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História & literatura: uma velha-nova história

Sandra Jatahy Pesavento

Por vezes, esta aproximação da história com a literatura tem um sabor de dejà vu, dando a
impressão de que tudo o que se apregoa como novo já foi dito e de que se está “reinventando
a roda”. A sociologia da literatura desde há muitos anos circunscrevia o texto ficcional no seu
tempo, compondo o quadro histórico no qual o autor vivera e escrevera sua obra. A história,
por seu lado, enriquecia por vezes seu campo de análise com uma dimensão “cultural”, na
qual a narrativa literária era ilustrativa de sua época. Neste caso, a literatura cumpria face à
história um papel de descontração, de leveza, de evasão, “quase” na trilha da concepção
beletrista de ser um sorriso da sociedade...

Entendemos que, atualmente, estas posturas foram ultrapassadas, não porque não tenham
valor em si – no caso da contextualização histórica da narrativa literária - ou porque sejam
consideradas erradas – caso de enfocar a literatura somente como passatempo. Tais posturas
se tornam ultrapassadas pelas novas questões que se colocam aos intelectuais neste limiar do
novo século e milênio. Chamemos nosso tempo pela já desgastada fórmula da “crise dos
paradigmas”, que questionou as verdades e os modelos explicativos do real, ou entendamos
nosso mundo pelo recente enfoque da globalização, dotado hoje de forte apelo, o que parece
evidente é que nos situamos no meio de uma complexificação e estilhaçamento da realidade,
onde é preciso encontrar novas formas de acesso para compreendê-la. A rigor, cada geração
se coloca problemas e ensaia respostas para respondê-los, valendo-se para isso de um arsenal
de conceitos que se renova no tempo.

Se os conceitos são artifícios mentais que se propõem a interrogar e explicar o mundo e que,
articulados, resultam em constelações teóricas, ousaríamos dizer que o desafio atual é o e
assumir que as ciências humanas se voltam, “grosso modo”, para uma postura epistemológica
diferenciada. Não se trata, aqui no caso, de desenvolver toda a gama de conceitos e de
redefinições teóricas orientadoras das diferentes correntes que estudam a cultura nestas
décadas finais do século e do milênio. Apenas caberia assinalar que tais mudanças passam,
com freqüência, pelos caminhos da representação e do simbólico, assim como da
preocupação com a escrita da história e sua recepção.

Preferimos concentrar nosso enfoque numa perspectiva que, a nosso ver, tem se revelado
profícua neste giro do olhar sobre o mundo e que redimensiona, por sua vez, as relações entre
a história e a literatura. Referimo-nos aos estudos sobre o imaginário, que abriram uma janela
para a recuperação das formas de ver, sentir e expressar o real dos tempos passados.

Atividade do espírito que extrapola as percepções sensíveis da realidade concreta, definindo e


qualificando espaços, temporalidades, práticas e atores, o imaginário representa também o
abstrato, o não-visto e não-experimentado. É elemento organizador do mundo, que dá
coerência, legitimidade e identidade. É sistema de identificação, classificação e valorização
do real, pautando condutas e inspirando ações. É, podemos dizer, um real mais real que o real
concreto...

O imaginário é sistema produtor de idéias e imagens que suporta, na sua feitura, as duas
formas de apreensão do mundo: a racional e conceitual, que forma o conhecimento
científico, e a das sensibilidades e emoções, que correspondem ao connhecimento sensível.

Conceito amplo e discutido1, o imaginário encontra a sua base de entendimento na idéia da


representação. Neste ponto, as diferentes posturas convergem: o imaginário é sempre um
sistema de representações sobre o mundo, que se coloca no lugar da realidade, sem com ela
se confundir, mas tendo nela o seu referente. Mesmo que os seguidores da História Cultural
sejam freqüentemente atacados por negarem a realidade, acusação absurda e mesmo ridícula,
nenhum pesquisador, em sã consciência, poderia desconsiderar presença do real.

