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OFICINA DO
HISTORIADOR
Oficina do historiador, Porto Alegre, v. 13, n. 2, p. 1-10, jul.-dez. 2020
e-ISSN: 2178-3748
http://dx.doi.org/10.15448/2178-3748.2020.2.35932
SEÇÃO: ARTIGOS
Caio Rodrigues Resumo: O conceito de “heterodiscurso” (raznorétchie), tal como desenvolvido por
Mikhail Bakhtin, constitui-se como uma poderosa e ainda pouco usada ferramenta
Schechner1
orcid.org/0000-0003-2784-3596 metodológica para os historiadores, em particular para o estudo de fontes literárias.
caio.schechner@gmail.com Entendendo-o, a princípio, como a incorporação do discurso alheio no romance, este
texto pretende elaborar essa formulação mais profundamente. Isso será feito por
meio do diálogo com outros tradicionais conceitos do arsenal bakhtiniano, tais como
“dialogismo” e “polifonia”, mas não somente. Tomando como base alguns episódios
da obra Dom Quixote (1605-1615), de Miguel de Cervantes, minha intenção é elaborar
Recebido em: 9 out. 2019. e demonstrar, a partir do conceito de heterodiscurso, ferramentas de análise úteis
ao historiador. Em um primeiro momento, formulo a ideia de “grau de objetificação
Aprovado em: 14 abr. 2020.
da linguagem”, buscando dar conta da complexa questão da autenticidade da
Publicado em: 21 dez. 2020.
representação do objeto através da linguagem. Em um segundo momento, mais
importante, proponho a sistematização do heterodiscurso em progressivos níveis de
distintas profundidades – o que chamei de “níveis heterodiscursivos” –, almejando
abarcar as múltiplas camadas de vozes sociais presentes em um romance e melhor
capturar a realidade histórica pela qual estes são circunscritos.
Palavras-chave: Mikhail Bakhtin. Heterodiscurso. Historiografia.
Abstract: The concept of “heterodiscourse” (raznorétchie), such as developed by
Mikhail Bakhtin, constitutes a powerful and yet still rarely used methodological
tool for historians, in particular for the study of literary sources. Understanding it,
at first, as the incorporation of the speech of others in the novel, this text intends
to elaborate this formulation more deeply. This will be done through dialogue
with other traditional concepts of the Bakhtinian arsenal, such as “dialogism” and
“polyphony”, but not only. Based on some episodes of Miguel de Cervantes’s Don
Quixote (1605-1615), my intention is to elaborate and demonstrate, from the con-
cept of heterodiscourse, analysis tools that could be useful to historians. At first, I
formulate the idea of “degree of objectification of language”, seeking to address
the complex issue of the authenticity of object representation through language.
In a second, more important moment, I propose the systematization of heterodis-
course at progressive levels of different depths – what I called “heterodiscursive
levels” – aiming to embrace the multiple layers of social voices present in a novel
and better capture the historical reality through which these are circumscribed.
Keywords: Mikhail Bakhtin. Heterodiscourse. Historiography.
Introdução
Este artigo tem como principal objetivo considerar, de maneira breve e
propositiva, a proficuidade de parte da teoria linguística de Mikhail Bakhtin
para o estudo da História. Dado que estas reflexões surgiram durante a
escrita de uma dissertação sobre o cânone Dom Quixote, limitar-me-ei
a ilustrar minhas ideias a partir desse texto em particular. Apesar disso,
Artigo está licenciado sob forma de uma licença
entendo que, feitas as devidas adaptações, o que será desenvolvido
Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
aqui é igualmente válido para a análise de quaisquer obras literárias que
1
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
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Cf. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2013;
FIORIN, José Luiz. A Carnavalização. In: FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Contexto, 2018. p. 95-123.
Caio Rodrigues Schechner
O heterodiscurso como método de análise histórica do romance 3/10
da representação autêntica ou não do outro. de maneira bastante delimitada. Por seu turno,
É evidente que esta abordagem teórica, como o discurso indireto livre é aquele que:
qualquer outra, possui limitações. Mas talvez se
não há indicadores, como, por exemplo, os
tenha subestimado o que Ginzburg (2000, p. 99) dois pontos e o travessão do discurso dire-
chamou de “fendas do texto”, isto é, essas pe- to ou a conjunção integrante do discurso
indireto, para demarcar nitidamente onde
quenas brechas onde, a despeito do propósito de começa a fala do narrador e onde inicia
uma fonte, seria possível vislumbrar informações a da personagem (FIORIN, 2018, p. 43).
