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O PASSADO, MODO DE USAR – HISTÓRIA, MEMÓRIA E

POLÍTICA

ENZO TRAVERSO – EDIÇÕES UNIPOP

I – HISTÓRIA E MEMÓRIA: UMA DUPLA ANTINÓMICA?

Rememoração

História e memória nascem de uma mesma preocupação e partilham o mesmo objeto: a


elaboração do passado.

Em suma, a história nasce da memória, de que é uma das dimensões, e posteriormente,


adoptando uma postura auto-reflexiva, transforma a memória num dos seus objectos. (p.
22)

Tirando a sua força da experiência vivida, a memória é eminentemente subjectiva. [...]


A memória é qualitativa, singular, pouco preocupada com comparações, com a
contextualização, ou com generalizações. Quem a transporta não necessita de apresentar
provas. O relato do passado prestado por uma testemunha – sempre que não seja um
mentiroso consciente – será sempre a sua verdade, ou seja, a imagem do passado em si
deposto. [...] A memória é uma construção, sempre filtrada por conhecimentos
adquiridos posteriormente, pela reflexão que se segue ao acontecimento, por
experiências que se sobrepõem à primeira e modificam a recordação. [...] Os dois são
autênticos, mas cada um deles ilumina uma parte da verdade filtrada pela sensibilidade,
pela cultura e também, poderia acrescentar-se, pelas representações identitárias, ou
mesmo ideológicas, do presente. Resumindo, a memória, individual ou colectiva, é uma
visão do passado que é sempre filtrada pelo presente. (p. 22-24)

A história, que no fundo, lembrava Ricoeur, não é mais do que uma parte da memória,
escreve-se sempre no presente. Para existir como campo do saber, no entanto, a história
deve emancipar-se da memória, não rejeitando-a, mas colocando-a à distância. Um
curto-circuito entre história e memória poderia ter consequências prejudiciais para o
trabalho do historiador. (p.25)
[...] a memória singulariza a história, na medida em que é profundamente subjectiva,
selectiva, muitas vezes desrespeitadora da cronologia, indiferente às reconstruções de
conjunto e às racionalizações globais. (p.26)

O historiador não tem o direito de transformar a singularidade dessa memória num


prisma normativo da escrita da história. [...] Isto significa aprender com a memória
depois de a passar pelo crivo de uma verificação objectiva, empírica, documental e
factual, assinalando, se necessário for, as suas contradições e armadilhas. [...] Se pode
haver uma singularidade absoluta da memória, a da história será sempre relativa. (p. 27-
28)

Separações

A separação entre a história e a memória foi fruto de críticas impostas pela filosofia de
Bergson, pelo olhar psicanalítico de Freud e pela sociologia de Halbwachs,
transformando história e memória num par antinómico.

Para Hegel, apenas os povos estatizados, dotados de uma história escrita, possuem uma
memória. Os outros – “os povos sem história” (geschichtlose volker), ou seja, o mundo
não europeu desprovido de um passado estatal e do seu relato codificado pela escrita –
não podem superar o estádio de uma memória primitiva, feita de “imagens”, mas
incapaz de se condensar em consciência histórica. Daqui resulta uma visão dupla da
história, como prerrogativa ocidental e como dispositivo de dominação. (p.30)

Contudo, com a chegada da crítica ao paradigma eurocentrista, “A história


democratizou-se, rompendo as fronteiras do Ocidente e o monopólio das elites
dominantes; a memória, por sua vez, emancipou-se da dependência exclusiva da escrita.
[...] Em 1963, François Furet ainda pensava que podia integrar as classes subalternas na
história apenas num plano quantitativo, tomando-as em consideração unicamente sob o
signo “do número e do anonimato” como elementos “perdidos no estudo demográfico
ou sociológico”, ou seja, como entidades condenadas a permanecer “silenciosas”. [...] É
neste contexto de alargamento das fontes do historiador e de questionamento das
hierarquias tradicionais que se inscreve a emergência da memória como uma nova
oficina de escrita do passado. (p.30-32)
A história supõe um olhar exterior sobre os acontecimentos do passado, enquanto a
memória implica uma relação de interioridade com os factos relatados. A memória
perpetua o passado no presente, enquanto a história fixa o passado numa ordem
temporal fechada, acabada, organizada seguindo procedimentos racionais nos antípodas
da sensibilidade subjectiva do vivido. A memória atravessa as épocas, enquanto a
história as separa. (p.33)