Apenas – e este apenas é toda a diferença – parte-se do pressuposto de que este real é
construído pelo olhar enquanto significado, o que permite que ele seja visualisado,
vivenciado e sentido de forma diferente, no tempo e no espaço. O enunciado é simples, mas
tem incomodado...

Ao construir uma representação social da realidade, o imaginário passa a substituir-se a ela,


tomando o seu lugar. O mundo passa a ser tal como nós o concebemos, sentimos e avaliamos.
Ou, como diria Castoriadis, a sociedade, tal como tal é enunciada, existe porque eu penso
nela, porque eu lhe dou existência – ou seja, significação – através do pensamento.

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Os recentes estudos de Lucian Boia2 , historiador rumeno, acenam para a possibilidade de


estabelecer estratégias metodológicas de acesso a este mundo do imaginário, crème de la
crème da historiografia atual.

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Por um lado, há uma tentativa de viés antropológico (Gilbert Durand, Yves Durand), que se
baseia na idéia da possibilidade de divisar traços e rasgos de permanência na construção
imaginária do mundo, num processo que beiraria o conceito dos arquétipos fundamentais
construtores de sentido e que acompanhariam a trajetória do homem na terra. Por outro lado,
em uma versão historicizada (Le Goff), articula-se o entendimento de que os imaginários são
construções sociais e, portanto, históricas e datadas, que guardam as suas especificidades e
assumem configurações e sentidos diferentes ao longo do tempo e através do espaço.

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Admitindo, como propõe Boia, a possibilidade de conjugar, estrategicamente, as duas


posturas, que combinadas associariam os traços de permanência de estruturas mentais com as
configurações específicas de cada temporalidade, desembocamos na redescoberta da
literatura pela história.

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Clío se aproxima de Calíope, sem com ela se confundir. História e literatura correspondem a
narrativas explicativas do real que se renovam no tempo e no espaço, mas que são dotadas de
um traço de permanência ancestral: os homens, desde sempre, expressaram pela linguagem o
mundo do visto e do não visto, através das suas diferentes formas: a oralidade, a escrita, a
imagem, a música.

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O que nos interessa, como especificamos anteriormente, é discutir o diálogo da história com a
literatura, como um caminho que se percorre nas trilhas do imaginário, campo de pesquisa
que passou a se desenvolver significativamente no Brasil a partir dos anos 90 e que tem hoje
se revelado uma das temáticas mais promissoras em termos de pesquisas e trabalhos
publicados.

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Para enfrentar esta aproximação entre estas formas de conhecimento ou discursos sobre o
mundo, é preciso assumir, em uma primeira instância, posturas epistemológicas que diluam
fronteiras e que, em parte, relativizem a dualidade verdade/ficção, ou a suposta oposição
real/não-real, ciência ou arte3. Nesta primeira abordagem reflexiva, é o caráter das duas
formas de apreensão do mundo que se coloca em jogo, face a face, em relações de
aproximação e distanciamento.

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Assim, literatura e história são narrativas que tem o real como referente, para confirmá-lo ou
negá-lo, construindo sobre ele toda uma outra versão, ou ainda para ultrapassá-lo. Como
narrativas, são representações que se referem à vida e que a explicam. Mas, dito isto, que
parece aproximar os discursos, onde está a diferença? Quem trabalha com história cultural
sabe que uma das heresias atribuídas a esta abordagem é a de afirmar que a literatura é igual à
história...