sobre aqueles que ela busca retratar. Esse ponto
será retomado mais adiante. Para fins demonstrativos de minha proposta,
Em primeiro lugar, será útil delinear, com maior remeterei a um instigante trecho de Dom Quixote.
precisão, alguns termos bem conhecidos pelos Um bom exemplo do discurso direto é o diálogo,
especialistas da teoria bakhtiniana, em particular o forma abundante no livro de Cervantes. No capí-
“dialogismo” – e a “polifonia”. Para evitar a confusão tulo XVIII da primeira parte, cavaleiro e escudeiro
entre seus significados, recorro à simples, mas acabam de retirar-se de uma estalagem onde,
eficiente distinção de José Luiz Fiorin, segundo como de costume, causaram confusões e estra-
o qual o primeiro – “diz respeito ao modo de fun- gos. Por tentar abandonar o local sem pagar o que
cionamento real da linguagem, que faz que um é devido, Sancho é capturado pelo proprietário
enunciado se constitua sempre em relação a outro”, e alguns homens arremessam-no para o alto
enquanto que o segundo “refere-se à equipolência sucessivas vezes, com ajuda de um lençol, no
das vozes” (FIORIN, 2018, p. 90). Note-se, no en- intuito puni-lo por sua desfeita. O Quixote assiste
tanto, que a definição de dialogismo aqui proposta ao evento, mas não consegue salvar o compa-
por Fiorin é destinada tão somente a esclarecer nheiro. O diálogo travado pelos dois personagens
seu princípio primordial, aquilo que ele chama de após o episódio ilustra perfeitamente o princípio
“primeiro conceito de dialogismo” (FIORIN, 2018, p. heterodiscursivo do romance mencionado por
27-36). O mérito dessa sucinta explicação é o de Bakhtin. A princípio, deter-me-ei somente no
fazer uma distinção, ainda que sutil, fundamental heterodiscurso em sua forma mais simples, para
entre “dialogismo” e “heterodiscurso”: enquanto o depois abordar outras questões mais complexas
primeiro diz respeito a um princípio da linguagem, o que rondam esse conceito.
segundo é a expressão objetiva desse princípio; ou,
– Ahora acabo de creer, Sancho bueno,
de outra maneira, o heterodiscurso é a realização que aquel castillo o venta que es en-
do dialogismo no romance.3 cantado sin duda, porque aquellos que
tan atrozmente tomaron pasatiempo
Talvez a manifestação mais clara e inequívoca contigo ¿qué podían ser sino fantasmas
do heterodiscurso se dê na forma do “discurso y gente del otro mundo? Y confirmo esto
por haber visto que cuando estaba por
direto”. Ainda segundo Fiorin, pode-se elencar las bardas del corral, mirando los actos
três principais formas de apresentação da voz do de tu triste tragedia, no me fue posible
subir por ellas, ni menos pude apearme
outro: o discurso direto, o discurso indireto e o de Rocinante, porque me debían de
discurso indireto livre. O primeiro termo refere-se tener encantado; [...]
3
Ao tratar do que Bezerra traduz como “heterodiscurso”, Fiorin o designará como “segundo conceito do dialogismo”, isto é, a manifes-
tação concreta do “primeiro conceito”, no texto: “Além do dialogismo constitutivo, que não se mostra no fio do discurso, há outro que se
mostra. Trata-se da incorporação pelo enunciador da(s) voz(es) de outro(s) no enunciado”. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento
de Bakhtin. São Paulo: Contexto, 2018. p. 37.
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brar cuando me volteaban, tenían sus ídas por uma nua e crua sensatez, o que implica
nombres: que el uno se llamaba Pedro
Martínez, y del otro Tenorio Hernández, em diferentes leituras dos eventos já ocorridos na
y el ventero oí que le llamaba Juan trama, assim como diferentes expectativas para
Palomeque el Zurdo. [...] Y lo que yo
saco en limpio de todo esto es que os que acontecerão no futuro. Por um lado, dom
estas aventuras que andamos buscan- Quixote explica que as decepções de Sancho
do al cabo al cabo nos han de traer a
tantas desventuras, que no sepamos advêm de seu pouco entendimento das coisas
cuál es nuestro pie derecho. Y lo que próprias à Cavalaria, e que, com a devida paci-
sería mejor y más acertado, según mi
poco entendimiento, fuera el volvernos ência, “día vendrá donde veas por vista de ojos
a nuestro lugar, ahora que es tiempo de cuán honrosa cosa es andar en este ejercicio”.
la siega y de entender en la hacienda,
dejándonos de andar de ceca en meca Para ele, “¿qué mayor contento puede haber
y de zoca en colodra, como dicen. en el mundo o qué gusto puede igualarse al de
– ¡Qué poco sabes, Sancho – respondió vencer una batalla y al de triunfar de su enemi-
don Quijote –, de achaque de caballería!
