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UERJ – IFCH – Departamento de História – Introdução aos Estudos Históricos II [2012.

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Professora: Beatriz de Moraes Vieira [bea.vieira.trabalho@gmail.com]

DE HISTÓRIA E MEMÓRIA

(TRAVERSO, Enzo. “Histoire et memoire: un couple antinomique?”. In: ________ . Le passé: modes
d'emploi: histoire, mémoire, politique. Paris: La Fabrique, 2005.)

“História e memória nascem de uma mesma preocupação e partilham um mesmo objeto; a elaboração do
passado. Mas existe uma 'hierarquia' entre as duas. A memória, poderíamos dizer conforme Paul Ricoeur,
possui um estatuto matricial. A história é um mise em récit [pôr em narrativa, narrar], uma escrita do
passado segundo as modalidades e regras de um ofício – de uma arte ou, com muitas aspas, de uma
“ciência” – que tenta responder a questões suscitadas pela memória. A história nasce então da memória,
depois s emancipa ao colocar o passado à distância, ao considerá-lo, segundo as palavras de Oakshott,
como um 'passado em si'. Ela por fim chega a fazer da memória um de seus domínios de pesquisa, como
atesta a história contemporânea. A história do século XX, também chamada 'história do tempo presente',
analisa a o testemunho dos atores do passado e integra o oral entre suas fontes no mesmo patamar que os
arquivos e outros documentos materiais ou escritos. Assim, a história nasce da memória, da qual ela é
uma dimensão; depois, adotando uma postura autorreflexiva, ela transforma a memória em um de seus
objetos.

Proust permanece uma referência obrigatória para toda meditação sobre a memória. Em seus comentários
sobre a Recherche [Em busca do tempo perdido, obra-prima do escritor francês Marcel Proust], Walter
Benjamin sublinha que Proust 'não descreveu uma vida tal qual ela foi, mas uma vida tal como a
rememora aquele que a viveu'. Ele continua comparando a 'memória involuntária' de Proust – que ele
traduz por 'trabalho de rememoração espontânea' (Eingedenken) – a um 'trabalho de Penélope' no qual 'o
dia desfaz o que a noite faz'. Cada manhã, ao despertar, 'nós só temos em mãos, em geral frágeis e
frouxas, algumas tramas da tapeçaria do vivido que o esquecimento teceu em nós.'

Bebendo na experiência vivida, a memória é eminentemente subjetiva. Ela permanece ancorada a fatos
que assistimos, dos quais fomos testemunhas, ou mesmo atores, e impressões que eles gravaram em nosso
espírito. Ela é qualitativa, singular, pouco preocupada com comparações, contextualização, generalização.
Ela não tem necessidade de provas para aquele que a carrega. O relato do passado liberado por uma
testemunha – dado que esta não seja um mentiroso consciente – será sempre sua verdade, o que significa
a imagem do passado depositada nele mesmo. Por seu caráter subjetivo, a memória não é jamais
congelada; ela parece mais a um canteiro de obras, em transformação permanente. Não apenas, segundo a
metáfora de Benjamin, 'a teia de Penélope' se modifica a cada dia por causa do esquecimento que nos
espreita, para reaparecer mais tarde, por vezes muito mais tarde, tecida de uma forma diversa daquela da
primeira lembrança. O tempo não é o único a erodir e enfraquecer a lembrança. A memória é uma
construção, é sempre filtrada pelos conhecimentos posteriores adquiridos, pela reflexão que segue ao
acontecimento, por outras experiências que se superpõem à primeira e modificam a lembrança. O
exemplo clássico é, ainda uma vez, o dos sobreviventes dos campos nazistas. O relato da estadia em
Auschwitz por parte de um ex-deportado judeu e comunista frequentemente não é o mesmo, conforme
tenha sido feito antes ou depois de sua ruptura com o Partido comunista. Antes, durante os anos 1950, ele
põe em primeiro plano sua identidade política ao se apresentar como um deportado antifascista. Depois,
durante os anos 1980, ele se considera primeiramente como um deportado judeu, perseguido enquanto
judeu e testemunha da aniquilação dos judeus da Europa. Bem entendido, seria absurdo distinguir, entre
estes dois testemunhos relatados pela mesma pessoa em dois momentos diferentes de sua vida, o
verdadeiro e o falso. Os dois são autênticos, mais cada qual esclarece uma parte de verdade filtrada pela
sensibilidade, pela cultura e também, pode-se acrescentar, pelas representações identitárias, ou
ideológicas, do presente. Em suma, a memória, seja individual ou coletiva, é uma visão do passado
sempre filtrada pelo presente. Neste caso, Benjamin definia o procedimento de Proust como uma
'presentificação' (Vergegenwärtigung). Seria ilusório considerar o 'outrora' (das 'Gewesene') como uma
espécie de 'ponto fixo' do qual poderíamos aproximar-nos por uma reconstituição mental a posteriori. O
'acontecido' é em larga medida fabricado/modelado pelo presente, pois é a memória que 'estabelece' os
fatos: trata-se aqui, segundo Benjamin, de uma 'revolução copernicana na visão de história'. Ele reafirma
este conceito nas 'reflexões teóricas' de sua obra Passagens, quando considera 'o passado visto pelo
telescópio do presente', acrescentando que 'é o presente que polariza o acontecimento (das Geschehen)
em história anterior e história posterior'. A história, continua Benjamin, 'não é somente uma ciência' posto
que é 'do mesmo modo uma forma de rememoração (Eingedenken).' Em um espírito análogo, mais
recentemente, François Hartog forjou a noção de 'presentismo' a fim de descrever uma situação na qual 'o
presente se tornou o horizonte', um presente que, 'sem futuro e sem passado', engendraria os dois
continuamente segundo suas necessidades.