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A literatura é, no caso, um discurso privilegiado de acesso ao imaginário das diferentes


épocas. No enunciado célebre de Aristóteles, em sua “Poética”, ela é o discurso sobre o que
poderia ter acontecido, ficando a história como a narrativa dos fatos verídicos. Mas o que
vemos hoje, nesta nossa contemporaneidade, são historiadores que trabalham com o
imaginário e que discutem não só o uso da literatura como acesso privilegiado ao passado —
logo, tomando o não-acontecido para recuperar o que aconteceu! — como colocam em pauta
a discussão do próprio caráter da história como uma forma de literatura, ou seja, como
narrativa portadora de ficção!4

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Tomemos a faceta do não acontecido, elemento perturbante para um historiador que tem
como exigência o fato de algo ter ocorrido um dia. Mas, a rigor, de qual acontecido falamos?
Se estamos em busca de personagens da história, de acontecimentos e datas sobre algo que se
deu no passado, sem dúvida a literatura não será a melhor fonte a ser utilizada. Falamos em
fonte? A coisa se complica: como a literatura, relato de um poderia ter sido, pode servir de
traço, rastro, indício, marca de historicidade, fonte, enfim, para algo que aconteceu?

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A sintonia fina de uma época, fornecendo uma leitura do presente da escrita, pode ser
encontrada em um Balzac ou em um Machado, sem que nos preocupemos com o fato de
Capitu, ou do Tio Goriot e de Eugène de Rastignac, terem existido ou não. Existiram
enquando possibilidades, como perfis que retraçam sensibilidades. Foram reais na “verdade
do simbólico” que expressam, não no acontecer da vida. São dotados de realidade porque
encarnam defeitos e virtudes dos humanos, porque nos falam do absurdo da existência, das
misérias e das conquistas gratificantes da vida. Porque falam das coisas para além da moral e
das normas, para além do confessável, por exemplo.

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Mas, sem dúvida, dirá alguém, no delineamento de tais personagens e na articulação de tais
intrigas, houve um Honoré de Balzac e um Joaquim Maria Machado de Assis, o que não é
pouca coisa... Sim, por certo, longe de negar a genialidade dos autores, ressaltamos a
existência imprescindível dos narradores de uma trama, que mediatizam o mundo do texto e o
do leitor. E não esqueçamos, como alerta Paul Ricoeur 5, que os fatos narrados na trama
literária, existiram de fato para a voz narrativa!

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Mas, a rigor, o processo acima descrito para o âmbito da literatura não será o mesmo nos
domínios da História?

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Neste campo temos também um narrador – o historiador – que tem também tarefas narrativas
a cumprir: ele reúne os dados, seleciona, estabelece conexões e cruzamentos entre eles,
elabora uma trama, apresenta soluções para decifrar a intriga montada e se vale das
estratégias de retórica para convencer o leitor, com vistas a oferecer uma versão o mais
possível aproximada do real acontecido.

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O historiador não cria personagens nem fatos. No máximo, os “descobre”, fazendo-os sair da
sua invisibilidade. A título de exemplo, temos o caso do negro, recuperado como ator e
agente da história desde algumas décadas, embora sempre tenha estado presente. Apenas não
era visto ou considerado, tal como as mulheres ou outras tantas ditas “minorias”.

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Historiadores também mediatizam mundos, conectando escrita e leitura. Dele também se


espera performance exemplar, genial, talvez...E ele também não tem, admitamos, certezas
absolutas de chegar lá, na tal temporalidade já escoada, irremediavelmente perdida e não
recuperável, do acontecido.

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Na reconfiguração de um tempo - nem passado nem presente, mas tempo histórico


reconstruído pela narrativa -, face à impossibilidade de repetir a experiência do vivido, os
historiadores elaboram versões. Versões plausíveis, possíveis, aproximadas, daquilo que teria
se passado um dia. O historiador atinge pois a verossimilhança, não a veracidade. Ora, o
verossímil não é a verdade, mas algo que com ela se aparenta. O verossímil é o provável, o
que poderia ter sido e que é tomado como tal. Passível de aceitação, portanto.

