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Tempo e resistência: Ecléa e o método

em psicologia social
Time and resistance: Ecléa and the social psychology
approach

Temps et résistance : Ecléa et la méthode en psychologie


sociale

Tiempo y resistencia: Ecléa y el método en psicología social

Resumo
Este ensaio tem como base os trabalhos de Ecléa Bosi, com foco especial em suas contribuições
metodológicas para a concepção e condução de pesquisas envolvendo entrevistas de memória social.
Trata-se de leitura com objetivo de melhor compreender suas contribuições. Percorro seus textos e
procuro fazer alguns apontamentos, tentando compartilhar com o leitor aquilo que aprendi sob sua
orientação. Procurei sistematizar modestamente essas lições, entendendo que são contribuições
atuais e preciosas não só para a Psicologia, mas para as demais ciências humanas e sociais. Por fim,
procuro ressaltar a dimensão política e a atualidade de suas contribuições, estabelecendo
interlocução entre seu ponto de vista, debates contemporâneos sobre a experiência do tempo, e
formas de resistências sociais ancoradas na memória e nas tradições dos oprimidos.

Palavras-chave:
memória social; Ecléa Bosi; entrevista; psicologia social

Abstract
Based on Ecléa Bosi’s oeuvre, this essay focuses on her methodological contributions for designing
and carrying out research involving social memory interviews. By examining and commenting on her
texts, the paper shares with the reader the lessons learned under her guidance. This systematization
effort stems from the understanding that such lessons are current and significant contributions not only
to Psychology, but also to other human and social sciences. Finally, the article highlights the political
dimension and the timeliness of Ecléa’s contributions, establishing dialogues between her point of
view, contemporary debates on the experience of time, and forms of social resistance anchored in the
memory and traditions of the oppressed.

Keywords:
social memory; Ecléa Bosi; interview; social psychology

Résumé
A partir de l’oeuvre d’Ecléa Bosi, cet essai se concentre sur ses apports méthodologiques pour la
conception et la réalisations de recherches impliquant des entretiens de mémoire sociale. En
examinant et commentant ses textes, l’article partage avec le lecteur les leçons apprises sous sa
direction. Cet effort de systématisation découle de la compréhension du fait que ces leçons constituent
des contributions actuelles et significatives non seulement à la psychologie, mais aussi à d’autres
sciences humaines et sociales. Enfin, l’article souligne la dimension politique et l’actualité ses
contributions, établissant des dialogues entre son point de vue, les débats contemporains sur
l’expérience du temps et les formes de résistance sociale ancrées dans la mémoire et les traditions
des opprimés.

Mots-clés :
mémoire sociale; Ecléa Bosi; entretien; psychologie sociale

Resumen
Este ensayo se basa en el trabajo de Ecléa Bosi, con un enfoque especial en sus contribuciones
metodológicas al diseño y realización de estudios que utilizan entrevistas de memoria social. Se trata
de leer con el objetivo de mejor comprender sus aportes. Reviso sus textos y trato de tomar algunas
notas para compartir con el lector lo que aprendí bajo su orientación. Traté de sistematizar estas
lecciones, entendiendo que son contribuciones actuales e importantes no solo a la Psicología, sino a
las demás Ciencias Humanas y Sociales. Finalmente, trato de enfatizar la dimensión política y la
actualidad de sus aportes, estableciendo un diálogo entre su punto de vista, debates contemporáneos
sobre la vivencia del tiempo y formas de resistencia social ancladas en la memoria y tradiciones de los
oprimidos.

Palabras clave:
memoria social; Ecléa Bosi, entrevista, psicología social

O trabalho da memória
A utilização de entrevistas de memória em psicologia social vem de longa data. Está em voga, ativa e
frequente nos dias atuais. Seus focos e públicos são diversos, mas destacam-se as pesquisas com
grupos excluídos ou marginalizados. Merecem destaque na América Latina (
Piper-Shafir, Droguet, & Íñiguez-Rueda, 2013) e no Brasil (Arns, 1985; Costa, 1980; Dória, 1978;
Tavares, 2005) os trabalhos que se dedicaram às memórias dos militantes, dos mortos e
desaparecidos durante as ditaduras civil-militares no continente. No continente europeu, merecem
menção os trabalhos de Vázquez (2001), entre outros.

No Brasil, o trabalho de Ecléa é pioneiro, tanto em seu objeto de estudo quanto em relação ao método
(Bosi, 1994, 2003). Coloca na berlinda a memória social como foco de pesquisa e desenvolve
perspectiva singular para sua compreensão.

Comecemos marcando sua compreensão sobre memória. Ecléa traz Bergson (1939/2006). Para o
autor, percepção e lembrança são dois atos que se penetram sempre, trocam algo de suas
substâncias. A percepção precisa do passado, que de algum modo se conservou no sujeito.

O passado não atua sobre nós de maneira homogênea. Construímos esquemas de comportamento,
que são a memória-hábito, necessária para a vida, mas via pela qual o sujeito se aprisiona em
esquemas e convenções sociais. É responsável pelo nosso adestramento cultural, adquirida pelo
esforço da repetição.

Mas existem outras lembranças, independentes, que frequentemente entram em conflito com a
memória-hábito. Segundo Bergson, a lembrança pura traz um momento único da vida. Tem caráter
evocativo, não repetitivo, assim como a matéria que tantas vezes origina o sonho e a poesia. “Pela
memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturado com as percepções
imediatas, como também empurra, ‘descola’ estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência” (
Bosi, 2003, p. 36).
Para Bergson, a memória pura está no reino privilegiado do espírito livre. Mas a memória relacionada
ao hábito é um redutor do espírito e da vida subjetiva: vita activa versus vita contemplativa; memória-
hábito versus memória pura.