Todavia, longe de serem o quinhão exclusivo da memória, os riscos de sacralização,


mitificação e amnésia estreitam permanentemente a escrita da própria história e uma
grande parte da historiografia moderna e contemporânea caiu nessa armadilha. [...]
Segundo Perry Anderson, o mais severo dos seus críticos [nora], o projecto editorial de
Nora reduz as guerras coloniais francesas, da conquista da Argélia à derrota na
Indochina, “a uma exposição de bugigangas exóticas que poderiam ter estado presentes
na exposição universal de 1931. O que valem os lugares de memória que se esquecem
de incluir Diên Biên Phùr?” (p.36)

A história, da mesma forma que a memória, não tem apenas as suas falhas; pode
também desenvolver-se e encontrar a sua razão de ser no desaparecimento de outras
histórias e na negação de outras memórias. [...] Por outro lado, deve ter-se em conta a
influênica da história sobre a própria memória, já que não existe memória literal,
original e não contaminada: as recordações são constantemente elaboradas por uma
memória inscrita no espaço público, submetidas aos modos de pensar colectivos, mas
também influenciadas pelos paradigmas especializados da representação do passado.
(p.36-37)

Empatia

A mesma oposição entre história e memória está fortemente presente na historiografia


do nacional-socialismo, como o demonstrou claramente, em meados dos anos 1980, a
correspondência entre dois grandes historiadores, Martin Broszat e Saul Friedlander [...]
uma característica partilhada pela maior parte dos seus representantes reside
precisamente na exclusão das vítimas do nazismo do seu campo de investigação, para
não dizer do seu horizonte epistemológico. [...] Nessa historiografia, as vítimas ficam
num plano secundário, anónimas e silenciosas. (p. 38-39)
Opor radicalmente história e memória é, pois, uma operação perigosa e discutível. Os
trabalhos de Halbwachs, Yerushalmi e Nora contribuíram para mostrar as diferenças
profundas que existem entre história e memória, mas seria errado deduzir daí a sua
incompatibilidade ou considera-las como irredutíveis. O que a sua interacção cria é um
campo de tensões no interior do qual se escreve a história. Sem dúvida que Amos
Fukenstein tem razão quando indica, no ponto de encontro entre história e memória, a
emergência de uma terceira instância, a que chamou consciência histórica. (p.40)

Tradicionalmente, a historiografia não se apresentou sob a forma de um relato


polifónico pela simples razão de que as classes subalternas não eram tomadas em
consideração, o que resultou na redução da narração do passado aos relatos dos
vencedores. Foi esse historicismo que Benjamin denunciou nas suas Teses sobre o
conceito de história, descrevendo o seu método como uma forma de empatia unilateral
com os vencedores. (p. 43-44)

Os percalços que resultam de uma empatia de sentido único, desprovida de distância


crítica em relação ao seu objeto, são mais frequentes quando a polifonia dos actores se
torna inaudível, escutando-se apenas uma voz, não havendo lugar a uma interacção
entre memórias antagonistas no espaço público. [...] A escrita dessa história só se pode
fazer sob o olhar vigilante e crítico de várias memórias paralelas, que se exprimem no
espaço público. (p.45-46)

[...] o historiador -não é a norma, é uma virtualidade – pode conhecer em profundidade


uma época já passada e, graças ao seu olhar retrospectivo, reconstituir os seus traços
com uma muito maior clareza do que os contemporâneos. [...] o historiador contribui
para a formação de uma consciência histórica e, portanto, de uma memória colectiva
(plural e inevitavelmente conflituosa, atravessando o conjunto do corpo social). Dito de
outra forma, o seu trabalho contribui para aquilo que Habermas chamou “uso público da
história”. (p.50-51)

II – O TEMPO E A FORÇA

Tempo histórico e tempo da memoria


A história e a memória têm as suas próprias temporalidades, que se cruzam, se chocam
esse entretecem constantemente, sem que, no entanto, cheguem a coincidir inteiramente
entre si. A memória é portadora de uma temporalidade que tende a pôr em causa o
continuum da história. (p.55)

A memória dos oprimidos não se priva de protestar contra o tempo linear da história.
Ela exige, segundo Benjamin, “um presente que não é de forma alguma a passagem do
tempo, mas antes a sua paragem e bloqueio”. (p. 56)