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Registramos, com isto, a mudança deliberada do tempo verbal: o poderia, o teria sido, com o
que a narrativa histórica, representação do passado, se aproximaria, perigosamente, da
definição aristotélica da poesia, pertencente ao campo da ficção. Ou seja, as versões do
acontecido são, de forma incontornável, um poderia ter sido. A representação do passado
feita pelo historiador seria marcada por esta preocupação ou meta: a da de vontade de chegar
lá e não da certeza de oferecer a resposta certa e única para o enigna do passado.

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Assim, a noção proposta por Paul Ricoeur de “representância” vem ao encontro desta
propriedade do trabalho do historiador: mais do que construir uma representação, que se
coloca no lugar do passado, ele é marcado pela vontade de atingir este passado. Trata-se de
uma militância no sentido de atingir o inatingível, ou seja, o que um dia se passou, no tempo
físico já escoado.

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O segredo semântico de aproximação dos discursos se encerra neste tempo verbal: “teria
acontecido”. O historiador se aproxima do real passado, recuperando com o seu texto que
recolhe, cruza e compõe, evidências e provas, na busca da verdade daquilo que foi um dia.
Mas sua tarefa é sempre a de representação daquela temporalidade passada. Ele também
constrói uma possibilidade de acontecimento, num tempo onde não esteve presente e que ele
reconfigura pela narrativa. Nesta medida, a narrativa histórica mobiliza os recursos da
imaginação, dando a ver e ler uma realidade passada que só pode chegar até o leitor pelo
esforço do pensamento.

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Por outro lado, no aprofundamento destas questões, constata-se que tem sido tradicional
reservar à literatura o atributo da ficção, negando esta condição ou prática ao campo da
história6.

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Num giro de análise, poderíamos também acrescentar que o fato histórico é, em si, também
criação pelo historiador, mas na base de documentos “reais” que falam daquilo que teria
acontecido. Como diz Jauss, não é possível manter ainda uma distinção ingênua e radical
entre res factae e res fictae7, como se fosse possível chegar, por meio de documentos reais, a
uma verdade incontestável e, por outro lado, por meio de artifícios, ficar no mundo da
fantasia ou pura invenção.

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No contrafluxo da ficção, o que teríamos, a verdade? Se esta for, como propõe Aristóteles, a
correspondência do discurso com o real, já vimos que, nos caminhos do resgate do real
passado, a história se baseia mais em versões e possibilidades do que certezas. O distante
passado, como atingí-lo na sua integridade? E mesmo que, por um passe de mágica, para um
outro tempo fôssemos transportados, na posição de testemunha ocular dos fatos, o que
veríamos? Sem duvida, nossa visão seria diferente da do companheiro que nos acompanhasse
nesta viagem fantástica no túnel do tempo. E, ao retornar ao nosso tempo, teríamos múltiplas
versões do acontecido!

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Os historiadores do tempo presente ou da história oral que o digam quão difícil é lidar com os
testemunhos dos diferentes protagonistas de um mesmo incidente ou fato histórico. Quantos
relatos e versões se tecem em cima de um mesmo fato!

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Para construir a sua representação sobre o passado a partir das fontes ou rastros, o caminho
do historiador é montado através de estratégias que se aproximam das dos escritores de
ficção, através de escolhas, seleções, organização de tramas, decifração de enredo, uso e
escolha de palavras e conceitos.

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Mas então, poderíamos nos perguntar, os historiadores, tal como os escritores de literatura,
produziriam versões imaginárias do real? A narrativa histórica seria uma espécie de ficção?

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Há, sem dúvida, uma definição corrente, explícita no conhecido dicionário Aurélio, que afasta
da história a ficção: em uma primeira acepção, ficção é o ato de fingir, simular, e em outra,
significa coisa imaginária, fantasia, invenção, criação. Tal definição corresponde a um
estatuto reconhecido, a um senso comum que chega até a academia: a história é diferente, é a
narrativa organizada dos fatos acontecidos, logo, não é fingimento ou engodo, delírio ou
fantasia.



