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Cornplexidade e pesquisa interdisciplinar

•mportância chave. O texto incluirá as contribuições ao debate oriundas do


�ampo d o marxismo, das ciências convencionais, humanas e sociais de ori­
gem francesa e anglo-saxónica, bem como das abordagens mais comprome­
tidas no campo da saúde mental e do serviço social mais engajado socialmen­
te no contexto britânico, a partir de minha experiência de quase sete meses
1
de
pesqui sa na Inglaterra, ao realizar um programa de pós-doutoramento . Fi­
Pós-modernidade, complexidade e nalm ente, o capítulo buscará sugerir algumas diretrizes para orientar pesqui­
estratégias epistemológicas para práticas sas e atuação profissional interdisciplinares comprometidas ética e politica­
mente com projetos públicos de caráter popular-democrático e com vocação
interdisciplinares e interparadigmáticas hegemónica. A tese implícita neste capítulo é de que, principalmente no con­
texto atual das sociedades capitalistas avançadas e do pós-modernismo, os
Os físicos vivem atrás de uma teoria unificada do
universo que explique tudo. Todo o mundo persegue conceitos e estratégias epistemológicos de complexidade e de interdisciplinari­
tal teoria unificada, ou unificadora, por trás de tudo. dade devem constituir valores explícitos da teoria critica e da agenda das lutas
Só varia o tudo de cada um. As religiões têm suas emancipatórias, antiopressivas, de caráter popular-democrático e por uma glo­
teorias unificadas: são suas teologias. Diante de um
religioso convido você está diante de alguém
balização mais solidária, no sentido de evitar não só a fragmentação das ciên­
inve;ável, alguém que tem certeza, que chegou na cias instrumentais e a crise dos paradigmas totalizantes de cunho modernis­
frente da ciência e encerrou sua busca. A ciência e as ta, mas também a dispersão micropolítica das abordagens pós-modernas.
grandes religiões monoteístas começaram pela
mesma diversidade - os deuses semi•humanos e A idéia deste capítulo é iniciar a discussão acerca da interdisciplinari­
convivas da Antigüidade, a deduções empíricas da
ciência primitiva - e avançaram, com a mesma
dade a partir de seus fundamentos, no terreno da epistemologia, através do
avidez, do complicado para o simples, do diverso conceito de complexidade. Uma abordagem mais sistemática dos conceitos
para o único. Só que o monodeus da ciência ainda operativos em torno do primeiro tema será apresentada no capítulo seguin­
não mostrou a sua cara.
te, quando as bases na filosofia do conhecimento estiverem mais claras.
Na política e nos assuntos do mundo também existe
a busca da explicação absoluta, da teoria por trás
Entretanto, o ponto de partida aqui é a própria viabilidade epistemológica
de tudo. Não é exatamente a tentação do da interdisciplinaridade, expresso em algumas perguntas importantes que
conspiratório. Teorias conspiratórias exigem são colocadas logo no início do debate: a crítica da atual fragmentação e su­
trabalho, estudo, a meticulosa exegese de
coincidências e fatos obscuros. A teoria unificadora
perespecialização do saber implicaria reivindicar um conhecimento do tipo
não requer esforço, é ;ustamente um pretexto para enciclopédico e totalista? A proposta de interdisciplinaridade e de recolo­
não pensar. [. ..} cação das necessárias inter-relações entre todos os aspectos da vida subjeti­
No fundo, o que nos atrai não é a explicação va, social, biológica e ambiental implicaria acabar com as especificidades e
unificadora. Pode ser a teoria mais fantástica, não
importa. O que nos atrai é a simplicidade. O
a autonomia relativa das diversas disciplinas? Significaria ela estabelecer
melhor de tudo é a desobrigação de pensar (Luís uma homogeneidade epistemológica, sem descontinuidades entre os diver­
Veríssimo, crônica "A teoria unificadora", O sos tipos de fenômenos abordados? Ou ainda, significaria a possibilidade
Globo, 26/05/2002, Rio de Joneiro: 7).
de colocar as diversas dimensões da vida humana e social sob um mesmo

2.1. Introdução

No presente capítulo, pretendo aprofundar o debate sobre práticas inter­


1 , O programa de pós-doutoramento foi realizado no período de agosto de 2000 a fevereiro de
disciplinares e interparadigmáticas, ampliando-o com novas leituras e estu­ 200 l na Anglia Polytechnic University, Cambridge, supervisionado pela Doutora Shulamit Ra­
dos que venho realizando nos últimos anos no Brasil e no exterior, principal­ mon, e com amplo suporte e pesquisa também na London School of Economics, em Londres,
mente no campo da epistemologia, no qual o conceito de complexidade tem onde realizei meu doutoramento dez anos antes. Para esse programa, recebi o auxílio do CNPq
na forma de urna bolsa de pós-doutoramento.
Eduardo Mourão Vasconcelos Complexidade e pesquisa interdisciplinar

