentação; do que decorre a quarta
inovação;
(d) a forma expositiva do conhecimento histórico deve ser sistematicamente
argumentativa, demonstrativa.
A ciência histórica fornece, por conseguinte, com a densidade do controle
metódico da teoria e da prática de pesquisa, a tessitura explicativa das necessidades de
auto-identificação dos agentes racionais humanos, mediante referência crítica ao
presente, sem contudo submeter-se a este ou deixar-se por ele instrumentalizar. Assim,
“luzes” têm sempre a ver com conduta metódica, com racionalização, com disciplina,
com autocontrole, estabelecendo ordem e contenção na espontaneidade. A crítica, que
se exprime por uma dúvida metódica, deve pois começar pelo próprio “meio ambiente”
universitário que parece ter-se dela assenhoreado. A universidade contemporânea parece
enfeitiçada pela descoberta do poder paralelo que imagina possuir com relação ao
estado, conquanto dependa dele em quase tudo. Tem-se a impressão de que se comporta
como um aprendiz de feiticeiro que subitamente se vê ultrapassado pelas forças que
desencadeou, ao insistir na simplificação politizada das equações sociais. No século 20
– em particular na segunda metade –, o itinerário dos estados e a fragilidade das
sociedades levaram ao surgimento de um ceticismo crescente quanto à possibilidade de
27
Einleitung zu der Vernunfft-Lehre. Halle (Saale), 1691.
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qualquer instituição que seja (e ainda menos indivíduos) poder conduzir evoluções
socioculturais complexas e levar os homens (ou a humanidade, no sentido do coletivo
singularizado) a uma práxis histórica efetiva como sujeitos conscientes da ação no
tempo. A história, com sua chamada à consciência clara dos percursos reais dos homens
e de suas sociedades, contribuiria com o ‘roteiro’ de construção da identidade e com o
‘porto seguro’ nos vendavais das transformações valorativas, econômicas e políticas.
Constata-se, assim, uma vez mais, o caráter mutante das teorias da racionalidade
e das concepções de História, tangidas pela necessidade imperiosa de responder
criticamente aos desafios de cada tempo.28
Outubro de 2013
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Ver Reinhart Koselleck. Crítica e crise. São Paulo: Contraponto, 2012. (Or. aAlemão 1954).
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