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Preferimos definir a ficção na sua acepção que, como diz Natalie Davis8 estava ainda
presente no século XVI, antes do cientificismo do século XIX converter a história na “rainha
das ciências” e de colocar, não no seu horizonte mas no seu campo efetivo de chegada, a
verdade verdadeira do acontecido. Este posicionamento antigo nos fala da ficção/fingere
como uma criação a partir do que existe, como construção que se dá a partir de algo que
deixou indícios. A palavra fictio, corrobora Ginzburg, está ligada a figulus, oleiro9, ou seja,
aquele que cria a partir de algo. No caso do historiador, este algo que existiu seriam as
fontes, traços da evidência de um acontecido, espécie de provas para a construção do
passado. Na complementação deste entendimento, que afasta a ficção da pura fantasia, Carlo
Ginzburg cita Isidoro de Sevilha, quando este escreveu dizendo que falso era o não
verdadeiro, fictio [fictum] era o verossímil.10

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Bem sabemos que o historiador está preso às fontes e à condição de que tudo tenha
acontecido. O historiador não cria o traço no seu sentido absoluto, eles os descobre, os
converte em fonte e lhes atribui significado. Há que considerar ainda que estas fontes não são
o acontecido, mas rastros para chegar a este. Se são discursos, são representações discursivas
sobre o que se passou; se são imagens, são também construções, gráficas ou pictóricas, por
exemplo, sobre o real. Assim, os traços que chegam do passado suportam esta condição
dupla: por um lado, são restos, marcas de historicidade; por outro, são representações de algo
que teve lugar no tempo.

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Mas, a rigor, é o historiador que transforma estes traços em fontes, através das perguntas que
ele faz ao passado. Atribuindo ao traço a condição de documento ou fonte, portador de um
significado e de um indício de resposta às suas indagações, o historiador transforma a
natureza do traço. Transforma o velho em antigo, ou seja, rastro portador de tempo
acumulado e, por extensão de significações. Como fonte, o traço revela, desvela sentidos.

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A rigor, o historiador tem o mundo à sua disposição. Tudo para ele pode se converter em
fonte, basta que ele tenha um tema e uma pergunta, formulada a partir de conceitos, que
problematizam este tema e o constroem como objeto. É a partir daí que ele enxergará,
descobrirá, coletará documentos, amealhando indícios para a decifração de um problema.
Cabe ao historiador, a partir de tais elementos, explicar o como daquele ocorrido, inventando
o passado.

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Mas, se ele inventa o passado, esta é uma ficção controlada, o que se dá em primeiro lugar
pela sua tarefa de historiador no âmbito do arquivo, no trato das fontes.

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Em segundo lugar, há um condicionamento a esta liberdade ficcional imposta pelo


compromisso do historiador com relação ao seu ofício. O historiador quer e se empenha em
atingir o real acontecido, uma verdade possível, aproximada do real tanto quanto lhe for
permitido. Esta é a sua meta, a razão de seu trabalho e este desejo de verdade impõe limites à
criação.

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Em terceiro lugar, a ficção na história é controlada pelas estratégias de argumentação – a


retórica - e pelos rigores do método – testagem, comparação e cruzamento -, na sua busca de
reconstituir uma temporalidade que se passou por fora da experiência do vivido. Sua versão
do passado deve, hipoteticamente, poder “comprovar-se” e ser submetida à testagem, pela
exibição das fontes, bibliografia, citações e notas de rodapé, como que a convidar o leitor a
refazer o caminho da pesquisa se duvidar dos resultados apresentados. O texto, por sua vez,
deve convencer o público leitor. O uso dos conceitos, das palavras, a construção de
argumentos devem ser aceitos, colocando-se no lugar do ocorrido, em explicação satisfatória.

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Mas – e esta parece ser uma especificidade muito importante – a reconstituição do passado
vivido pela narrativa histórica dá a ver uma temporalidade que só pode existir pela força da
imaginação, como já foi apontado. Ficção, pois? Ficção controlada? Ficção histórica, possível
dentre de certos princípios? E este, no caso, se apoiariam em desejo de veracidade e resultado
de verossimilhança?