campo teórico ou disciplinar, que emprestaria aos operadores sua estrutura • estabelecer urna dinâmica de produção de saber pela qual se radicaliza­
epistemológica para abordar todas as outras? riam os pólos da divisão social do trabalho, na medida em que haveria
um saber totalizante e onipotente capaz de lidar com toda a complexi­
2.2. Os riscos da homogeneização e do imperialismo epistemológico dade da natureza e da sociedade, e no outro extremo, estaria a situação
típico das ciências modernas dos homens comuns, perdidos em seus particularismos alienados. Do
ponto de vista psicossocial, essa dinâmica tende a mobilizar um ima­
Urna das possibilidades de encaminhamento da crítica à fragmentação
ginário social compacto e polar, marcado pelo binômio onipotência
dos saberes seria radicalizar a posição de que todos os fenômenos fisicos,
total-impotência radical e por urna relação mestre-aprendiz de tutela,
biológicos, sociais e subjetivos:
dependência e, do ponto de vista psicológico, de movimentos cindidos
• seriam da mesma natureza e teriam características fenomenais homo­ de idealização/desidealização radicais;
gêneas;
• fazer prevalecer o poder oriundo da posse desta competência, corno
• poderiam ser explicados por um único tipo de saber globalizante; "capital simbólico", no sentido do termo indicado por Bourdieu (1998,
• poderiam constituir competência de um superprofissional do tipo inte­ 1996), por urna instituição ou grupo específico de atores sociais, mui­
lectual-universal. tas vezes de forma totalitária. Este terna da relação entre saber e poder
também constituiu objeto da epistemologia foucaultiana3 • A questão
Entretanto, qualquer análise histórica menos ingênua tem nos revelado
também povoa a teoria política desde seus primórdios, corno por
que as diversas tentativas concretas de realizar algum tipo semelhante de
exemplo na proposta de governo pelo filósofo-rei na República de
homogeneização epistemológica foram desastrosas e acabaram significan­
Platão (Plato, 1941 ), até versões mais contemporâneas e recentes,
do estratégias de:
corno pode ser visualizado a seguir.
• reduzir a complexidade dos fenômenos ao que pode ser abordado pelas
regras do discurso de um campo de saber que se pressupõe central, ou Há numerosos casos de implementação dessa estratégia de homogenei­
de um único paradigma dentro de um mesmo campo de saber; zação epistemológica na história ocidental com funestas implicações políti­
cas e sociais, corno por exemplo:
• a partir desta sistematização particular que se pretende universal, pro­
duzir movimentos expansivos de ocupação de forma a imperializar a) A teologia cristã medieval e seu projeto anti-reforma, sua explicação
vários outros campos de fenômenos naturais, biológicos, humanos e global dos fenômenos naturais e humanos e a perseguição pela Inqui­
subjetivos sob este único campo de conhecimento ou da ciência, ou de sição dos cientistas e intelectuais que divergiam de suas idéias a partir
um único paradigma; da Renascença.
• colocar todo o mundo fisico, natural e todas as esferas da vida humana b) O racionalismo dualista cartesiano, que separa o sujeito pensante e o
e de todos os grupos sociais sob o comando de urna espécie de "insti­ objeto (natureza/corpo) corno dois tipos de fenômenos ontologica­
tuição total cognitiva e epistemológica", no sentido analógico ao con­ mente distintos constituindo campos epistemológicos intransitivos - o
ceito de "instituição total" cunhado por Goffrnan (1974), em que se da filosofia e saberes reflexivos de um lado, e a ciência e a pesquisa
romperiam as barreiras que separam todas as diferentes dimensões da objetiva de outro - e que dominou a cultura européia a partir do sécu-
vida2 sob urna mesma autoridade cognitiva e um mesmo conjunto de
regras de conhecimento;
3. Para isso, é interessante ver o texto das cinco conferências de Foucault realizadas na PUC-RJ,
compiladas em A verdade e as formas jurídicas, traduzidas por Roberto Machado (Foucault,
2, No caso das instituições totais concretas, como afirma Goffman, as diversas esferas da vida 1974). Para um breve resumo descritivo e inicial da argumentação foucaultiana, ver Muchail
como dormir, brincar e trabalhar, que normalmente são realizadas em diferentes lugares, com di­ (1995). Para uma introdução mais abrangente à arqueologia e genealogia das fonnas de conheci­
ferentes co-participantes e sob diferentes autoridades, passam a ser realizadas sob o comando de mento, ver Machado (1982). As reservas críticas principais do autor deste trabalho à obra fou­
uma mesma autoridade (Goffman, 1974: 17-8). caultiana estarão incluídas na análise aqui desenvolvida sobre o pensamento pós-moderno.
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lo XVII. Os diversos fenômenos eram classificados segundo esta dis­ lhante à dos movimentos milenaristas4 mais ortodoxos e uma configu­
junção paradigmática: o mundo dos objetos submetidos a observação, ração maniqueísta da energia psíquica, típica dos fundamentalismos,
experimentação e manipulação, e o mundo dos sujeitos racionais que que desenvolvem uma "fé holocáustica" e uma prática concreta de
pensam sobre a sua existência, os saberes e o universo. Assim, nessa "converter ou matar", como tivemos (e infelizmente ainda temos) nos
bifurcação, as características híbridas e complexas dos fenômenos fo­ vários exemplos históricos de genocídio e banhos de sangue com mo­
ram severamente reduzidas. A primazia antropocêntrica e otimista da tivação religiosa ou política.
racionalidade humana sobre a natureza/corpo contribuiu sem dúvida
e) A ortodoxia comunista e stalinista, como na noção de vanguarda e de
alguma para, entre outras coisas, o vertiginoso processo de destruição
intelectuais do partido, e sua relação exterior e de cima para baixo em
ambiental dos séculos XIX e XX, bem como para uma dificuldade es­
relação à sociedade, sem mediações, formulada por Lenin em Quefa­
trutural na abordagem dos fenômenos subjetivos, psíquicos, das emo­
zer? (Lenine, 1902/1979). Essa concepção foi apropriada como prin­
ções e da corporalidade, que foram reduzidos no dualismo cartesiano
cipal orientação para constituição do chamado centralismo democráti­
tanto na abordagem idealista da consciênci�, quanto na abordagem
co pelos principais partidos comunistas do século XX5 constituiu uma
mecanicista das ciências naturais.
das razões do autoritarismo totalitário e da burocracia dos regimes de
c) As ciências naturais e o positivismo no século XIX, em sua tentativa socialismo real existentes (Fernandes, 2000; Dreyfus et al., 2000). No
de abarcar também todo o campo social e subjetivo. Exemplos dessa entanto, a principal fonte dessa homogeneização epistemológica no
pretensão podem ser encontrados na obra de Comte e na medicaliza­ socialismo real está na própria versão do "materialismo dialético" so­
ção da sociedade e da cidade no século XIX através dos diferentes ti­ viético, cujas raízes estão em Engels, mas cuja versão mais acabada
pos de medicina social (Foucault, 1978). está na obra de Stalin O materialismo dialético e o materialismo histó­
d) Determinadas teorias sociais racionalistas modernas, tais como certas rico (1982), que é inclusive adotada como o capítulo teórico do ma­
versões mais convencionais do marxismo do século XIX, que reivin­ nual de história do Partido Comunista da União Soviética, aprovado
dicam uma crítica totalizante da alienação humana baseada na possibi­ oficialmente pelo Comitê Central em 1938. A obra abrange sob uma
lidade de desvelamento das aparências pela identificação da essência mesma teoria fenômenos que vão desde a formação das galáxias até a
do humano e de suas perspectivas futuras, elevando sua perspectiva
epistemológica como matriz de todo conhecimento social e humano.
�L Os movimentos sociais milenaristas constituem movimentos coletivos, típicos de conjuntos
Nesse tipo de concepção, que tende a romper o enquadramento neces­ sociais muito empobrecidos ou vivendo condições exacerbadas de opressão social ou política,
sariamente histórico e limitado da consciência humana (enquadra­ que se baseiam em uma visão ou promessa de urna mudança social total ou de inauguração de
mento este enfatizado nas versões historicistas e pluralistas da tradi­ uma nova era, do tipo messiânica ou religiosa, que supere as atuais condições históricas. Há inú­
meros exemplos desses movimentos na história do judaísmo, do cristianismo e do islamismo,
ção marxista), a consciência crítica de seus teóricos é implicitamente como também nos cultos Cargo na Melanésia e Pacífico, em cultos Peyote e na Dança Fantasma
elevada a um estágio de consciência absoluta, onipotência teórica e dos índios da América do Norte, bem como na tradição Rastafari na Jamaica, estes últimos clara­
mente marcados pela opressão colonialista ou pós-colonialista. Mais perto de nós, as diversas
auto-suficiência que, a despeito de reivindicar uma visão geralmente correntes da Teologia da Libertação latino-americana interpelam, mas procuram elaborar criti­
atéia ou agnóstica, acaba por interpelar uma configuração imaginária camente essa tradição milenarista difusa em nossa população.
nitidamente religiosa semelhante aos monoteísmos dogmáticos. Nes­ Não posso deixar de notar como muito curioso o fato de que logo após a primeira revolução em
se esquema, se a superação definitiva de toda a alienação humana pode 1905 na Rússia, Lenin já havia relativizado em vários trabalhos as concepções defendidas neste livro
ser já vislumbrada no horizonte histórico concreto, justifica-se qual­ de 1902, escrito no exílio e em condições de perseguição política bastante desfavoráveis, como um
"exagero de momento", ligado à conjuntura específica de sua política de organização nos anos de
quer procedimento ético e político capaz de superar os obstáculos para 1901 e 1902 (Lenine, 1906 e 1907, publicados em 1979). Entretanto, será exatamente este seu texto
atingi-la o mais rapidamente possível. Do ponto de vista antropológi­ de 1902 que constituirá a "cartilha'' dos partidos comunistas que conhecemos historicamente, refor­
co e psicológico, essa matriz interpela uma estrutura cultural seme' çando a nossa hipótese da importância do irnperialis1p.o epistemológico como elemento chave do
imaginário comunista convencional e das reivindicações da competência de uma teoria e da potência
intelectual de um grupo para abarcar todos os problemas humanos.
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luta de classes na sociedade contemporânea e as pretensas fonnas fu­ menos mentais a descrições obtidas através de modelos fisicalistas e
turas de comunismo vitorioso. Assim, questões cruciais em diferentes biológicos (Serpa Júnior, 1998).
campos como a história, economia, biologia, fisica, geologia, arte e fi­ 1) As diversas versões do que podemos chamar de sociologismo e politi­
losofia, acabaram tendo por árbitro final de decisão a autoridade polí­ cismo, tais como, no campo da saúde mental, o freudomarxismo de
tica constituída - o Comitê Central ou o próprio Stalin em pessoa-, a Fromm, Reich e Marcuse (Rouanet, 1989), e suas tentativas de derivar
partir de uma lógica maniqueísta que classificava pessoas e saberes uma solução definitiva dos diversos problemas subjetivos a uma or­
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entre "proletários" e "burgueses", por meio de julgamentos sumários,
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dem ou utopia sociopolítica específica.
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e que implicavam na invalidação e/ou perseguição dos últimos.
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Considero interessante reter um pouco mais a atenção sobre o funcio­
f) A psiquiatrização da sociedade através da obra de Morei no século namento das formas contemporâneas de imperialismo epistemológico no
XIX e do movimento de higiene mental nas primeiras décadas do sé­ campo das ciências sociais, para revelar um pouco melhor sua dinâmica de
culo XX, bem como de sua associação com o movimento e idéias eu­ funcionamento. No debate interno mais recente do marxismo, sem dúvida al­
gênicas, que levaram ao genocídio em massa e/ou a medidas aberta­ guma menos pretensioso do que as visões stalinistas já que não visa mais
mente racistas não só na Alemanha nazista, mas também nos Estados abranger o campo das ciências tisicas e biológicas, o imperialismo epistemo­
Unidos e em vários países europeus de tradição liberal6 • lógico ainda subsiste como resultado do que Laclau & Mouffe (1985) cha­
g) A psicologia na versão materialista dialética de Engels (1888/1975), maram de "lógica essencialista". Por meio dela, em uma aspiração monista,
no empiriocriticismo de Lenin (1908/1962) e a psiquiatria reflexológi­ uma teoria considera-se onipotente para capturar a essência e todos os senti­
ca de Pavlov durante o período stalinista, que sem dúvida alguma re­ dos implícitos da história e dos fenômenos culturais e subjetivos, reduzindo
toda a complexidade da vida social e humana à dinâmica da esfera da produ­
forçaram a tendência para o uso repressivo da psiquiatria na ex-União
Soviética, através da internação compulsória sistemática de dissiden­ ção, acumulação e das classes sociais, possibilitando inclusive reivindicar
para a classe operária o status de sujeito universal da história, capaz de dire­
tes políticos, religiosos e de costumes em hospitais psiquiátricos, sem
cionar alternativas para todas as questões que afetam os seres humanos e o
qualquer possibilidade de defesa e implicando em um processo de ani­
planeta. Assim, temas como gênero, etnia, raça, diferenças intergeracionais,
quilamento político, existencial e psicológico das pessoas.
processos subjetivos, questões ambientais e planetárias, poderiam ser sub­
h) As teorias gerais de sistemas (Bertalanffy, 1976), estabelecendo iso­ sumidos à lógica do modo de produção/acumulação e da luta de classes de
morfismos e analogias estruturais por meio de anáíise formal dos di­ forma linear, sem descontinuidades epistemológicas e paradigmáticas7 •
versos tipos de fenômenos, desconsiderando suas diferenças estrutu­ Também neste debate, as contribuições alternativas de Adorno e Horkhei­
rais, ontológicas e históricas. mer são fundamentais, e serão indicadas posteriormente neste trabalho.
i) As diversas versões de psicologismo, como uma redução da comple­ 1 Do exposto, fica claro que as propostas de interdisciplinaridade e trans­
xidade socioexistencial nos processos terapêuticos aos aspectos psico­ disciplinaridade não devem operar através de uma opção pela homogeneiza­
lógicos, tais como nas formulações existencialistas simplificadoras de ção e imperialismo epistemológicos, dado os seus riscos intrínsecos. Cabe
Carl Rogers ou no chamado psicanalismo, como sugerido por Robert então examinar melhor os diversos rebatimentos e desdobramentos dessa
Castel (1978). discussão, o que será feito levando em consideração o debate europeu.
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j) As tentativas mais recentes de "remedicalização da psiquiatria" pela
chamada psiquiatria biológica, reduzindo qualquer análise dos fenô-
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7,. A relevância da crítica de Laclau e Mouffe não significa que esses autores tenham assegu­
rado uma alternativa propositiva ausente de problemas nesse campo tão complexo. Para uma
6. Uma análise mais detalhada do movimento de higiene mental e suas implicações históricas já avaliação crítica desta obra dos dois autores, ver Best & Kellner ( 1991, particularmente pág.
está disponível (Vasconcelos, 2000). 194a204).
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2.3. A crítica ao imperialismo epistemológico no contexto francês cepção de uma comunidade científica fazendo com que conceitos sejam
contemporâneo: descontinuidades, epistemologias regionais, vistos como auto-evidentes e inquestionáveis, impedindo o reconhecimen­
cientificismo e fragmentação dos saberes; a versão estruturalista e to de mudanças que levariam ao progresso nas ciências, no sentido de uma
sua crítica no relativismo pós-estruturalista e pós-moderno maior racionalidade no conhecimento científico e na produção de verdades.
Assim, a história da ciência é vista como um processo conceituai descontí­
A descrição do debate epistemológico a seguir é bastante esquemática, nuo com seus erros (que são avaliados também como positivos e construti­
tendo em vista os objetivos deste trabalho, visando apenas apontar para um vos), rupturas e retificações conceituais, constituindo um saber normativo
itinerário necessário a ser aprofundado para o desenvolvimento do debate que não apresenta continuidade com o senso comum, as pré-ciências e as
sobre o assunto. ideologias. Além disso, a descontinuidade se dá também entre as diferentes
A homogeneização e imperialismo epistemológicos das formulações disciplinas e ciências, negando-se a possibilidade de uma ciência em geral e
totalizantes típicas do positivismo e do racionalismo moderno tiveram sua criando a possibilidade de diferentes discursos científicos tendo em vista a
contrapartida crítica na epistemologia francesa desde os anos trinta, princi­ diversidade de seus objetos teóricos, suas dimensões próprias de temporali­
palmente através da obra de Bachelard8 (1884-1962) e de seu discípulo dade e espacialidade, e seus métodos específicos de indagação do real,
Canguilhem 9 (1904-1996), que lhe sucedeu no Institut d'Histoire des Sci­ apontando para epistemologias regionais variadas, com objetos e quadros
ences et des Techniques de Paris. Apesar de pequenas diferenças entre eles, conceituais próprios.
a obra desses autores na área da história das ciências e da reflexão episte­ Do ponto de vista do debate acerca da interdisciplinaridade, a perspec­
mológica crítica enfatizam as descontinuidades e rupturas profundas dentro tiva de Bachelard e Canguilhem levanta questões fundamentais. Em pri­
de um mesmo campo disciplinar, invalidando tanto as pretensões raciona­ meiro lugar, se por um lado se revela como um importante reconhecimento
listas de uma estrutura lógica fixa e a priori, quanto os pressupostos positi­ da complexidade, da diversidade e da diferença dos objetos e campos epis­
vistas de verdades científicas como essências substantivas inscritas desde temológicos, por outro lado a sua aceitação literal ou in totum implicaria
sempre no mundo das coisas, a serem reveladas de forma gradativa e linear uma incomunicabilidade estrutural entre os diferentes regimes epistemoló­
pelas ciências objetivas. Assim, o desenvolvimento dialético das ciências gicos, disciplinares e científicos, bem como entre o discurso científico e o
revelaria "rupturas epistemológicas", tais quais a da teoria da relatividade e saber popular. Se esse dilema puder ser relativizado para considerar a ne­
da física quântica em relação à fisica clássica, que não representam simples cessidade imperiosa de alguma forma de interação entre diferentes campos
adições ou correções, mas a emergência de uma nova estrutura de conceitos epistemológicos, temos então, em segundo lugar, pelo menos mais duas
fundamentais de espaço, tempo, causalidade e substância no discurso da­ implicações importantes:
quela ciência. Neste processo, os "obstáculos epistemológicos" consistem
em fatores subjetivos e culturais mais abrangentes que a estrutura cognitiva • a impossibilidade definitiva de qualquer proposta de imperialismo e
interna de uma disciplina, sendo fundamentalmente escondidos da cons­ homogeneização epistemológica e de uma estratégia de interdiscipli­
ciência objetiva dos intelectuais. Dessa forma, condicionam e limitam a per- naridade que não reconheça as rupturas e descontinuidades entre os di­
ferentes campos epistemológicos;
• as descontinuidades não se dão apenas entre disciplinas diferentes, mas
Para uma visão da obra de Bachelard no campo da epistemologia, sugerem-se seus livros de entre áreas descontínuas dentro de um mesmo campo disciplinar, ou
1934/1985, 1940/1968, 1949 e 1953. É fundamental lembrar que Bachelard também desenvol­
veu uma linha extremamente original de trabalhos no campo da imaginação poética, afirmando
até mesmo na investigação de um único fenômeno, de natureza com­
que o espírito científico, identificado com o componente masculino, da consciência diuturna plexa, que comporta características diversas cuja abordagem exige di­
voltada para a racionalidade e retificação dos conceitos, deve ser complementado pela atividade ferentes perspectivas epistemológicas. Exemplos típicos são: a pró­
de urna consciência mais feminina, noturna, visando uma subjetividade poética expansiva. Para pria fisica clássica e quântica, e a própria psicanálise, na medida em
uma visão inicial de sua obra, nesta conexão entre ciência e imaginação poética, ver a coletânea
editada por McAllester (1989). que requer a coexistência de diferentes modelos metapsicológicos (co�o
o registro econômico e topológico, por exemplo), ou mesmo a coexis­
Os trabalhos mais maduros de Canguilhem neste debate são os de 1970, 1971 e 1977. No Bra­
!-1 sil, Canguilhem foi apresentado com competência por Machado (1981). tência de uma epistemologia interpretativa na análise dos processos
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intersubjetivos da situ ação de terapia analítica, com uma epistemolo­ As formulações pós-estruturalistas, por sua vez, particularmente nos
gia mais próxima do modelo hegemónico das ciências naturais que anos setenta, através principalmente dos trabalhos de Derrida, F oucault,
dess: conta do componente energético e de forças representado pela Kristeva, Lyotard e Barthes, atacaram as premissas e concepções de mundo
pulsao. Nessa direção, a discussão sobre a interdisciplinarida­ e ciência do pensamento estruturalista. As críticas se voltaram para as suas
de/transdisciplinaridade é emiquecida e ampliada para se focar a dis­ pretensões de criar uma base científica para o estudo da cultura e sociedade,
cussão das possíveis interações entre campos epistemológicos distin­ que reproduzia implicitamente alguns dos elementos básicos do modernis­
tos ou, usando a terminologia inspirada em Kuhn a ser analisada abai­ mo e do humanismo, tais como verdade, objetividade, certeza científica,
xo, entre diferentes paradigmas. Assim, o âmbito do debate acerca sistema, e a noção humanista de uma natureza humana e subjetiva herdada,
da interdisciplinaridade deve ser necessariamente ampliado para in­ universal e estável. O pensamento pós-estruturalista, apesar de comungar
cluir também o que chamaremos aqui de "práticas interepistemológi­ com o estruturalismo a negação do sujeito humano autônomo como entida­
ca �" e/ou de "práticas interparadigmáticas", colocando o debate para
_ de explicativa, tendeu para uma visão inteiramente historicista, na qual as
alem das armadilhas de uma noção a-histórica e não institucional de diferentes formas de consciência, identidade e significação constituem pro­
disciplinas científicas 10 . duçõ es tipicamente históricas, variando portanto de acordo com cada con­
Alguns dos elementos da perspectiva de Bachelard e Canguilhem fo­ texto e conjuntura, enfatizando as dimensões culturais, políticas, subjeti­
ram radicalizados, na França dos anos sessenta, pelas abordagens estrutura­ vas, semióticas e de vida cotidiana dos processos sociais. Da mesma forma,
hstas, com destaque para aqueles inspirados pela lingüística, como nos tra­ a maioria das abordagens deu primazia ao significante em relação ao signi­
balhos de Lacan, em psicanálise, Levi-Strauss em antropologia, além de ficado, na direção de uma visão produtivista da linguagem, de uma instabi­
Althusser e �ode)jer, a partir do marxismo, respectivamente na teoria polí­ lidade do sentido, quebrando com qualquer possibilidade de esquemas re­
l!ca e ps1canahse , e na antropologia. O estruturalismo como movimento presentacionais convencionais de relação referencial entre sujeito e obje­
enfatizou as regras fundamentais e implícitas em todos os fenômenos cultu­ to/realidade empírica, propondo então um processo sem fim de significa­
ra� e su�jetivos co11:o integrantes de um sistema invariante que exclui a ção, pelo qual a pretensão de fundação segura para qualquer fonna de co­
açao hrntonca de sujeitos em seus elementos de diacronia, intencionalidade nhecimento humano, científico e filosófico é substituída por um relativis­
humarnsmo e historicismo, em favor de uma "causalidade estrutural" sin� mo radical. Este tem sem dúvida forte inspiração em Nietzsche e Heideg­
' . , ger, questionando as bases mesmas da própria filosofia e das teorias sociais
crornca, com pretensões universalistas, e reivindicando uma clara demarca-
ção entre teorias científicas e não científicas em sua constituição. Cada ciên­ ocidentais (Best & Kellner, 1990). No plano político, para aqueles autores
cia f01 concebida com um campo específico de conhecimento delimitando que mantiveram alguma noção básica de luta social, os grandes projetos
para si um objeto específico e com uma estrutura tal que as torn�ria conceitu­ históricos e suas teorias totalizantes foram desintegrados e fragmentados
almente imunes e intransitivas às outras ciências. No estruturalismo, enfim em função de um foco micropolítico voltado para as questões particulares e
a proposta de interdisciplinaridade não teve qualquer espaço. específicas colocadas pelos novos movimentos sociais, e que passa a com­
portar um forte processo de politização das relações sociais e culturais, in­
cluindo a esfera privada e o âmbito da subjetividade.
Apesar das crescentes dúvidas a respeito da propriedade de se caracte­
rizar o pós-modernismo como uma ruptura real com o modernismo (Cali­
Com? na� observações pertinentes feitas a alguns autores acerca da interdisciplinaridade
or Alm nescu, 1987; Welsch, 1988; Best & Kellner, 1991), o pós-modernismo é
� :1da F1l�o (l 977�, que, entretanto, a partir de urna noção historicista de disciplinas cien­
tificas nao considera devidamente os problemas epistemológicos colocados aqui. considerado predominantemente como uma matriz mais ampla, diversa e
1 ] Alth�sser (1 ?SO) t�bérn se p�onunciou sobre a psicanálise, como constituindo urna muitas vezes mais radicalizada do pós-estruturalismo, portanto comungan­
. ciên­
cia espec!?c� do mco�sc1ente, mediante um corte epistemológico com as psicologias e filosofias do com ele os valores fundamentais identificados acima.
.
da consc1encrn, mclumdo uma crítica à leitura da fenomenologia existencial da psicanálise.
o Do ponto de vista epistemológico, apesar da diversidade interna do mo­
trabalho de �lthusser pode ser considerado um contraponto filosófico do trabalho de Lacan no
camp? es��c1ficamente psicanaHtico. Para uma introdução aos debates acerca da epistemolo
gia vimento, as correntes identificadas como pós-modernas comungam uma
da ps1canahse, recomendo o trabalho de Birman (1994).
Eduardo Mourão Vasconcelos Complexidade e pesquisa interdisciplinar