Esquemas e categorizações, atitudes, estereótipos são conceitos clássicos de inspiração cognitivista,


fartamente encontrados nos diversos manuais de psicologia social (Aronson, Wilson, & Akert, 2018;
Garrido, 2007; Rodrigues, Assmar, & Jablonski, 1999). Há um pano de fundo comum aqui, tendo em
vista a presença da Psicologia da Gestalt nos trabalhos de Ecléa. A autora se orienta por fontes
clássicas, autores como Sollomon Asch (1952/1977), Kurt Koffka (1935/1975), Kurt Lewin (1945/1999),
entre outros, mas segue rumos diferentes. Ecléa era gestaltista. Sua pesquisa tem caráter empírico,
mas não é baseada em experimentos. A autora concebe a memória para além de um depositário de
informações a ser trabalhado por esquemas de processamento.

Com Bergson, estabelecemos então uma compreensão dialética entre memória e percepção. Ambas
não existem em estado puro, cabendo ao sujeito trabalhar na tensão entre as pressões e
determinações do presente e suas lembranças.

A partir de Halbwachs (1968/2006), psicólogo social a quem Ecléa dedica sua tese, temos um
contraponto. O autor sinaliza a relação entre a evocação da memória e o contexto social: como este
seleciona, restringe, fortalece ou enfraquece a memória dos indivíduos.

Diferente de Bergson, para Halbwachs, a memória individual tem sua existência na medida em que é
sustentada pelo grupo. Halbwachs relativiza o princípio bergsoniano de que o passado se conserva no
espírito de maneira autônoma: “Se lembramos, é porque os outros, a situação presente nos faz
lembrar” (citado por Bosi, 1994, p. 54).

Memória, narrativa, experiência


Walter Benjamin é referência central nos trabalhos de Ecléa. O ensaio “O narrador: considerações
sobre a obra de Nikolai Leskov” (1936/1994) dispara ideias germinais para quem estuda memória e
narrativa. Benjamin inicia seu texto revelando um distanciamento temporal ao leitor e certo exercício
de resgate de uma faculdade que perdemos. No centro desse declínio está o ocaso geral da
experiência humana, matéria-prima da narrativa.

Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em
sua atualidade viva. Ele é algo distante, e que se distancia ainda mais… Uma
experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância. É a experiência de
que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que
sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa,
o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos
parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (
Benjamin, 1936/1994, pp. 197-198)

Benjamin justapõe três formas discursivas: a narrativa, o romance e a informação. Tais formas
relacionam-se com o avanço da burguesia e com mudanças nos modos de produção, trazendo
implicações para a consciência, para nossas formas de perceber o tempo, de metabolizar as relações
com o mundo físico e social.

No romance, o autor se isola dos demais, assim como seu personagem e seu leitor. Distancia-se do
mundo comum para comunicar-se com algo singular, que o diferencia e opõe-se à sociedade que o
cerca.

Mas o contraponto central para Benjamin (1936/1994) é entre narrativa e informação:


Com a consolidação da burguesia, destacou-se uma forma de comunicação que, por
mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado definitivamente a forma
épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance,
mas é mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa nova
forma de comunicação é a informação. A informação aspira uma verificação imediata.
Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível “em si e para si”. Cada manhã
recebemos notícias do todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em história
surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações.
Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase
tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações…
O extraordinário e miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto
psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como
quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na
informação. (pp. 202-203)

A informação deve ser clara, explícita; tem valor de acordo com sua atualidade e se esgota assim que
lida e atualizada por outra informação. Sua lógica e temporalidade são as da mercadoria. A narrativa é
fortemente ancorada em uma experiência coletiva, tanto pregressa como presente. O narrador
trabalha as lembranças e as transmite para um ouvinte interessado em preservar tal experiência, pois
se reconhece nela.

Entre ouvinte e narrador, há o reconhecimento de pertença a uma comunidade, de seus tesouros


partilhados no tempo. O narrador navega por esse tempo, o constrói, transitando entre diferentes
períodos e volta para o presente. O ouvinte não quer que a narrativa se perca: é sua herança.

Ouvi de uma depoente que entrevistei dizer que eu era a criança que pergunta e que, sem ela, o velho
não fala.

A narrativa é uma forma artesanal de relação entre o indivíduo, seu passado e seu fazer.

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão, é ela própria, num
certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em
transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela
mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime
na narrativa a marca do narrador, com a mão do oleiro na argila do vaso. (
Benjamin, 1936/1994, p. 205)

A narrativa está fortemente enraizada na experiência popular, no trabalho e no fazer, sendo ela
mesma um ofício. Como outras formas artesanais, outros trabalhos ou ofícios, tende a desaparecer no
esteio da revolução industrial.

A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles
definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho
produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está
agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto
exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus
gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo
do que é dito.) A antiga coordenação da alma, do olhar e da mão, que transparece nas
palavras de Valéry, é típica do artesão, e é ela que encontramos sempre, onde quer que
a arte de narrar seja praticada. Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o
narrador e sua matéria - a vida humana - não seria ela própria uma relação artesanal.
Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência - a sua e a dos outros -
transformando-a num produto sólido, útil e único? (Benjamin, 1936/1994, p. 221)
A cadência da sociedade industrial fragmenta a memória, nos aprisiona no presente. O capitalismo
potencializa essa propriedade fabril, na medida em que encurta os tempos, intensifica as informações
e torna nossa relação com elas, com o mundo e com as pessoas superficiais. Corrói diretamente o
que sedimentaria a memória. A arte de narrar é avessa, portanto, à fragmentação inerente ao trabalho
alienado. Propiciá-la, em si, já consiste em uma forma de resistência. Tomemos de Benjamin três
orientações metodológicas para a pesquisa em memória social, seguidas por Ecléa.