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A história é um romance verdadeiro, disse o iconoclasta Paul Veyne no início da década de


’70. Verdadeiro porque aconteceu, mas romance porque cabe ao historiador explicar o como.
E, nesta instância, na urdidura do texto e da argumentação, na seleção dos argumentos e das
próprias marcas do passado erigidas em fontes é que se coloca a atuação ficcional do
historiador. Como diz Jans Robert Jauss, o historiador faz sempre uma ficção perspectivista
da história. Não há só um “recolhimento do passado” nos arquivos. A história é sempre
construção de uma experiência, que reconstrói uma temporalidade e a transpõe em narrativa.
Chamamos a isto de estetização da História, ou seja, a colocação em ficção – ou
narrativização - da experiência da história.

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Mas nos voltemos agora para uma segunda instância de análise, que é a do uso da literatura
pela história, sem que com isso estabeleçamos hierarquias de valor sobre os modos de dizer o
real. Quando nos referimos ao uso da literatura pela história, nos reportamos ao lugar de onde
se enuncia o problema e a pergunta que, no caso, é o campo da história.

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Sob esta segunda ótica, aí sim, podemos dizer que o diálogo se estabelece a partir de uma
hierarquização entre os campos, a partir do lugar onde são colocadas as questões ou
problemas. E, neste caso, a partir deste particular e específico ponto de vista, podemos dizer
que, quando a história coloca determinadas perguntas, ela se debruça sobre a literatura como
fonte.

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Nesta medida, um diálogo se estabelece no jogo transdisciplinar e interdiscursivo das formas


de conhecimento sobre o mundo, onde a história pergunta, e a literatura responde. É preciso
ter em conta, contudo, que os discursos literário e histórico são formas diferentes de dizer o
real. Ambos são representações construídas sobre o mundo e que traduzem, ambos, sentidos e
significados inscritos no tempo. Entretanto, as narrativas histórica e a literárira guardam com
a realidade distintos níveis de aproximação.

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A recorrência do “uso” de um campo pelo outro é, pois, possível, a partir de uma postura
epistemológica que confronta as tais narrativas, aproximando-as num mesmo patamar, mas
que leva em conta a existência de um diferencial. Historiadores trabalham com as tais marcas
de historicidade e desejam chegar lá. Logo, freqüentam arquivos e arrecadam fontes, se
valem de um método de análise e pesquisa, na busca de proximidade com o real acontecido.
Escritores de literatura não tem este compromisso com o resgate das marcas de veracidade
que funcionam como provas de que algo deva ter existido. Mas, em princípio, o texto
literário precisa, ele também, ser convincente e articulado, estabelecendo uma coerência e
dando impressão de verdade. Escritores de ficção também contextualizam seus personagens,
ambientes e acontecimentos para que recebam aval do público leitor.

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Mas se a literatura pode ser fonte para a história, uma terceira instância de análise se
introduz, que é a da especifidade e riqueza do texto ficcional.

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Sem dúvida, sabemos do potencial mágico da palavra e da sua força em atribuir sentido ao
mundo. O discurso cria a realidade e faz ver o social a partir da linguagem que o designa e o
qualifica. Já o texto de ficção literária é enriquecido pela propriedade de ser o campo por
excelência da metáfora. Esta figura de linguagem, pela qual se fala de coisas que apontam
para outras coisas, é uma forma da interpretação do mundo que se revela cifrada. Mas talvez
aí esteja a forma mais desafiadora de expressão das sensibilidades diante do real, porque
encerra aquelas coisas “não-tangíveis” que passam pela ironia, pelo humor, pelo desdém, pelo
desejo e sonhos, pela utopia, pelos medos e angústias, pelas normas e regras, por um lado, e
pelas suas infrações, por outro. Neste sentido, o texto literário atinge a dimensão da “verdade
do simbólico”, que se expressa de forma cifrada e metafórica, como uma forma outra de dizer
a mesma coisa.