tendência a quebrar as pretensões de científicidade do discurso modernista deFeyerabend, constitui uma das possíveis estratégias de sustentação e cons­
e estruturalista, projetando uma concepção inteiramente relativista acerca trução contemporânea da prática inter- e transdisciplinar.
da validade do discurso científico e da noção de verdade, implicando uma
Entretanto, essa direção não se dá sem problemas fundamentais. É im­
ênfase absoluta no descentramento e na constante produção da diferença na
análise dos fenõmenos humanos e sociais. portante reconhecer que uma análise menos superficial do debate, incluin­
do uma visão mais detalhada das diferenças entre as diversas correntes que
Provavelmente um dos melhores sistematizadores dessa perspectiva no co mpõem essa tendência, não pode ser realizada no âmbito deste trabalho,
campo específico da epistemologia seja constituído pelos trabalhos de um para a qual remeto para uma literatura especializada 12. Todavia, o itinerário
autor não francês, Feyerabend (1924-1994), um filósofo austríaco que vi­ feito aqui torna necessário pelo menos identificar alguns pontos básicos.
veu a maior parte de sua vida acadêmica nos Estados Unidos. Persistente Uma das principais questões está exatamente no seu completo relativismo,
crítico do positivismo, advogou, de forma semelhante a Kuhn (que será dis­ na ruptura radical entre sujeito e realidade empírica, já que os sentidos e
cutido a seguir), que teorias que competem entre si são incomensuráveis, significações do discurso humano e do saber científico são vistos como
não havendo padrão algum pelo qual seus méritos possam ser julgados. produtos de um deslizamento sem fim da cadeia significante, que se auto­
Contudo, ele foi ainda mais radical no seu relativismo, pois para ele os mé­ nomiza, em um processo produzido pela cultura e principalmente pela mí­
todos científicos constituem apenas perspectivas particulares que não são dia. Isso implica na ausência absoluta de critérios de julgamento de valor
auto-evidentes nem superiores em relação às outras abordagens, reivindi­ entre saberes dentro de campos semelhantes, e, particularmente, de compa­
cando um claro anarquismo epistemológico que pode ser resumido em uma ração entre contribuições de diferentes áreas disciplinares, ou de campos
de suas expressões mais conhecidas, ao indicar que, no avanço da ciência, paradigmáticos ou epistemológicos dentro de uma mesma disciplina con­
"qualquer coisa vai" (Feyerabend, 1975/1991). Assim, o progresso do co­ vencional, em que diferentes objetos de estudo constituem fenômenos com
nhecimento depende da constante proliferação de novas formulações teóri­ características ontologicamente diferentes entre si. Nessa direção, perma­
cas e críticas das idéias estabelecidas: o entendimento de qualquer teoria nece a pergunta se a critica histórica às disciplinas como dispositivos insti­
exige que ela seja criticada de fora, pelo ponto de vista de uma teoria alter­ tucionais associados ao poder, enfatizada por esta perspectiva, invalidaria
nativa, e não apenas de dentro. Sua perspectiva aponta na direção de uma qualquer consideração acerca das próprias diferenças fenomenais entre os
das propostas contemporâneas de interdisciplinaridade na medida em que objetos de estudo, que se refletem em diferentes epistemologias regionais
mostra que todas as teorias têm seus pontos fortes, pontos problemáticos e entre as diversas áreas de saber, e que apontam para uma necessária autono­
fraquezas, e para ele esse debate deve ser realizado sem qualquer conjunto mia relativa dos diversos campos paradigmáticos de conhecimento. Um
de regras definitivas. Ele provavelmente não deve ser visto como um irracio­ exemplo de desdobramento dessa questão está em questionar se uma pers­
nalista, mas como um representante típico da tradição cética, na linha de pectiva anarquista seria suficiente para criticar e estabelecer limites às
Montagne, explorando e contrapondo todas as formas de idéias que compe­ constantes tentativas históricas de imperialismo epistemológico, como exem­
tem entre si sem distinguir nenhuma como definitivamente estabelecida, plificamos em seção anterior, na medida em que não haveria regras míni­
reivindicando que os seres humanos devem estimular o máximo possível mas de convivência no debate entre as ciências e saberes, e, portanto, os
de variedade em seus experimentos de vida. Nesse sentido, Feyerabend conflitos tenderiam a ser resolvidos apenas pelas forças argumentativa, ins-
pode ser considerado um bom representante das estratégias epistemológi­
cas pós-modernas.
Portanto, no chamado pós-modernismo, a prática interdisciplinar e trans­
disciplinar retoma sua importância com uma estratégia fundamental de pro­ Para uma introdução crítica às principais correntes do pós-modernismo e seus problemas no
dução de conhecimento, ao exigir que qualquer perspectiva disciplinar ou campo epistemológico, na perspectiva do debate desenvolvido aqui, remeto aos trabalhos de
teórica deva necessariamente ser contraposta por outras formulações, inter­ Best & Kellner(l991 e 1997) e Sokal & Bricmont (2001). Este último trabalho é sugestivo e ge­
rou um amplo debate nos meios intelectuais de todo mundo na medida em que Sokal publicara
nas e externas a um determinado campo disciplinar ou paradigmático. Assim, em 1996 um artigo aparentemente sério, usando trechos de eminentes pensadores pós-moder­
a perspectiva pós-moderna, tendo como exemplo particular a epistemologia nos, para depois denunciá-lo como uma paródia a fim de criticar a extrapolação irresponsável de
idéias das ciências naturais para as ciências sociais por parte de tais autores.
50 Eduardo Mourão Vasconcelos Compl exidade e pesquisa interdisciplinar

titucional, econômica e política dos atores científicos e seus aliados concre­ Consideraremos corno marco fundamental da discussão anglo-saxóni­
tos nos estratos sociais dominantes. ca contemporânea acerca da natureza das ciências em geral a obra de Karl
Um debate paralelo, diretamente nos campos teórico e histórico, está Popper (1902-1994), um filosófo de origem austríaca mas que desenvolveu
em que a perspectiva pós-moderna implica em negar qualquer possibilidade sua carreira acadêmica madura na Inglaterra, mais particularmente na Lon­
de um processo integrado de totalização dinâmica e de historização, bem don School of Econornics. Partindo da crítica ao positivismo lógico em di­
corno de qualquer agenda política emancipatória mais ampla centrada no reção a um evolucionismo racionalista em ciência, Popper afirma que toda
primado da responsabilidade social. Ou seja, no campo da ação política con­ observação indutiva é impregnada de teoria e/ou sustentada em instrumen­
creta com pretensões universalizantes, tenderia a urna radical fragmenta­ tos construídos a partirde teorias. O conhecimento é construído a partir de
ção, dispersão e limitação da ação histórica no âmbito da clínica e da prática hipóteses permanentemente colocadas a teste e refutação, corno verdades e
social rnicropolítica, deixando aquele campo teórico e de ação nas mãos soluções provisórias, com diferentes graus de corroboração, e não confir­
dos atores sociais dominantes de hoje, ou seja, dos grandes conglomerados mação, corno no discurso verificacionista neopositivista. Daí, a importân­
econômico-financeiros e dos governos dos principais países centrais. Isso cia da característica de "refutabilidade" para o progresso da ciência: as ver­
seria ínteirarnente contraditório com as exigências políticas de um contexto dades provisórias devem estar abertas à refutação, à busca e acumulação de
de avanço dos fluxos da globalização e de hegemonia econômica, política e evidências empíricas através da eliminação de erros, soluções, tentativas,
ideológica neoliberal, que coloca novos e complexos desafios para a gestão testes das conseqüências dedutivas, refutação de conjecturas, etc. (Popper,
do conhecimento e da regulação não só nacional, mas principalmente inter­ 1934/1975; 1963/1982).
nacional, dos processos e conflitos econômicos e financeiros,jurídico-polí­
Assim, a partir da crítica às pretensões fundacionistas, que acreditavam
ticos (por exemplo, na defesa dos direitos civis, políticos e sociais de popu­
que o conhecimento era construido ou justificado por fundamentos seguros,
lações submetidas a diversas formas de totalitarismo e genocídio), tecnoló­
sólidos e inquestionáveis, sejam eles racionalistas ou ernpiricistas, Popper
gicos, informacionais, ambientais, geopolíticos, étnicos, culturais, sociais e
(1963/1982) propõe que o caminho seja a eliminação do erro grosseiro e das
subjetivos. Assim, as perspectivas pós-modernas apresentam sérias limita­
tendenciosidades do pesquisador através da "tradição crítica", ou seja, a críti­
ções no território epistêrnico da teoria política na construção de um arca­
ca mútua exercida pelos cientistas, pela abertura da metodologia e dos resul­
bouço teórico-institucional e de urna estratégia democrático popular plura­
lista, mas viável e eficiente, capaz de se colocar corno alternativa de gestão tados à análise e questionamento pela comunidade científica.
pública no plano local, regional, nacional e principahnente internacional. Nessa perspectiva, Popper pode ser considerado como um precursor
Torna-se fundamental retornar nossa revisão histórica do debate para chave do chamado movimento pós-positivista13, no qual o princípio da ob­
também apontar e discutir as possíveis linhas alternativas existentes de sus­ jetividade é reapropriado de forma não fundacionista: assume-se a existên­
tentação para urna prática interdisciplinar crítica e mais comprometida com cia de uma realidade externa regida por leis naturais ou históricas, mas que
urna perspectiva popular-democrática e pluralista. não podem nunca ser totalmente apreendidas, dada a precariedade dos ins­
trumentos sensoriais e cognitivos humanos. Assim, a idéia de objetividade
constitui muito mais um "ideal regulatório", na medida em que o pesquisa­
2.4. O debate anglo-saxônico acerca do relativismo e da natureza do dor pode apenas se aproximar dela, com o suporte da tradição crítica (exi­
conhecimento nas ciências convencionais - O pós-positivismo, o gências de clareza no relato da investigação e consistência com a tradição
relativismo moderado, a noção de paradigmas e revoluções na área) e a comunidade crítica Gulgarnento dos pares). Dessa forma, não se
científicas, e as perspectivas da sociologia do conhecimento e da garante a certeza dos resultados, mas apenas que as investigações estão li­

1
teoria crítica vres de erros grosseiros. Além disso, enfatiza-se o "rnultiplismo crítico", ou

1
Da mesma forma que na seção anterior, também indicaremos aqui de for­
ma muito síntética as príncipais contribuições anglo-saxónicas desta discus­
são, mais corno um convite a um aprofundamento pelo leitor, sem qualquer lJ, Para uma visão introdutória e descritiva a este movimento, sugiro os trabalhos de Guba
(1990) e Alves-Mazotti & Gewandsznajder (1999), que também serviram de suporte para a sis­ !

pretensão de cobrir toda a complexidade e todos os participantes do debate. tematização feita acima.
"' , �I

·�·
Eduardo Mourão Vasconcelos Co rnple:,;idade e pesquiso interdisciplinar

seja, a aplicação de estratégias de triangulação que fazem uso de várias fon­


i locados dentro de um paradigma adotado, e os resultados discrepantes não
tes e tipos de dados, visando corrigir e compensar mutuamente os limites de
cada uma das metodologias específicas. A direção relativista assumida pela 1 ameaçam a teoria ou paradigma pela modificação de uma hipótese anterior.
Entretanto, nas revoluções e crises das teorias científicas de grande ampli­
perspectiva pós-positivista contemporânea permite que suas recomenda­
í tude, novos fenômenos são descobertos, conhecimentos aceitos são aban­
ções metodológicas da tradição, comunidade e multiplismo críticos sejam
1 donados e há mudanças radicais na prática científica, em paralelo com as