Primeiro, não é fácil narrar, tampouco ouvir. Muito menos hoje. Ambos, narrar e ouvir, são trabalhos. O
primeiro, artesanal. O segundo, de entrega, uma espécie de contemplação respeitosa semelhante à
necessária para admirar uma obra de arte. Esse trabalho supõe certa afinidade e disposição para o
outro; supõe confiança pelo menos, algo que supere um encontro mecânico ou apressado entre
pesquisador e participante da pesquisa.

Segundo, a narrativa estabelece um sentido para quem narra e para quem escuta. Há aqui efeitos no
depoente, no pesquisador e nos leitores ou ouvintes que irão ler ou ouvir a entrevista. O ato de
realizá-la e registrá-la já consiste, portanto, em intervenção psicossocial.

Terceiro, a entrevista tem uma estrutura própria e singular. É uma totalidade, mas não é homogênea.
Suas lacunas, fissuras, contradições compõem sua totalidade, são elementos próprios e
indispensáveis da narrativa que não devem ser tidos como falhas. São pontos importantes para as
interpretações e sinalizam tensões sociais.

Memória, ideologia, resistência


O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma
humana e uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua
participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos
certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. (Weil, 1996, p. 411)

A narrativa traz o acontecimento vivido, a experiência. Não é mero substituto de fontes que não
temos. Pode servir a esse propósito, mas não se reduz a ele. Frequentemente, uma entrevista traz ou
revela informações que não estão em outros registros ou documentos. Mesmo nesses casos, a
informação habitada diferencia-se de outras fontes, na medida em que expressa esse metabolismo do
indivíduo em relação à história e às experiências coletivas.

Não é apenas o registro daquilo que os participantes falam que importa. Sem dúvida, dando voz aos
excluídos, registramos, criamos fontes e obtemos informações que frequentemente são desprezadas
ou ignoradas pela memória e historiografia oficiais. Isso já consiste em contribuição relevante. Mas o
trabalho da narrativa supõe outros produtos e efeitos. Enquanto resultado, tece os fatos em uma
perspectiva que envolve um sujeito em seu estilo. Traz a pertença social, a profissão, envolve o
indivíduo em sua integralidade com a história e a cultura que habita.

Uma dificuldade que temos em pesquisa com entrevistas é a “falta de tempo”, expressão comum da
dominação capitalista. Difícil parar para falar ou escutar, romper a cadência do presente. A pesquisa
de memória instaura um intervalo, força uma parada para ouvinte e narrador. Nesse contexto, a
entrevista em si é uma intervenção, espaço de elaboração e resistência.

Não raro o entrevistado agradece o pesquisador pela entrevista. Agradece a possibilidade de se


recompor, encontrar a si mesmo em seu trabalho evocativo, em um ofício quase clínico no encontro
entre ambos. “O sujeito se sente crescer… Psiquicamente e até somaticamente se sente
rejuvenescido. ‘Lembrar faz bem ao meu coração’, disse-me um velho cardíaco’. O corpo memorativo
recebe um tônico e uma força inesperada” (Bosi, 2003, p. 44)

É comum, durante as entrevistas, que o depoente se desautorize, que desmereça sua perspectiva
daquilo que viveu. Ele frequentemente busca uma “correção” de seu ponto de vista na versão aceita
pelo grupo. Durante as entrevistas, por vezes, vai confirmar em um livro aquilo que procura lembrar.
Em Entre a opinião e o estereótipo, Ecléa aborda tema clássico da psicologia social, articulando-o
com as pressões da ideologia dominante sobre a consciência proletária: “No processo de estereotipia,
os padrões correntes interceptam as informações no trajeto rumo à consciência” (Bosi, 2003, p. 116).
É frequente percebermos como o discurso dominante por vezes se sobrepõe, constrói um clichê
conveniente no lugar daquilo que seria uma narrativa orientada pela experiência do sujeito.

E nada garante que a memória ou a história Oral sejam utilizadas sempre em favor dos oprimidos.
Nada garante que não possam ser utilizadas para enaltecer ainda mais a perspectiva do opressor.
São conhecidos os trabalhos biográficos em torno de grandes personalidades políticas, alguns deles
de grande importância, mas que certamente não trazem um ponto de vista marginalizado ou excluído
(Fundação Getulio Vargas, 2020).

A memória localiza, orienta o indivíduo e seu grupo social. Ela sinaliza possibilidades para o futuro
que foram suprimidas. A memória vitaliza o passado, expõe suas heranças e faz que nos
posicionemos no presente a partir elas.

