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INTRODUÇÃO

“Durante os cinquenta anos que precederam e se


seguiram ao ano mil, a memória e as lembranças
foram objeto de grande interesse, que se expressou de
outra forma no decorrer dos séculos seguintes”.1

Algumas ideias simples:

1. Tal como a noção de cultura, os conceitos de memória e iden-


tidade são fundamentais para qualquer um que tenha algum interesse
no campo das Ciências Humanas e Sociais.
2. Contra as concepções “objetivistas”, “reificadoras”, “primordia-
listas”, “substancialistas”, “essencialistas”, “originárias”, “fixistas” etc. de
identidade, observa-se um relativo consenso entre os pesquisadores
em admitir que essa seja uma construção social, de certa maneira sem-
pre acontecendo no quadro de uma relação dialógica com o Outro.
3. O consenso existe igualmente em reconhecer que a memória
é, acima de tudo, uma reconstrução continuamente atualizada do pas-
sado, mais do que uma reconstituição fiel do mesmo: “a memória é de
fato mais um enquadramento do que um conteúdo, um objetivo sem-
pre alcançável, um conjunto de estratégias, um ‘estar aqui’ que vale
menos pelo que é do que pelo que fazemos dele”.2 A ideia segundo
a qual as experiências passadas seriam memorizadas, conservadas e
recuperadas em toda sua integridade parece “insustentável”.3
Memória e identidade

4. O mnemotropismo de numerosas sociedades modernas en-


contra sua origem na “crise do presentismo”:4 o desaparecimento de
referências e a diluição de identidades. A busca memorial é então con-
siderada como uma resposta às identidades sofredoras e frágeis5 que
permitiria “apoiar um futuro incerto em um passado reconhecível”.6
Variante à primeira vista, tende talvez ao contraditório: as paixões,
considerando-se também as tensões identitárias contemporâneas, são
a consequência de uma perda de memória.7
5. Enfim, admite-se geralmente que memória e identidade estão
indissoluvelmente ligadas.8
Essas ideias em conjunto são desenvolvidas ad nauseam nas inu-
meráveis publicações que, de acordo com diferentes pontos de vista
disciplinares, abordam o tema da memória e/ou identidade. Assim, no
momento de começar um livro que leva precisamente esse título – Me-
mória e identidade – devemos considerar que tudo já foi dito?
Poderíamos nos valer da velha retórica da qual se usa e abusa
para introduzir uma obra: em um domínio tão vasto e abundante que
é o das pesquisas sobre memória e identidade, não é inútil periodica-
mente estabelecer uma averiguação do estado da arte ou tentar um ba-
lanço dos últimos avanços teóricos. Esse balanço é de fato necessário
considerando que a “onda memorial” que atinge o “mundo inteiro”9
nos últimos vinte anos justifica, sem dúvida, que o conceito de identi-
dade seja revisitado em relação à Mnemosyne.
No entanto, esse trabalho pretende ir mais além do que um ba-
lanço do estado da arte sobre memória. Este livro é um ensaio de An-
tropologia da memória e identidade. Essa disciplina10 se interessa pelo
homem como animal social e cultural. Levar em conta essa especifi-
cidade implica dizer que a Antropologia busca elucidar, com rigor, as
modalidades de acesso do homem ao seu estatuto de ser social e cul-
tural. O objetivo é determinar como, a partir de uma forma individual –
um ser humano – que é um dado imediato do cogito, mas também
de toda a experiência intersubjetiva, passa-se para formas coletivas,

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Introdução

nas quais a existência e essência são problemáticas e demandam sem-


pre uma confirmação. Assim, enquanto a Psicologia e a Sociologia se
dedicam a elucidar a natureza e o comportamento dos indivíduos,
dos grupos e das sociedades, a Antropologia trabalha essencialmente
na articulação dessas duas abordagens. Entrincheirada no ponto de
passagem entre o indivíduo e o grupo, esforça-se em compreender, a
partir de dados empíricos, como os indivíduos chegam a compartilhar
práticas, representações, crenças, lembranças, produzindo, assim, em
uma determinada sociedade, aquilo que chamamos de cultura.
Assim, o objeto deste livro é analisar como passamos de formas
individuais a formas coletivas da memória e identidade. Entretanto, nos
cabe perguntar se essa questão é procedente. Interrogar-se sobre essa
passagem do individual ao coletivo pressupõe que ela efetivamente
exista, logo isso deve ser demonstrado em cada caso considerado. Se
admitirmos essa reserva, devemos nos interrogar sobre a pertinência
de noções e conceitos que utilizamos para designar as formas coletivas
da memória e identidade. Por outro lado, se existe essa passagem, isso
quer dizer que podemos observar um momento no qual a memória
e identidade de um indivíduo são ainda livres de toda influência co-
letiva e outro no qual elas se manifestam exclusivamente sob a in-
fluência de determinismos sociais e culturais? Ou será uma questão de
grau, níveis, densidade? Então, como observar os limiares em que as
noções de memória e identidade individuais serão pertinentes e em
que, além disso, aquelas de memória e identidade coletivas terão um
fundamento empírico?
Com o objetivo de precisar o marco teórico subjacente a essas
questões, no “Preâmbulo” remeto-me à observação dos termos atual-
mente mais comuns da problemática relativa à identidade e ao mne-
motropismo contemporâneo.
O primeiro capítulo é dedicado aos conceitos preliminares indis-
pensáveis para abordar os problemas de ordem ontológica: a qual rea-
lidade remetem os conceitos de memória e identidade, em particular