Calla y ten paciencia, que día vendrá
go?”. Já a Sancho, contudo, parece que “jamás
donde veas por vista de ojos cuán hon- hemos vencido batalla alguna”. Ademais, suas
rosa cosa es andar en este ejercicio. Si
no, dime: ¿qué mayor contento puede
referências são os ditados – “andar de ceca en
haber en el mundo o qué gusto puede meca y de zoca en colodra”4 – e a pragmática
igualarse al de vencer una batalla y al
de triunfar de su enemigo? Ninguno,
sabedoria popular – “ahora que es tiempo de la
sin duda alguna (CERVANTES, 2015, siega y de entender en la hacienda”.
p. 154-155).
Esses personagens encarnam vozes que são
sociais, e que por isso mesmo ultrapassam suas
Atento para o fato de que Cervantes, mais
dimensões individuais, bem como extrapolam seu
intensamente neste trecho, mas também em
caráter ficcional. De um modo grosseiro, são, res-
seu livro como um todo, lança mão de dois ti-
pectivamente, as vozes do alto e do baixo, da cultura
pos distintos de discurso, dois “dialetos sociais,
oficial e da cultura popular, para usar uma termino-
modos de falar de grupos”, como Bakhtin havia
logia bastante cara a Bakhtin (2013) em seu clássico
descrito. De um lado, tem-se o cavaleiro dom
Cultura popular na Idade Média e no Renascimento.
Quixote, cujo enunciado é claramente inspirado
Trato aqui dessa questão de forma mais ampla
na tradição literária cavaleiresca. Repare-se na
e abrangente, até pela natureza do Quixote. Em
sofisticação e no tom de certas frases, ausente
algumas ocasiões, a origem especificamente
nas falas de Sancho: “tan atrozmente tomaron
camponesa, estratificação da linguagem popular,
pasatiempo contigo”, “cuán honrosa cosa es”, “qué
aparece de forma mais evidente nos enunciados
mayor contento puede haber” etc. Esse tipo de
de Sancho, e ademais seria possível identificar um
linguagem é a materialização de determinada
maior número de vozes na narrativa: a dos duques,
compreensão da realidade. Neste caso, ela se
artistas itinerantes, padres, barbeiros, prostitutas
manifesta nas razões do protagonista ao explicar
etc. Mas, em geral, pode-se dizer que o livro de
o evento recém-ocorrido: “es encantado sin duda”,
Cervantes se estrutura de forma bastante dual.
“¿fantasmas y gente del otro mundo?”, “porque
A depender do caso estudado, o universo
me debían de tener encantado”.
romanesco pode revelar uma maior ou menor
Deve estar evidente ao leitor que esse discurso
quantidade de perspectivas sociais, fazendo
contrasta fortemente com o de seu escudeiro. As
variar a utilidade dos romances como fontes
referências do universo cavaleiresco são substitu-
históricas. Em outras palavras, quanto maior o
4
Consta, em nota da edição usada, a seguinte explicação; “de un lado a otro y de mal en peor” (zoca: ‘zueco’; colodra: ‘recipiente en
que se recoge la leche al ordeñar’). (CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de La Mancha. Texto e notas de Francisco Rico. Madrid: Real
Academia Española y Asociación de Academias de la Lengua Española, 2015. p. 155). Para o português, foi traduzido por Sergio Molina
como “deixando-nos de andar de ceca em meca e de Herodes para Pilatos, como diz o outro”. (CERVANTES, Miguel de. O engenhoso
fidalgo D. Quixote de La Mancha, Primeiro Livro. Tradução e notas de Sérgio Molina. São Paulo: Ed. 34, 2002. p. 232.) É idêntica a tradução
portuguesa dos Conde de Castilho e Visconde de Azevedo, exceto que “ceca” e “meca” recebem a grafia “Ceca” e “Meca”. (CERVANTES,
Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Tradução de Conde de Azevedo e Visconde de Castilho. São Paulo: Martin Claret, 2007. p. 182).
