Você está na página 1de 16

A cultura histórica oitocentista:

a constituição de uma memória disciplinar


Manoel Luiz Salgado Guimarães

Todas estas convenções são inevitáveis. Minha única críti


ca é a negligência que não as toma explícitas,conscientes,
sensíveis ao espírito. Lamento que não se tenha feito com
a história o que as ciências exatas fizeram consigo mesmas
quando revisaram seus fundamentos, pesquisaram com o
maior cuidado seus axiomas, enumeraram seus postulados.'

Falando aos alunos de um liceu francês em 1932 o escritor, e não


um historiador de ofício, retomava um de seus temas prediletos de
reflexão - a História - na sua forma consagrada como disciplina e tam
bém, matéria regular de ensino escolar. Alguns anos antesjá se refe
rira a ela como o "produto mais perigoso que a química do intelecto
já elaborou"- apontando desta maneira para os usos políticos da His
tória e suas conseqüências para as sociedades humanas. Nestas suas
reflexões uma questão aparece de forma recorrente, qual seja, a pre
ocupação expressa com os fundamentos da escrita histórica, supon-
do-os um elemento central para pensar o conhecimento produzido
e suas conseqüêncicis político-sociais. Fundamentos estes que, na epí
grafe ao presente texto, lamenta não ser preocupação dos historiado
res de ofício, o que parece supor a crença numa história em si, auto-
evidente para os praticantes do ofício. Narrá-la decorreria da existên-

Manoel Luiz Salgado Guimarães é doutor em História pela Universidade de Berlim


e professor nos departamentos de História e nos programas de Pós-Graduação da
UERJ e daUFRJ.
' Valéiy, Paul.Discurso sobre a história. In: Variedades. SãoPaulo:Iluminuias,1999, p.113.
Valéry, Paul. De riiistoire. In: Regards síir le monde actuel el nutres essais. Paris: Galli-
mard, 1998. P. 35.
cia do passado e de seus fatos como dado positivo, empiricamente
comprováveis, e por isso capazes de legitimar como verídicas as nar
rativas construídas a partir deste material pretérito.
Na verdade a afirmação de uma crença e de um projeto para a
história como disciplina e ciência, cujas bases foram lançadas ainda no
século XIX por Ranke num esforço de apresentá-la como narrativa fiel
dos eventos passados, elidindo deste ato qualquer suposto de estar ope
rando uma representação ou mesmo sua invenção.
E esta crença numa história que parece se confundir com o rela
to dos eventos passados, assegurando uma dose de naturalidade à tare
fa de dar sentido às ações humanas, fez com que este passado viesse
habitar os espaços do sagrado, preservados do exercício da crítica, cons
truindo desta forma uma memória da disciplina. Memória que, como
todo exercício de lembrança, procede a escolhas a partir de um jogo
complexo em que o lembrar supõe necessariamente o esquecer. O es
quecer entendido não como ato de "falta de lembrança" mas como pro
cedimento social que se inscreve em toda cultura histórica.
As intrincadas relações que são tecidas entre memória e História
estão presentes também no momento de afirmação da disciplina numa
disputa por se constituir em saber específico e particular e não apenas
o conhecimento propedêutico que marcara até o século XIX o seu lu
gar no cenário acadêmico europeu. Reconhecê-las - as tensões entre
memória e história - é tarefa fundamental para a historicização da prá
tica de nosso ofício. Enquanto a primeira - a memória - situa-se no cam
po dos afetos e dos sentimentos, procurando sacralizar os objetos que
reverencia, a segunda - a história - pretende-se uma operação intelec
tual, um exercício crítico capaz de investigar as construções da memó
ria, retirando dos altares e trazendo para o mundo dos homens, aque
les objetos sacralizados, sejam eles os atores do passado, os eventos fíin-
dadores ou as formas narrativas elaboradas a partir das experiências do
passado. Refazer esta gênese e este percurso impõe-se como condição
para devolvermos ao homem sua historicidade e á história como disci
plina sua capacidade crítica como conhecimento.
Observador sagaz de seu tempo, atravessado por transformações
profundas que alterariam significativamente tanto a geopolítica mun
dial (pensemos na Primeira Guerra Mundial) quanto as sensibilidades
humanas (o papel fundamental das vanguardas artísticas redimensio
nando através de uma crítica ácida os valores da cultura burguesa oito-
centista, também considerada por Peter Gay como a cultura vitoriana),

