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histórica
Resumo:
O texto procura analisar a crônica como um gêne-
ro literário de fronteira, entre literatura e história, e que
se caracteriza por realizar uma leitura sensível do tempo,
seja para inventar o passado, explicar o presente ou cons-
truir o futuro.
Resumé:
Le texte analyse la chronique comme un genre
littéraire frontalier, entre la litteráture et l’histoire, et qui se
caracterise comme une lecture sensible du temps, soit pour
inventer le passé, expliquer le présent ou construire le futur.
61
Mots-clé: chronique, narrative historique, ficción, imaginaire,
sensibilités.
*
Professora do curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Histó-
ria pela UFRGS. Mestre em História da Cultura pela PUCRS e doutora em
História Social pela USP. E-mail: sandrajp@terra.com.br
HISTÓRIA
HISTÓRIAUNISINOS
UNISINOS Vol. 8 Nº 10 JUL/DEZ p.2004
61-80
Principiemos pelo grande desafio com que se de-
frontam os investigadores dos domínios de Clio: como se
constrói a narrativa histórica?
Uma idéia na cabeça, uma pergunta nos lábios, con-
cebidas à luz daqueles instrumentos para interrogar o
mundo a que chamamos conceitos; uma escolha e um re-
corte da realidade, construído como objeto de pesquisa,
onde se divisa uma trama; um olhar sobre o passado, em
busca de sinais emitidos por um outro tempo, erigidos como
marcas de historicidade e como pistas para o desvendar
daquela questão, antes formulada, e com vistas a respon-
der àquela pergunta feita; a mise en récit, esforço retórico e
de escrita, de molde a fornecer uma explicação convin-
cente e plausível, onde se realize a reconfiguração de um
tempo, com vistas a dar a ver e ler uma versão, o mais
próxima possível, daquilo que teria sido um dia; uma meta
e um desejo de veracidade e, como resultado, uma narra-
tiva verossímil, que explica e revela a solução encontrada
para a decifração do enigma proposto.
Não seria esta, não tem sido esta, a performance da
escrita da História, ao longo do tempo?
Partamos do princípio de que esta seja uma receita
para o fazer História, ou seja, para a construção de uma
narrativa que representa o passado. Mas, deste processo,
queremos nos deter em um certo elemento, aquele sem o
qual não há trabalho de História possível de ser feito:
referimo-nos às tais marcas de historicidade, os tais regis-
tros que objetivam a existência de algo e que assinalam a
passagem do tempo.
Nesta medida, poderíamos dizer que, de uma cer-
62 ta forma, frente ao desafio de enfrentar a decifração do
passado, o historiador o mundo à sua disposição, sob a
forma dos mais diversos traços que restaram de um ou-
tro tempo.
O olhar do historiador constrói alguns destes regis-
tros como fontes, ou seja, como indícios e possibilidades
de resgate daquilo que ele busca encontrar no passado.
Detenhamo-nos em uma marca de historicidade muito
HISTÓRIA UNISINOS Vol. 8 Nº 10 JUL/DEZ 2004
específica, a qual tem sido cada vez mais trabalhada pelos
historiadores. Referimo-nos à crônica, este registro privi-
legiado para o acesso a um tempo passado e que, no caso,
tratamos como uma fonte para a História.
A realidade, bem o sabemos, é complexa, e as for-
mas de dizê-la e representá-la também o são. A História,
no caso, é mestra em se valer de várias e distintas narrati-
vas. A História as usa como recursos para criar, ela pró-
pria, a sua representação sobre o passado, que é o seu
campo de ação.
No caso em pauta, tratamos a História como o lu-
gar de onde se formula a questão e se elabora um discur-
so, o qual se vale da crônica como uma fonte narrativa.
Não se trata de estabelecer uma hierarquia entre narrati-
vas, mas de estabelecer o lugar da fala, ou do estabeleci-
mento de uma interrogação sobre o mundo.
Antes de tudo, cabe esclarecer que trataremos a
crônica na sua acepção contemporânea, ou seja, aquela
narrativa curta, difundida pelos jornais, frente a um mun-
do transformado pela modernidade urbana e pelos meios
de comunicação de massa, tal como se processou na civi-
lização ocidental a partir do século XIX. Nesta instância,
a crônica é aquele artigo de consumo diário, rápido e pre-
ciso, que se apresenta como produto a ser consumido por
um público leitor de jornal.