A história igualmente, que no fundo não é mais do que uma parcela da memória, como denominou
Ricoeur, se escreve sempre no presente. Para existir como campo de saber, no entanto, ela deve se
emancipar da memória, não a rejeitando, mas a pondo à distância. Um curto-circuito entre história e
memória pode ter consequências prejudiciais ao trabalho do historiador.

Uma boa ilustração desse fenômeno reside n debate dos últimos anos em torno da 'singularidade' do
genocídio judeu. A irrupção dessa controvérsia no canteiro da história relaciona-se, inevitavelmente, às
trajetórias da memória judia, à sua emergência no seio do espaço público e à sua interferência nas práticas
tradicionais da pesquisa que foram subitamente confrontadas com as autobiografias os arquivos
audiovisuais que reúnem os testemunhos dos sobreviventes dos campos de concentração. Se uma tal
'contaminação' da historiografia pela memória se revelou extremamente frutífera, ela não deveria
entretanto ocultar uma constatação metodológica tão banal quanto essencial, a saber, que a memória
singulariza a história, na medida que ela é profundamente subjetiva, seletiva, comumente desrespeitosa
quanto às escanções cronológicas, indiferente às reconstruções de conjunto, às racionalizações globais.
Sua percepção do passado só pode ser irredutivelmente singular. Lá onde o historiador vê apenas uma
etapa dentro de um processo, um aspecto de um quadro complexo e movente, o testemunho pode pegar
um acontecimento crucial, a oscilação/mudança de uma vida. O historiador pode decifrar, analisar e
explicar as fotos conservadas do campo de Auschwitz. Ele sabe que aqueles que desceram do trem são
judeus, sabe que o SS que os observa dirigirá uma seleção e que a grande maioria das figuras dessa foto
não têm mais que algumas horas de vida diante de si. Para uma testemunha, essa foto dirá bem mais. Ela
lhe recordará sensações, emoções, ruídos, vozes, odores, o medo e o desenraizamento/desamparo da
chegada ao campo, a fadiga de uma longa viagem efetuada em condições terríveis, talvez a visão da
fumaça dos crematórios. Em outras palavras, a foto lhe recordará um conjunto de imagens e de
lembranças de todo singulares e completamente inacessíveis ao historiador, a não ser sobre a base de um
relato a posteriori, fonte de uma empatia incomparável àquela que a testemunha pôde reviver. […] Para o
observador exterior, essa foto só representa – como diria Sigfried Krakauer – uma realidade 'não entregue'
(unerlöst) [não liberada]. O conjunto dessas lembranças forma uma parte da memória judia, uma memória
que o historiador não pode ignorar e deve respeitar, deve explorar e compreender, mas à qual não deve se
submeter. Ele não tem o direito de transformar a singularidade dessa memória em um prisma normativo
da escrita da história. Sua tarefa consiste antes em inscrever essa singularidade da experiência vivida em
um contexto histórico global, tentando esclarecer as causas, as condições, as estruturas, a dinâmica do
conjunto. Isto significa aprender da memória ao mesmo tempo passando-a pelo crivo de uma verificação
objetiva, empírica, documental e factual, perseguindo se necessário suas contradições e armadilhas. Isto
pode ajudar a lembrança a se tornar mais precisa, mais exigente, a adquirir contornos mais claros, e
também a trazer à luz o que, na rememoração, não é redutível a elementos factuais. Se pode haver uma
singularidade absoluta da memória, a do historiador será sempre relativa. […] Segundo Eric Hobsbawm,
o historiador não deve se subtrair a um dever de universalismo: 'Uma história destinada apenas aos judeus
(ou aos negros americanos, aos gregos, à mulheres, aos proletários, aos homossexuais, etc.) não saberia
ser uma boa história, quando muito ela pode reconfortar os que a praticam.' É frequentemente muito
difícil, para os historiadores que trabalham com fontes orais, encontrar o justo equilíbrio entre empatia e
distanciamento, reconhecimento de singularidades e perspectivação [pôr em perspectiva] geral. [p.18-23]

[…]

Opor radicalmente história e memória é, portanto, uma operação perigosa e discutível. Os trabalhos de
Halbwachs, Yerushalmi e Nora contribuíram para trazer à luz as diferenças profundas que existem entre
história e memória, mas seria falso deduzir daí a incompatibilidade de ambas, ou as considerar como
irredutíveis. Sua interação cria, antes, um campo de tensões no interior do qual se escreve a história.
Amos Funkenstein tem talvez razão ao indicar, no ponto de encontro entre história e memória, a
emergência de uma terceira instância que ele chama de consciência histórica. [p.32]

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OBS: há uma tradução portuguesa deste livro, disponível na net.

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