10
Valéry é capaz de perceber àquela altura a "perigosa química" que as
sociara história, em sua perspectiva nacional, e disciplina acadêmica,
constituída a partir de certos princípios definidos como científicos e
necessários para alcançar a verdade dos fenômenos observados.
Na verdade nào estava solitário em sua crítica à disciplina histó
rica, compartilhando com inúmeros outros intelectuais e artistas de
seu tempo uma descrença quanto ao sentido e às expectativas corren
tes formuladas à História em sua capacidade de produzir conhecimen
to sobre o mundo em transformação. A experiência da Primeira Guer
ra Mundial só fez agudizar este sentimento de descrença em relação
à História e às promessas implícitas numa cultura de heróis prome-
téicos formulada no século XIX.^
Da associação entre interesses nacionais e projeto científico para
a História nascera uma poderosa cultura histórica, ainda a nos marcar
coletivamente, e que viriaafirmar e garantir a centralidade da História
no processo de definição de sentidos para o homem contemporâneo.
Forjada a partir da experiência revolucionária de 1789, essa cul
tura histórica problematizaria de forma cada vez mais intensa a rela
ção entre passado e presente, agora definitivamente separados por
uma experiência radical de ruptura. A integração do passado a partir
de categorias como a de desenvolvimento e progresso poderia asse
gurar ao presente um sentido e um ponto de ancoragem, indicando
no mesmo movimento os caminhos para o futuro.
Destaforma, esta cultura históricaatrela inevitavelmente passado,
presente e futuro, remetendo-nos para o passado como lugar por exce
lência de definição de um sentido original, razão explicativa da própria
existência do presente. Por este procedimento que veio a se consagrar
após longa e acirrada disputa pela significação do passado, o presente
estaria de certa maneira contido no passadode forma prefigurada.
Aprendemosa naturalizar esteolhar,esquecendo-nos de que a pró
pria visão só existe a partir de um conjunto de referentes culturais que
tomam os objetos visíveis, sejam eles do presente ou do passado. Estes
não devem sua visibilidade à simples razão de sua existência material e
empírica, mas sim à sua apreensão por um sistema de significação, que
toma estesmesmosotyetosvisíveis porque enunciáveis. Importa, portan
to, interrogarmo-nos acerca das condições de visibilidade que tomam o

' Ver,a respeito, Bermann, Marshall. Tudo o queésólido desmancha noar. A aventura da
modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
passado "origem"natural do presente, esforçoque parece pouco comum
à prática de nosso ofício e ohyeto da crí^tica de Valéry. O nascimento da
História como disciplina científica não pode assim ser dissociado de um
projeto político em gestação, quando paralelamente à definição de mé
todos de trabalho para a pesquisa histórica espera-se obter por esta via
um sentido de orientação para o futuro, desvendando-se, desta manei
ra, um papel central para o trabalho do historiador.
A História como disciplina partilha de um esforço próprio da cul
tura da lembrança, acionada pelas organizações humanas com o senti
do de planejarem e esperarem o futuro, construindo sentidos e signifi
cações que são ao mesmo tempo elementos importantes para a coesão
social no presente. Ao voltar-se para uma problematização do tempo
decorrido, a cultura da lembrança pode efétivamente fazer o passado
existir, produzindo-o como questão eminentemente social e coletiva.^
Contra esta naturalização, e pela afirmação da historicidade da
própria disciplina, parece se insurgir Valéry, numa tradição que cer
tamente não inaugura e que tem em autores do século XIX como
Nietzsche e Burckhardt fonte de inspiração. Preocupação tanto mais
relevante se levarmos em conta que o escritor francês falava diante dos
alunos de um liceu por ocasião de uma premiação escolar.
O ensinamento da história como matéria curricular do ensino es
colar tende a confundir o que didaticamente lhes é apresentado como a
própria história, sobretudo a história construída a partir das injunções
da política nacional e da formação dos cidadãos nacionais e confundida
com um conteúdo a ser aprendido e, porque não, apreendido.
O livro didático parece estampar em suas páginas a verdade dos
acontecimentos do passado, assepticamente preparados e apresenta
dos ao aluno como forma de produzir seu efeito de realidade.^ Sua
advertência pode ainda ser lida como um estímulo para a reflexão de
natureza historiográflca, entendida como uma interrogação acerca
dos pressupostos que viabilizam toda escrita histórica. Até mesmo
aquela que constitui o livro didático de história, a partir da finalida
de de tornar o passado matéria ensinável.
O que pretendo aqui é contribuir para uma reflexão acerca dos usos
e sentidos da História compreendida na sua forma disciplinar, instituída

^Acerca desta discussão ver as sugestões de Assmanii, Jan. Das kulturelle Gedãchtnis.
Schrifi, ErinnerungundpolitischenIdentilãt infriilien HochiniUuren. München: Beck, 1999.
" Barthes, Roland. Ueffet de reel. In Lebniissemenl deIa langiie. Essaiscritiques IV. Paris:
Éditions du Seuil, 1984. p.179-95.