Em estudo seminal, Antonio Candido (1992) cha-
mou a crônica de relato da vida ao rés-do-chão, e, em
determinado ensaio, nós a analisamos como uma leitura
sensível do tempo (Pesavento, 1997). Tais reflexões so-
bre a crônica nos remetem, imediatamente, à sua capa-
cidade de registro do cotidiano e das sensibilidades, o 63
que a tornaria, por assim dizer, uma fonte muito rica e
especial para o historiador, sobretudo se este estiver in-
teressado em acessar as formas pelas quais os homens,
em um outro tempo, construíam representações sobre si
próprios e o mundo.
A análise da crônica poderia se dar a partir da sua
inserção como gênero literário de fronteira, entre a Lite-
HISTÓRIA UNISINOS Vol. 8 Nº 10 JUL/DEZ 2004
ratura e a História, estabelecendo uma reflexão sobre se o
autor, ao escrever a crônica, está a fazer uma história de
seu tempo. Ou então se poderia ainda discutir se, como
Literatura, a crônica se enquadraria como um gênero maior
ou menor, diante de outros gêneros consagrados, como o
romance ou a poesia. Tais questões, a rigor, já se acham
abordadas nos estudos citados, assim como em muitos
outros trabalhos críticos.
Já adiantamos, contudo, que pretendemos tratá-la
como fonte, ou seja, como meio ou instrumento para o
historiador atingir o passado, e, sob esta condição, busca-
mos analisar o seu potencial de revelação para o conheci-
mento de um outro tempo. A fonte é mediação entre o
que teria sido e a representação que deste ter sido se cons-
truiu. A fonte, como diz seu nome, é manancial de onde
brotam possibilidades para desvendar uma trama que foi
urdida.
Mas a fonte já é, em si mesma, uma representação
do passado e se coloca como base para a representação
que, por sua vez, o historiador construirá sobre aquele
passado.
Neste sentido, nossa abordagem da crônica se reali-
za sob um plano epistemológico – a natureza da sua escri-
ta – e sob o seu potencial de uso para o fazer História, que
é o da reconfiguração do tempo.
Ora, entendemos que a primeira consideração a ser
feita é a de que a crônica é uma narrativa de fronteira,
mas fronteira enquanto modalidade ficcional na
reconfiguração de um tempo.
Como premissa desta abordagem, talvez até dispen-
64 sável no debate acadêmico contemporâneo, nos defini-
mos pela concepção que admite, para a escrita da Histó-
ria, o uso de recursos fictivos, pelo que esta abordagem
não pretende opor, de maneira antitética, uma história-
verdade-ciência a uma crônica-arte-ficção.
Principiemos pelo ato da escrita, que põe em cena
o cronista, aquele que faz do tempo presente, tempo do
vivido, a sua fonte de inspiração. Sob uma ótica realista,
HISTÓRIA UNISINOS Vol. 8 Nº 10 JUL/DEZ 2004
o cronista mostraria, para o historiador, a temporalidade
da escrita com a vida tal como era neste momento, ou,
pelo menos, aquilo que nela chamava a atenção ou preo-
cupava os homens da época. Em certa medida, a tradu-
ção do presente pela escrita, que pode girar em torno do
cotidiano ou do fato excepcional e, sobretudo, das sensi-
bilidades e sociabilidades de um determinado contexto,
atribui à crônica um certo valor, digamos assim, docu-
mental.
Como diria o cronista do jornal porto-alegrense, a
falar sobre um dos mais famosos redutos da sociabilidade
masculina da cidade, o café América, em crônica que nos
permite visualizar espaços e práticas sociais urbanas na
virada do século:
1
O Independente, 06.10.1895.
2
Kodak, 08.09.1917.
3
Degradante cena, 17.07.1881.
Ides ter agora uma tirania municipal. [...] Sim uma tirania,
coisa de que necessitais para a vossa felicidade. Eu não cortejo
o povo, falo-lhe a dura verdade que há muito ele devera ter
4
Gazeta da Tarde,08.06.1895.
5
Ibid.
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