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CRUZ, Adelina Maria Alves Novaes e; GARRIDO, Ayra Guedes; ALVES, Carolina
Gonçalves; OLIVEIRA, Daniele Chaves Amado de; SILVA, Gabriel Cardoso Borges; LIMA,
Ninna de Araújo Carneiro; CASTRO, Renan Marinho de; BLANK, Thais Continentino.
Memória e Patrimônio: conceitos e reflexões. Rio de Janeiro: FGV, 2024.
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forma que é proibida a reprodução no todo ou em parte, sem a devida autorização.
SUMÁRIO
MEMÓRIA E PATRIMÔNIO: CONCEITOS E REFLEXÕES ....................................................................... 5
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................................... 19
PROFESSORES-AUTORES ..................................................................................................................... 24
Este curso apresentará o conceito de memória e a sua relação com o patrimônio cultural, bem
como a história dos processos de patrimonialização cultural no Brasil e os pontos fundamentais da
legislação. O objetivo é permitir que estudantes saibam trabalhar a articulação entre memória e
patrimônio cultural, com enfoque específico no contexto brasileiro.
O curso se divide em três unidades: 1) Conceito de memória; 2) Memória e patrimônio: um
olhar histórico; 3) Memória e patrimônio: um olhar contemporâneo. Nelas serão aprofundados e
problematizados o conceito de memória, a relação entre memória e patrimônio a partir de uma
perspectiva histórica, bem como o debate por meio de um olhar contemporâneo.
Conceito de memória
A memória pode ser definida como a capacidade do cérebro humano para adquirir, armazenar
e recuperar informações e experiências passadas. É o processo que permite que as pessoas se lembrem
de eventos, sensações, conhecimentos, habilidades e emoções que experimentaram anteriormente, e
usem essas informações para orientar as suas ações e os seus comportamentos no presente e no futuro.
Existem diferentes tipos de memória, como a memória de curto prazo, que permite que as
pessoas retenham informações por alguns segundos ou minutos antes de esquecê-las; a memória de
longo prazo, que é responsável por codificar, armazenar e recuperar informações que são necessárias
por períodos mais longos; e a memória episódica, que é usada para registrar eventos específicos e
experiências pessoais.
O processo de memorização envolve o registro de informações no cérebro, a consolidação
dessas informações em uma forma que possa ser armazenada e a recuperação das informações
quando necessário. A memória também pode ser influenciada por fatores externos e internos, como
a atenção, a emoção, a expectativa e a associação de informações.
O funcionamento da memória humana é objeto de estudo de diferentes campos do
conhecimento. Entre as pessoas pioneiras do estudo da memória humana, Hermann Ebbinghaus,
psicólogo alemão do final do século XIX, é considerado o fundador da psicologia experimental da
aprendizagem e utilizou técnicas experimentais para estudar a memória humana. Nos seus
experimentos, o pesquisador memorizava várias sílabas sem sentido e depois as recuperava para avaliar
a sua memória. Ele notou que a memória é muito mais forte após a primeira vez que uma informação
é memorizada, mas essa força diminui rapidamente, a menos que a informação seja repetida.
Ebbinghaus propôs o conceito de curva de esquecimento, que descreve como a informação é
perdida ao longo do tempo. Ele também introduziu o conceito de memória de longo prazo e
distinguiu entre a memória episódica (de eventos específicos) e a memória semântica (de conceitos e
fatos). As contribuições dele para a psicologia da aprendizagem e da memória tiveram grande
influência no desenvolvimento da psicologia cognitiva e ainda são referência nos estudos da memória.
Outro pensador que trabalhou com o conceito de memória de maneira aprofundada,
expandindo as possibilidades de compressão desse conceito, foi Henri Bergson. O filósofo produziu
a sua teoria na França entre o final do século XIX e início do século XX. É conhecido pelas suas
ideias sobre o tempo, a consciência e a criatividade. A sua filosofia argumenta que a percepção do
tempo é diferente da forma como o tempo é medido, e que a consciência é uma força criativa que
se relaciona com o mundo por meio da intuição e da experiência direta. Ele foi uma figura
importante nos círculos intelectuais franceses da sua época e influenciou vários pensadores
posteriores, incluindo Jean-Paul Sartre e Gilles Deleuze.