A prática historiográfica exige um distanciamento, uma separação ou mesmo uma


ruptura com o passado, [...] isto constitui uma premissa essencial para proceder a uma
historicização, ou seja, uma perspectivação histórica do passado. [...] Enfim, para
escrever um livro de história que não seja somente um trabalho de erudição é também
necessária uma procura social, pública, o que remete para a intersecção da investigação
histórica com os percursos da memória colectiva. (p.56-57)

[...] Adorno considerou a expressão “superar o passado” (vergangenheit bewaltigung),


então muito em voga, como uma mistificação que procurava “virar definitivamente a
página e se possível apaga-la da própria memória”. Falar de “reconciliação” significa
neste caso reabilitar os culpados, numa época em que a “sobrevivência do nazismo
dentro da democracia representa maior perigo potencial do que a sobrevivência de
tendências fascistas dirigidas contra a democracia”. (p.58-59)

A literatura, o cinema e uma imensa produção sociológica analisaram o conflito entre


tradição e modernidade, que assume, sobretudo nas grandes cidades, a forma de um
choque geracional entre pais emigrados e filhos nascidos no país de acolhimento. [...]
Os zapatistas de Chiapas fazem coabitar o tempo cíclico das comunidades indígenas
com um projecto político de libertação que se inscreve numa narrativa marxista da
modernidade (embora liberta de mitologias progressistas) e também no “presente
perpétuo” do mundo contemporâneo, o da dominação globalizada que combatem. (p.60)

A memória do estalinismo é profundamente heterogêna, [...] essa memória é hoje em


dia asfixiada, dez anos depois da queda da URSS. O processo de integração da memória
do estalinismo na consciência colectiva iniciou-se no decurso dos anos 1980, no período
de Gorbatchev, quando se multiplicaram as associações dos antigos deportados e as
reivindicações em favor da reabilitação das vítimas. Esse movimento foi bruscamente
interrompido sob a presidência de Ieltsine, que marcou uma viragem. O trabalho de luto
e de apropriação de um passado proibido abriu caminho a para uma reabilitação massiva
da tradição nacional. (p.63)

A crise dos partidos e das instituições que encarnavam a memória antifascista criou as
condições para a emergência de uma outra memória, até então silenciosa e
estigmatizada. O fascismo é agora reivindicado como uma parte da história nacional, o
antifascismo rejeitado como uma posição ideológica “antinacional” [...] o Estado não
tivesse que se pronunciar sobre os valores e as motivações dos actos praticados, ou, pior
ainda, como se pudesse colocar no mesmo plano carrascos e vítimas, objectos de
memórias “simétricos e compatíveis”. (p.65)

A simetria antitotalitária torna-se assim perfeita, mesmo se a sua consequência, como


nos lembra Claudio Magris, consiste em transformar a igualdade das vítimas – todas
dignas de memória e de pietas – em “igualdade das causas pelas quais elas morreram”,
ao misturar crimes de natureza completamente diferente. Essa simetria antitotalitária
coincide agora, porém, com uma dissimetria da memória nacional que mantém viva a
recordação das vítimas italianas da resistência titista mas esquece, tranquilamente, as
vítimas jugoslavas da ocupação protagonizada pelo fascismo italiano, cuja violência
assumiu contornos semelhantes à dos nazis na frente oriental. (p.66)

Os historiadores que trabalham com o tempo presente e a memória são confrontados,


constantemente, “com aquilo que Dan Diner chamou de “tempo comprimido” (gestaute
zeit) que se recusa a dar-se como passado. “(p.69-70)

“Memórias fortes” e “memórias fracas”

Existem memórias oficiais, alimentadas pelas instituições, ou seja, os Estados, e


memórias subterrâneas, escondidas ou interditas. A “visibilidade” e o reconhecimento
de uma memória dependem também da força de quem a possui. Dito de outra forma,
existem “memórias fortes” e memórias fracas”. (p.71-72)

Segundo Peter Novick, a sacralização do Holocausto é uma má política de memória.


Isto, porque, segundo o historiador americano, existiu um processo de americanização,
ou seja, entra na consciência histórica dos Estados Unidos, e de sacralização, até se
tornar uma “religião civil”. Uma memória oficial que se inscreve num contexto cultural
que atravessa o ethos integracionista, a favor de um ethos particularista.

Aqui Cabe um comentário interessante, a política de memória oficial do Estado norte-


americano, excluiu, ou melhor, para não ser tachado de reducionista, simplificou a
participação ativa, do genocídio de índios e a escravidão dos negros enquanto parte
substancial do que é os EUA nos dias de hoje. Não à toa, Peter Novick nos diz que a
memória do Holocausto é banal, apolítica e que nada tem a ver as divisões reais da
sociedade americana.