A memória deixa de ter um caráter de restauração e passa a ser memória geradora do


futuro. É bom lembrar com Merleau-Ponty que o tempo da lembrança não é o passado,
mas o futuro do passado. A nostalgia revela sua outra face: a crítica da sociedade atual e
o desejo de que o presente e o futuro nos devolvam alguma coisa preciosa que foi
perdida. (Bosi, 2003, pp. 66-67)

A memória pode resistir à ideologia e ao estereótipo, compondo ou pelo menos sinalizando outros
caminhos possíveis, indicando promessas do passado não realizadas e que não confirmam a versão
dos vencedores. Ela repõe possibilidades não cumpridas, impedidas por relações de dominação.
Afirma Gonçalves Filho (2008) sobre essa possibilidade de resistência em Ecléa:

Os episódios malogrados, que dão a razão dos vencidos, são os fundamentos de uma
Psicologia Social do Oprimido, como certa vez o Prof. João Alexandre Barbosa
caracterizou a obra de Ecléa Bosi. Compreendamos, daí, uma lição desta psicóloga
dedicada à memória, uma lição em grande acordo com Walter Benjamin: a memória
precisa devolver não simplesmente o passado, mas o que o passado prometia. A
memória, quando devolve o que o passado vislumbrou e o presente esqueceu, vinga os
vencidos! (p. 44)

Um estilo
Ecléa tem textos com enfoque metodológico (Bosi, 2003), mas nada parecidos com um manual. Há
muitos deles (Alberti, 2004; Bom-Meihy, 2004; Queiroz, 1991; Thiolent, 1981). Seus escritos mais
diretamente relacionados ao método passam longe desse formato, mais sugerindo do que
direcionando.

Nunca conversei com Ecléa sobre isso, mas creio haver algo proposital aqui. Seus textos deixam, à
semelhança das narrativas, aberturas para o pensamento autônomo. Eles não entulham de ideias o
leitor; oferecem espaços ao pensamento mais do que conduzem por trilhas inequívoca e
supostamente seguras. Escrever assim não é fácil: dá trabalho deixar o espaço certo no lugar certo.
São ausências pensadas. Gonçalves Filho (2008) sintetiza esse estilo:
Quem tenha sido aluno de Ecléa ou tenha lido o que escreveu haverá de me entender:
as aulas e os textos não distribuem fatos e ideias, mas movem fatos e ideias. Os fatos
assumem a figura de fatos vivos: acontecimentos. As ideias assumem a figura de ideias
vivas: pensamentos. Uma autora: colhe fatos e ideias como quem os vai semeando outra
vez. Vem, então, a inauguração. Cada ensaio destampa um pequeno tesouro. Há
passagens em que nada ou ninguém parece interpor-se entre o fenômeno examinado e
a ensaísta: vibra em modo puríssimo o estilo inconfundível da escritora: as frases curtas,
condensando ou abrindo um caminho. São como estações a meio caminho. O leitor vai
parar, vai naturalmente demorar, matutando o caminho feito ou o caminho sugerido.
Frases pequenas, como pedaços de pão: o leitor vai ler como quem se alimenta. (pp. 43-
44)

A estratégia (se podemos chamar assim) é sugerida em “Culto e enraizamento” (Bosi, 2003), ensaio
em que Ecléa reflete criticamente sobre traduções e outras formas de divulgação de passagens da
Bíblia que procuram simplificar, comentar ou esmiuçar suas mensagens, restringindo as
interpretações possíveis a uma leitura unívoca. Segundo a autora, as interpretações e simplificações
da Bíblia veiculadas para as classes populares limitam o caráter sintético e musical de suas
passagens. Constituem também um dano estético, uma vez que fecham uma obra aberta, fonte de
significações e interpretações infinitas, limitando-a a um sentido que convém à ocasião.

Grave também é o abuso da função conativa, comum e preponderante na imprensa e na propaganda.


Sua intenção é direcionar o comportamento.

Na publicidade comercial, a variedade aparente esconde uma ordem: - Compre! Toda


propaganda é movida por alguma imposição oculta ou aparente. Verificamos um
estreitamento, uma redução em funil da missão comunicante, que pode ser cognitiva,
emotiva, fática… No entanto, quantas vezes, numa mensagem destinada ao povo,
encontramos apenas a função conativa, uma tutela moral! (Bosi, 2003, p. 202)

Temos aqui pistas importantes e que tanto se aplicam à compreensão dos textos de Ecléa como
estabelecem perspectiva metodológica transversal para edição, apresentação e interpretação das
entrevistas. Tomemos, nesse sentido, mais do que regras e prescrições, certos cuidados, disposição e
abertura que devem acompanhar o pesquisador em todas as etapas da investigação.

Roteiro e condução das entrevistas


Em seus trabalhos metodológicos, Ecléa faz recomendações. O pesquisador deve ter calma de ir a
campo. Sugestão difícil diante do prazos das agências de fomento.

A confecção do roteiro dá trabalho, é instrumento que deve ser pensado. Não basta elencar temas,
mas pensar também nas palavras, por mais que não leiamos o roteiro para o depoente. Ele deve ser
construído com base em estudos sobre o tempo e o mundo do narrador.

Ecléa (2003) recomendava não apenas o estudo da história dos acontecimentos vividos, mas a leitura
de revistas, recurso a filmes, livros da época, elementos capazes de colocar o pesquisador mais
próximo do que o depoente viveu.

O roteiro não é uma camisa de forças, não supõe gabarito. Ele se ajusta, adapta-se às vicissitudes da
entrevista; modifica-se. Serve mais para o pesquisador não se perder e dar motes ao entrevistado.
Iscas para a memória. Podemos pegar aquilo que queremos, mas frequentemente pegamos outras
coisas.