Bergson ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1927 pelo seu trabalho filosófico.
Defendeu a ideia de que a memória não pode ser reduzida a um simples armazenamento de
informações e propôs pensá-la como uma rede de experiências vividas que se sobrepõem e se
interligam para compor a identidade das pessoas. Usou o conceito de “memória pura” para se referir
à memória que é completamente separada do corpo e do mundo físico. Além disso, argumentou
que essa memória pura nos dá acesso a um tempo não linear e não estruturado, em que passado,
presente e futuro se misturam, e é essa memória pura que permite formar uma compreensão mais
profunda e significativa do mundo.
Também enfatizou a importância da intuição na memória, argumentando que, ao se
concentrarem em uma experiência passada, as pessoas são capazes de sentir a sua vitalidade original
e evocá-la na sua totalidade. Para esse filósofo, a memória nunca é uma reprodução perfeita do
passado, mas, sim, uma recriação contínua das experiências passadas no presente. Nesse sentido,
mais do que um processo mecânico de armazenamento de informações, a memória humana é uma
maneira de conectar e recriar continuamente as experiências passadas.
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Ao entrelaçar a concepção de memória identidade, Bergson abre um novo campo de
exploração. As suas ideias influenciaram pensadores de diferentes áreas do conhecimento, abrindo
caminho para o aprofundamento de conceitos como “memória coletiva” e “memória cultural”.
Nessa perspectiva, a memória não é apenas um fenômeno individual, mas um fenômeno social, por
meio do qual se dá a preservação e a transmissão de tradições, valores, crenças e práticas de uma
cultura ao longo do tempo, de geração em geração.
A memória como fenômeno social pode manifestar-se na literatura, na arte, na música, na
dança, na culinária, na religião e em outros aspectos culturais que são considerados significativos para
um determinado grupo ou uma comunidade. Além disso, é fundamental para as identidades dos
povos, pois ajuda a definir quem são e qual é a sua história, assim como criar caminhos para o futuro.
No âmbito da disciplina de História, o conceito de memória ganhou maior evidência a partir
da década de 1980 com a ascensão dos estudos sobre a história cultural e a história oral. Esses
estudos propuseram uma nova forma de abordar o passado, valorizando as memórias individuais e
coletivas como fontes históricas legítimas e importantes para a reconstrução do passado. Nesse
sentido, a memória é assumida não apenas como um fenômeno subjetivo e individual, mas também
como uma construção social e política, capaz de influenciar a forma como as sociedades se veem e
se representam ao longo do tempo.
Uma das maiores referências desse campo é o historiador Jacques Le Goff, representante da
corrente conhecida como História Nova ou Escola dos Annales, que buscava uma abordagem
interdisciplinar para o estudo do passado. Ele escreveu sobre temas como a Idade Média, a relação
entre história e memória, a formação da identidade europeia e o papel da cultura na construção
social. Entre as suas obras mais conhecidas estão “A Idade Média explicada aos meus filhos”, “A
civilização do Ocidente medieval” e “História e memória”.
Em “História e memória” (2003), Le Goff propõe uma reflexão sobre as relações entre a história
e a memória. Para o autor, estes são conceitos distintos, mas relacionados. A história é a disciplina
científica que se ocupa da investigação, da interpretação e da escrita dos fatos passados, baseando-se
nas fontes documentais e nas metodologias da crítica histórica. Por outro lado, a memória é um
fenômeno subjetivo e coletivo, que se refere à construção social e cultural dos significados que as
pessoas atribuem ao passado, a partir de experiências, narrativas, tradições e símbolos. Nesse sentido,
é um processo dinâmico e seletivo, que está sempre em revisão e atualização.
Dessa forma, segundo Le Goff, a história e a memória são complementares, mas não se
confundem. Enquanto a história busca descrever os fatos objetivamente, a memória trabalha com a
lembrança e o esquecimento, construindo interpretações emotivas e ideológicas sobre o passado. A
história analisa e contextualiza os acontecimentos, enquanto a memória os enquadra em uma narrativa
significativa para o grupo social. A memória está sempre em movimento, é viva, dinâmica, um campo
de disputa. Em resumo, “História e memória” é uma obra fundamental que busca discutir a
importância da memória para a história e para a construção da identidade cultural de uma sociedade.