Contudo, a escolha final de um memorial do Holocausto (e não de todas as vítimas do


nazismo) expõe-se ao risco que ameaça toda e qualquer “memória forte”: ode esmagar
as memórias mais “fracas”. [...] “aceitar um monumento exclusivamente para os judeus
– escreve Koselleck – significa legitimar uma hierarquia fundada sobre o número de
vítimas e sob a influência dos sobreviventes, aceitando no fundo as mesmas categorias
de extermínio adoptadas pelos nazis. (p.83)

Como memória e história não estão separadas por uma barreira inultrapassável, mas sim
em interacção permanente, existe uma relação privilegiada entre memórias “fortes” e a
escrita da história. Quanto mais forte é a memória – em termos de reconhecimento
público e institucional -, mais o passado de que é vector se torna susceptível de ser
explorado e historicizado. (p.84)

III- O HISTORIADOR ENTRE JUIZ E ESCRITOR

Memória e escrita da história

O linguistic turn – Permitiu quebrar a dicotomia que separava até então a história das
ideias e a história social, assim como ultrapassar os limites simétricos de uma história
do pensamento auto-referencial e de um historicismo fundado sobre a ilusão de que a
interpretação histórica se reduziria ao simples reflexo de uma prática rigorosa de
objectivação e contextualização dos acontecimentos do passado. O linguistic turn
sublinhou a importância da dimensão [...] de ideologia, de representações e de códigos
literários herdados que se refractam no itinerário individual de um autor. [...] A mais
generalizada das suas derivas metodológicas foi, segundo as palavras de Roger Chartier,
a tendência para “uma perigosa redução do mundo social a uma pura construção
discursiva, a um puro jogo de linguagem”. (p.89-90).

Porém, a história não é assimilável à literatura, uma vez que a mise em histoire do
passado, isto é, o tornar o passado em história, deve sujeitar-se à realidade e a sua
argumentação não pode evitar a obrigação de, quando necessário, apresentar provas. É
por isso que a afirmação de Roland Barthes, segundo a qual “o facto nunca tem mais do
que uma existência linguística, não é aceitável.” (p.91)

Tanto Barthes como White ausentam o problema da objectividade do conteúdo do


discurso histórico.

“O discurso histórico pretende dar um conteúdo verdadeiro (que revela do verificável)


mas sob a forma de uma narração”. [...] O erro de White consiste na confusão entre
narração histórica (o mise en histoire através de um relato) e a ficção histórica (a
invenção literária do passado). (p.92)

François Bédarida a reconsiderar, no decurso dos anos 1990, a posição de “um certo
desdém” que os historiadores tinham tido tendência a manifestar, durante as décadas
precedentes, face à noção de facto, e a “exortá-los vigorosamente a não rejeitarem o
bebè-objectividade com a água do banho positivista”. [...] Pierre Vidal- Naquet colocou
o problema em termos muito claros: “se o discurso histórico não estivesse ligado,
mesmo que através de todo o tipo de intermediários, ao que nós chamaremos, à falta de
melhor, o real, estaríamos ainda no discurso, mas esse discurso deixaria de ser
histórico”. (p.93)

Verdade e justiça

A relação entre a história e a memória tem inscrito cada vez mais as noções de verdade
e de justiça. “Este vínculo torna-se hoje cada vez mais problemático com a tendência
crescente para uma leitura judiciária da história e uma judiciarização da memória”.
(p.100)

A memória nacional é resultante de uma tensão existente entre as recordações


memoráveis e comemoráveis e os esquecimentos que permitem a sobrevivência da
comunidade e a sua projecção no futuro; a história é uma operação de conhecimento e
de elucidação. Estes três registos podem sobrepor-se e foi o que se passou durante os
processos por crimes contra a humanidade. Mas era desde logo colocar-lhes aos ombros
um fardo insuportável: não poderiam estar, de forma equivalente, à altura dos
requerimentos respectivos da justiça, da memória e da história.” (p.102)

Carlo Ginzburg contribuiu de forma poderosa para perceber a separação entre o juiz e o
historiador. Enquanto o juiz e o historiador, partilham de um mesmo objetivo: a busca
pela verdade, angariada em provas; a do historiador não constitui uma verdade
normativa, absoluta. Pelo contrário, permanece parcial e provisória, jamais definitiva.