Caio Rodrigues Schechner
O heterodiscurso como método de análise histórica do romance 5/10
número de vozes na prosa romanesca, mais útil apreensão completa ao passado, até pela limita-
ela se torna para o historiador. Todavia, seu valor ção das fontes, ainda assim é possível vislumbrar
não é unicamente medido pela quantidade, mas feixes da realidade. Tal noção aparece, dentre
também pela competência do autor em incorpo- outras ocasiões, em seu texto sobre o livro de
rá-las de forma legítima em sua obra. Por isso, no Charles Le Gobien (1700) acerca das revoltas nas
momento de selecionar sua fonte, o historiador ilhas Marianas. Nele, o autor mostra convicção
deve ter em mente esses dois critérios: o quan- ao falar de “fendas no texto”, espécie de deslizes
titativo – número de vozes/personagens – e o ou falhas cometidas pelo produtor de uma fonte
qualitativo – validez da representação. histórica, que acabam por revelar algo que este
esconde, seja conscientemente ou não (GINZ-
Grau de objetificação da linguagem BURG, 2000, p. 99). Em suma, sua posição é a
de que “Se a realidade é opaca, existem zonas
A essa altura, um dos problemas centrais da
privilegiadas – sinais, indícios – que permitem
minha proposta já deve ter sido percebido pelo
decifrá-la” (GINZBURG, 1989, p. 177).
leitor. Qual seja: até que ponto a representação,
Para superar o impasse, a respeito da legitimi-
pela linguagem, do objeto do heterodiscurso é
dade da voz do outro no romance, será preciso
autêntica? Dito de outra forma: em que medida
pensar a partir do que chamarei de “grau de
a alteridade é construída sob a ótica do próprio
objetificação da linguagem”. Como já foi dito,
autor, constituindo-se como uma projeção dele
o heterodiscurso é o fenômeno literário que se
mesmo, ou, na melhor das hipóteses, que sua
expressa na constituição do romance por uma
visão do outro tenha sido irremediavelmente
variedade de conjuntos linguísticos, isto é, por
influenciada por ele próprio?
uma diversidade (raznii) de discursos (riétch). A
Isso nos remete ao conceito de “representação”,
transmissão de uma mensagem nesse formato,
tal como elaborado por Roger Chartier. Para ele, o
contudo, acaba por inegavelmente carregar fortes
historiador não deve tomar as fontes, em especial
traços daquele que o (re)produz. Isso incorre em
as de caráter etnográfico, como janelas de acesso
uma dupla consequência: a) os propósitos do
ao passado. Antes, devemos compreendê-las
autor desnudam-se frente ao leitor, causando a
como produções de um determinado grupo sobre
impressão de mecanicidade, e b) o discurso em-
algo; mais do que revelar efetivamente como eram
pregado é direcionado para um fim; seu autêntico
os sujeitos retratados, possuímos uma represen-
ponto de vista sobre o mundo é ofuscado, pois
tação dos mesmos feita a partir da perspectiva
instrumentalizado pelo literato. Chama-se este
de atores social-historicamente inscritos.
fenômeno de “objetificação”.
Um bom exemplo dessa postura teórica é
Na definição de Paulo Bezerra, a objetificação é
oferecido em sua análise de um instigante corpus
um tipo de discurso ou palavra “que Bakhtin atribui
documental: um conjunto de cartas enviadas ao
mais amiúde ao tratamento monológico da palavra
abade Gregório, no ano de 1790, respondendo a
do outro [...], também um meio de refração da pa-
um questionário acerca dos costumes de leitura
lavra do outro, até de sua parodização” (BEZERRA,
dos camponeses franceses. Nesse estudo, Char-
2015, p. 248). Logo, trata-se do emprego mecânico,
tier conclui que o conteúdo das cartas-relatório
inautêntico, do conjunto linguístico-social de ou-
não pode ser levado ao pé da letra, uma vez
trem. Nesses casos, a intenção do autor se torna
que “é bem claro que a sua escolha tem na ver-
mais forte e evidente, seja paródica ou não.
dade a função de ilustrar e validar a sua própria
Em oposição a um modelo dialógico de lin-
representação das disposições culturais ou das
guagem, o autor que envereda pelo caminho da
propriedades psicológicas que emprestam ao
“coisificação” revela uma postura monológica
povo camponês” (2002, p. 150).