É difícil separar a parte inicial de confecção das perguntas da totalidade da pesquisa. As perguntas
trazem nossas intenções e, frequentemente, enunciam interpretações finais. É no trânsito entre essas
certezas iniciais e nosso desejo de abrir um efetivo espaço de construção autônoma para o sujeito
que devemos confeccionar o roteiro.
Aqui se revela a mestria do pesquisador: uma pergunta traz em seu bojo a gênese da
interpretação final; é uma verdade que não se pode negar. E, no entanto, a liberdade do
depoimento deve ser respeitada a qualquer preço. É um problema sério de ética da
pesquisa. (Bosi, 2003, pp. 55-56)

Gonçalves Filho me ensinou a evitar perguntas opinativas ou perguntas que travem, inibam o trabalho
narrativo: “o que você acha”, “como foi” são expressões que induzem opiniões; “você lembra”, “você
pode me contar” sugerem que queremos ouvir uma estória. Perguntas que supõe opinião sobre temas
da pesquisa devem ficar preferencialmente para o final do roteiro.

É interessante também o recurso a pessoas, espaços e acontecimentos: “Você lembra alguém em


especial nesse período? Pode falar sobre ele?”; “Você pode me contar um episódio que vocês
viveram?”; “Você lembra seu lugar de trabalho? Você pode me falar como era?”; “Você lembra algum
episódio que te marcou nesse período? Pode me contar?”.

Feito o roteiro, seguem os primeiros contatos. Essa etapa varia, depende da escolha dos
participantes, da proximidade entre eles e o pesquisador, de tempos, disponibilidades etc. Desses
primeiros contatos surgem novos temas e perguntas. Adapta-se o roteiro novamente.

O primeiro encontro da entrevista tem especial importância. Complementa os contatos preliminares,


dá o tom, sugere o formato, dá elementos para nova adaptação do roteiro. Não são só temas novos,
mas tempos e estilos que se apresentam aqui. Ecléa recomenda nunca interromper o depoente.
Supostos desvios do tema, momentos demorados em que longas falas têm curso, em geral, têm seu
lugar e contexto na entrevista.

A realização das entrevistas não exige que concordemos com o interlocutor, mas supõe certa empatia,
necessária para que se abandone o próprio ponto de vista. Sem percebermos, transmitimos nossa
indisposição. Nossos pré-julgamentos são muitas vezes manifestos em desatenção, pressa, cansaço
prematuro, uma série de pequenos sinais que o pesquisador dá sobre si e que o depoente muitas
vezes percebe, ainda que de maneira intuitiva.

Entrevistei militantes sobre sua participação política, tema controverso que supõe tensas
divergências. Não é necessário insistir nelas. tampouco dissimular e fingir concordância. O
pesquisador deve se esforçar para ouvir, simplesmente ouvir, suspendendo ao máximo seus pré-
julgamentos e opiniões. Não é tarefa fácil. O pesquisador também é, ele mesmo, vítima de
estereótipos, convencionalizações, ideologia, limitações de formação.

Ao silêncio do depoente, muitas vezes, deve corresponder o silêncio e a paciência do pesquisador.


Paciência necessária para o trabalho da pesquisa, difícil de exercer dada nossa ansiedade e pré-
julgamentos. Difícil abandonar a si mesmo para acolher a perspectiva do outro. “O silêncio na
pesquisa não é uma técnica, é como que o sacrifício do eu na entrevista que pode trazer como
recompensa uma iluminação para as ciências humanas como um todo” (Bosi, 2003, p. 65).

Ecléa pontua em diferentes ensaios a simpatia que o pesquisador precisa ter em relação ao depoente.
Aproxima o vínculo de ambos à amizade, sem a qual a pesquisa seria uma espécie de impostura, de
apropriação indevida do trabalho do outro para fins de titulação e publicação.

É recorrente a expressão comunidade de destino nos trabalhos da autora, de inspiração na prática


radical de religiosos militantes.

Segundo Jacques Loew, é preciso que se forme uma comunidade de destino, para que
se alcance a compreensão plena de uma dada condição humana. Este conceito que nós
retrabalhamos para trazê-lo à Psicologia Social, já exclui, pela sua própria enunciação,
as visitas ocasionais ou estágios temporários no locus da pesquisa. Significa sofrer, de
maneira irreversível, sem possibilidade de retorno à antiga condição, o destino dos
sujeitos observados. (Bosi, 2003, p. 152)
Seria pedir demais tal sacrifício e disposição aos pesquisadores hoje. Em meu doutorado, utilizei a
expressão e fui prontamente corrigido por Ecléa, que me sugeriu outra bem mais branda: comunidade
de sentidos. Quem estuda, a partir da academia, o movimento operário, campesino, quilombola ou
qualquer outro, por mais que seja engajado e comprometido com seus militantes e causas, por mais
que se reconheça e identifique-se com eles, geralmente não partilha seus destinos. O que nos fica é o
desafio de um reconhecimento e uma empatia autênticos, na medida em que nossas limitações e
pertenças de classe nos permitam. Não subestimá-las já é um bom começo.

Transcrição, edição e apresentação das entrevistas


Diante dos prazos acadêmicos, a transcrição tem sido terceirizada: realizada por estagiários,
orientandos, empresas especializadas. Fica para o pesquisador a tarefa de arrumar o texto transcrito,
ajustá-lo àquilo que pretende fazer, recortar e analisar. Difícil fugir dessa tendência, mas o ideal seria
que entrevistador e transcritor fossem a mesma pessoa. Mesmo com apoio tecnológico, a transcrição
dá trabalho, mas propicia impregnação com o material, que é essencial para a interpretação.