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A literatura é, pois, uma fonte para o historiador, mas privilegiada, porque lhe dará acesso
especial ao imaginário, permitindo-lhe enxergar traços e pistas que outras fontes não lhe
dariam. Fonte especialíssima, porque lhe dá a ver, de forma por vezes cifrada, as imagens
sensíveis do mundo. A literatura é narrativa que, de modo ancestral, pelo mito, pela poesia ou
pela prosa romanesca fala do mundo de forma indireta, metafórica e alegórica. Por vezes, a
coerência de sentido que o texto literário apresenta é o suporte necessário para que o olhar do
historiador se oriente para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não
viu.

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A literatura cumpre, assim, um efeito multiplicador de possibilidades de leitura. Estaríamos


diante do “efeito de real” fornecido pelo texto literário que consegue fazer seu leitor
privilegiado — no caso, o historiador, com o seu capital específico de conhecimento —
divisar sob nova luz o seu objeto de análise, numa temporalidade passada. Nesta dimensão, o
texto literário inaugura um plus como possibilidade de conhecimento do mundo.

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O mundo da ficção literária — este mundo verdadeiro das coisas de mentira11 — dá acesso
para nós, historiadores, às sensibilidades e ás formas de ver a realidade de um outro tempo,
fornecendo pistas e traços daquilo que poderia ter sido ou acontecido no passado e que os
historiadores buscam. Isto implicaria não mais buscar o fato em si, o documento entendido na
sua dimensão tradicional, na sua concretude de “real acontecido”, mas de resgatar
possibilidades verossímeis que expressam como as pessoas agiam, pensavam, o que temiam,
o que desejavam.

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A verdade da ficção literária não está, pois, em revelar a existência real de personagens e
fatos narrados, mas em possibilitar a leitura das questões em jogo numa temporalidade dada.
Ou seja, houve uma troca substantiva, pois para o historiador que se volta para a literatura o
que conta na leitura do texto não é o seu valor de documento, testemunho de verdade ou
autenticidade do fato, mas o seu valor de problema. O texto literário revela e insinua as
verdades da representação ou do simbólico através de fatos criados pela ficção.
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Mais do que isso, o texto literário é expressão ou sintoma de formas de pensar e agir. Tais
fatos narrados não se apresentam como dados acontecidos, mas como possibilidades, como
posturas de comportamento e sensibilidade, dotadas de credibilidade e significância.

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Nesta última dimensão de análise que pensa a especificidade da literatura como fonte, cabe
retomar a já mencionada reconfiguração temporal. O conceito, desenvolvido por Ricoeur de
maneira exemplar, nos coloca diante da possibilidade de pensar a literatura na relação com a
história como um inegável e recorrente testemunho de seu tempo.

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Admitimos que a literatura é fonte de si mesma enquanto escrita de uma sensibilidade,


enquanto registro, no tempo, das razões e sensibilidades dos homens em um certo momento
da história. Dos seus sonhos, medos, angústias, pecados e virtudes, da regra e da
contravenção, da ordem e da contramão da vida. A literatura registra a vida. Literatura é,
sobretudo, impressão de vida. E, com isto, chegamos a uma das metas mais buscadas nos
domínios da História Cultural: capturar a impressão de vida, a energia vital, a enargheia
presente no passado, na raiz da explicação de seus atos e da sua forma de qualificar o mundo.
E estes traços, eles podem ser resgatados na narrativa literária, muito mais do que em outro
tipo de documento. Como afirma Ginzburg, a poesia- ou literatura – constitui uma realidade
que é verdadeira para todos os efeitos, mas não no sentido literal.12

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Sem dúvida que esta dimensão poderá ser contestada, sob o argumento de que só a “literatura
realista”, na linha de Balzac ou Zola, poderia ser alternativa ao historiador para recuperar as
sensibilidades de uma temporalidade determinada, atuando como aquele plus documental de
que se falou. Mas o que queremos afirmar é que mesmo a literatura que reinstala o tempo de
um passado remoto ou aquela que projeta, ficcionalmente, a narrativa para o futuro são,
também, testumunhos do seu tempo.