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Memória e história não são a mesma coisa. A memória se baseia na
experiência vivida, é subjetiva e volúvel, pode ser manipulada e esquecida.
A história é objetiva, baseada em fontes documentais e críticas, busca a
verdade dos fatos e se preocupa com a análise e interpretação dos
acontecimentos (LE GOFF, 2003, p. 25).
Outro pensador importante para compreender as complexas relações entre memória, cultura
e história é o teórico alemão Andreas Huyssen. Entre as suas obras publicadas no Brasil, podem ser
citadas: “Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória”;
“Seduzidos pela memória” e “Políticas da memória no nosso tempo”.
Nos seus livros, Huyssen articula e aprofunda a ideia de “cultura da memória”, que ele define
como um conjunto de práticas, discursos e representações que surgem em uma sociedade com o
objetivo de lidar com o passado traumático. Segundo ele, vive-se em uma época em que a memória
se torna uma obsessão cultural, manifestando-se em museus, monumentos, comemorações e até
mesmo na literatura e na arte contemporâneas.
O autor sugere que a “cultura da memória” é uma resposta às crises políticas, sociais e
culturais do mundo depois da II Guerra Mundial, reflexo do medo de esquecer as atrocidades do
passado cometidas pelo Nazismo e pelos regimes fascistas, bem como da necessidade de manter a
história viva para evitar a repetição dos erros.
Em “Seduzidos pela memória”, Huyssen argumenta que, enquanto a memória tem um
importante papel na construção da identidade individual e coletiva, o esquecimento também é
essencial para a formação da consciência e da capacidade de lidar com o passado. O autor examina
como a memória é constantemente utilizada como uma forma de legitimação política e cultural,
enquanto o esquecimento é muitas vezes reprimido e negado. Para ele, esquecimento é inevitável e
é, de fato, necessário para que as pessoas possam seguir em frente.
O autor analisa vários exemplos históricos e culturais para ilustrar a sua teoria, incluindo o
papel da memória na criação da nação alemã, o Holocausto e o 11 de Setembro. Ele também
examina como a literatura, o cinema e a arte podem ajudar a lidar com a tensão entre memória e
esquecimento. Além disso, argumenta que a memória e o esquecimento são partes essenciais do
processo de reconciliação com o passado e que se deve encontrar maneiras de equilibrar essas duas
forças para construir uma compreensão mais profunda e significativa da história e da identidade.
Para onde quer que se olhe, a obsessão contemporânea pela memória nos
debates públicos se choca com um intenso pânico público frente ao
esquecimento, poder-se-ia perfeitamente perguntar qual dos dois vem em
primeiro lugar. É o medo do esquecimento que dispara o desejo de lembrar
ou é, talvez, o contrário? É possível que o excesso de memória nessa cultura
saturada de mídia crie uma tal sobrecarga que o próprio sistema de
memória fique em perigo constante de implosão, disparando, portanto, o
medo do esquecimento? (HUYSSEN, 2000, p. 19).
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Assim como Huyssen, outros autores e autoras contemporâneos vão propor uma
compreensão política da memória como arena de disputas de narrativas divergentes. Beatriz Sarlo,
Enzo Traverso e Dominique Plutot são exemplos e trabalham a articulação entre memória, cultura
e patrimônio a partir de uma perspectiva política e interdisciplinar.
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Em 1937, é criado, pela sua iniciativa, por meio do Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro
de 1937, um conjunto de normas que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico
nacional. Entretanto, apesar da criação desse decreto-lei em 1937, que organiza as normas do
patrimônio no País, a organização desse patrimônio já começa a se institucionalizar no ano anterior,
em 1936, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan).
O Sphan foi a primeira denominação do órgão federal de proteção ao patrimônio cultural do
Brasil. Começa a funcionar ainda em 1936, a partir de uma determinação do presidente Getúlio
Vargas ao ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema, mas oficialmente o órgão só
foi criado em 13 de janeiro de 1937, por meio da Lei nº 378. Foi integrado ao Ministério da
Educação e Saúde, como instituições de educação extraescolar dos serviços relativos à educação. Os
objetivos da sua criação eram:
A criação do Sphan foi um processo que teve a participação de artistas do movimento modernista,
mencionados acima, e da sua preocupação com a valorização e a preservação do patrimônio cultural
brasileiro. Em um documento do arquivo pessoal de Gustavo Capanema, do acervo histórico do Centro
de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (FGV
CPDOC), vemos a troca de correspondência entre o ministro Capanema e o diretor do Departamento
de Cultura e Recreação do município de São Paulo e escritor modernista Mário de Andrade, sobre a
organização de um departamento de proteção ao patrimônio brasileiro.