Comparada à verdade judiciária, a do historiador não é apenas provisória e precária, é


também problemática. Resultado de uma operação intelectual, a história é analítica e
reflexiva, procurando pôr em evidência as estruturas subjacentes aos acontecimentos, as
relações sociais nas quais estão implicados os homens e as motivações dos seus actos.
Em suma, é uma outra verdade, indissociável da interpretação. (p.105)

É importante entender que os mesmos fatos irão propiciar verdades distintas.

A imbricação da história, da memória e da justiça está no centro da vida colectiva. O


historiador pode operar as distinções necessárias, mas não pode negar essa imbricação;
deve assumi-la, com as contradições decorrentes. (p. 107)

IV – USOS POLÍTICOS DO PASSADO

A memória da Shoah como “religião civil”

Poderemos fazer um uso crítico da memória? [...] O risco não é o de esquecer a Shoah,
mas o de fazer um mau uso da sua memória, de embalsamá-la, de a fechar nos museus e
de neutralizar o potencial crítico, ou, pior, de a submeter a um uso apologético da actual
ordem mundial. (p.110)

O Nazismo não se inscreve na história do Ocidente apenas como expressão extrema do


contra-Iluminismo. A sua ideologia e a sua violência condensaram várias tendências
presentes na Europa desde o século XIX: o colonialismo, o racismo e o antissemitismo
moderno. Foi um filho da história Ocidental. E a Europa liberal do século XIX foi a sua
incubadora. (p.113)
Pensar a ligação de Auschwitz com a modernidade ocidental pode levar a colocar em
causa a nossa “normalidade”. Os centros de retenção onde são colocados os estrangeiros
em situação irregular e os requerentes de asilo – que proliferaram na Europa no decurso
dos últimos anos – não são evidentemente comparáveis aos campos de concentração
nazis. Possuem, no entanto, no seio das sociedades democráticas, alguns traços
essenciais que definem o paradigma do campo de concentração, ou seja, segundo
Giorgio Agamben, “um espaço que se abre quando o estado de excepção começa a
tornar-se a regra”. São, com efeito, espaços anômicos em que tudo é possível, não
porque sejam concebidos como espaços de aniquilamento, mas porque se tratam de
lugares de não-direito. (p.114-115)

Podemos, todavia, encontrar exemplos recentes de um bom uso da memória do


Holocausto. Por exemplo, o do africanista Jean-Pierre Chrétien que publicou em Abril
de 1994 um artigo no Libération em que denunciou os crimes de um “nazismo tropical”
no Ruanda. De um ponto de vista analítico, o conceito não parece muito pertinente, na
medida em que assimila dois genocídios, o dos Tutsi e o dos judeus, muito diferentes
pelos seus contextos, pela natureza dos regimes políticos que os conceberam e pelos
meios com que foram perpetrados. Contudo, do ponto de vista do uso público da
história, esse conceito foi muito bem escolhido. Em abril de 1994, quando a opinião
pública aparecia ainda largamente incrédula e indiferente face aos massacres que os
média caracterizavam frequentemente como “conflitos tribais”, falar de “nazismo
tropical” tinha um sentido, o de se apoiar na consciência histórica do mundo ocidental,
onde a Shoah ocupa hoje em dia um lugar central, para cahamr a atenção sobre um
genocídio em curso. Tratava-se de mostra rque o Ruanda estava a viver uma tragédia
tão grande como a Shoah e que era necessário reagir para a tentar impedir. De um ponto
de vista ético-político, a noção de “nazismo tropical” era portanto perfeitamente
justificada. Infelizmente, é mais fácil comemorar genocídios, sobretudo a décadas de
distâncias, do que impedi-los. (p.119-120).