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Romances da Cavalaria no século XIX dão a ver o imaginário que o mundo novecentista
construía sobre a Idade Média, assim como a ficção cientifica de um Jules Verne possibilita a
leitura das utopias do progresso que embalavam os sonhos e desejos dos homens do século
passado. Deste ponto de vista, tudo é, sob o olhar do historiador, matéria “histórica” para a
sua análise.

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Em suma, entendemos que todas estas questões enunciadas que, pensamos, revela a riqueza
de uma velha-nova história, se encontram ao abrigo da postura que se convencionou chamar
de história cultural. Esta, a partir de seus pressupostos e preocupações, proporciona uma
abertura dos campos de pesquisa para a utilização de novas fontes e objetos, entre as quais se
encontra o texto literário.

NOTES

1 Consulte-se, a propósito do tema:

Castoriadis, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

Durand, Gilbert. Les structures anthropologiques de l’imaginaire. Paris: Dunod, 1984.

Durand, Gilbert. L’imagination symbolique. Paris: PUF, 1989.

Le Goff, Jacques. L’imaginaire médieval. Paris: Gallimard, 1985.

Le Goff, Jacques. Histoire et imaginaire. Paris: Poiesis, 1986.


Thomas, Jöel, org. Introductions aux méthologies de l’imaginaire. Paris: Ellipses, 1998.

2 Boia, Lucian. Pour une histoire de l’imaginaire. Paris, Belles Lettres, 1998.

3 Ver, por exemplo, o nº 47 da revista Traverses. Ni vrai ni faux (Traverses, Révue du Centre Georges
Pompidou, Paris, n.47, 1989).

4 Só como exemplo, podemos citar a polêmica em torno da obra de Hayden White, Metahistória (São Paulo:
Edit. da Universidade de São Paulo, 1992).

5 Ricoeur, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983/5. 3v

6 Consultar, a propósito da literatura na sua aproximação com a história, envolvendo a questão da ficção, os
números 54, 56 e 86 da revista Le Débat.

7 Jauss, Hans Robert. L’usage de la fiction en histoire. Le Débat, Paris, Gallimard, n.54, mars/avril 1989. p.81.

8 Davis, Natalie. Du conte et de l’histoire.Le Debat. Paris, Gallimard, nº 54, mars-avril 1989, p. 140.

9 Ginzburg, Carlo. Olhos de madeira. Nove reflexões sobre a distância. São Paulo, Companhia das Letras,
2001, p. 55.

10 Ginzburg, Carlo. op.cit., p. 57.


11 Expresso por mim utilizada para um artigo que discutir imagens pictóricas e literárias e o seu uso pela
história: Pesavento, Sandra Jatahy. Este mundo verdadeiro das coisas de mentira: entre a arte e a história.
Estudos históricos. Arte e história. Rio de Janeiro, FGV, nº30, p. 56-75.

12 Ginzburg, Carlo. Olhos de madeira. Op.cit, p. 55.

POUR CITER CET ARTICLE

Référence électronique

Sandra Jatahy Pesavento, « História & literatura: uma velha-nova história », Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En
ligne], Débats, mis en ligne le 28 janvier 2006, consulté le 28 août 2022. URL :
http://journals.openedition.org/nuevomundo/1560 ; DOI : https://doi.org/10.4000/nuevomundo.1560
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● Pereira, Gislene. (2021) Propriedade da terra: um conceito em duas linhas. Revista


Produção e Desenvolvimento, 7. DOI: 10.32358/rpd.2021.v7.546

AUTEUR

Sandra Jatahy Pesavento

UFRGS

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