1
reapropriadas criticamente na sistematização operativa deste livro, em sua transformações nas visões de mundo na sociedade como um todo.
segunda parte, desde que dentro de um contexto epistemológico diferencia­ A partir dessa assertiva, as crises do conhecimento podem ser resolvi­
do que incorpore a crítica de seus pressupostos teóricos e os avanços funda­
das através de três estratégias básicas: as anomalias podem ser deixadas de
mentais dos debates indicados a seguir. Além disso, as recomendações me­
â;' lado, ou podem ser resolvidas sem grandes alterações na teoria ou paradig­
todológicas da tradição e comunidade críticas devem ser levar em conta as ma, ou ainda podem levar à mudança no paradigma até então aceito. Assim,
especificidades dos campos epistemológicos, paradigmáticos, teóricos e a preferência por uma teoria não pode ser justificada racionalmente, por re­
disciplinares particulares, sem pretensão de generalização para os demais
cursos científicos objetivos, mas pela legitimidade filosófica e cultural na
campos, pois nesse caso o risco seria encaminhar-se na direção do imperia­ comunidade científica. Portanto, a diferenciação feita por positivistas lógi­
lismo epistemológico. cos e racionalistas críticos, entre o contexto da descoberta e o da justificati­
A crítica à perspectiva popperiana e pós-positivista é desenvolvida ini­ va de uma teoria, não se sustenta. Este pode ser considerado o argumento
cialmente por autores como Kuhn, Lakatos e Feyerabend, que, apesar de central para o sentido que dá ao conceito de "incomensurabilidade".
suas posições diferenciadas, caminham em uma direção mais relativista, As opiniões em relação à obra de Kuhn variam muito, e alguns tendem
apontando para a questão de que nas refutações, o que está sendo testado é a caracterizá-la como apresentando um "relativismo moderado", ao com­
um conjunto complexo de teorias e hipóteses auxiliares. É sempre possível pará-lo com Feyerabend (Alves-Mazzotti & Gewandsznajder, 1998), dado
fazer alterações nas hipóteses e teorias particulares sem alterar a teoria mais que apresenta valores básicos para a avaliação de teorias científicas que não
geral. Assim, se torna dificil dizer quando uma teoria global dever ser con­ se diferem muito da tradição científica convencional, mas que não são sufi­
siderada refutada e substituída por outra. Vejamos como os dois primeiros cientes para decisões conclusivas:
autores desenvolvem suas perspectivas.
• exatidão, pela qual as conseqüências deduzidas da teoria devem ser
Thomas Kuhn (! 922-1996), filósofo norte-americano, a partir de seu qualitativa ou quantitativamente coerentes com as previsões;
conhecido livro A estrutura das revoluções cientificas, de 1962, ao insistir
que não é o critério popperiano do falsificacionismo que leva uma comuni­ • consistência, implicando a não existência de contradições internas e
dade científica a quebrar o consenso sobre uma teoria, argumenta que a pes­ compatíveis com as demais teorias aceitas pelos seus proponentes;
quisa científica não é orientada apenas por teorias, mas pelo que chamou de • alcance, pelo qual uma teoria deve ser capaz de explicar fatos ou leis
"paradigma". Pelo conceito, ele entende um conjunto de leis, conceitos, além daqueles para os quais ela foi projetada originalmente;
modelos, analogias, valores, regras e critérios para avaliação de teorias e
formulação de problemas, princípios metafisicas e pelos "exemplares", que • simplicidade, ou seja, capacidade de unificar e organizar fenômenos
constituem "soluções concretas de problemas que os estudantes encontram que, aparentemente, não tinham relação entre si;
desde o início de sua educação científica, seja nos laboratórios, exames, ou • fecundidade, ser capaz de desvendar novos fenômenos ou relações an­
no fim dos capítulos dos manuais científicos" 14 (Kuhn, 1962/1970: 232). teriormente não verificadas entre fenômenos já conhecidos;
Assim, nos períodos de "ciência normal", os problemas e soluções são co-
• capacidade de resolver problemas, entendido como a garantia de pre­
servar crescentemente a capacidade objetiva de resolver problemas
conquistada pela ciência com o auxílio dos paradigmas anteriores, e da
Kuhn tem sido criticado pela imprecisão no seu uso do conceito de paradigma. Masterman habilidade de prever problemas que, da perspectiva da teoria prece­
(1979) identifica criticamente cerca de 21 acepções diferentes do conceito em seu livro. Kuhn,
nas edições posteriores, preferiu usar o tenno no sentido mais restrito de "exemplares". dente, são inesperados (Kuhn, 1977).
Eduardo Mourão Vasconcelos Comp lexidade e pesquiso interdisciplinar

Como o próprio Kuhn reconhece, valores como esses não são consen­ acoplada integralmente a agências de financiamento, a governos, a comple­
suais ou são apropriados de forma muito diferenciada pelos diferentes cien­ xos financeiros, industriais e comerciais, a edi tores, e à própria luta pela
tistas, campos de conhecimento e nos diversos contextos soci ais e culturais acumulação do que Bourdieu chama de "capital simbólico" das instituições
implicando em um componente claro de indeterminação que é intrínseco a� científicas e de seus atores internos, os cientistas. Em outras palavras, a
desenvolvimento histórico da ciência. concorrência entre diferente s programas científicos implica não só confli­
Outros autores procuraram abranda r ainda mais o relativismo de Kuhn. tos cognitivos e racionais internos à comunidade científica, mas também, e
Entre eles se destaca Lakatos (1922-1974), filósofo húngaro e fortemente fundamentalmente, luta entre diferentes inte resses e conômicos, políticos e
m fluencrndo pelo racionalismo crítico de Popper, na medida em que tam­ ideológicos, bem como entr e di ferentes visões de mundo e de projetos éti­
_ cos e soci etários, não só no nível macrossociológico - no campo da luta
bem trabalhou com ele e lhe sucedeu na London School of Economics
como continuador de sua obra, após sua morte. Sua proposta se centra na pel a hegemonia na sociedade civil e nos aparelhos de Estado-, como tam­
construção de critérios mais objetivos para avaliação de te orias (Lakatos, bém no nível microssociológico - nas relações de poder mais conting enciais
1970 e 1978) por meio do conceito de "programa científico", que possuiria dentro de cada insti tuição científica, acadêmica ou profissional. Assim, o
um "núcleo rígido", formado por leis irrefutáveis, como uma decisão com­ debate entre as diferente s teorias e paradigmas não pode se restringir aos di­
partilhada por todos os ci entistas do progr ama. As anom alias, ou as inade­ lemas internos da produção do conhecimento e das ciências, mas deve am­
quações entr� as previsões da teoria e as observações, são tratadas por meio pliar-se no s entido de explicitar claramente esses diferentes interesses e
de mod1ficaçoes nas hipóteses auxiliares, que funcionam como um cinturão projetos subj acentes a cada teori a, paradigma ou projeto de pesquisa parti­
de prot�ção do núcleo. Para avali ar o poder de competição entre programas cular. Só assim as diferenças ganham plena inteligibilidade e se permite aos
alte�a!Jvos em processos de mudanças mais radicais, como nas revoluções participantes do debate a plena compreensão e a possibili dade de um posi­
c1en!Jficas, Lakatos propõe critérios centrados na "força heurística", ou seja, cionamento mais crítico e consciente de suas impli cações.
na capacidade de prever fatos novos, e não propriamente nas refutações e Entretanto, é importante observar que o ponto de vista adotado aqui re­
na mcapac1dade de resolver anomalias. Entretanto, reconhece que suas re­ jeita qualquer posição que absolutizasse ou radicalizasse a perspectiva his­
comendações não podem ter caráter normativo, mas que servem fundamen­ toricista em uma direção comple tamente relativi sta pela qual as produções
talmente para uma aná lise histórica retrospectiva (Lakatos, 1978). dos cientistas seriam determinadas exclusivamente pelo seu contexto eco­
Neste trabalho, tomarei a contribuição de Kuhn como uma referência nômico-social, institucional e de poder. Tal posição desle gi timaria qual­
importante. Apesar da imprecisão do conceito, considero fundamental sua quer discussão acerca de valores e critérios de comparação entre teorias e
in�i ção acerc a da mudanç a dos paradigmas nos processos de revolução ci­ descobertas, inviabilizando quaisquer avali ações de diferentes me todolo­
en!Jfica, retomando-a através da noção de "paradigma da complexidade" gias utilizadas, bem como a proposta moderada indicada por Kuhn, tenden­
proposta por Edgar Morin, no conte xto francês. Essa noção é cruci al para o do a ignorar o debate interno no campo científico e as razões por que deter­
campo das teonas humanas e sociais, e chave para a construção de estraté­ minadas teorias ou descobertas são legitimadas e prevalecem lógica e racio­
gi as epis;emológicas adequadas para práticas interdi sciplinares explicita­ nalmente sobre as demais.
_
mente cn!Jcas, pluralistas, sem o apelo a um relati vismo radical. Por outro lado, a perspectiva da sociologia do conhecimento aponta tam­
Todavia, as contribuições de Kuhn devem ser enriquecidas com as aná­ bém para a necessária retomada do projeto histórico da chamada "teoria críti­
. ca", particularmente nos campos da sociologia, teoria política, filosofia, esté­
hses onundas de vários países e identificadas no campo d a chamada "socio­
_ tica e da critica cultural, cuja origem se remonta à Escola de Frankfurt (ou
logi a do co:_11iecimento", ao reenfatizarem que os problemas apontados
p or Kuhn vao mmto além de uma análise " internalista", re stri ta às ques­ seja, de origem germânica, mas com presença nos EUA e fortes desdobra­
_ mentos no mundo anglo-saxão, principalmente devi do a sua oposição ao na­
toes especificamente epistemológicas, teóricas, científicas e técnicas. Os
_ zismo). Nesse campo, se destacam parti cularmente Adorno e Horkheimer,
soc10logos do conhecimento, dentro os quai s Bourdieu (1983), Latour
(1987), Knorr-Cetma (1981) e outros, vêm most rando que a comunidade que constituem referências importantes para o autor deste ensaio. Como ve­
científica não constitui um mercado de concorrência perfei ta, mas que está remos adiante, a teoria crítica parte de uma crítica radical às pretensões mo-
Eduardo Mourão Vasconcelos
complexidade e pesquisa interdisciplinar

demistas de apreensão unitária da totalidade social, de suas essências e apa­ . Especificamente na Inglaterra, até os anos oitenta, havia uma distância
rências, ou de uma unidade das ciências capaz de um conhecimento sistemá­ ': olítica e conceituai significativa entre as reivindicações multidimensio-
tico e empírico do mundo. Entretanto, ao mesmo tempo em que comungam,
• pais dos diversos movimentos sociais e o quase exclusivo foco na questão
com vários aspectos dessa critica desconstrucionista e da importãncia dada à �e classe social colocado pelas correntes hegemónicas de esquerda, como
particularidade, alteridade, diferença e da microanálise assumidos pelo pós-mo­ ambém pelas correntes liberais que davam a sustentação teórica para as
dernismo, os teóricos criticos afirmam que a interpretação dos fragmentos e •· rimeiras peças legislativas que tentavam responder às demandas dos di­
constelações de imagens e idéias podem gerar de forma reconstrutiva in­ !ersos movimentos sociais da época. Como indicou Thompson (1997), não
sights cognitivos e conhecimento social efetivo, iluminando criticamente os ,foi uma surpresa que os primeiros trabalhos da chamada escola radical de
fenômenos envolvidos nos processos de dominação ideológica, social e his­ erviço social (Bailey & Brake, 1975; Brake & Bailey, 1980; Corrigan &
tórica, contribuindo assim para a luta emancipatória. eornard, 1978; Galper, 1980) ignoraram ou tocaram de forma muito su­
Antes de continuar a discussão, cabe fazer aqui uma pequena digressão erficial questões de raça, etnicidade e gênero.
ilustrativa para considerar o debate anglo-saxónico recente acerca da inter­ Durante os anos oitenta, a influência do feminismo em sociologia, polí­
disciplinaridade e complexidade nos campos do serviço social e da saúde ·ca social, psicologia e antropologia foi extremamente forte, alcançando o
mental, mostrando inclusive como a contribuição francesa advinda do con­ mpo do serviço social, culminando com vários livros sobre serviço social
ceito de paradi gma da complexidade, que ainda não teve uma difusão mais eminista, tais como os de Brook & Davis (1985), Hanmer & Statham
consistente naquele contexto, pode ter um papel fundamental no debate dos 1988) e Dominelli & Mcleod (1989). Gradualmente, a literatura expandiu
dois campos citados. a questões e grupos sociais específicos associados com a prática do ser­
·ço social, como violência doméstica (Hanmer & Maynard, 1987), mulhe­
prisioneiras (Carlen & Worrall, 1987), terceira idade (Alber & Ginn,
2.5. Um exemplo aplicado de debate sobre a complexidade e
91 e 1995), família (Elliot, 1996), saúde mental (Busfield, 1986 e 1996) e
interdisciplinaridade no contexto britânico: o desenvolvimento das
xismo e suas conseqüências no homem (Cavanagh & Cree, 1996). Nos
abordagens antidiscriminatórias, antiopressivas e de
os noventa, a noção de "empowerment" passa a ser explicitamente índi­
"empowerment" em serviço social e saúde mental
a por autores feministas e/ou especialistas em questões de gênero como
Desde o início dos anos sessenta, o debate critico acerca da psiquiatria aramente associada com o campo e sua luta.
no contexto europeu e anglo-saxónico já interpelava diversas disciplinas, Um processo similar se desenvolveu no campo da raça e etnia 15. As pri­
incluindo contribuições filosóficas e históricas (Foucault, 1961; Gauchet & eiras formulações apresentaram uma perspectiva multiculturalista (Kiev,
Swan, 1999), econômicas (Warner, 1985), sociais (Hollinshead & Redlich, 72; Watson, 1973; Rack, 1976 e 1982; Leff, 1980; Littlewood & Lipsed-
1958; Busfield, 1986), institucionais (Goffman, 1961; Basaglia, 1986), etc. 1982), particularmente associadas com a emergência da Transcultural
Entretanto, os anos sessenta e setenta e seus movimentos sociais ampliaram chiatric Society em 1976. Entretanto, mais tarde, vários autores mais
a transversalidade de questões colocadas tanto no campo da saúde mental ticos vão indicar os limites desta perspectiva multiculturalista, na medi­
quanto no de serviço social. É interessante ver como isso se deu, por exem­ em que tentariam normalizar o relacionamento e melhorar a comunica­
plo, no contexto britânico, ao qual tive acesso no citado programa recente entre médicos e profissionais brancos com os "pacientes étnicos", ten­
de pós-doutoramento. do ultrapassar individualmente as barreiras da diferença cultural sem re-
Nesse período, questões como opressão social, direitos e oportunidades
iguais para mulheres, grupos étnicos e raciais, e outras minorias objeto de
discriminações, como os chamados doentes mentais e deficientes, adquiri­
É muito importante lembrar aos leitores brasileiros que em países europeus como a Inglater­
m forte desenvolvimento de um Estado de bem-estar tipicamente universal, muitos dos
ram alta importância política na vida social difusa e na mídia, provocando a bramentes da questão social passam a ser deslocados para as condições de acesso ao siste­
emergência de novas legislações para a regulação desses conflitos na Ingla­ cidadania, ou seja, à luta para se adquirir o status de cidadão daquele país, e ter acesso aos
terra e em vários outros países europeus e de tradição anglo-saxónica. se beneficies sociais (Vasconcelos, 1988). ASsim, a questão dos imigrantes de outras ori-
étnicas e raciais ganha uma relevância fundamental nas lutas sociais em geral.
Eduardo Mourão Vasconcelos e pesquiso interdisciplinar
Complexidade