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Figura 1 – Documento proposto por Mário de Andrade
Fonte: FGV CPDOC. Arquivo Gustavo Capanema. Série Ministério da Educação e Saúde –
Educação e Cultura (GC g 1936.03.24/2).
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De forma bem semelhante ao texto do documento proposto por Mário de Andrade é o texto
da lei que cria o Sphan:
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manifestações artístico-culturais; e, ainda, os conjuntos urbanos e sítios de
valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico (IPHAN, 2020).
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Como consequência, há o comprometimento da difusão e do entendimento, pela população
em geral, dos arquivos históricos como um patrimônio de todos. Dessa maneira, faz-se necessário
um número maior de iniciativas de difusão e educação em arquivos que possam aproximar o
conhecimento e o diálogo produzidos nos arquivos com a sociedade.
Os arquivos pessoais são conjuntos documentais que possuem uma potencialidade no processo
de diálogo com o patrimônio. Esses arquivos possuem características singulares, por serem compostos
de documentos produzidos e acumulados por pessoas físicas no decorrer das suas trajetórias públicas
e privadas. Dessa forma, os documentos de arquivos pessoais podem abordar tanto questões
profissionais e políticas, quanto questões de foro íntimo, como interesses, religião e relatos familiares.
Apesar disso, como arquivos pessoais podem ser considerados patrimônio?
Heymann (2005, p. 1) aponta uma questão ainda pouco abordada nos estudos em geral: a
forma como a produção das fontes históricas é produzida até que estas sejam consideradas um
patrimônio. Para isso, a compreensão do processo de transformação de um registro como um legado
histórico é relevante para se compreender como se dá a constituição da memória e do patrimônio.
Esse processo envolveria um “investimento social” por meio do qual é atribuída uma
importância a esse conjunto documental. No caso dos arquivos pessoais, uma memória individual
é tomada como emblemática para a história nacional e, nesse caminho de patrimonialização, acaba
abstraindo-se a conjuntura da sua produção (HEYMANN, 2005, p. 2).
Para esse investimento social, Heymann (2005, p. 2-3) destaca a importância da ação de
sujeitos para que aquela memória individual seja eleita entre tantas outras como referência para a
história, acionando elementos para que essa memória seja rememorada, e não esquecida. Algumas
dessas estratégias de investimento para a construção de legados apontados pela autora são a criação de
projetos institucionais, comemorações, homenagens e recursos que possam reforçar a justificativa de
preservação dessa memória. Desse modo, esse processo de formação de legados estará envolto em
disputas em torno de qual memória será preservada e como ela será rememorada, tendo a disputa de
grupos na forma de representar essa memória em torno de um mesmo personagem.
Os arquivos pessoais possuem outro desafio referente a como os seus titulares, pessoas que
acumularam esse conjunto documental, vão escolher contar a sua história. Bordieu (apud
HEYMANN, 2005, p. 5) aponta que a “escrita de si” engloba uma seleção de acontecimentos da
vida de uma pessoa e como essa pessoa vai escolher contá-los.
Nos arquivos pessoais, essa questão também é recorrente, na medida em que um arquivo
pessoal pode não refletir os acontecimentos do titular do arquivo, revelando uma seleção de quais
documentos foram escolhidos para serem publicizados (HEYMANN, 1997). Dessa forma, a
“memória é instrumento político” (HEYMANN, 2005, p. 9) e vai agir na construção de
identidades, nas reflexões e nos debates que serão pensados por meio do que será preservado, bem
como nas suas ressignificações ao longo dos tempos.
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O FGV CPDOC possui mais de 230 arquivos pessoais de homens e mulheres cujas trajetórias
estão inseridas na história contemporânea do Brasil. Entre esses, destacam-se dois arquivos pessoais
que foram nominados como patrimônio documental pelo Registro Nacional do Programa Memória
do Mundo, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Em 2007, o arquivo pessoal de Getúlio Vargas e, em 2012, o arquivo pessoal de Herbert de Souza,
o Betinho.