A transcrição já inicia o processo de edição e mesmo de interpretação. É seu primeiro momento. E os


posteriores variam de acordo com características do trabalho e do foco da pesquisa. A atenção às
pausas, expressões, palavras, tempos, idas e vindas da fala varia muito nesse campo. Nos extremos
estão as distorções bruscas na fala, edições quase jornalísticas das entrevistas que mantêm delas
quase apenas o conteúdo; e as transcrições à risca, que procuram manter o oral quase intacto,
mensurando intervalos, mantendo todas as palavras pronunciadas.

Há diversas padronizações que podem organizar o processo de transcrição das entrevistas (


Manzini, 2016; Marcuschi, 1986). Há também autores que fazem distinção de diferentes etapas, desde
o processo de transcrição à edição (Bom-Meihy, 2004; Lima, 2015).

Nos trabalhos de Ecléa, houve edição das entrevistas. A autora compara a narrativa à música. E há
uma espécie de tom central nas entrevistas de memória, uma totalidade composta por um estilo e por
uma linguagem recorrente. Isso deve ser preservado a todo custo. As correções devem atentar para
não agredirem essa totalidade.

Por outro lado, por vezes o depoente repete gírias exaustivamente, interrompe expressões para
melhor formulá-las ou corrigi-las. Tais idas e vindas devem ser objeto de análise, e sua exposição
deve ser pensada para que não trunquem a leitura da entrevista. Temos esse cuidado, por exemplo,
quando transcrevemos falas de colegas docentes em congressos e seminários acadêmicos para
futuras publicações. Não há porque não tê-lo com os depoentes.

É obrigatório submeter as entrevistas depois de editadas ao crivo do depoente, conversar com ele
sobre a edição. Trata-se de aspecto ético na condução da pesquisa.

O formato final das entrevistas varia de acordo com o enfoque, com os temas e características da
publicação. O depoimento completo, sem segmentações, tal como Ecléa apresenta em Memória e
sociedade: lembranças de velhos (1994), tem a vantagem de preservar a totalidade, trazendo a
perspectiva integrada daquele depoente. Nesse formato, os temas são indissociados desse ponto de
vista, e o leitor deve estabelecer nexos, vínculos com os outros depoimentos a partir dos capítulos
finais.

No outro extremo, existem as tradicionais citações no corpo do texto. Organiza-se o trabalho em


temas, as entrevistas são recortadas e trechos são apresentados durante os capítulos do trabalho.
Há, aqui, um formato que privilegia os temas de análise e precisa estabelecer recortes a partir deles.
O risco é quebrar a totalidade do depoimento. Sua compreensão fica fragmentada, subordinada aos
temas abordados de investigação. Mas trata-se de um formato mais adequado a um artigo
acadêmico, em que seria impossível trabalhar com depoimentos completos ou mesmo trechos muito
longos. Nesses casos, Ecléa opta por citações curtas, raras ou simples menções às entrevistas.
Interpretação das entrevistas
Durante o mestrado ou doutorado, somos espremidos pelos prazos e demandas da pós-graduação.
Frequentemente, as teses e dissertações começam por longos capítulos teóricos e introdutórios, sem
dúvida necessários, mas que repetem aquilo que já sabemos. Preocupamo-nos também com o
aspecto metodológico. Faremos análise de discurso ou conteúdo? Que teoria nos orientará?

Vamos finalmente para nosso campo, no caso, aqui, as entrevistas. Estas sim, partes originais da
nossa pesquisa, objetos de nosso artesanato. Temos pouco tempo para ouvir, pensar, ruminar. E o
fazemos ostensivamente acompanhados por teorias e categorias que assumimos frequentemente de
forma rígida, estereotipada. Nosso olhar vem pesado, pouco disposto à alteridade, à suspensão de si
necessária à escuta e à interpretação.

Sintoma dessa indisposição são os capítulos finais das teses e dissertações, que frequentemente
repetem aquilo que as teorias citadas nos capítulos iniciais já afirmaram, utilizando os depoimentos
colhidos como espécie confirmação ou ilustração.

Difícil classificar o que Ecléa faz entre análise de discurso ou de conteúdo. Outros se empenharam
mais nessa distinção (Bardin, 2011; Minayo, 2001). Ecléa compreende o trabalho de interpretação
principalmente a partir de um esforço gestaltista em não perder de vista a totalidade da entrevista.
Insiste no perigo de segmentar e categorizar apressadamente; insiste no caráter unitário e integrado
dos depoimentos.

Em todo o meu trabalho sobre memória operou como um modelo exemplar de


conhecimento psicológico o pressuposto mais geral da teoria Gestáltica, aquele que
enlaça estruturalmente as formas de comportamento a complexos vivos de significação.
O princípio fundamental de que existem campos de sentido não só no psiquismo
individual - como nos demonstram os estudos célebres de Koffka e Wertheimer sobre
percepção de objetos - mas também na rede interpessoal de que são exemplo as
experiências do espaço social topológico de Lewin. (Bosi, 2003, pp. 50-51)

[A entrevista] pode ser vista como um todo antes de ser segmentada pelo analista.
Porque o sujeito aspira constantemente à totalidade, à plenitude de sua pessoa e sua
história, mas a sociedade absorve o indivíduo somente aquele tanto que pode ser
integrado no funcionamento social. (Bosi, 2003, pp. 63)

O todo da entrevista não é homogêneo, tem contradições. Lacunas, lapsos, esquecimentos são
importantes, revelam ideologia, tensões entre grupos de pertença, versões instituídas e aquilo que o
depoente viveu. O pesquisador deve navegar nessa tensão, sinalizá-la, partir delas e buscar
interlocuções entre entrevistas e autores.