conhecer os poderes intrínsecos das instituições profissionais e das formas (Dalrymple & Burke, 1995), no_s quais as diferen­
de racismo e relações entre os grupos étnicos na sociedade mais ampla
1995) e políticas sociais
tes formas de opressão precisam
?
ser abordadas de forma mtegrada. deba-
(Mercer, 1986; Dominelli, 1988, 1997 e 1998b). No campo do serviço so­ mais engaJado vem md1-
te em conferências e publicações no serviço social
cial, o livro indicado como pioneiro é de 1969 (Triseloitis, 1969), e a Asso­ das formas mais . c1•as-
ciation of Black Social Workers and Allied Professionals foi formada em cando claramente a necessidade de ampliar o enfoque
outras formas de -
opressao b asea-
1983, com um forte compromisso com o desenvolvimento de um serviço sicas de classe, gênero e raça, para incluir
d s por exemplo, em idade, deficiência e sexualidade, bem como para o
social anti-racista, inspirando posteriormente uma vasta bibliografia mais opressões" a priori, sugenndo
geral sobre o assunto (em Dominelli, 1988; Coombe & Little, 1986; Ely & 11:; estabelecimento de uma "hierarquia de
(Thompson, 1_993;
Denney, 1987; Rooney, 1987; Ahmad, 1990; Williams et ai., 1998), bem uma ampla aliança para lutar contra todas elas
Da!rymple & Burke, 1995; Dominelli, 1997 e 1998; Burke & Hamson,
como em campos específicos, tais como cuidado à infancia (Ahmed et ai., 1998), mesmo reconhecendo a complexidade destas interações e as deb1h­
1986; Dwivedi & Varma, 1996); terceira idade (Blakemore & Boneham,
dades do atual debate sobre elas (Thompson, 1997; Pugh, 1997).
1993; e Norman, 1985); demografia (Bhat et ai., 1988), incluindo o campo
da ps1cologrn para assistentes sociais (Robinson, 1995) e o campo do servi­ É imprescindível lembrar da importância de um autor brasileiro nesse
ço social em saúde mental (Fernando, 1989). debate: Paulo Freire. Rose & Black, autores norte-americanos com vasta
experiência no campo da saúde mental, publicaram em 1985 um hvro mtl­
Durante os anos oitenta e noventa, outros movimentos sociais tam­
tulado Advocacy and empowerment- Mental health care in the community
bém conseguiram incrustar suas agendas específicas de lutas e reivindica­
("Defesa de diretos e empowerment - Cuidado em saúde ment�l na c�mu­
ções antidiscriminatórias e antiopressivas no campo do serviço social,
nidade") (Rose & Black, 1985). Nesse livro, md1cam a pe_rcepçao de vanos _
tanto em abordagens mais gerais (como em Thompson 1993· Adams
' ' ' aspectos comuns entre o processo de objetificação de pacientes mentais em
1996; Dalrympe & Burke, 1995), como em campos específicos, como no
instituiçõe s psiquiátricas e de camponeses pobres analfabetos no Brasil
caso de discriminação contra idosos, deficientes, homossexuais seitas reli­
descritos por Freire, bem como entre as abordagens libertárias do movi­
giosas de imigrantes, e contra a discriminação de usuários de �erviços de
mento de saúde mental e da educação popular, particularmente aquelas des­
saúde mental (Rose & Black, 1985). Neste campo dos demais movimentos
critas em Pedagogia do oprimido, escrito em 1968 (Freire, 1970). Esse li­
sociais antidiscriminatórios, a recorrência à categoria de empowerment é
vro foi seguido por vários outros autores anglo-saxões, como na Inglaterra
forte e constante (Vasconcelos, 2001).
por Adams (1990), no serviço social em geral, e por Ledwith ( 1997), na
Nos anos noventa, na Inglaterra e em vários outros países anglo-saxões, área do desenvolvimento de comunidade.
houve um reconhecimento crescente da interação de diferentes fontes e for­ O que foi considerado como uma fraqueza teórica pela esquerda brasi­
mas de opressão, da necessidade de buscar abordagens que pudessem reco­ leira da época - a ambigüidade e a falta de rigor do conceito de opressão uti­
nhecer os aspectos comuns dessas diversas formas de discriminação e lizado por Freire a partir da homogeneização epistemológica realizada pelo
opressão, e ao mesmo tempo superar a fragmentação niilista da vida e das marxismo convencional - vem sendo considerado de extremo valor para a
lutas emancipatórias - como nas formulações "pós-modernas" mais radi­ esquerda européia e anglo-saxã: a flexibilidade de uma categoria �apaz de
cais (Benhabib, 1992; Pease & Fook, 1999)-, bem como a perspectiva de abarcar diferentes formas e fontes de poder, exploração, dommaçao e dis­
deixar a questão da gestão da totalidade social nas mãos dos autores e atores criminação, de se constituir como categoria-chave para construir uma ali­
sociais e políticos neoliberais ou reformistas superficiais (Thompson, 1997). ança popular-democrática ampla entre os diversos movimentos sociais de
_
Ass111;1, o debate acerca da multidimensionalidade das formas de opressão, cunho emancipatório, e de se contrapor à fragmentação pós-moderna ·das
' que Ja vinha aflorando no campo da saúde mental, emerge nas pesquisas lutas sociais.
i;
acerca das características específicas das diferentes formas de poder (Hug­
man, 1985) e de grupos sociais específicos, como no caso de mulheres imi­ Realizada essa rápida visada no debate inglês nos campos social e da
grantes e idosas (Norman, 1985), mulheres negras (Collins, 1990), no cui­ saúde mental cabe avançar a discussão retomando o contexto francês, no
dado comunitário (Stevenson & Parsloe, 1995; Braye & Preston-Shoot qual a démar�he de Edgar Morin e sua proposta de paradigma da complexi­
, dade têm um papel-chave e estratégico.
Eduardo Mourão Vasconcelos Complexidade e pesquisa interdisciplinar

2.6. Por uma epistemologia complexa para as ciências - A noção de ou ideologia, controlando o pensamento consciente. Dessa forma, os in­
paradigma da complexidade de Edgar Morin divíduos conhecem, pensam e agem segundo paradigmas inscritos cul­
turalmente neles, através inclusive de dimensões profundas, no nível do
Edgar Morin viveu uma carreira típica dos principais intelectuais de es­ mito e do sagrado, às vezes até mesmo sob a fachada de ciência ou ra­
querda francesa do século XX, no sentido dado por Winock (2000) ao termo, zão, estabelecendo tabus, proibições e bloqueios, que vêm arrastando "o
de cabeças pensantes porta-vozes da consciência coletiva da sociedade e que
Homo sapiens a delírios, massacres, crueldades, adorações, êxtases e
mfluem no pensamento, na sensibilidade e no comportamento de sua épo­
sublimidades desconhecidas no mundo animal" (op. cit.: 28).
ca 16. Nascido em 1921, integrou o Partido Comunista Francês em 1942 tor­
nando-se combatente voluntário no esforço da Resistência à ocupação n�zis­ Segundo Morin, as características e os problemas essenciais do que
ta, chegando a posições militares de destaque. É expulso do partido em 1951 chamou "paradigma da simplicidade", hegemônico no pensamento oCJden­
já nos primeiros sinais da deterioração stalinista, por suas criticas ao dogma� tal (Morin, 1990/1991), são:
tismo remante. Depois de uma carreira intelectual mais dispersa até o final a) Disjunção e especialização fechada: o paradigma cartesiano coloca, de
dos anos sessenta, publicando livros sobre política e cultura e fundando a re­ um lado, o mundo de objetos submetidos a observações e expenmenta­
vista Arguments com outros dissidentes da esquerda, Morin passa a publicar ções que fragmentam o mundo "objetivo" em unidades mais simples
sistematicamente a partir da década de 1970 a respeito das interconexões en­ para seu exame, e de outro, o mundo de sujeitos representados por sua
tre as ciências (Morin, 1977 et ai.), principalmente sobre o que foi se confi­ característica de pensamento e consciência. As especializações discipli­
gurando como a noção de paradigma da complexidade (Morin, 1982/1998; nares apresentam progressos dispersos, fragmentando os contextos, glo­
1990/1991; 1999/2000; 1999/2001; e Morin & Le Moigne, 1999/2000). balidades e as complexidades. Nessa perspectiva, cada dimensão do hu­
Morin se apropria da noção kuhniana de paradigma, definindo o termo mano e do planeta é separada e encerrada nos vários departamentos das
como: ciências. O enfraquecimento da percepção do global conduz ao enfra­
quecimento da responsabilidade Gá que cada qual tende a ser responsá­
a) uma promoção/seleção dos conceitos-mestres da inteligibilidade das
vel apenas por sua tarefa específica) e da solidariedade (os vínculos en­
concepções científicas e teorias, que por outro lado excluem ou subor­
tre os cidadãos são recalcados). A especialização "abs-trai" ou extrai
dinam os conceitos que lhes são antagônicos. Exemplos são os concei­
um objeto de seu contexto, rejeita os laços e suas intercomunicações
tos de ordem para os deterministas, ou de estrutura para os estrutura­
com o meio e sua característica de muldimensionalidade.
listas, e que por sua vez rejeitam respectivamente os conceitos de de­
sordem e de acontecimento; b) Redução: o princípio da redução restringe o disperso e o comp lexo
_
dos processos humanos e planetários ao simples, quer sei a por meto de
b) um processo que atribui validade e universidade às operações lógi­
uma lógica mecânica e determinista de exclusão de tudo aquilo que
co-mestras preponderantes, pertinentes e evidentes sob seu domínio _
não seja quantificável e mensurável, como as paixões, as 1deologias,
(�xclusão/inclusão; disjunção/conjunção; implicação/negação), em de­
as emoções e o inconsciente, quer seja pelo determinismo que oculta o
trimento de outras, dando aos discursos e às teorias que controla as ca­
imprevisto, o novo e a invenção. Assim, o conjunto e suas interações
racterísticas da necessidade e da verdade. Nesse sentido, "o paradigma
se tomam um quebra-cabeças ininteligível e objeto de negligência,
funda o axioma e se expressa em axioma" (Morin, 1999/2000: 25);
atrofiando a capacidade cognitiva individual e coletiva de contextuali­
c) um processo de articulação das estruturas conceituais e lógicas com um zar e globalizar.
contexto específico de determinações sociais, econômicas e políticas
c) Abstração: o pensamento simplificador é incapaz de conceber uma
em um plano subterrâneo, inconsciente e soberano em qualquer teoria
conjunção complexa do uno ao múltiplo ao unificar abstratamente em
totalidades ou holismos que anulam a diversidade, conduzindo neces­
sariamente a mutilações.
Para ur�a introdução biográfica ao autor, ver Kofman (1999) em inglês e Petraglia (1995)
em portugues.
a interdisciplinar
Eduardo Mourão Vasconcelos lexidade e pesquis
rnp

da sociabilidade e da cultura no Homo


Morin contrapõe o paradigma da simplicidade ao que chamou "para- • a em ergência da consciência, e, requeren­
digma da complexidade". Por complexidade entende sapiens, em relação aos dem
ais antece�entes da espéci
_
fenomenos soc1eta1s (da etnolo­
do novos paradigmas no estudo dos
o quefoi tecidojunto; defato, há complexidade quando elemen­ e da correlação _base somáti­
gia para a sociologia, por exemplo)
tos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como 0
física e/ou biológica para a an­
ca/comportamento (da antropologia
plos são do presente autor);
econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, 0
mitológico), e há um tecido interdependente, interativo e in­ tropologia cultural e/ou social) (os exem
e fenômenos conscientes/cog­
• a descontinuidade epistemológica entr
ter-retroativo entre o objeto do conhecimento e seu contexto, as
partes e o todo, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a uico (apesar do tema não ser
união entre a unidade e a multiplicidade (Morin, 1999/2000: 38). nitivos e inconscientes no aparelho psíq
texto de Morin).
propriamente explorado dessa forma no
Daí, ela apresentar-se cados pela retroação ou recursão
d) Os fenômenos complexos são mar
rrência de um efeito sobre as
com os traços inquietantes da confusão, do inextricável, da desor­
organizacional, que diz respeito à reco
dem, da ambigüidade, da incerteza [... ] (Morin, 1990/199]: 18). agem de níveis epistemológicos
condições geradoras, exigindo a pass
sciência humana de práxis e
Segundo Morin, podemos identificar as seguintes características dos diferentes. Exemplo: a capacidade da con
ambientais e sociais em geral.
fenômenos complexos: de mudança das condições biológicas,
cados pelo princípio hologramáti­
a) Os fenômenos complexos são complicados, mas a complexidade não e) Os fenômenos complexos são mar
unto pode conter a quase
se reduz à noção de complicação (característica de fenômenos com­ co, pelo qual um elemento básico de um conj
meno maior. Exemplos:
postos por muitos ou vários elementos, inclusive ainda parcialmente totalidade da informação sobre todo um fenô
de�conhecidos mas de natureza semelhante). Exemplo: os três bi­
_, • o holograma;
lhoes de combmações de gens no genoma humano podem ser classifi­ o contém toda a infor­
cados como fenômeno complicado, mas a bioética e os novos dilemas • a informação genética de uma célula do corp
da manipulação genética constituem fenômenos complexos. mação genética do organismo.
s princípios da interação
b) Os fenômenos complexos são passíveis de desordem (caos, acaso, alea­ f) Os fenômenos complexos são marcados pelo
a análise ou intervenção
tonedade, mdeterminismo) e ordem (auto-organização, detenninismo), com O observador ou da implicação, pelo qual
iva do observador.
em processo de interação contínua, mas que mantêm os dois termos em um fenômeno depende sempre da perspect
plexos implica incerte­
como antagônicos e complementares ao mesmo tempo. Exemplos: g) O conhecimento acerca dos fenômenos com
ial, principalmente acer­
• as _m�tações genéticas, que são aproveitadas pelos seres vivos para zas descontinuidades e desconhecimento parc
ou do sistema de inte­
cnaçao de novas espécies, algumas com maior poder de adaptação ca dos níveis diferenciados de sua organização
diversos. Exemplo: as
ao ambiente e maior complexidade evolutiva; ração entre eles ou entre níveis epistemológicos
a consciência e o plano
pulsões inconscientes e suas interações com
• as pulsões inconscientes e os processos conscientes. não ser um exemplo on­
histórico da sociedade e da cultura (apesar de
c) Os fenômenos complexos são marcados pelos processos de emergên­
_ ginal do texto de Morin).
cia, pelos quais propnedades novas/diferentes surgem a partir da inte­ de Morin serão feitos em
Comentários adicionais sobre o pensamento
ração das partes ou dos diferentes níveis de realidade ou organização, es críticas.
outra seção a seguir, incluindo algumas anotaçõ
marcando a necessidade de diferentes epistemologias e paradigmas
para a abordagem destas descontinuidades, às vezes dentro de um mes­
mo campo disciplinar. Exemplos:
• diferentes propriedades da matéria na física clássica e quântica;
Eduardo Mourão Vasconcelos Complexidade e pesquisa interdisciplinar