12
como área de conhecimento, canonizada a partir de um panteon de au
tores e textos, que viriam a se tomar os clássicos consagrados no espaço
universitário. Esteprocesso de canonizaçãosupõe evidentemente disputas
e embates na leitura de autores que construíram o campo ao longo do
século XIX. Quero pensá-la, contudo, para além destes mesmos limites.
Em outras palavras, interessa-me, sobretudo, interrogar acerca das pro
fundas relações entre a disciplina e a vida social, vale dizer refletir sobre
significados políticos (concebidos em sentido amplo) de certos usos da
disciplina. Era certamente para esta dimensão da reflexão histórica que
as considerações de Valéry pareciam apontar, alertando-nos para as con
seqüências e implicações de toda escrita histórica.
Na esteira destes questionamentos, argumento que a historiogra
fia, como área específica de conhecimento e pesquisa no interior da
disciplina histórica, poderá contribuir para um esforço de repensar a
historicidade de nossa disciplina. E preciso que a própria escrita da
história se submeta ao rigor do exame crítico como forma de dessa-
cralizarmos uma memória acerca desta mesma escrita. Como parte
constitutiva da prática do historiador, a escrita não deve ser encarada
apenas como a forma que reveste um conteúdo representado pela
História, mas como parte deste esforço poético de produção de sen
tido, constitutivo do próprio oficio de historiador. Em suma, trata-se
de assumir a escrita como uma operação, que aciona procedimentos
e procede a escolhas, pondo em disputa visões e significações para o
passado. Como sugerem as colocações de Pierre Nora,® a escrita da
história pode também vir a se constituir num lugar de memória, ca
bendo ao praticante do oficio interrogar-se acerca dos procedimen
tosque instauram a escrita da História nesteslugares do sagrado.
Falar dos silêncios que constituem toda possibilidade de fala so
breo passado significa, numadialética constante entre osjogos da lem
brança e do esquecimento, compreender a escrita como um tecido
pacientemente elaborado e integrado por múltiplos fios, identifican
do estes tecelões da memória, situando-os necessariamente num lu
gar, capaz de articular uma fala.
Reconheço não ser este um esforçosimples, uma vezque impli
ca em repensar os fortes traços narcísicos que marcaram a constitui
ção da disciplina,e a tarefa de quebrar o espelho, que parecia refletir

'• Noni, Pierre. Entre Mémoire et Histoire. La problématique des lieux. In. Nora,
Plen e. Org. Leslieuxde mémoire. I. Ut Republique. Paris: Gallimard, 1984. P. XVII-XLII.

13
sempre um passado clara e objetivamente localizável a partir de um
Jogo de reflexos e projeções do presente, implica em um doloroso
repensar dos rumos de nosso ofício. Difícil também porque a associa
ção entre História e Identidade sempre se fez presente no exercício
do ofício de historiador, num procedimento em que muitas das vezes
estas identidades foram como que naturalizadas e a História semu de
respaldo e legitimação para encontrar em tempos remotos as provas
necessárias que sustentariam uma memória acerca de identidades de
construção recente. Uma identidade que parecia encontrar através
da história seu porto seguro e sua plena justificação, encobrindo o
penoso processo de invenção desta mesma identidade, que como
parte da experiência humana só pode ter história. Segundo as insti-
gantes colocações de Pierre Nora em seu texto introdtuório à obra
Les lieux de mémoire: "Quanto mais grandiosas fossem as origens tanto
mais elas nos tornariam maiores. Somos nós que somos venerados
através do passado".' Reafirmar este ego do presente, que se perde
ria em tempos imemoriais do passado, foi certamente uma das tare
fas políticas centrais da história disciplinar. Aprendemos com a histó
ria a construir identidades pelo viés da semelhança, reencontrando
nos sempre ao longo do passado visitado.