O eclipse da memória do comunismo

A própria ideia de revolução é criminalizada, automaticamente remetida para a


categoria do “comunismo” e assim arquivada no capítulo “totalitarismo” da história do
século XX. (p. 120)
O capitalismo e o liberalismo parecem ter-se tornado novamente o destino inelutável da
humanidade, como tinham sido descritos por Adam Smith na época da Revolução
Industrial e por Tocqueville depois da Restauração. Não é identificada uma nova ordem
a construir, de que apenas poderíamos ver os traços gerais, mas um sistema social e
político apresentado como a única resposta possível para os horrores do século XX. O
contraste com a paisagem memorial do século agora findo é evidente. Durante os
momentos mais sombrios da “era dos extremos”, quando o velho mundo estava
sacudido por uma guerra destrutiva que lembrava um quadro de Hieronymus Bosch,
quando se generalizava o sentimento de que a humanidade estava à beira do abismo e a
civilização se arriscava a conhecer um eclipse definitivo, o comunismo aparecia, aos
olhos de milhões de homens e de mulheres, como uma alternativa pela qual valia a pena
lutar. Na ideia de comunismo havia certamente uma parte de ilusão, de mistificação e de
cegueira de que apenas uma minoria, de entre os seus defensores, tinha consciência.
Estava contudo fortemente enraizado na sociedade, na cultura e nas expectativas das
classes populares. Comunismo era uma palavra portadora de múltiplos significados.
Queria dizer tomar em mãos o seu próprio destino, emancipar-se, bater-se contra o
fascismo, contra a injustiça, contra a opressão, construir uma sociedade de iguais.
Remetia também para realidades mais sombrias: o avanço “libertador” do Exército
Vermelho, a disciplina, a razão do partido, o culto de Estaline. [...] As forças que se
mobilizaram no decurso destes últimos anos contra a mundialização neo-liberal, de
Seattle a Génova, têm ideias muito claras sobre aquilo que não querem – um mundo
reificado e transformado em mercadoria -, mas não ousam propor um modelo
alternativo de sociedade. (p.121-122)

A elaboração da memória dos passados fascista e nazi, iniciada alguns anos antes em
vários países europeus – enleou-se com o fim do comunismo. A consciência histórica do
carácter assassino do nazismo serviu de parâmetro para medir a dimensão criminal do
comunismo, rejeitado em bloco – regimes, movimentos, ideologias, heresias e utopias
incluídas – como um dos rostos do século da barbárie. [...] Se o nazismo e o comunismo
são os inimigos irredutíveis do Ocidente, este deixa de constituir o seu berço para se
tornar a sua vítima, erigindo-se o liberalismo como o seu redentor. (p.123-124)

Depois de ter assimilado o movimento e os aparelhos políticos, a revolução e o regime,


as suas utopias e a sua ideologia, os sovietes e a Tcheca, os historiadores da nova
Restauração empreenderam a condenação em bloco do comunismo como uma ideologia
e uma prática intrinsecamente totalitárias. Desprendida de toda a dimensão libertadora,
a sua memória foi alojada nos arquivos do século dos tiranos. (p.124)

Desse ponto de vista, a memória do comunismo conheceu uma parábola análoga à de


outros movimentos emancipadores. Como sublinharam vários historiadores, Maio de
68 já não evoca, no imaginário colectivo, a maior greve geral da história francesa, mas o
rito de passagem para uma sociedade individualista e o momento de formação de uma
nova elite “liberal-libertária”. A analogia mais impressionante é sem dúvida a do
anticolonialismo, cuja memória publica conheceu um eclipse quase total. Uma
gigantesca revolta dos povos colonizados contra o imperialismo foi esquecida, recoberta
por outras representações do “Sul” do mundo, acumuladas durante três décadas:
primeiro, a das valas comuns do Camboja e do Ruanda; depois, as “guerras
humanitárias”; e por último o terrorismo islâmico, cujos porta-vozes substituíram a
imagem do guerrillero. Os ex-colonizados ainda não adquiriram o estatuto de sujeitos
históricos, transformaram-se simplesmente em “vítimas”, objeto de salvamento pelos
países desenvolvidos, que continuam a cumprir, como no século XIX, a sua “missão
civilizadora”, agora envolta na capa ideológica dos “direitos do homem”. Assim
enterrada, a recordação do comunismo e do anticolonialismo como movimentos
emancipadores, como experiência de constituição dos oprimidos em sujeito históricos,
subsiste como memória escondida, por vezes como contra-memória oposta às
representações dominantes. (p.127-128)

V- OS DILEMAS DOS HISTORIADORES ALEMÃES

O desaparecimento do fascismo

A Alemanha constitui um laboratório interessante para estudar a interacção entre a


memória do nazismo e a escrita da sua história. Neste país, a emergência de uma
consciência histórica do genocídio dos judeus coincidiu com o desaparecimento da
noção de “fascismo” do campo historiográfico. (p.129)

Primeiro debate, portanto, o Historikerstreit, iniciado em 1986-1987 pelas teses de Ernst