2. 7. Algumas estratégias conhecidas para práticas interdisciplinares trando seu trabalho principalmente na releitura e interpretação de Hegel, e,
e interparadigmáticas 17
a partir delas, estabelecendo uma interação entre a psicanálise e a filosofia,
De novo, tendo em vista o escopo deste trabalho, as estratégias propostas incluindo um diálogo criativo com Lacan e sua obra.
por diferentes autores serão descritas aqui de forma bastante sucinta, em níveis A leitura de Freud no contexto francês enfatizou sistematicamente a
diferenciados de sistematização e avaliação critica, mais como um convite para per spectiva da psicanálise dentro do campo das ciências hermenêuticas ou
uma aproximação, leitura e aprofundamento, sem qualquer pretensão de fazer interpretativas, como nas obras de Pohtzer, Dalb1ez, Bachelard e Ricoeur 18.
jus à complexidade de cada perspectiva. Como se pode depreender, temos al­ o t rabalho de Dalbiez (1936) é representativo dessa tendência, ao marcar a
gumas propostas mais particulares de prática interdisciplinar ou interepistemo­ distinção entre método e doutrina em psicanálise, destituindo de valor a úl­
lógicas, visando abordar uma temática específica ou articulando apenas um, tima. Hyppolite, entretanto, procura não impor ao texto de Freud um esque­
dois, ou poucos campos de conhecimento, mas que são sugestivos de como ma teórico a priori, mostrando que se seu método é baseado na interpreta­
conceber a dinâmica de interação entre eles. Por outro lado, temos propostas ção de um encontro intersubjetivo (ou seja, constitutivo do campo da filo­
mais uníversais, que buscam se aplicar a um campo mais amplo de disciplinas sofia do espírito), sua doutrina é marcada pela dualidade de modelos e pela
e campos epistemológicos. A marca comum de todos eles, porém, está em con­ representação de forças e energias no aparelho psíquico, o que exige um an­
figurarem projetos complexos, inacabados, abertos, muitas vezes com caracte­ coramento no campo da filosofia da natureza. Assim, o texto freudiano,
rísticas bastante polêmicas, cujo debate precisa avançar. para Hyppolite (1989), se constitui não como um sistema fechado, mas
como uma obra em que se colocam uma tensão e problemática fecundas,
onde se alternam a ordem da causalidade e a ordem do sentido e da signifi­
2. 7.1. A dinâmica necessária entre filosofia do espírito e da natureza na cação, por mais decepcionante que possa parecer sua linguagem positivista,
leitura de Freud por Hyppolite
que nunca abandonou efetivamente, e por mais original que constitua sua
Jean Hyppolite (1907-1968) constitui uma referência importante no perspectiva hermenêutica. O próprio conceito de pulsão, que representa um
campo da filosofia francesa e alemã, tendo ensinado na Universidade de elemento central nas teses freudianas, aponta para esta coexistência contra­
Strasbourg, Sorbonne, École Normal Supérieure e College de France, cen- ditória entre força e representação.
Assim, se para Bachelard o discurso metapsicológico corresponderia a
um obstáculo epistemológico para o desenvolvimento da psicanálise e seu
1 �7 , Para esta seção, é importante retomar alguns pontos do itinerário traçado até agora e estabe­ método interpretativo, fundando uma ruptura teórica com a psicologia clás­
lecer as seguintes distinções conceituais: sica (Bachelard, 1938), para Hyppolite, qualquer tentativa de síntese, ou de
� campo disciplinar: delimitação feita por disciplinas científicas e profissões respectivas, como
dispositivos histórico-institucionais de saber-poder que reivindicam competência sobre um de­ escolha de uma concepção contra a outra, trairiam a originalidade dessa
terminado campo de fenômenos, constituindo-os como seus objetos, bem como um processo de tensão que Freud não aboliu em seu pensamento e que mantém viva uma
relação com objetos diferenciados com características fenomenais próprias, gerando um quadro das problemáticas mais radicais na história da filosofia, o dualismo entre
conceitua} e formas interventivas próprios; corpo e espírito, exigindo, portanto, a permanência de um debate que não
e campo epistemológico/paradigmático: delimitação de fenômenos com determinadas caracte­

rísticas comuns que exigem saberes e estratégias epistemológicas ou paradigmáticas específicas poderia ser suspenso.
capazes de lidar com elas. Ex.: a Física constitui uma disciplina científica, mas comporta dife­
rentes campos epistemológico/paradigmáticos (os fenômenos da física mecânica, e os fenôme­
nos tratados na órbita da teoria da relatividade e da física quântica). 2. 7. 2. Transversa/idade, transdisciplinaridade e o paradigma estético em
Como conseqüência, e tendo em vista a sistematização do debate feito até aqui neste texto, seria Guattari
mais apropriado falar de práticas interteóricas, interparadigrnáticas e interepistemológicas do
que simplesmente de interdisciplinaridade, para não legitimar as disciplinas como dispositivos Feiix Guattari (1930-1992) foi um militante francês de esquerda, anti­
de saber-poder constituídos de forma a-histórica. Além disso, uma prática interdisciplinar nem colonialista, ecologista e ativista libertário de várias frentes de contestação
sempre é interparadigmática, e práticas interparadigmáticas nem sempre são interdisciplinares
(como no caso da fisica). Entretanto, conservo o sentido de práticas interdisciplinares como
abrangendo as demais práticas interepistemológicas, já que constitui o termo mais conhecido
pelo grande público. Esse terna será retornado no próximo capítulo. Para uma apresentação introdutória desse itinerário, ver Binnan ( 1994).
Eduardo Mourão Vasconcelos
Complexidade e pesquisa interdisciplinar

2.7. Algumas estratégias conhecidas para práticas interdisciplinares trando seu trabalho principalmente na releitura e interpretação de Hegel, e,
. 11
e mterparad"1gma't·1cas a partir delas, estabelecendo uma interação entre a psicanálise e a filosofia,
incluindo um diálogo criativo com Lacan e sua obra.
De novo, tendo em vista o escopo deste trabalho, as estratégias propostas
por diferentes autores serão descritas aqui de forma bastante sucinta, em níveis A leitura de Freud no contexto francês enfatizou sistematicamente a
diferenciados de sistematização e avaliação critica, mais como um convite para perspectiva da psicanálise dentro do campo das ciências hermenêuticas ou
uma aproximação, leitura e aprofundamento, sem qualquer pretensão de fazer interpretat ivas, como nas obras de Politzer, Dalbiez, Bachclard e Ricoeur 18•
jus à complexidade de cada perspectiva. Como se pode depreender, temos al­ o trabalho de Dalbiez (I 936) é representativo dessa tendência, ao marcar a
gumas propostas mais particulares de prática interdisciplinar ou interepistemo­ distinção entre método e doutrina em psicanálise, destituindo de valor a úl­
lógicas, visando abordar uma temática específica ou articulando apenas um, tima. Hyppolite, entretanto, procura não impor ao texto de Freud um esque­
dois, ou poucos campos de conhecimento, mas que são sugestivos de como ma teórico a priori, mostrando que se seu método é baseado na interpreta­
conceber a dinâmica de interação entre eles. Por outro lado, temos propostas ção de um encontro intersubjetivo (ou seja, constitutivo do campo da filo­
mais universais, que buscam se aplicar a um campo mais amplo de disciplinas sofia do espírito), sua doutrina é marcada pela dualidade de modelos e pela
e campos epistemológicos. A marca comum de todos eles, porém, está em con­ representação de forças e energias no aparelho psíquico, o que exige um an­
figurarem projetos complexos, inacabados, abertos, muitas vezes com caracte­ coramento no campo da filosofia da natureza. Assim, o texto freudiano,
risticàs bastante polêmicas, cujo debate precisa avançar. para Hyppolite (1989), se constitui não como um sistema fechado, mas
como uma obra em que se colocam uma tensão e problemática fecundas,
onde se alternam a ordem da causalidade e a ordem do sentido e da signifi­
2. 7.1. A dinâmica necessária entre filosofia do espirita e da natureza na cação, por mais decepcionante que possa parecer sua linguagem positivista,
leitura de Freud por Hyppolite que nunca abandonou efetivamente, e por mais original que constitua sua
Jean Hyppolite (1907-1968) constitui uma referência importante no perspectiva hermenêutica. O próprio conceito de pulsão, que representa um
campo da filosofia francesa e alemã, tendo ensinado na Universidade de elemento central nas teses freudianas, aponta para esta coexistência contra­
Strasbourg, Sorbonne, École Normal Supérieure e College de France, cen- ditória entre força e representação.
Assim, se para Bachelard o discurso metapsicológico corresponderia a
um obstáculo epistemológico para o desenvolvimento da psicanálise e seu
i '"J. Para esta seção, é importante retornar alguns pontos do itinerário traçado até agora e estabe­ método interpretativo, fundando uma ruptura teórica com a psicologia clás­
lecer as seguintes distinções conceituais: sica (Bachelard, I 938), para Hyppolite, qualquer tentativa de síntese, ou de
e arnpo disciplinar: delimitação feita por disciplinas científicas e profissões respectivas, corno
� escolha de uma concepção contra a outra, trairiam a originalidade dessa
dispositivos histórico-institucionais de saber-poder que reivindicam competência sobre um de­
terminado campo de fenômenos, constituindo-os como seus objetos, bem como um processo de tensão que Freud não aboliu em seu pensamento e que mantém viva uma
relação com objetos diferenciados com características fenomenais próprias, gerando um quadro das problemáticas mais radicais na história da filosofia, o dualismo entre
conceituai e formas interventivas próprios; corpo e espírito, exigindo, portanto, a permanência de um debate que não
• campo epistemológico/paradigmático: delimitação de fenômenos com determinadas caracte­
rísticas comuns que exigem saberes e estratégias epistemológicas ou paradigmáticas específicas poderia ser suspenso.
capazes de lidar com elas. Ex.: a Física constitui urna disciplina científica, mas comporta dife­
rentes campos epistemológico/paradigmáticos (os fenômenos da fisica mecânica, e os fenôme­
nos tratados na órbita da teoria da relatividade e da física quântica). 2. 7.2. Transversalidade, transdisciplinaridade e o paradigma estético em
Co�no conseqüência, e tendo em vista a sistematização do debate feito até aqui neste texto, seria Guattari
mais apropriado falar de práticas interteóricas, interparadigmáticas e interepistemológicas do
que simplesmente de interdisciplinaridade, para não legitimar as disciplinas como dispositivos Felix Guattari (1930-1992) foi um militante francês de esquerda, anti­
de saber-poder constituídos de forma a-histórica. Além disso, uma prática interdisciplinar nem colonialista, ecologista e ativista libertário de várias frentes de contestaçâo
sempre é interparadigmática, e práticas interparadigmáticas nem sempre são interdisciplinares
(corno no caso da fisica). Entretanto, conservo o sentido de práticas interdisciplinares como
abrangendo as demais práticas interepistemológicas, já que constitui o termo mais conhecido
pelo grande público. Esse terna será retomado no próximo capítulo. 8, Para uma apresentação introdutória desse itinerário, ver Binnan (1994).
Complexidade e pesquisa interdisciplinar
Eduardo Mourão Vasconcelos