diante do discurso do outro. De forma que esse
A essa opinião, podemos opor à de Carlo Ginz-
modelo monológico “não admite a existência da
burg, para quem, ainda que não seja viável uma
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da representação da voz alheia pelo literato – com Tomando a declaração “O romance é um he-
todas as implicações trazidas pelo conceito. Já terodiscurso social artisticamente organizado” em
em uma fonte de grande autenticidade, por sua sua real densidade (BAKHTIN, 2015, p. 29), pode-se
vez, o acadêmico pode escolher explorar o que depreender que a forma romanesca, em sua totali-
essas vozes revelam sobre si mesmas, suas pers- dade, é composta pelo heterodiscurso. Ele não se
pectivas sobre o mundo que nos são oferecidas expressa, portanto, somente através dos enunciados
através de seus conjuntos linguísticos. dos personagens, na modalidade do discurso direto.
É evidente que ambos os extremos soam Essa é apenas a sua forma mais superficial, ou, em
improváveis: nenhum grupo social pode ser ple- termos de minha preferência, seu “primeiro nível”.
namente exposto pela percepção de outrem, Com efeito, o heterodiscurso faz-se presente
enquanto a negação absoluta do acesso ao outro não só no discurso direto dos sujeitos ficcionais
através das fontes revela-se improdutiva e, a (de base sócio-histórica), mas também nos dis-
meu ver, demasiadamente cética. O que desejo cursos “do autor, [...] dos narradores [...] [e dos]
aqui não é chegar a uma solução definitiva, ta- gêneros intercalados”, igualmente social, ideoló-
refa por ora impossível, mas sugerir um sistema gica e historicamente localizados. Nesse sentido,
de gradação que logre contornar o impasse. A concordo com a percepção de Lucas Vinício de
depender do grau de objetificação da linguagem Carvalho Maciel, segundo o qual “a noção de
demonstrado pelo autor de um romance, uma heterodiscurso não se restringe à pluralidade de
ou outra perspectiva apresenta-se como mais variedades linguísticas sociais, não se restringe
vantajosa. A escolha do método deve advir da ao heterolinguismo” (2018, p. 114). A estratificação
medição, pelo historiador, do dito grau de ob- é inerente à própria estrutura romanesca.
jetificação empregado em sua fonte. O sucesso Voltando ao exemplo de Dom Quixote, isto sig-
de sua investigação depende grandemente da nificaria dizer que o romance não é heterodiscursi-
adequação de tal escolha. vamente construído apenas na oposição entre as
vozes do cavaleiro e do escudeiro, mas também
Níveis heterodiscursivos na heterodiscursividade da voz do narrador, do
gênero literário, do autor, entre outros. Na prática,
Até agora, fiz crer que o conceito de heterodis-
isso quer dizer que existem progressivos níveis
curso se limita à incorporação, no romance, da
de apresentação do heterodiscurso no romance,
voz de diversos grupos sociais de forma direta,
ideia que tentarei desenvolver agora. Alerto, no
isto é, através do discurso direto das personagens.
entanto, que todas as escolhas da sistematização
Todavia, a verdadeira potencialidade do conceito,
que farei a seguir, para a análise particular de um
inclusive para o campo da História, só pode ser al-
romance específico, são fundamentalmente pes-
cançada se examinarmos detidamente o restante
soais e relativas ao caso estudado. O que desejo
da formulação de Bakhtin, que transcrevo abaixo:
com isto é tão somente ilustrar uma ideia e dar
O discurso do autor, os discursos dos forma a uma proposta metodológica, qual seja, a
narradores, os gêneros intercalados
e os discursos dos heróis são apenas da organização do heterodiscurso em diferentes
as unidades basilares de composição camadas de profundidade e complexidade.
através das quais o heterodiscurso
se introduz no romance; cada uma Organizarei esta análise em três níveis, do
delas admite uma diversidade de vo- mais superficial ao mais profundo. O primeiro
zes sociais e uma variedade de nexos
e correlações entre si [...]. Tais nexos e nível, e que já discuti anteriormente, refere-se
correlações especiais entre enunciados à heterodiscursividade como diversificação dos
e linguagens, esse movimento do tema
através das linguagens, sua fragmenta- conjuntos linguísticos empregados pelo autor
ção em filetes e gotas de heterodiscurso por meio de suas personagens – aqui, o discurso
social e sua dialogização constituem
a peculiaridade basilar da estilística do escudeiro e o discurso do cavaleiro, materia-
romanesca, seu specificum (BAKHTIN, lizados nas formas do discurso direto e indireto.