História, modernidade e nação

Desde a segunda metade do século XVIII a filosofia da História


fora capaz de definir o terreno da História como objeto de uma refle
xão sistemática e racional, garantindo assim para o mundo dos feitos
e realizações humanas a possibilidade de um conhecimento sistemá
tico e metódico. Na contramão de uma perspectiva cartesiana, segun
do a qual o mundo da história não seria passível de um conhecimen
to lógico-formal, esta filosofia da História conseguiu garantir para o
mundo humano a possibilidade de sua apreensão racional e sistemá
tica, desvendando para além da aparência, pretensamente caótica dos

^"Plus les origines étaieiu grandes, pius elles nous grandissaient. Car c'est nous que
nous vénérions à traveis ie passé." Nora, Pierre. Entre Mémoire et Histoire. La pro-
blématique des lieux. In: Nora, Pierre. Org. l^s Ueux de mémoire. I. La Republique.
Paris: Gallimard, 1984. P. XXXI.

14
feitos, o sentido maior que viria a constituir a possibilidade da Histó
ria como totalidade integrada. Esta tarefa, no entanto, só algumas
décadas mais tarde e nos quadros da disciplina concebida como ciên
cia, viria se concretizar sob a pena de um autor como Leopold von
Ranke, consagrado como o primeiro historiador de ofício a ocupar
uma cátedra especialmente dedicada à pesquisa histórica na Univer
sidade de Berlim. Recusando os princípios de uma teoria geral da
História, Ranke concebia a sua escrita objetiva como necessariamen
te assentada sobre um método. Embora, contrapondo-se aos princí
pios universalistas esposados pela filosofia da História do século XVIII,
Ranke recupera a possibilidade de um tratamento racional da histó
ria dos povos, herdando desta forma a conquista do mundo histórico
preparada pela filosofia das Luzes.®
Este processo, que se estende por toda a segunda metade do sé
culo XVIII e começos do seguinte, foi descrito pelo historiador ale
mão contemporâneo Reinhart Koselleck, como o da constituição de
um singular coletivo, quando passada a ser grafada no singular, a pa
lavra História, como conceito, passa, contudo a designar um conjun
to amplo de eventos inter-relacionados em que o significado de cada
evento particular, para ter garantída sua inteligibilidade, deve neces
sariamente considerar sua posição no conjunto maior de eventos re
latados.'-' História como esta forma peculiar de singular coletivo vem
a significar algo mais do que a pura soma de histórias particulares.
Uma nova sensibilidade quanto à temporalidade inaugura-se neste
mesmo movimento: o horizonte de expectativas humanas alarga-se
consideravelmente uma vez que passa a integrar à sua própria expe
riência temporal aquela de outros grupos e sociedades que viveram
no passado, um tempo que escapando à vivência particular dos ho
mens no presente, pode, contudo, esclarecer o sentido deste mesmo
presente. Por outro lado, quando projeta o futuro como conseqüên
cia de ações do presente alarga para frente sua experiência contin
gente. Passamos a ser o resultado das ações dos homens que não co
nhecemos e que viveram muito antes de nós, mas que, não obstante,
"causaram" este presente em que vivemos. Nossos destinos parecem

" A propósito consultar: Cassirer, Ernst. Afilosofia do iíuminismo. Campinas: Editora


da Unicanip, 1992.
" Koselleck, Reinhart. Le concept d'histoire. In Koselleck, Reinhart. Lexpérience de
fhistoiri'. Paris: Gallimard Le Seiiil, 1997. P. 15-99.

15
inexoravelmente marcados pelo passado assim como o das gerações
futuras o serão pelo nosso presente, tornado, então, ele mesmo, pas
sado. Como parte de um novo conjunto de experiências, que viabili
zam progressivamente um sentido cada vezmais universal para as ações
humanas realizadas nos mais diferentes espaços, a História como um
singular plural, sinaliza este novo horizonte de expectativas para as
coletividades humanas, próprio da modernidade. A História em si está
para além das diversas histórias particulares e o conceito passa a de
signar em seu sentido moderno os fatos (as realizações), o relato des
tes e o conhecimento científico que a partir do século XIX pode-se
obter acerca destes eventos. Espaço de experiência e universo de ex
pectativas articulam-se na constituição da cultura histórica oitocentista,
inaugurando uma forma de conceber o passado que curiosamente
parece encobrir os mecanismos desta imaginação produtiva que tor
nou o passado ao mesmo tempo objeto de paixão e conhecimento
para as sociedades do dezenove. Com o século XIX, o passado tornou-
se definitivamente submetido às regras da racionalidade tornando-se,
portanto, uma questão da ciência.'" E o mesmo Koselleck que em
outro trabalho seminal, Crítica e Ciise, aponta para a íntima relação
existente entre este processo de constituição de uma filosofia da his
tória e o enfrentamento da crise embutida nas profundas e radicais
transformações das sociedades ocidentais na segunda metade do sé
culo XVIII. E, portanto, para as implicações políticas implícitas no
nascimento da filosofia da história que o texto de Koselleck nos aler
ta, chamando-nos a atenção para a historicidade de uma percepção
particular e moderna da história: aquela que por razões também his
tóricas passamos a naturalizar como sendo a História.''
Nossa cultura histórica é foijada também no momento de cons
tituição de um novo tipo de sociabilidade analisada por Norbert Eli
as como parte do que chamou de "o processo de civilização", que ca
racterizou um conjunto amplo e diversificado de transformações atra
vessadas pelas sociedades ocidentais entre os séculos XV e XVIII. De
mudanças econômicas e políticas passando por uma alteração nas
formas de sensibilidade e percepção do mundo, o processo descrito
e analisado por Elias não significou a afirmação de um sentido único
e universal cumprido pelas sociedades ocidentais em um determina-