e reinvenção das práticas psiquiátricas tradicionais e das diversas formas de comum aos diversos fluxos e processos sociais e materiais, que chama de
opressão socioinstitucionais. Psicólogo, se formou inicialmente corno psi­ "inconsciente esquizoanalítico ou rnaquínico", muito mais amplo do que
canalista lacaniano e corno terapeuta ligado à psicoterapia institucional da aquele configurado na noção de inconsciente freudiano, já que segundo
Clínica de La Borde, em Cour Cheveny, sob a direção de Jean Oury. Mais Guattari, este se apresenta corno algo privado, personalógico, intrapsíqui­
tarde, voltou suas baterias contra o lacanisrno e o edipianisrno freudiano, co, baseado no modelo das fixações arcaicas e do recalque (Guattari, 1977/
particularmente em sua obra conjunta com Deleuze (1925-1995), intitulada !981). O inconsciente rnaquínico se constitui corno produção desejante em
O anti-Édipo (Deleuze & Guattari, 1972/1976), dada a sua redução e ho­ aberto, em constante devir, atravessando ordens muito diferentes de caráter
mogeneização da complexidade dos componentes da produção da subjeti­ social, material e espiritual, articulados com os sistemas de potência e for­
vidade aos processos farnilialistas e do significante lingüístico. mações de poder que nos cercam, sem objetos parciais tipificados e estrutu­
ras universais, corno na psicanálise. Portanto, o fluxo rnaquínico se produz
Em contraste com Lacan, principalmente em seus trabalhos centrados
antes da polaridade realidade/oposição e das territorializações edificadas
na ordem do significante, a esquizoanálise guattariana enfatiza a heteroge­ pelas estruturas sociais institucionalizadas, identificadas corno reproduto­
neidade dos componentes serniológicos dos processos de subjetivação,
ras de exploração, segregação e normalização social, bem corno pelas ins­
centrando-se nas suas dimensões diretamente ecológicas, não representacio­
tâncias da consciência e da simbolização, próprias de urna filosofia moder­
nais e a-significantes, corno ponto de partida para esta "heterogênese". na, centrada nas idéias de razão e de sujeito, que são rejeitadas corno nas di­
Corno exemplos dessas dimensões em serviços de saúde mental, Guattari versas outras vertentes mais proeminentes do pensamento pós-moderno,
indica as relações com o espaço arquitetônico, as relações econômicas, o
terna já apontado em seção anterior deste trabalho.
trabalho e as trocas diretamente no campo social, a co-gestão do cotidiano
entre os usuários e profissionais, a produção artística, os dispositivos tera­ Assim, a esquizoanálise pretende induzir a urna rnicropolítica da cria­
pêuticos diretamente corporais, as relações com a mídia e internet, etc., ção e diferença permanente, de constante crítica ao estabelecido, de novas
corno agenciarnentos para um processo de singularização e geração da dife­ formas de subjetivação, através de um movimento de "revolução molecu­
rença nos indivíduos e grupos (Guattari, 1977/1981). Assim, para ele, o lar", retornando os fluxos desejantes transversais ligados à economia, aos
"coeficiente de transversalidade" significa o grau de abertura de um indiví­ processos políticos e sociais, ambientais, de gênero, de raça/etnia, de iden­
duo ou grupo para levar em conta essas múltiplas dimensões que atraves­ tidade erótica, de estados subjetivos, etc., que perpassam os indivíduos, gru­
sam e produzem suas vidas e subjetividades, no sentido de viverem o risco pos, instituições, os processos gerenciais e técnicos, etc., no qual, necessa­
de se confrontar com o novo e a alteridade, assumirem o sentido de sua prá­ riamente, a transdisciplinaridade constitui estratégia fundamental.
, xis e se instaurarem corno indivíduos e grupos sujeitos, e não grupos sujei­ Não há dúvidas de que a contribuição guattariana tem constituído urna
tados. Daí, a exigência inevitável da "transdisciplinaridade", corno estraté­ abordagem fundamental para a luta popular-democrática nas práticas indi­
gia de abordagem dos diversos componentes transversais que atravessam viduais, grupais e institucionais, e seus defensores constituam aliados im­
qualquer realidade humana e social.
portantes nos movimentos sociais em que se inserem, com ênfase particular
Para tal, propõe que as ciências humanas transitem de um paradigma no campo da saúde mental, tanto no Brasil corno na França, onde mais se
cientificista ou interpretativo para paradigmas ético-estéticos, pelos quais difundiu. Não ternos espaço aqui para urna análise crítica mais detalhada,
se buscam operadores existenciais que, da mesma forma que as diversas para o qual remeto o leitor interessado para os trabalhos de Best & Kellner
discursividades de escritura, de voz, musicais ou plásticas, podem promo­ (1991 e 1997) e Sokal & Bricrnont (2001).
ver rupturas e emergências, acontecimentos e focos mutantes de subjetiva­
ção: "Para apreender os recursos íntimos dessa produção - essas rupturas Entretanto, é importante assinalar que, do ponto de vista das estratégias
de sentido autofundadoras de existência-, a poesia, atualmente, talvez te­ epistemológicas para a interdisciplinaridade, a perspectiva guattariana é
nha mais a nos ensinar que as ciências econômicas, as ciências humanas e a bastante similar à de Feyerabend, já examinada anteriormente. Portanto,
psicanálise reunidas" (Guattari,1992: 33). apesar de suas importantes contribuições no campo epistêmico da micropo­
lítica e da clínica, apresenta limitações muito semelhantes às discutidas na­
A proposta de transdisciplinaridade guattariana, portanto, se sustenta quela seção deste trabalho.
na acepção de um campo epistemológico e serniótico não representacional
Eduardo Mourão Vasconcelos Complexidade e pesquisa interdisciplinar

da corr:nt� a rgu­
2_ l.3. A proposta de interdisciplinaridade pela estratégia de substituição também podemos fazer emergir determinad as estruturas
do contexto de argumentação inspirado em Wittgenstein e m relaç ao as suas
mentativa que dão nova luz à narrativa, prmc1palment e
p or du�s es­
A obra de Ludwig Josef Wittgenstein (1889-1951 ), filósofo de origem concepções extr acientíficas. Esse estranhamento pode s:r feito
u conversao_de
austríaca, tendo vivido a maior parte de sua vid a profissional em Cambrid­ tratégias básicas: pela tentativa de tradução/decod1ficaçao o
u pela tentativa
um construto para a linguagem comum do homem da rua,
o
ge , é marc ada por duas fases: a do Tractatus logico-philosophicus, publica ­ ento causad o
do em 1922 (obra apro pria da pelo positivismo lógico do Círculo de Viena ), de explicar um construto pelos m étodos de outro . O estr anham
:
e a segunda fase, marc a da s obretudo por Investigações filosóficas, escritas
por essas duas estr atégias fornece meios p ara promo ver

diverso s el e­
em I 948 e publica d as em I 953. Nesta últi m a, propõe não o desvend amento • uma melhor percepção crítica dos limites e absurdos de
os utilizados;
da essência ou significado oculto da linguage m, mas a ind aga ção de seus m e ntos dos métodos, t eorias e conceit
usos e funções práticas. P ara el e, a linguagem corresponde a u m "jogo de m especí�ca,
• uma abertura da "c aixa preta" p ara for a d e sua ling�age
palavras", como ferramentas utilizadas pelo op erário para martelar ou ser­ to mterteon­
permitindo maior acessibilidade à tr_oca de conhe cimen
rar, como estratégi as múltiplas para inda gar, afirmar, descrever, argumen­
cos, interepistemológicos e int erd1sc1plmares;
tar, etc., cada uma com regras própri as, não sendo p ossív el uma única estru­
no sentido_ de
tura lógica e formal. Apesar das variadas leituras e inte rpretações de s eus • um deslocamento de perspectiva p ara o próprio ci entista,
de mduz1r a
trab alh os, é possí vel dizer que, do ponto de vista da discussão epist emoló­ col ocar novas questões que j am ais lhe viriam à cabeça e
as e desafi os
gica feita aqui, su a última obra possui um claro caráter relativista, no senti­ busca de novos horizontes para a superação de problem
do de que ele chama a aten ção para o noss o envolvimento e responsabilida­ internos;
o o u discipli­
de pelos nossos argument os e pela forma com que os construímos, ab ando­ • uma abertura de um corpo teórico, campo epistemológic
nando qua lqu er pretensão de julgamento s seguros que possam ser impostos n ar, para um diálogo com o senso _comum , com a cult �a popul';' e a
a nós pe la s caract erístic a s intrínse cas da rea lidade. D a mesma forma , seu
· ·-0 pu"blica, permitindo discut,r m elho
opmia
r os valores etico-pohtJco s
· · 1· dade sacia · 1.
conceito de "jogos de palavras" pode ser lido como muito semelhante ao que O sust entam , inclusive para aumenta r a sua Ieg1tim
que cham amos a qui como campos teóricos, epistemológicos ou par adig­ do nes­
máticos pa rticulares. É inter essante avaliar essa proposta a partir do itinerário delinea
te trabalho. Uma vis ada inicial menos cuidadosa poden a s ug enr u�a con­
oblemas Jª assma­
Fritz Wallner, filóso fo contemporân eo da U nivers idade de Viena e es­ cepção relativista radical e pós-m oderna, com tod�s os pr
nstrut1vista cons­
pecialista em interdisciplinaridade, apropriando-se da s e gun da fase da obra !ados a qui. Entretanto, a perspectiva wittgenstemi ana_ e co
de Wittgenst ein numa perspectiva construtivista 19, sugere a mont agem de onvencionais de
titui mais uma estratégia de desconstrução das_tentahv as _c
os nteno��n ­
uma estratégi a interdisciplinar atr a vés do dispositivo wittgensteiniano de homogeneização ou imperialismo epistemológicos discutid �
camp o ep1stemol�g1co
substituição do c ontext o de uma argumentação: quando se tira uma corren ­ te, que não respeitam a autonomia relativa de cada
te de argumentos de seu contexto, pode-se ter pura irra cionalidade, mas ou disciplinar ou com o na terminolo
gia utJhzad a por eles, em cada Jogo
a l é superado por
de palavras" ou ,.'construto". Contudo, o relativismo ra dic
e ac e rca de um
Wal hler na medida em que a estratégia visa trazer o debat
forma colaborativa
construto para O cam po ético e político, ampliando-o de
O construtivismo constitui um movimento epistemológico derivado de discussões contem­
porâneas no campo da cibernética, biologia, filosofia da linguagem e psicologia, que visa desco­ c10na1s particula­
lar a epistemologia da ontologia. O pressuposto básico é de que é impossível descrever de forma e heurística para fora de seus limites e seus atores conven
ai am p la e com a
definitiva qualquer realidade ou inferir qualidades intrínsecas ao real, como entidades indepen­ res, faz endo- o dialogar com a comunidade cientí,fica m � ,
dentes à experiência dos observadores, mas apenas descrevê-los enquanto experiência a partir m g ral, evit ndo a sep r ção entr e prax1 s cientifica e prax1� s o ­
socie dade e e a a a
etateon a da e tlca
cial. Isso não implica reivindicar a possibilidade de uma m
do ponto de vista particular da pessoa que o faz, sugerindo uma maneira de fazê-lo e analisando
as operações que geram esta visão da realidade. Para uma visão mais abrangente do assunto, ver
a cad a c, entJst a ou grup o
o trabalho coletivo organizado por Schnitman (1996). No Brasil, as idéias construtivistas de que teria O poder de receitar regras detalhadas par _ _
Wallner acerca da interdisciplinaridade têm sido difundidas através dos trabalhos de Jantsch & s. P r rênci a co a persp ectiv a construt1v1sta, o discur­
de pesquisador e o coe m
to de auton-
so gerado pela operação de estranhamento não possm o estatu
Bianchetti (1995), e mais particulannente por Norberto Etges, professor da Universidade Fede­
ral de Santa Catarina (Etges, 1995).
Eduardo Mourão Vasconcelos
Complexidade e pesquiso interdisciplinar

dade ou verdade para desqualificar ou fazer o "coroamento simbólico" de


um constmto original, já que inteiramente dependente da perspectiva parti­ u!ll sujeit o onipotente, identidade abstrata, em um projeto de, através do
cular do(s) observador(es) que o constrói(oern). submetim ento e dominação totalitária do mundo, da natureza externa, e do
próprio homem e sua subjetividade, provocar sua escravização e regressão
É interessante notar que algumas contribuições teóricas do campo da pela própria repressão de seus impulsos e inclinações.
saúde mental constmídas ou divulgadas no Brasil já utilizam implicitamen­
Adorno também critica, particularmente em A dialética negativa (1966/
te de estratégias semelhantes. Um exemplo é a avaliação crítica da psicaná­ 1997), as formulações de inspiração hegelianas e neo-hegelianas da possibi­
lise e de outras teorias e práticas psicológicas e psiquiátricas e suas relações
lida de de que sujeito e objeto do conhecimento possam se fundir, como na
com a cultura feitas pela antropologia social brasileira, desenvolvida por definição de conhecimento corno autoconhecirnento do Espírito absoluto, ou
autores inspirados principalmente nos trabalhos de Dumont, tais quais os como o proletariado como sujeito e objeto do processo histórico em um fim
desenvolvidos por Da Matta (1983), Duarte (1986), Duarte & Leal (1998), da história em que a classe sujeito se confronta com sua própria essência,
Velho (1987), Figueira (1981), Leibing (1997), Russo (1993), Silveira como vimos anteriormente na posição defendida em "História e consciência
(2000) e Rabelo et ai. (1999). Outro exemplo, desta vez no campo socioló­ de classe", por Zukács. Neste sentido, a totalização se torna uma utopia neces­
gico, está na crítica de Robert Castel (1978) ao psicanalisrno ao buscar o sária, como busca da razão e da gestão social concreta, mas qualquer tentativa
"extra-analítico no analítico", ou seja, seus efeitos sociais, seu lugar no seio de realizá-la, conceituai e praticamente, quando se está imerso no reino da ne­
das ideologias e instituições de controle social, elementos estes que o cessidade, é necessariamente repressiva e totalitária. Nesse sentido, "o todo é
"constmto" psicanalítico e seus componentes teórico-epistemológicos in­ falso", corno formulado emMinima mora/ia (Adorno, 1992). Assim, temos a
ternos desconhecem. É interessante observar que o próprio autor diferencia impossibilidade da dissolução do particular ao universal, onde os termos man­
o psicanalisrno da própria psicanálise: esta constituiria urna prática e teoria têm um princípio de não identidade (a contradição permanente corno princípio
dos efeitos do inconsciente que coloca entre parênteses a questão de suas fi­ criativo): a parte (o indivíduo singular) não pode ser absorvida pelo todo (a to­
nalidades sociopolíticas (op. cit.: 4), para focar sua análise crítica sobre o talidade social), sob pena do recalcamento do particular e do totalitarismo.
psicanalisrno, corno o efeito da abstração e invalidação do sociopolítico Neste sentido, ternos uma visão da dialética totalidade/particularidade/sin­
que aquela opera. gularidade diferente até mesmo da tradição gramsciana mais pluralista,
corno a indicada anteriormente por meio do trabalho de Coutinho.
2. 7.4. A crítica da totalidade abstrata por Adorno e Horkheimer e a Daí, por exemplo, a recusa de redução do freudismo no marxismo e
proposta de dialética negativa de Adorno vice-versa, ou de ambos em uma disciplina totalizante. Adorno critica a ho­
mogeneização dos campos da psicanálise e do marxismo feita pelo freu­
Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheirner (1895-1973) consti­
do-marxismo de Reich, Fromm e Marcuse. Há em sua obra uma recusa a
tuem com Walter Benjamin os principais nomes da primeira geração da
qualquer possibilidade de "síntese utópica" entre civilização e pulsão, de
Escola de Frankfurt e de sua teoria crítica, trabalhando nas áreas da filoso­
cura, normalidade e totalidade, projetando então uma dialética negativa in­
fia, teoria da cultura, estética, música e teoria social. Na obra dos dois auto­
curável corno contradição permanente da vida humana.
res, mas de forma mais enfática em Adorno, ternos a encarnação mais radi­
cal da perspectiva interdisciplinar da escola, de uma imersão inovadora no A proposta de interdisciplinaridade de Adorno sugere urna relação de con­
marxismo ocidental, constituindo certamente o pensamento mais comple­ traponto entre os dois campos de conhecimento, na qual cada um funciona
xo, instigante e polêmico da teoria crítica (Bronner, 1997: 219). corno limite negativo do outro, criticando-se e relativizando-se mutuamente,
evitando qualquer pretensão totalizante, numa sinfonia dissonante, às vezes ca­
No contexto extremo do final da Segunda Guerra, os dois autores de­
cofôn ica, e fundada na recusa de qualquer entrelaçamento rnelódico20.
senvolveram em Dialética do esclarecimento (Adorno e Horkheimer, 1986)
uma crítica sistemática ao esclarecimento desde a Grécia ao racionalismo
iluminista da era moderna, e principalmente à razão instmrnental contem­
porânea corno processo mítico que visa libertar os homens do medo e trans­ Muitos dos trabalhos de Adorno sobre as relações entre psicanálise e marxismo não estão
formá-los em verdadeiros senhores, rebaixando a natureza a mero objeto de disponíveis em português. Para uma apresentação inicial dessa discussão, ver o excelente traba­
lho de sistematização de Rouanet (1987).
Eduardo Mourão Vasconcelos Complexidade e pesquisa interdisciplinar