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Memória e identidade

quando são utilizados como “fórmulas consagradas”,11 tais como as


noções de memória e identidade coletivas.
No segundo capítulo abordo a questão da construção e variações
da memória e identidade no nível do indivíduo.
No terceiro mostro que a “memorialização” do mundo pressupõe
seu ordenamento em particular graças a uma domesticação ou uma
estruturação do tempo: sem as balizas temporais que são, principal-
mente, a origem e o acontecimento, nenhuma identificação é possível.
Nos três últimos capítulos busco observar algumas modalida-
des de “passagem” de formas individuais da memória e identidade às
formas coletivas. Argumentarei, finalmente, que em um contexto de
esgotamento de grandes memórias organizadoras do laço social, em
uma época marcada pelo retrocesso de memórias fortes em proveito
de memórias múltiplas, confusas e oportunistas, o recurso às retóri-
cas holistas (memória coletiva, identidade coletiva etc.) para definir e
descrever as relações entre memória e identidade à escala de grupos
torna-se cada vez menos pertinente.12

notas
1
Patrick J. Geary, La mémoire et l’oubli à la fin du premier millénaire, Paris, Aubier, 1996, p. 53.
2
Pierre Nora, “Entre mémoire et histoire”, Les lieux de mémoire. La République, Paris, Gallimard,
1984, p. viii.
3
Suzanne Küchler, em Tim Ingold (org.), Key Debates in Anthropology, Londres e New York,
Routledge, 1996, p. 226.
4
O que François Hartog define como a expressão de um “profundo questionamento do regime
moderno de historicidade. O futuro, o progresso e as ideologias que aí se vinculam perderam
sua força de convicção da mesma forma como a diferença entre o horizonte de espera e o
campo de experiências se tornava máximo”: “Temps et histoire. Comment écrire l’histoire de
France”, Annales esc, nov.-dez. 1995, n. 6, p. 1.235.
5
Um exemplo, entre tantos outros: “o fim do século tende às retrospecções, aos inventários e
aos balanços [...] Questionar a memória, como se faz hoje, não seria uma outra forma de bus-
car os pedaços de uma identidade que se dispersa e se perde na neblina?”. Foulek Ringelheim
(org.), Les juifs entre la mémoire et l’oubli, Bruxelles, Éd. de l’Université de Bruxelles, 1987, p. 6.
6
Nicole Lapierre, “Dialectique de la mémoire et de l’oubli”, Communications, n. 49, 1989, p. 6.
7
Ainda um exemplo: “a insegurança de um mundo em profunda mutação, as mudanças sociais
e culturais aceleradas, suscitaram uma tomada de consciência coletiva relativa à dilapidação

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Introdução

do patrimônio próprio a cada comunidade humana e encorajou a uma busca de identidade”.


Freddy Raphaël, “Le travail de la mémoire et les limites de l’histoire orale”, Annales esc, n. 1,
jan.-fev. 1980, p. 127.
8
“A memória é um elemento essencial daquilo que passamos a chamar de identidade individual
ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades do
presente, na febre e na angústia.” Jacques Le Goff, Histoire et mémoire, Paris, Gallimard, 1988,
p. 174.
9
Pierre Nora, La loi de la mémoire, Le Débat, jan.-fev. 1994, n. 78, p. 190.
10
A antropologia social e cultural e a antropologia física constituem disciplinas separadas.
11
“Todo domínio de pesquisa tem suas fórmulas consagradas graças às quais podemos parar de
pensar nos problemas antes mesmo de tê-los resolvidos.” John R. Searle, Sens et expression.
Études de théorie des actes de langage, Paris, Minuit, 1979, p. 104.
12
Agradeço a meus colegas Jean-Pierre Jardel, Jean-Michel Marchetti e Jean Poirier por suas
sábias e atentas leituras do manuscrito. Apesar de seus preciosos conselhos, estou consciente
de que esta obra apresenta ainda algumas insuficiências e as assumo como de minha inteira
responsabilidade.

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