Nipperdey, Thomas. Nachdenkenüber die deutsche Geschichte. Münchcn: dtv, 1990.


" Koselleck. Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro: EDUERJ:Contraponto, 1999.

16
do momento de suas histórias. A civilização não é, portanto, um pon
to de chegada, fmal de uma trajetória a se confundir com a noção de
progresso. Antes foi pensado como uma forma particular e específi
ca de se constituir no mundo histórico, uma escolha entre outras pos
síveis, que para se manter demandava a sua recriação incessante atra
vés de mecanismos simbólicos.

A moderação das emoções espontâneas, o controle dos sentimentos, a


ampliação do espaço mental além do momento presente, levando em
conta o passadoe o futuro, o hábito de ligar os fatos em cadeias de causa
e efeito - todos estes são disüntos aspectos da mesma transformação
de conduta, que necessariamente ocorre com a monopolizaçào da vio
lência física e a extensão das cadeias da ação e interdependência soci
al. Ocorre uma mudança "civilizadora" do comportamento.

O texto de Elias nos permite a formulação de uma interessante


hipótese para a compreensão da emergência de nossa cultura histó
rica, objeto das crítícas sintetizadas pelas colocações de Paul Valéry.
Na medida em que sugere a compreensão desta cultura histórica ar
ticulada a um conjunto mais amplo de transformações e mudanças
porque passam especialmente as sociedades européias ocidentais na
segunda metade do século XVIII,enraíza-a num tempo-espaço social.
Como parte do que afirma ser uma "mudança civilizadora", a histó
ria concebida como atitude de encadeamento sistemático dos even
tos passadose presentes, viabiliza ao presente um significadopara um
passado não vivido, desconhecido e por isto mesmo ameaçador na sua
diferença e intangibilidade. Ao consütuir o passado como projeção
do presente e desejo de futuro, posto que lugar por excelência da
realização plena daquilo apenas insinuado neste tempo presente, a
História é capaz de disciplinar este passado segundo os sentidos im
portantes para o presente em construção, conjurando incertezas e
dúvidas próprias de um mundo vivendo em meio a um turbilhão de
mudanças. Transformações essas que parecem inviabilizar uma refe
rência ao passado nos termos de uma busca de comparações com o
presente como forma de extrair soluções e respostas para a ação no
mundo. A Revolução Industrial e seu violento processo de transfor
mação da paisagem física e social do continente europeu a partir do

Elias, Norberi. Oprocesso civilizador. V.2. Formação do Estado e civilização. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 1993, p.l98.

17
século XVIII; a Revolução Francesa com a abertura para um tempo
experimentado como sendo de realizações ilimitadas, mas que não
podiam mais contar com as certezas até então estabelecidas, são ape
nas alguns destes exemplos históricos que nos indicam o profundo
processo de transformação por que passavam estas sociedades euro
péias. Um novo espaço de experiência irá viabilizar uma percepção
diversa do passado, não mais como modelo, cópia a ser imitada, mas
como explicação da vida presente. Domesticar e disciplinar como si
nônimos de civilizar, com esta marca nasce o nosso moderno sentido
de história presente em sua forma disciplinar.
A invenção moderna das Nações é parte deste mesmo movimen
to, impondo novas formas de lealdade política e buscando no passado
a legitimidade que o tempo decorrido poderia assegurar a estas cons
truções tão recentes. Caberia á história, agora como disciplina subme
tida aos rigores do conhecimento científico, a tarefa de fundar no pas
sado a origem da Nação, produzindo para o século XIX as biografias
sistematizadas das Nações como parte fundamental da nova pedagogia
para o cidadão nacional. Como parte deste novo currículo, a História
deveria contribuir para assentar em bases seguras as demandas formu
ladas socialmente de fidelidade a este novo personagem histórico: a
Nação. Narrativa por excelência da legitimidade nacional, a história
deve ensinar de forma organizada o passado necessário para a produ
ção de sujeitos nacionais. Mas o que seriam estas Nações e como deve
riam ser estes novos sujeitos nacionais que se acreditam parte de uma
comunidade que tem, em comum, tradições culturais e um passado de
realizações. Segundo Ernest Renan em sua famosa conferência na Sor-
bonne no ano de 1882, inütulada ''Qii esl-ce qu une nation a resposta
seria a de que ela é um princípio: encontrável no passado através de
um longo legado de lembranças possuídas coletivamente e no presen
te através de um consentímento atual, expressão de um desejo de viver
em conjunto partilhando aquelas mesmas heranças. A Nação é, portan
to, vontade afirmativa de um presente que partilha um passado de lem
branças. A História torna-se parte essencial do processo de criação das
Nações assim como de fixação de uma memória sagrada para esta in
venção social. História e memória estão assim articuladas estreitamen
te no processo de invenção das nações modemas. Se para haver o cida
dão nacional é preciso que haja um conjunto de lembranças a serem