2015, p. 30, grifo nosso).
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procedimento valioso, pois permite que ele des- BAKHTIN, Mikhail. Epos e Romance: sobre a meto-
cubra diferentes pontos de vista sobre um assunto dologia do estudo do romance. In: BAKHTIN, Mikhail.
Questões de literatura e de estética: a teoria do romance.
à determinada época, bem como as diferentes São Paulo: Hucitec, 2002.
possibilidades de recepção do texto pelo público. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski.
Para finalizar este texto, reitero que por mais Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
que esse modelo possa ter sido útil à interpre- BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: A estilística.
tação de Dom Quixote, o estudo de uma obra Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra.
São Paulo: Ed. 34, 2015.
literária diversa pode demandar uma sistema-
tização em outros níveis, a serem organizados BARROS, José Costa D’assunção. Revista Expedições:
Teoria da História & Historiografia, Morrinhos, GO, v. 3,
de forma distinta. As possibilidades são quase p. 9-37, 2012.
infinitas, pois o heterodiscurso pode expressar-se
BEZERRA, Paulo. Polifonia. In: BRAIT, B. (org). BakhtIn:
em diversas camadas, e também sob variadas conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
formas, como, por exemplo: nomes e gestos de BEZERRA, Paulo. Prefácio. In: BAKHTIN, Mikhail. Teoria
personagens, temas narrativos, títulos de capí- do romance I: A estilística. Tradução, prefácio, notas e
glossário de Paulo Bezerra. São Paulo: Ed. 34, 2015.
tulos, etc. Inclusive, o já citado Maciel, embora
não tenha proposto propriamente uma análise CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e
Representações. Miraflores: DIFEL, 2002.
em camadas, percebe três aspectos do hete-
CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de La Mancha.
rodiscurso: como diversidade de vozes, como
Texto e notas de Francisco Rico. Madrid: Real Academia
diferentes estilos e como diversidade de gêneros Española y Asociación de Academias de la Lengua
Española, 2015.
discursivos (MACIEL, 2018).
Como procurei mostrar, esse conceito, se de- CERVANTES, Miguel de. O engenhoso fidalgo D. Quixote
de La Mancha, Primeiro Livro. Traducão e notas de Sérgio
vidamente utilizado, pode provar-se como uma Molina. São Paulo: Ed. 34, 2002.
poderosa ferramenta no arsenal dos historiadores.
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha.
A meu ver, isso é particularmente produtivo para Tradução de Conde de Azevedo e Visconde de Castilho.
o estudo do romance, mas não somente. José São Paulo: Martin Claret, 2007.
D’Assunção Barros (2012), também trabalhando MACIEL, Lucas Vinício de Carvalho. Considerações so-
a partir de conceitos de Bakhtin, escreveu um bre heterodiscurso a partir de Dom Quixote. Bakhtiniana,
São Paulo, v. 13, n. 2, p. 100-116. 2018. DOI: https://doi.
longo e esclarecedor texto a respeito da análise org/10.1590/2176-457333837
do dialogismo em fontes históricas – quer dizer, FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin.
as de tipo mais tradicional, como processos cri- São Paulo: Contexto, 2018.
minais e inquisitoriais, por exemplo. Creio que as GINZBURG, Carlo. As vozes do outro: uma revolta indí-
propostas que fiz neste texto, se aplicadas a essa gena nas Ilhas Marianas. In: GINZBURG, Carlo. Relações
de força: história, retórica, prova. São Paulo: Companhia
espécie de fonte, poderiam amplificar as conclu- das Letras, 2000. p. 80-99.
sões a que chegou Barros; uma nova formulação
GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma
desse tipo demandaria nova redação, a ser feita indiciário. In:
em outra oportunidade. Afinal, o verdadeiro valor
GINZBURG, Carlo. Mito, Emblemas, Sinais. São Paulo:
dos conceitos de “dialogismo” e “heterodiscurso”, Companhia das Letras, 1989. p. 143-179.
e por conseguinte da aproximação entre História LUCÍA MEGÍAS, José Manuel. Los libros de caballerías
e Linguística que é aqui proposta, só pode ser a la luz de los primeros comentarios del Quijote: de
Los Ríos, Bowle, Pellicer y Clemencín. Edad de Oro,
alcançado levando-se em consideração toda a Madrid, n. 21, p. 499-539, 2002.
potencialidade desses conceitos, ou seja: sua mani-
festação em progressivos níveis de complexidade.
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