O arquivo do ex-presidente Getúlio Vargas foi o primeiro a ser doado ao FGV CPDOC, no
primeiro momento da sua criação em 1973, e estimulou a doação de outros arquivos pessoais de
ex-ministros, correligionários e políticos contemporâneos de Vargas. Pode-se destacar, nesse
primeiro momento, a doação do arquivo de Oswaldo Aranha, ministro das Relações Exteriores, e
o de Gustavo Capanema, ministro da Educação e Cultura.
O arquivo de Getúlio Vargas abrange o período de 1896 a 1954, composto de milhares de
documentos textuais, audiovisuais e iconográficos, como diários pessoais do ex-presidente escritos
durante os anos de 1929 a 1942, discursos gravados, jingles de campanhas políticas, fotografias de
caráter pessoal e público, documentos comprobatórios, entre outros, do personagem político que
governou o Brasil pelo maior período da história republicana.
Fonte: Acervo FGV CPDOC. Arquivo Getúlio Vargas (GV foto 309_2)
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O Arquivo Herbert de Souza foi doado ao FGV CPDOC em 2004 e abrange o período de
1952 a 2003 com mais de 15 mil itens, incluindo documentos textuais, destacando-se as cartas do
exílio político, entre os anos 1971 e 1979; e documentos iconográficos, como as charges do irmão
Henrique de Souza Filho, o Henfil.
Sociólogo e criador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Betinho
teve forte protagonismo na luta contra a ditadura militar, no combate à fome no Brasil, na
conscientização da epidemia da Aids nas décadas de 1980 e 1990 e na luta contra as desigualdades
do País. Pela relevância do seu conjunto documental, tornou-se o segundo arquivo do acervo a
alcançar o Registro Nacional do Programa Memória do Mundo da Unesco.
A seleção desses arquivos reconhece esses documentos arquivados como parte da memória do
patrimônio mundial, o que não significa um processo de tombamento, mas exige dos detentores
desses conjuntos documentais o compromisso com a sua preservação. Por outro lado, facilita a
captação de recursos para preservação e difusão desses arquivos.
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Memória e patrimônio: um olhar contemporâneo
A percepção e os olhares sobre o patrimônio vão mudando no decorrer do tempo, como se
pode ver ao longo da trajetória da proteção do patrimônio no Brasil. No início dos anos 1920, a
questão do patrimônio envolvia a busca por uma identidade brasileira e pela sua valorização, tendo
como uma das suas ameaças o processo de industrialização e modernização do Estado brasileiro,
mas também como uma das suas consequências: a criação de um órgão federal responsável pela sua
determinação, gestão e proteção.
Segundo Scifoni (2019, p. 18), a partir de entrevistas de Rodrigo de Melo Franco, o primeiro
diretor do Sphan, era preciso estimular uma crença de apego aos bens culturais, que conduziria
necessariamente à sua preservação.
Para Melo Franco, devido ao processo de deterioração desses monumentos históricos e ao
processo de industrialização, era necessário “esclarecer, ensinar e explicar” sobre o patrimônio
(SCIFONI, 2019, p. 19).
A autora também aponta as circunstâncias daquele período: a nova legislação – o processo de
tombamento dos monumentos – e a criação da ideia de um bem cultural. O que era antes visto
como uma propriedade privada, com um patrimônio financeiro, passa a ser visto como um bem
coletivo, de “herança coletiva” (SCIFONI, 2019, p. 19).
Aponta ainda que, para Melo Franco, era necessário que a população entendesse que a
proteção desses bens era “sinônimo de civilidade e de governos esclarecidos”. Apesar disso, essa visão
não era compreendida pela população brasileira nos primeiros anos de atuação do Sphan, que ainda
não entendia a importância histórica e cultural do Brasil em face de outros povos no mundo, pois
a ideia de nação brasileira ainda estava em construção (SCIFONI, 2019, p. 20).