Renan, Ernest. Qii'esl-cequ'une nation'?Vãns\ Presses Pocket, 1992.

IR
partilhadas, cabe à história organizá-las e transformá-las em matéria
ensinável, esquecendo, no entanto de se interrogar acerca dos proce
dimentos que presidiram a esta operação. Constituída no movimento
de sacralização das Nações, esta aura do sagrado parece envolver a his
tória destas lembranças.
Em meio a tantas incertezas, geradas no bojo das mudanças radi
caisque marcaram a passagemdo século XVIII para o século XIX, frente
a um futuro que se desenha como novo e diferente de tudo aquilo até
então vivido, a História como narrativa coerente e interligada dos even
tos passados, poderia significar o porto seguro, fornecendo uma chave
explicativa para o conjunto destas transformações, marcando-lhes um
sentido, já que faltavam elementos de comparação para este conjunto
de experiências vivenciadas como ímpares. Olhar para o passado não
era mais a garantia de respostas para a ação no presente. Um novo re
gime de historicidade, segundo as colocações de François Hartog, se
instaura quando o passado não pode mais ser o guia seguro para o pre
sente e a História, portanto a mostra, o lugar das ações exemplares,
medida de todas as coisas. Se ela perde este sentido para os homens,
estes, na belaimagem de Tocqueville, debatem-se nas treras.E pela afir
mação do progresso como sentido maior da história dos homens, ca
paz de positivar as transformações no sentido de fazê-las desejáveis, que
o passado e o futuro passam a fazer um sentido para o presente como
partes do processo da História. As incertezas do novo são domestica-
das pelas certezasfornecidas pela História,agora capaz de significarde
uma maneira positiva asexperiências não vividas. Aindaque desconhe
cido como experiência, o passado pode ser explicado pela História,
capaz por este procedimento de gerar imagens e sentidos para a ação
no presente. O que se buscanela agora não serâo maisos modelos, mas
as explicações, as razões do presente. Nestesentido, a ação no presen
te e o planejamento do futuro ficam definitivamente marcados pelo
peso do passado." Éeste presente que articula o conjunto de condi
ções necessárias para que o passado possaser produzido como resulta
do de uma criação cultural e, portanto, necessariamente coletiva. His-

" Sobre esta discussão consultar o interessante artigo de Hayden WHiite intitulado
Theburden ofHistory onde procura se interrogar a respeito das tarefas formuladas à
escrita da História e do significado particular de uma certa concepção de História,
presente na sua forma disciplinar, para a formulação de um conhecimento acerca
das ações humanas. In: Wliite, Hayden. Tropics ofDiscoiirse. Essays in cultural ailicism.
Baltimore: The Johns Hopkins UniversityPress, 1992, pp.27-50.