Nolte sobre o passado alemão “que não quer passar”. A sua interpretação do nazismo
como reação à Revolução Russa e, sobretudo, a sua visão do genocídio dos judeus como
“cópia” de um “genocídio de classe” perpetrado pelos bolcheviques foram objeto de
polémicas bastante divulgadas. Jurgen Habermas foi o principal antagonista de Nolte, a
quem acusou de ter encontrado uma maneira cómoda de “liquidar os danos”, de
“normalizar” o passado e de dissolver a responsabilidade histórica pelos crimes do
nacional-socialismo. (p.131)

O segundo debate, ocorreu no suplemento e na imprensa diária entre Martin Broszat e


Saul Friedlander: um debate metodológico cujo impacto sobre a investigação foi
tamanho. O debate girava em torno das questões, possibilidades e limites de uma
historicização do nazismo, revelando em simultâneo a fecundidade do diálogo e as
diferenças de abordagem geradas a partir de dois pontos de observação distintos: um
historiador alemão e o de um historiador judeu.

Terceiro debate: em meados dos anos 1990, a obra do politólogo americano Dainel
Goldhagen suscitou, bem para lá dos meios universitários, um vasto debate público
sobre a ligação da sociedade alemã com o regime nazi e o grau de implicação dos
alemães “normais” na efectivação dos crimes nazis. (p. 132)

Quarto debate: em 1998, o tradicional encontro de historiadores alemães, que tem lugar
de dois em dois anos, foi marcado por debates muito intensos a respeito do passado da
sua disciplina. [...] Foi esse congresso que desenhou o perfil de uma nova geração – no
sentido histórico, e não simplesmente cronológico do termo, segundo a definição de
Mannheim – que emergiu no decurso da última década. [...] Foi de certa forma
inevitável que, após ter sido um dos vectores privilegiados da elaboração de uma
consciência histórica e do desenvolvimento de um vasto debate na sociedade sobre o
uso público da história, a comunidade de historiadores se visse obrigada a centrar o seu
olhar sobre o seu próprio percurso e a proceder, muito honestamente e portanto
dolorosamente, à sua autocrítica. (p.133-134)

Quinto debate: a exposição sobre os crimes da Wehrmarcht, organizada pelo Institut fur
Sozialforschung de Hamburgo e inaugurada em 1995, tem uma longa e tormentosa
história, cuja conclusão podemos referenciar ao ano de 2002. [...] essa exposição
rompeu com um lugar-comum instalado na opinião pública alemã, segundo o qual o
exército não teria estado implicado nos crimes do nazismo, que teriam sido
responsabilidade quase exclusiva dos SS e da Gestapo. [...] Mostrar a implicação da
Wehrmacht no genocídio dos judeus significou, portanto, demolir o mito segundo o
qual os alemães “não sabiam”. (p.134-135)
Mas, no entanto, se virmos bem, as três primeiras controvérsias, que constituem também
a premissa de a base sobre a qual se desenvolveram as outras, andam em torno de uma
mesma questão: a singularidade histórica do nazismo e dos seus crimes. O
reconhecimento dessa singularidade é doravante o postulado implícito à maior parte das
pesquisas alemãs sobre o nazismo. Não se trata aqui de pôr em causa essa singularidade,
que podemos muito bem admitir e que constitui, em vários aspectos, uma aquisição
importante da historiografia. O que mercê ser sublinhado, em contrapartida, é o seu
corolário, ou seja, as consequências problemáticas, algumas vezes inquietantes, que
acompanharam esse reconhecimento. Na primeira linha dessas consequências negativas
deve inscrever-se, precisamente o desaparecimento do conceito de fascismo. (p.136)

Na maior parte dos casos os historiadores que continuam a utilizar a noção de fascismo
são os representantes da escola histórica da antiga RDA, como Kurt Patzold, marxistas
como Reinhard Kuhnl, ou discípulos de esquerda de Nolte, como Wolfgang
Wippermann. (p.137)

Outro sinal revelador dessa mutação na paissagem intelectual é o abandono da noção de


fascismo por quem mais tinha contribuído para a sua difusão: Ernst Nolte> Celebrizado
no início dos anos 1960 graças a um livro ambicioso em que interpretou o fascismo
como um fenómeno europeu de que analisa três variantes principais – o regime de
Mussolini em Itália, o nacional-socialismo alemão e a Action Française -, hoje em dia
Nolte prefere qualificar o nacional-socialismo como totalitarismo, para o qual tentou dar
uma explicação “histórico-genética”. (p.138)

A Shoah, a RDA e o antifascismo

Os primeiros limites vêm de uma teoria clássica sobre o fascismo (marxista), a qual
identificava o nazismo como uma mera expressão mais agressiva do capital e do
imperialismo alemão, resultado de simples alterações das relações de forças entre as
classes. Contudo, diga-se de passagem, as interpretações são muitas vezes bem mais
ricas e complexas do que se pensa. “(os marxistas estão entre os primeiros a ter falado
do fascismo em termos de totalitarismo, de policracia, de carisma, de psicologia de
massas, etc).” (p.139)
O segundo fator é a ausência do antissemitismo, que só vai ocupar lugar no fascismo
italiano a partir de 1938, dezesseis anos após Mussolini chegar ao poder.