Os lapsos são sinais da autenticidade da memória, do trabalho do depoente. Narrativas unilineares e


seguras se arriscam a deslizar no estereótipo, em discursos prontos do grupo e da classe de
pertença.

As interpretações não devem exaurir as entrevistas. Devem pontuar, sinalizar, avançar em um termo
suficiente para disparar no leitor percursos de pensamento ainda incompletos, mas sugeridos pelo
depoente e que não o dispensem. Esse termo é difícil de alcançar, requer que pensemos nas
ausências e lacunas em nosso próprio texto.

Ecléa nos ensina a atentar para os marcos de significação concentrada, pontos onde a memória se
detém, onde o depoente se esforça em especial para trazer aquilo que viveu.
Um vol d’oisseau sobre a evocação biográfica nos fará ver, como numa tapeçaria, um
mosaico de áreas mais ou menos densas, mais ou menos ligadas, algumas
abandonadas, outras cultivadas amorosamente. E pontos privilegiados, como torres ou
marcos, focos de atração na paisagem. (Bosi, 2003, p. 62)

Em sentido inverso aos marcos densamente narrados, há regiões áridas, esvaziadas, onde o narrador
omite ou passa com brevidade longos períodos de vida. São sinais de impactos sociais profundos na
vida do sujeito.

Nos idosos, as hesitações, as rupturas do discurso não são vazios, podem ser trabalhos
da memória. Há situações difíceis de serem contadas já que pareceram absurdas às
próprias vítimas delas.

O eclipse da palavra advém da destruição:

- do espaço biográfico das vítimas;

- da própria pessoa,

- da sua memória.

Disse o soldado nazista ao prisioneiro de Auschwits: “Nenhum de vocês restará para


testemunhar, e mesmo que alguém escape, o mundo não acreditará nele. (Bosi, 2003, p.
64)

Ao analisar as entrevistas ou temas teóricos em seus textos, Ecléa nos dá outras pistas de como
procurou ouvir seus depoentes e compreendê-los. Uma delas encontramos quando se refere à
distração, ponderando sobre as diferenças entre memória-hábito e memória-trabalho.

Se o espírito concentrado num alvo fica tenso, o espaço profundo e cumulativo da


memória se estreita como um cone cujo vértice desce e penetra no real. É a percepção
imediata do que nos seria útil apreender no momento, visando ação pragmática.
Distração tem sua origem em dis-tração ou desvio do eixo de tração pelo qual somos
puxados. O aluno escuta a aula e anota no caderno aquilo que da matéria lhe parece
proveitoso. No entanto, em certos momentos, ele esquece de anotar para não perder as
palavras do professor que narram algo que desperta seu interesse. Suspende a
anotação e o espírito se perde em lembranças, ideias, relações com episódios vividos.
Estes salutares momentos de distração vencem o utilitarismo e alargam o conhecimento.
(Bosi, 2003, p. 40)

Outra pista que Ecléa nos dá é a relação entre música e oralidade, denotando a existência de certo
continuum nas entrevistas, que deve ser considerado durante as interpretações.

Insisto nos termos narrativa e oralidade. Ambas se desenvolveram no tempo, falam no


tempo e do tempo, recuperando na própria voz o fluxo circular que a memória abre do
presente para o passado e deste para o presente. Eu diria que a expressão oral da
memória de vida tem mais a ver com a música do que com o discurso escrito. (
Bosi, 2003, p. 45)
Conceito central em Ecléa, inspirado em Simone Weil, é a atenção. Atenção e abertura ao objeto.
Afetar-se com a experiência, constituir a pesquisa também a partir de uma disposição de entrega ao
fluxo narrativo dos participantes e à própria teoria. Atenção dá trabalho. Reflete Gonçalves Filho (2008
):

A atenção é mais que percepção, é percepção sem pressa. Percepção por muitos perfis,
a atenção pede deslocamentos ao redor da coisa. A atenção é trabalho, diz Alfredo Bosi:
quer alcançar tanto as regularidades quanto os acidentes da matéria. E pede paciência,
que é a calma de acolher e assistir o tempo de aparição dos seres todos. A atenção é
delicadeza, não arromba, não invade. E torna-se um máximo de delicadeza quando é
atenção para o que nas coisas ou em alguém é segredo ou mistério. A atenção é a cura
das conversas. Há conversas que são a coincidência de ideias, a justificação do medo, a
confirmação de preconceitos: abominam as diferenças, o espanto e o conflito. Mas há as
conversas feitas de atenção e que são como uma troca de lugares: fazem trocar de lugar
com o interlocutor. Fazem passar para o lugar de outrem como se fosse meu. Fazem
perceber o estranho como se fosse familiar e fazem perceber o familiar como se fosse
estranho. A atenção é também o elemento do silêncio. O silêncio que toma a gente nos
lugares em que parecemos sentir que tudo tem alma. O silêncio que a gente divide com
as pessoas muito amadas. O silêncio que dividimos com os amigos mais eleitos. O
silêncio dividido também com pessoas que mal conhecemos, mas com quem acontece
de cruzar olhos desarmados na cidade. A atenção é o que mais devemos aos outros
humanos. Os de perto e os de longe: uma forma incomparável de respeito. Ninguém é
um só: uma pessoa é mais de uma e ligada a outras pessoas, ligada a coisas e lugares,
natureza e cidades. A atenção tem gosto em ser cada vez mais devolvida a um,
passando por seus outros. A atenção é amizade que não depende de intimidade e pode
contar em praça aberta, entre cidadãos. A atenção é como um deslocamento político:
retira a gente dos espetáculos, das imagens prestigiadas, socialmente controladas e que,
tão controladas, já não fazem ver mais nada. A atenção desloca para fora do poder, retira
a gente dos comandos, depõe a regra dos superiores, traz para perto dos pobres, para
perto dos rebaixados. Faz ver pelo ângulo dos humildes e dos humilhados. (p. 46)

