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FILOSOFIA ANUAL – 2ª SÉRIE DO ENSINO MÉDIO

”Uma história da filosofia viva na escola”

Professor João Carlos Fonseca


joaocarlosfonseca@prof.educacao.sp.gov.br
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2°bimestre – Aulas 11-12 NATUREZA E CULTURA – parte 1

1. Tornar-se indivíduo

Sensibilização ao tema  “Quem conta um conto, aumenta um ponto”.


Qual é o papel da memória? Qual a sua relação com a história e a filosofia?

Assista ao vídeo de Chimamanda Adichie, “O perigo de uma história


única”, em que a escritora nos conta sua experiência com a cultura e a sociedade
na qual está inserida desde o nascimento.

“Quando nós recusamos


uma história única, quando
percebemos que nunca há
apenas uma história, sobre
qualquer lugar, nós
reconquistamos uma
espécie de paraíso” ~
Chimamanda Ngozi
Adichie.

Duração do vídeo: 18 minutos e 35 segundos.


Disponível em: <http://linkte.me/r38n8>. Acesso em 10 de junho de 2020.

2. Pensamento histórico

Imagine alguém inserindo no próprio cérebro um cartão de memória que


tenha armazenadas todas as lembranças, os documentos e as imagens de papel
que essa pessoa guardou ao longo da vida. E se esse alguém fosse você?

[...] Acontecerá um dia. É inevitável. No futuro próximo, alguém decidirá gravar


cada momento da vida humana, do nascimento à morte, em armazenamento
digital. Isso será mais do que um truque extremo de um reality show. Isso
marcará a era de descarregamento da memória pessoal, uma tecnologia de
adaptação da memória que registra e indexa cada momento singular da sua vida.
[...]
Você nunca mais terá de perguntar “Lembra daquela vez…?”.
Tudo o que você terá de fazer será enviar um link para o Personal Memory
Device (PMD, ou aparelho pessoal de memória, em português) de seus amigos.
Eles vão se lembrar.

KENY, James. Your Personal Memory Device, You Could Have One Today. Disponível em:
<http://hplusmagazine.com/2010/03/01/your-personalmemory-device-you-could-have-one-today/>. Acesso em 27 de
junho de 2020 (Tradução de José Vasconcelos).

Mesmo que consideremos improvável a ideia apresentada no artigo


transhumanista, ainda assim podemos nos perguntar: E se fosse verdade? Será que
um aparelho acoplado ao cérebro, aumentando a capacidade de memória do ser
humano e com a possibilidade de partilhá-la com as outras pessoas seria algo bom? Ou
será que traria mais males que benefícios à humanidade? Qual a importância do
conhecimento do passado para a vida no presente?

Nossa relação com o passado pode se dar não só no âmbito individual


como também no coletivo. Assim como a perda da memória apavora aqueles
que sofrem do Mal de Alzheimer, por exemplo, que causa a perda progressiva
da memória, ameaçando também a comunidade de aprendizagem em que
estamos inseridos como seres sociais. Isso acontece porque as sociedades
desenvolvem modos coletivos de se relacionar com o passado.
No Ocidente, podemos identificar duas formas principais de
representação do passado coletivo: a memória (social ou coletiva) e a história.
A primeira consiste em uma manifestação relativamente espontânea da
coletividade, que busca no passado elementos para compreender a si mesma
no presente. A história, por sua vez, se apresenta como uma representação
formal do passado com base em uma análise crítica de suas fontes.
A memória não constitui apenas um conjunto de informações a respeito
de nossas vivências, mas é também uma totalidade dotada de sentido, por meio
da qual podemos reconhecer nossa identidade individual ou coletiva. É pelo fato
de saber o que vivenciei no passado que sou capaz de saber quem sou no
presente e, portanto, orientar minha ação no futuro. A memória pode constituir-
se como um hábito, como quando agimos automaticamente de tanto repetirmos
os mesmos gestos ou as mesmas palavras, muitas vezes sem se dar conta
disso. Outra forma de definir a memória é como a capacidade que temos de reter
e recordar eventos que podem ter acontecido uma só vez, quando lembramos
de um fato marcante em função de seu significado afetivo, valorativo, cognitivo,
etc.
Maurice Halbwachs, sociólogo francês
influenciado por Henri Bergson e Émile Durkheim,
argumentava que o social tinha primazia sobre o
individual, e que muito do que atribuímos ao
indivíduo - conhecimentos, hábitos, valores, crenças,
temores, etc. - é na verdade fruto da interação do
sujeito com o meio social em que vive. Então a
memória se dá na relação que o indivíduo mantém
com os grupos sociais com os quais interage.
A recordação, nesse sentido, vai além do ato de trazer à mente no
presente a imagem de uma vivência passada, mas também é uma reconstrução
socialmente partilhada de experiências vividas por um grupo. Portanto, como um
mesmo indivíduo pode interagir com diferentes grupos - família, Estado, time de
futebol, fã-clube, etc. -, tem-se a percepção de uma individualidade que unifica
essas experiências, mas isso é um equívoco: o social, segundo Halbwachs,
sempre tem prioridade sobre o individual.
Tanto a memória quanto a história se referem ao passado, mas a maneira
de representá-lo é diferente. A memória faz isso com forte carga emocional e
frequentemente sem rigor crítico. A história, por outro lado, busca um relato com
base em um exame crítico das fontes, como registros escritos ou documentos,
de modo a apurar a verdade dos fatos.