Atualmente, percebe-se o patrimônio em um momento diferente, no qual grupos e
movimentos sociais reclamam pela patrimonialização de monumentos, sítios arqueológicos e
conjuntos documentais. Constata-se que, na verdade, não há falta de conhecimento da população
sobre a importância histórica e cultural, mas, sim, uma ausência de políticas de preservação e de
interesse por parte das autoridades competentes (SCIFONI, 2019, p. 24). Um exemplo a ser citado
é a extinção do Ministério da Cultura, em dois momentos: em 2016, integrado ao Ministério da
Educação; em 2019, incorporado ao Ministério da Cidadania. Em 2023, volta a ser criado.
Dessa maneira, hoje, discute-se o que é considerado ou não patrimônio, o que é preservado
ou não, e quais são os interesses políticos e econômicos envoltos nos conflitos sobre o patrimônio.
Nesse sentido, não se pode pensar em uma relação horizontal de construção do patrimônio com
grupos que estão ausentes da sua representação (SCIFONI, 2019, p. 25).
Bosi (apud SCIFONI, 2019) também chama a atenção para a importância das significações do
patrimônio por meio das construções das memórias, com a lembrança de bons e maus momentos
vividos naquele local ou com aquele objeto que possui um valor subjetivo do patrimônio.
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Entendendo como o patrimônio pode ser apropriado de diversas maneiras, os arquivos
pessoais são um bom exemplo dessas significações a partir das pessoas que os acumulam, das pessoas
que doam esses arquivos, de quem os organiza e de quem consulta esses documentos. Cria-se, assim,
uma multiplicidade de apropriações de diversos olhares e potencialidades de reflexões acerca desses
conjuntos documentais.
Nesse sentido, o olhar contemporâneo sobre o patrimônio não tem o papel de negar a
existência de bens culturais existentes, mas problematizar esse patrimônio e as suas ausências, tendo,
como uma das ferramentas dessas reflexões sobre o patrimônio, a educação patrimonial de que se
falará mais adiante.
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PROFESSORES-AUTORES
ADELINA MARIA ALVES NOVAES E CRUZ
Adelina Novaes e Cruz é pesquisadora e coordenadora executiva
da Pós-graduação em Cinema Documentário, em conjunto com
Eduardo Escorel, da Escola de Ciência Sociais/ Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil
da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC). Integra a área de
Documentação e coordena o Núcleo de Audiovisual e
Documentário do FGV CPDOC. Participa da organização de
arquivos privados pessoais, de projetos de pesquisa e de divulgação do acervo, da elaboração de
livros, da montagem de exposições e vídeos de caráter histórico. Consultora da Financiadora de
Estudos e Projetos (Finep) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do
Rio de Janeiro (Faperj), além de membro do Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) e do
Conselho Estadual de Arquivos (CONEARQ).
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CAROLINA GONÇALVES ALVES
Carolina Alves é analista de Documentação e Informação do
FGV CPDOC e atualmente coordena a Documentação. É
integrante do Comitê Executivo da Rede Arquivos de Mulheres
(RAM), fruto de uma parceria entre o CPDOC e o Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).
Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia
da Cultura, atuando principalmente com os temas: raça, gênero,
poder e representação. Trabalha na organização e na gestão de documentos históricos e reflete sobre
a sub-representação de mulheres nas instituições arquivísticas. Doutora pelo Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS-UERJ),
mestre em Ciências Sociais pelo mesmo programa e graduada em Ciências Sociais pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
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GABRIEL CARDOSO BORGES SILVA
Gabriel Cardoso é técnico de audiovisual no Núcleo de
Audiovisual e Documentário e no Programa de História Oral
do FGV CPDOC. É mestre em Comunicação pelo Programa
de Pós-graduação em Comunicação da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e graduado em Cinema
pela mesma instituição.
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THAIS CONTINENTINO BLANK
Thais Blank é professora adjunta do FGV CPDOC e do
PPHPBC FGV CPDOC. Foi coordenadora da Documentação
da FGV CPDOC e é co-coordenadora do Núcleo de Audiovisual
e Documentário da FGV CPDOC. Líder do grupo de pesquisa
do CNPq Laboratório de Estudos da Cultura Visual (LECV FGV
CPDOC), bolsista jovem cientista do Nosso Estado e bolsista de
Produtividade CNPq. É coeditora da Revista Estudos Históricos
do FGV CPDOC. Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ e em Histoire Culturelle et
Sociale de L'Art pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Mestre em Comunicação e
Cultura pela. Graduada em Comunicação Social com Habilitação em Cinema pela PUC-Rio.
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