19
tória e identidade passam a ligar-se intimamente: nossa identidade, co-
ledva e individual, assume explícita ou implicitamente uma profunda
relação com a História. E nela que buscamos ancorar o barco de nos
sas vidas em busca de respostas que não podem tolerar as dúvidas e in
certezas da tragédia humana. Frente aos desafios postos pela aventura
da modernidade, as pretensas certezas da História asseguradas pelo seu
aparato disciplinar.
Criticar esta cultura histórica herdada do dezenove parece ain
da significar uma ameaça a esta nossa identidade, obrigando-nos a
percebê-la como fruto de uma construção histórica e por isto mesmo
submetida ã passagem do tempo e à transformação. Em outras pala
vras, condenada à perecibilidade, marca por excelência das constru
ções humanas. Esta crítica, portanto, assemelha-se ao processo dolo
roso de romper com as identidades narcísicas assentadas nesta cultu
ra prometéica do século XIX. Significa desnaturalizar pretensas cer
tezas, reintroduzindo essa cultura na história, tornando-a uma den
tre tantas produzidas pelos homens no mundo. Na formulação de
Herder, toda cultura guarda em si mesma seu centro de inteligibili-
dade, e está fadada à finitude como, aliás a totalidade daquilo que é
fruto da criatividade humana.'^ No entanto, este mesmo exercício de
crítica pode, se lido com outros olhos, significar a possibilidade dc
desejar um futuro ainda não entrevisto, uma afirmação dos valores
humanos e de sua capacidade inventiva, surpreendente porque não
totalmente previsível.

História, memória e historiografia

Lembremo-nos de alguns dos pressupostos que fundamentam


esta concepção de História que se torna hegemônica ao longo do
século XIX. O objeto de seu estudo estaria assegurado pela existên
cia em si mesma do passado, que, impondo-se à existência dos ho-

O texto seminal para conhecer a proposta de Herder de uma nova filosofia da


História, distinta daquela que veio a fundamentar em grande parte a compreen
são da história em sua forma disciplinar é: Philosophie der Geschichte zur Bildung der
Menschheil, 1774.

20
mens do presente, parecia guardar o sentido iiltimo revelador des
ta própria existência.
Este positivismo presente na tradição disciplinar da História, que
via na mera existência dos eventos pretéritos o suposto a garantir o
objeto da ciência histórica, pode ser compreendido a partir de uma
concepção simplista de passado.Segundo ela, este é concebido como
resultado da "passagem natural do tempo", segundo as colocações de
Jan Assmann^''' em seu instigante trabalho a respeito da memória cul
tural. Esta pretensa natureza da passagem do tempo encobriria o sen
tido de produção, necessariamente inscrito num processo social e
coletivo de transformar esta experiência de passagem do tempo em
"passado" e num segundomomento em "história". O passado só pode
emergir efetivamentecomo resultado, portanto, de uma relação que
as diferentes sociedades estabelecem com o transcurso do tempo. Se
esta relação é ela mesma histórica, o que significa afirmar diversa para
cada sociedade no tempo, cabe a uma historiografia, como discipli
na, investigar estas diferentes e diversas maneiras de constituição do
passado, e neste sentido podemos pensá-la como integrando os estu
dos em torno da memória cultural. Desde que possa organizar um
inventário sistemático dos problemas e questões envolvidos nesta pro
dução do passado, a historiografia como campo de pesquisa, poderá
superar as simplificações das tentações positivistas oumesmo de uma
tradição que associa a reflexão historiográfica à confecção de um mi
nucioso catálogo de autores e obras. Profundamente marcados pela
cultura do inventário, própria de uma situação histórica em que o
tempo é percebido de forma cada vez mais acelerada, ameaçando-nos
seriamente com a possibilidade da perda da lembrança, tendemos a
confundir estes repertórios minuciosos com a própria historiografia.
Numa démarcheá\\CTS2i, quepartindo dos inventários possa colocá-los
sob o crivo da reflexão histórica, os textos de História deixam de ser
meros pretextos paraseconstituírem em núcleo central da investiga
ção historiográfica. Mais do que apenas ler estes textos, a tarefa da
historiografia poderia consistir em dar a ler esses textos, reconstruin
do - para falar como a hermenêutica - a questão à qual eles respon
dem, redesenhando os horizontes de expectativa em que, desde seu
primeiro dia até os nossos (ainda que no modo de ausência), elesvie-

' Assmann.Jan. op. cit.