Observações para esses tempos


Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do
próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com
relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de
cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que
dança, canta, faz chover. O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a
integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo
como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha
provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma
história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim. (Krenak, 2019, p. 13)

Retomo aqui brevemente lutas do presente, apenas para indicar a centralidade e atualidade da
proposta metodológica de Ecléa que aqui procurei sistematizar.

No Brasil, é forte o ataque à memória das classes pobres. A produção de esquecimento não é
acidental, mas parte de um projeto de dominação. Aquilo que poderia operar como marco organizador
para possíveis leituras e resistências dissonantes é suprimido ou relegado a um plano inferior.
Exemplos disso não faltam e demonstram claramente a consciência das classes dominantes sobre o
caráter político da memória, desde a submersão de Belo Monte no Sertão nordestino até a demolição
do pavilhão 9 do presídio do Carandiru, em São Paulo.
Os movimentos sociais têm se conscientizado e procuram disputar essa hegemonia. Tem ganhado
força a luta pela memória, o reconhecimento desta em seu caráter identitário e politizador, enquanto
direito individual e dos povos. Vemos militantes mais sensíveis e preocupados com suas memórias (
Central Única dos Trabalhadores, 2020; Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, 2020;
União Nacional dos Estudantes, 2020).

Retomo este texto durante a pandemia, em 2020, quando nossa relação com o tempo presente e
futuro foi abalada. O passado também entrou em foco. Lembro-me do ataque aos monumentos de
escravistas ocorridos no Reino Unido e nos Estados Unidos, decorrente dos protestos pelo
assassinato de George Floyd pela polícia (Beiguelman, 2020).

Entre os que resistem, merecem destaque os povos tradicionais que, de longa data, lutam contra um
ataque cruel e sistemático às suas memórias e tradições. Talvez nenhum outro povo tenha
experimentado tão concretamente a experiência do etnocídio, envolvendo um conjunto amplo e
sofisticado de formas de extermínio.

Em contato recente com professores indígenas (Educação Intercultural e Sociedades Indígena, 2020),
pude aprender o quanto a relação com o tempo lhes é cara e diferente da que estabelecemos na
cultura ocidental. O tempo está nas coisas, no presente, na natureza e no cotidiano que os cerca.
Essa relação, tida como anímica por nós, é avessa à apropriação reificada do tempo e da relação com
as mercadorias.

Menciono aqui contribuições do escritor indígena Daniel Munduruku, em breves passagens que
condensam essa experiência diferente com o tempo nas comunidades tradicionais. Creio que a
relação com o que aqui foi exposto é evidente, dispensando interpretações.

O tempo indígena é circular, não é linear. É o tempo da natureza. Temos apenas


passado e presente. O tempo da memória e o tempo do agora. Precisamos ir ao
passado para dar sentido ao nosso existir agora. Esse é o movimento circular indígena.
O velho educa as crianças, estabelecer o equilíbrio, a circularidade em relação ao tempo.
E sabemos com é importante ouvir. Todo mundo que observa, sabe que é necessário
silenciar. (Munduruku, 2020)

O convívio com Ecléa nos corredores do Instituto de Psicologia da USP, nas aulas e reuniões de
orientação, representava por vezes uma fissura, um estranhamento de ritmo. Nos corredores, lembro
um colega falando sobre uma greve de professores, salarial. Ela responde: “vocês deveriam estar
lutando para que os professores da educação básica ganhassem o mesmo que vocês”. Ou uma
estudante falando sobre as atividades do Centro Acadêmico, que recebe a seguinte resposta: “você
sabia que na data de hoje, em 1945, lançaram a bomba sobre Hiroshima?”, e se retira, deixando a
colega pensando.

Nem sempre agradava. Muita gente dizia que ela não estava na realidade, não estava com os pés no
chão ou coisa do tipo. Nem todos compreendiam. Muitos estudantes não gostavam de suas aulas,
talvez acostumados com contatos mais dinâmicos, recheados com projeções em Datashow e
estratégias de animação à semelhança das empregadas nos cursinhos pré-vestibulares.

Para além da necessária reconstrução de narrativas sobre as lutas dos oprimidos, sejam indígenas,
mulheres, proletários, quilombolas, Ecléa nos ensina outra estrutura e forma de relação com o tempo.
Conheci poucas pessoas cujo trabalho era tão coerente em relação à sua prática cotidiana. Assim era
seu jeito e seus textos; seu método e estilo. E não há devaneio aqui. Sua relação com o tempo é
pensada, objetiva: um ato político de desalienação, de reapropriação humana do tempo e da
experiência roubados pelo capital. O estilo de Ecléa é, em si, um ato político, instrumento de
resistência necessário no atual contexto em que vivemos. As comunidades tradicionais que conheci
teriam gostado de Ecléa. A convidariam para ouvir e contar estórias à fogueira, com seus encantados.
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Datas de Publicação
» Publicação nesta coleção » Data do Fascículo
01 Abr 2022 2022

Histórico
» Recebido » Aceito
26 Fev 2021 17 Jan 2022

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