4. Paul Ricoeur, história e cultura → século XX

→ Com a sistematização da crítica historiográfica no século XIX, grande


parte dos anseios dos cientistas historiadores foi respondida. Desde então, o
historiador e tornou um profissional cujos resultados de pesquisa podem e
devem ser submetidos ao debate e à crítica. Para Paul Ricoeur, dois séculos
depois de Voltaire, esse processo de profissionalização da história é
interessante, mas os historiadores cometem um equívoco quando, perseguindo
um ideal de cientificidade, se afastam da narrativa. Ele argumenta que a
experiência humana do tempo só pode ser representada de forma narrativa, e
como a passagem do tempo é uma referência fundamental da história, o
historiador não pode se furtar à narração dos acontecimentos:
“[...] o tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de
um modo narrativo, e [...] a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna
uma condição a existência temporal.”
O pensador chegou à conclusão de que o tempo é uma distensão da alma
e se dá em três dimensões - passado, presente e futuro -, convergindo para
um tempo único, o presente. Esse tempo se desdobra em três direções:
- memória presente de eventos passados,
- atenção presente de eventos presentes e
- expectativa presente de eventos futuros.

Além disso, o francês desenvolveu a compreensão de narrativa como


“tessitura da intriga”. Tecer a intriga é reunir elementos dispersos e diferentes,
como personagens, ações, cenário, etc. A trama narrativa integra esses
elementos, dotando-os de um sentido e dando ao conjunto. Assim como os
episódios de uma peça teatral são alinhavados de forma a conduzirem para um
desfecho, os acontecimentos históricos devem ser explicados uns em função
dos outros. Para Paul Ricoeur, mais do que ordenar cronologicamente os
acontecimentos, o historiador deve relacioná-los, levando a uma visão de
conjunto do contexto histórico.
“Tessitura da intriga”
Seguir uma história é avançar no meio de contingências e peripécias sob
a conduta de uma espera que encontra sua realização na conclusão. Essa
conclusão não é logicamente implicada por algumas premissas anteriores. Ela
dá à história um “ponto final”, o qual, por sua vez, fornece o ponto de vista do
qual uma história pode ser percebida como formando um todo. Compreender a
história é compreender como e por que os episódios sucessivos levaram a essa
conclusão, a qual, longe de ser previsível, deve finalmente ser aceitável, como
congruente com os episódios reunidos.
(RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. v. I. São Paulo: Papirus, 1994. p. 105.)

Enquanto Agostinho interpretava o tempo como distensão - e, portanto,


como discordância-, Aristóteles concebia a narrativa como congruência de
elementos diferentes - e, portanto, como concordância. Ao unir a perspectiva
desses dois pensadores, Ricoeur construiu um modelo de
concordância/discordância a que chamou de síntese do heterogêneo. Para
Ricoeur, a história precisa da narrativa para ordenar um passado que à primeira
vista se apresenta como disperso e fragmentado.
Podemos dizer assim que Voltaire insistia na autonomia da história em um
período em que era frequente a confusão entre história e literatura, enquanto
Paul Ricoeur, em uma época em que a história conquistou um lugar distinto da
literatura, não hesitou em identificar um parentesco entre a escrita historiográfica
e a narrativa literária.

Imagem: Soldado do Exército


Vermelho, em foto de 1945, com a
bandeira soviética no telhado do
palácio do Reichstag em Berlim,
Alemanha. às vezes lemos que “a
Alemanha invadiu a Polônia” e “os
EUA decidiram entrar na Guerra”.

Para Ricoeur, esse uso da linguagem, como se os Estados fossem personagens,


evidencia a nossa necessidade de expressar a história na forma de uma narrativa.
FILOSOFIA ANUAL – 2ª SÉRIE DO ENSINO MÉDIO
“Uma história da filosofia viva na escola”

2° bimestre - Aulas 11-12 NATUREZA E CULTURA – parte 1

REGISTRO DA AULA
Habilidade curricular1: Identificar diferentes concepções de indivíduo.
Habilidade curricular2: Discutir a relação entre natureza e cultura.
Habilidade curricular3: Identificar as subjetividades como resultado de
construção social.
Competência Socioemocional: Responsabilidade e cidadania – Agir pessoal
e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e
determinação  Tomar decisões com base em princípios éticos, democráticos,
inclusivos, sustentáveis e solidários.
Nesta aula:
Leitura: 1. Tornar-se indivíduo
Leitura: 2. O pensamento histórico
Tarefa Mínima:
Leitura: 3. Paul Ricoeur, história e cultura
Exercícios: Natureza e cultura – parte 1
Tarefa Complementar:
Leitura: Gabriel Garcia Márquez
Leitura: Maurice Halbwachs

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