21
ram inscrever-se, recalculando as apostas que fizeram e significaram,
apontando os qüiproquós que sucessivamente provocaram.''
Tarefa desmistifícadora por excelência está reservada, segundo
entendo, à historiografia como campo de reflexão, reintroduzindo a
escrita da História num esforço que busca compreendê-la como parte
de uma cultura, capaz de definir a abrangência e os limites da própria
História. Segundo as sugestões de Michel de Certeau trata-se de "admi
tir que a História faz parte da realidade da qual trata, e que essa reali
dade pode ser captada enquanto atividade humana, enquanto práti
ca."'^ Segundo ainda as sugestões de Pierre Nora, o interesse historio-
gráfico, traduzidopor uma históriada História, poderia significar uma
atitude iconoclastacapaz de perceber a escrita da História como sendo
ela também vítima das construções da memória. Contra as artimanhas
da memória e sua tendência à sacralização, poderia a historiografia,
assim entendida, trazer a História de volta ao mundo dos homens. Tra
zer também a própria prática do ofício que exercemos ao mundo his
tórico, reconhecendo-o como parte das inúmeras frentes de batalha
travadas para dar significação ao mundo em que vivemos, tornando-o
dotado de finalidades e valores, que antes são os dos homens vivendo e
não os de uma história alçada à entidade supra-humana.
No entanto, para que esta relação com o passado possaser efeti
vamente estabelecida e sua construção investigada pela pesquisa his-
toriográfica, duas condições devem estar presentes: em primeiro lu
gar há que haver testemunhos deste tempo que passou disponíveis de
alguma forma; em segundo lugar, essestestemunhos devem apresen
tar uma diferença em relação ao hoje vivido pelas sociedades. Parti
cularmente em momentos quando o que está emjogo é a construção
do futuro das sociedades, esta diferença entre o passado e o presente
tende a emergir de forma bastante significativa.
Tomemos como exemplo o século XIX brasileiro, quando a par
tir da independência um novo projeto político se desenha para a an
tiga colônia portuguesa e como parte deste mesmo movimento uma
escrita sistemática das lembranças do passado se torna central. Esta
tarefa entre nós pode ser examinada quando consideramos o traba-

Hartog, François. Oespelho deHeródoto. Ensaio sobre a representação dooutro. Belo Ho


rizonte: Editora UFMG, 1999, p. 16.
Certeau, Michel de. A operação histórica. In: Le Gofr,Jacques e Nora, Pierre. Org.
Históría: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p.l8.

22
lho do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a obra de Vanhar-
gen. História submetida a uma memória, que lê o passado segundo
as construções e demandas do presente. Através deste procedimento
de transformar as lembranças do passado em um relato organizado e
coerente, produz-sesentido e significado para a \dda coletiva pela \ia
de valores como os de pertencimento a um grupo, legitimidade e au
toridade da nova ordem em constituição assim como a confiança ca
paz de sedimentar os projetos para a vidacoletiva no futuro, quer no
sentido de manutenção quer no sentido de transformação. Esta for
ma específica da cultura da lembrança (fenômeno que poderíamos
qualificar como universal), própria das sociedades ocidentais no mo
mento da constiTição dos diferentes projetos nacionais, confere à his
tória como disciplina umlugar próprio, que paracompreendê-lo im
põe o abandono definitivo de uma perspectiva naturalizada da Histó
ria, segundo a qual esta estaria disponível ao pesquisador desde que
os registros do passado pudessem assegurar a evidência dos fatos his
tóricos. Pelo contrário, a História emerge como parte da memória
cultural com caráter eminentemente social e coletivo, diferindo, por
tanto, da arte da memória. Se os documentos continuam a ser condi
ção central para a produção de um conhecimento sobre o passado,
não são suficientes para que se possa falar em história. Podem tam
bémestara ser\'iço da construção de uma memória. Ecomoparte do
exercício de escrita do passado, portanto da produção de uma narra
tiva, que vestígios podem se transformar em fontes, adquirindo signi
ficado numa rede complexa capaz de produzir o passado como his
tória. Assim, a historiografia para realizar seus objetivos deveria ne
cessariamente considerar suas relações com uma história da cultura
como condição indispensável para cumprir sua tarefa decrítica as me
mórias sistematicamente construídas e por vezes naturalizadas.
Ahistoriografia como investigação sistemática acerca das con
dições de emergência dos diferentes discursos sobre o passado, pres
supõe como condição primeira reconhecera historicidade do pró
prio ato de escrita da História, reconhecendo-o como inscrito num
tempo e lugar. Em seguida, é necessário reconhecer esta escrita como
resultando de disputas entre memórias, de forma a compreendê-la
como parte das lutas travadas nas sociedades para darsignificado ao
mundo. Uma escritaque se impõe tende a silenciarsobre o percur
so que a levou à vitória, que aparece ao final como decorrência na
tural; perde-se desta forma sua ancoragem no mundo como parte

23
do drama social humano, quando escolhas são efetuadas, que defi
nem o passado que se deseja, ou que se necessita, como forma de
inventar um futuro.
Que o diálogo com a História da História possa ser estimulan
te para pensarmos o passado, o presente e o futuro de nossa disci
plina e de nosso ofício, reconhecendo-o na sua condição humana:
diversa, múltipla e limitada. Que ele nos seja enfim útil para a vida
entre os homens.

24

Você também pode gostar