O terceiro fator que determinou o seu eclipse [fascismo] é de natureza essencialmente


política. A noção de fascismo era um dogma para a escola histórica da RDA, num
contexto que quem eram muito débeis as fronteiras entre investigação e ideologia, entre
interpretação do passado e apologia da ordem dominante. [...] Esse processo foi
acompanhado primeiro por um questionamento, seguido pela sua rejeição radical, de
uma outra noção, a de antifascismo, que aparecia muito mais como uma ideologia de
Estado do que como a herança de um movimento de resistência. (p. 140-141)

Existe uma diferença fundamental em relação à historiografia italiana, cujas discussões


actuais procedem do questionamento de um “paradigma antifascista” sobre o qual ela se
tinha reconstituído após 1945. [...] O conceito de fascismo, na sociedade oeste-alemã
dos anos 1960 e 1970, designava mais o presente do que o passado e servia para motivar
a luta contra as tendências autoritárias de um sistema político nascido das cinzas do
Terceiro Reich. (p. 142)

O que mais contribuiu para o abandono da noção de fascismo no seio da historiografia


alemã foi a emergência de uma consciência histórica fecundada pela memória de
Auschwitz. [...] A noção de fascismo escreve Dan Diner numa fórmula categórica, “não
permite chegar ao núcleo de Auschwitz”. O eclipse do conceito de fascismo aparece
assim como o epílogo de um longo caminho da historiografia alemã que desemboca
numa visão do passado nocentro da qual se inscreve, doravante, a Shoah, o “ponto fixo”
do sistema nazi, caracterizado por uma irredutível “unicidade”. (p.142-143)

Surge então um problema grave: a noção de totalitarismo, que conheceu um


renascimento espectacular no decurso da última década, na Alemanha como no resto da
Europa, será amais apta para analisar uma tal singularidade? O deslocamento do
comparatismo histórico da ligação entre o fascismo italiano e o nazismo para a ligação
entre o nazismo e o comunismo será mais clarificador para compreender a natureza do
regime hitleriano e a singularidade dos seus crimes? Colocar em paralelo o “duplo
passado totalitário” da Alemanha – o Terceiro Reich e o da RDA ou, retomando a
fórmula de Étinne François, o de um regime que acumulou uma montanha de cadáveres
e o de um regime que acumulou uma montanha de dossiers. (p.143-144)
O problema surge do uso que disso se faz. Por que se deverá pensar o totalitarismo e o
fascismo como categorias analíticas incompatíveis e alternativas? Por que se deverá
atribuir um maior alcance heurístico à comparação entre nazismo e comunismo do que à
comparação entre fascismo e nazismo? Não se trata também de negar a singularidade
histórica dos crimes nazis, uma vez que o extermínio industrial dos judeus da Europa é
uma característica singular do nacional-socialismo. (p.144)

Resumindo, o eclipse do fascismo surge do encontro entre duas tendências: por um


lado, o consenso antitotalitário liberal e “anti-antifascista”, por outro, a emergência de
uma consciência histórica fundada sobre a memória da Shoah e o reconhecimento da
sua singularidade. Em Itália, estas tendências foram impulsionadas por certas correntes
da historiografia que, fortemente amplificadas pelos média, teorizaram uma clivagem
radical entre fascismo e nazismo a fim de reabilitar o fascismo e criminalizar o
antifascismo. (p.145)

Além disso, a rejeição da noção de fascismo (e por consequência antifascismo) não faz
mais do que recolocar a eterna questão das relações entre história e memória. Abre um
hiato radical entre a historicização actual do nacional-socialismo e a percepção que
tinham os seus contemporâneos, quando o fascismo, antes de ser uma categoria
analítica, era um perigo contra o qual se tinha de lutar e quando o antifascismo, antes de
se tornar uma ideologia de Estado, constituía um ethos partilhado pela Europa
democrática e, nesse contexto, pela cultura alemã no exílio. (p.147)

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