A avaliação da contribuição de Adorno é complexa21 , e o próprio esta­ 2. 7. 5. As bases interteóricas e interparadigmáticas da psiquiatria
tuto de sua teoria crítica é polêmico e levanta questões. Não há dúvidas de democrática italiana e sua construção por Franco Basaglia
que Adorno adiantou muitas das intuições que mais tarde desaguaram no Franco Basaglia (! 924-1980) constituiu sem dúvida alguma a principal
debate suscitado pelo pós-modernismo e seus golpes às teorias tradicio­
li ança do movimento de reforma psiquiátrica na Itália, denominado de
der
nais e acabadas, os sistemas fixos, as tentativas de diluir o particular den­
Psiquiatria Democrática, e que mais tarde inspirou profundamente movi­
tro do geral e de assumir uma identidade entre o sujeito e seu mundo. men tos similares em todo o mundo. Militante político e membro do Partido
Entretanto, a radicalidade da sua ênfase no negativo corre o risco de ruir Comunista Italiano, Basaglia viveu concretamente a experiência da prisão
as próprias bases de um pensamento crítico, imobilizando seu potencial durante o regime fascista na Segunda Guerra, conhecendo "na pele" o que a
de identificar o projeto com as resistências concretas às diversas formas maioria dos clientes viviam nas instituições psiquiátricas convencionais.
de opressão, quando faltam categorias e mediações para lidar com a posi­ Em sua trajetória de pensamento22 e ao mesmo tempo político-institucio­
tividade das situações possíveis e para traduzir o latente em real, o que nal, como diretor de várias instituições psiquiátricas nas quais foi promo­
leva ao divórcio para com os interesses práticos, das instituições e dos vendo mudanças, Basaglia fez dialogar sua formação marxista (na qual
movimentos sociais reais. Assim, o sujeito crítico, histórico e determina­ Gramsci constituía a principal referência) com as principais experiências e
do corre o risco de se tornar filosófico e abstrato, e a tentativa radical de teorias inovadoras em psiquiatria de seu tempo, e estabeleceu um forte deba­
implodir todos os sistemas pode acabar inviabilizando qualquer condição te interteórico e prático com elas. Exemplos dessa interação se deram inicial­
institucional particular capaz de assegurar sua existência, de justificar o mente com a fenomenologia existencial, com os movimentos de psicoterapia
status da teoria crítica, de determinar o que exige transformações históri­ institucional francesa (tendo corno autor principal Tosquelles) e com a co­
cas e por quê, e de manter um vínculo entre teoria e prática. munidade terapêutica inglesa (Maxwell Jones). Nos anos sessenta, Basaglia
De qualquer forma, o debate permanece, as intenções originais da teo­ tomou contato com os livros clássicos de Goffrnan (1961) e Foucault (1961),
ria crítica e as forças sociais que ainda sustentam essas intenções conti­ que se tornaram referências marcantes e decisivas em seus esforços de siste­
matização da crítica e desconstrução do saber e das instituições psiquiátricas.
nuam vivas, apesar das dificuldades históricas atuais, produzindo novas ge­
Além disso, sua aproximação com a fenomenologia existencial no campo
rações de continuadores, capazes de reinvesti-la de um interesse real e prá­
psiquiátrico (especialmente Binswanger) e no campo filosófico e sócio-his­
tico pelas questões públicas e de geração da solidariedade na sociedade
tórico (particularmente Sartre) permitiram importantes combinações com
concreta de hoje.
seu pensamento de inspiração marcadamente gramsciana. Um primeiro exem­
Entretanto, do ponto de vista das estratégias da interdisciplinaridade, a plo disso está na análise das funções dos profissionais e técnicos na cons­
intuição básica da teoria crítica permanece: de como minar os sistemas e trução de ideologias e na prática dos "crimes da paz", ou seja, da violência
determinismos fechados, unidimensionais, para poder buscar as contribui­ exercida sobre pacientes com o pretexto de seu tratamento e recuperação,
ções de pensadores preocupados com questões psicológicas, antropológi­ feita em seu trabalho Crimini di pace (Basaglia, 1981-2).
cas, artísticas e culturais, sem produzir uma linearidade epistemológica e Entretanto, esta aproximação com a fenomenologia existencial tam­
teórica homogeneizante, mas sem abandonar o debate ético e político, e co­ bém produziu um movimento téorico fundamental que tem importantes
locando a negatividade, o paradoxo, o novo e a incerteza como forças vivas conseqüências epistemológicas nem sempre percebidas em toda a sua arn-
da crítica e do pensamento criativo.
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Alguns textos de Basaglia e seus colegas foram traduzidos para o português (Basaglia,
1979 e 1985; Rotelli, 1990; Delgado, 1991), além de obras de comentadores e divulgadores
Para aqueles que quiserem se aprofundar no assunto, ver os trabalhos em inglês de bras ileiros (Amarante, 1995 e 1996; Barros, l 994). No momento em que escrevo este trabalho,
Pensky (1997) e Jarvis (1998). Em português, além das apresentações mais introdutórias de em 2002, Amarante está organizando um volume com a tradução e publicação de alguns dos
Jirnenez ( 1977), Freitag ( 1988), Zuin et ai. (2000) e Rouanet (1987), ver Duarte (1992 e trabalhos mais relevantes de Basaglia, a ser lançado em breve no Brasil. Para os leitores capa­
1997), Jameson (1996) e os trabalhos mais críticos de Bronner (1994) e da coletânea organi­ zes de ler italiano, o melhor é ter acesso aos dois voll.lmes de trabalhos completos do autor (Ba­
zada por Paiva (1996). saglia, 1981-2).
Eduardo Mourão Vasconcelos
Complexidade e pesquisa interdisciplinar

plitude. Em primeiro lugar, a sua análise da "objetivação do homem em sín­


rap êutico desarmado e aberto para o novo, como constituintes fundamen­
dromes operada pela psiquiatria positivista" (em Un problema di psichia­ tais do encontro entre seres humanos singulares, como o que acontece no
tria istituzionale, Basaglia, 1981: 309) requereu uma crítica epistemológica campo da clínica. Essa ruptura não implica em uma impossibilidade da crí­
do saber psiquiátrico, por colocar o homem real entre parênteses para apre­ tica sócio-histórica na análise dos fenômenos da clínica ( e a obra de Basa­
ender e classificar as características e sintomas da doença. Nesse movimen­ glia é testemunha viva disso) mas apenas que essa crítica tem limites e que
to, Basaglia buscou inspiração no pensamento fenomenológico e sua ênfa­ 0 campo não pode ser completamente obJel!vado por qualquer tipo de co­
se no conhecimento enquanto construção viva de um sujeito/observador, nhecimento alheio às suas particularidades.
bem como de sua cultura e subjetividade. Assim, em Basaglia, a doença men­
tal não é propriamente negada, como faz em geral a antipsiquiatria, mas é Do ponto de vista_ comparativo, acredito que seja possível inclusive tra­
vista como compondo um "duplo" que se sobrepõe à relação da cultura e dos çar paralelos entre a dialética negativa de Adorno, afirmando a impossibili­
profissionais com o louco, homogeneizando, objetivando e "serializando" dade de redução do particular no universal e vice-versa, como vimos acima,
(no sentido sartriano da Crítica à razão dialética (Sartre, 1960)), associan­ e a e stratégia epistemológica de Basaglia.
do-o à periculosidade e irrecuperabilidade, e lhe negando uma história, sub­ De qualquer forma, e para concluir esta seção, o construto basagliano
jetividade e identidade próprias como ser humano. Para desconstruir esse du­ constitui mais um exemplo significativo de uma teoria crítica que opera
plo, Basaglia se apropria do dispositivo de époche da fenomenologia de Hus­ uma interação não linear entre campos paradigmáticos diferentes. Esse ca­
serl (ou seja, de sua operação de colocar entre parênteses o fenômeno e suas ráter complexo de seu pensamento é sem dúvida um dos elementos-chave
incrustações humanas e culturais), colocando então entre parêntesis a doen­ que ainda o toma atual e vivo em um movimento social no presente, já de
ça e o modo como foi classificada, para que possamos entrar em contato dimensões internacionais, como é o da reforma psiqniátrica.
com o doente, em toda a sua humanidade e singularidade.
Poderiamas nos perguntar hoje se isso é efetivamente possível ou se o 2. 7. 6. O método de articulação circular entre diferentes saberes de
pensamento fenomenológico oferece a melhor opção para esta operaçs.o Edgar Morin
crítica, ou ainda se isso poderia levar a uma passagem da ideologia a uma Além de desenvolver uma sistematização acerca do paradigma da sim­
i! nova ciência, corno chegou a esboçar Basaglia em L 'ideologia dei cmpo
i; plificação e da complexidade, já expostos cm seção anterior neste trabalho,
como espressività nevrotica - Le nevrose neurasteniche, de 1966 (Basa­
,,,1 glia, 1983: 342-375), com uma certa marca althusseriana. Entretanto, o que
Morin também procurou desenvolver as premissas e os primeiros movi­
1,1 mentos de seu método de articulação circular contínua entre os campos de
!i é mais importante nesse processo, e que nem sempre é percebido em toda a saber. O primeiro esboço desse trabalho encontra-se na sua obra O paradig­
sua amplitude, foi a passagem epistemológica e paradigmática operada por ma perdido, de 1973, e é continuado na série de volumes intitulado O méto­
Basaglia, com as ferramentas teóricas que tinha à mão na época, para se do, cujo primeiro tomo foi lançado na França em 1977, e em edição em por­
acercar da singularidade representada pelos seres humanos particulares e tuguês de Portugal, em 1997 (Morin, 1977 et al.).
das especifidades do campo da clínica23 . Em outras palavras,
te não só por razões de desconstrução crítica dos saberes convencionais no O método desenvolvido por Morin, como não poderia deixar de ser, é
campo sócio-histórico e da medicina, Basaglia parece intuir a importância complexo e denso. Não se trata de estratégias particulares voltadas para cam­
dos limites do conhecimento racional, do esforço necessário para controle pos disciplinares específicos, como em algumas daquelas discutidas anteri­
da normatividade, da interação complexa entre sujeito e objeto do conheci­ ormente, mas uma tentativa mais abrangente e "enciclopédica" de articular
os vários tipos de conhecimento das ciências físicas, das ciências biológicas e
mento (que, na verdade, constitui um outro sujeito), na busca de um ato te-
dos saberes antropossociológicos. Entretanto, ele mesmo nos adverte de que
não se trata de cair na velha "mania totalitária dos grandes sistemas unitários,
,1
1

Temos que reconhecer que esta estratégia de Basaglia é similar àquela já esboçada metodo­
que encerram o real num grande espartilho de ordem e coerência (deixam-no
'i
i!
logicamente em Sartre, em "Questão de método", publicado originahnente como introdução à evidentemente escapar). Sei o que significa a fórmula de Adorno 'a totalida­
sua Critica da razão dialética, de 1960, como tentativa de buscar uma integração entre o marxis­ de é a não verdade': todo sistema que procura encerrar o mundo na sua lógica
mo e o existencialismo, e que constituiu uma referência importante para o primeiro. é uma racionalização demente" (Morin, 1977/1997: 22).
Eduardo Mourão Vasconcelos
Complexidade e pesquisa interdisciplinar

Apesar d pretender um método no sentido cartesiano, as premissas


_:' cabilidade total entre os três impérios. Passa-se então, no anel epistemoló­
monmanas sao diferentes, quase como um "antimétodo", dado que toma gico, a traçar um processo de rotação, pelo qual se busca "fisicar nossas
como ponto de partida a negação das falsas clarezas, do claro e distinto (em noções, depois ressocializá-las, depois refisicalizá-las, depois ressociali­
nome do obscuro e do incerto), e do conhecimento seguro (ao visar a crítica zá-las, e assim por diante até o infinito. [... ] A amplitude desta tarefa é as­
da segurança). Trata-se para Morin de uma "nova consciência da ignorân­ sustadora, mas é menos assustadora do que o vazio bárbaro da organização
cia, da incerteza e da confusão. Aquilo que tomamos consciência não foi a do nosso saber que se julga o mais avançado: o saber científico" (Morin,
ignorância humana em geral, foi a ignorância escondida e dissimulada a 1977/1997: 263-4).
ignorância quase nuclear, no seio do nosso conhecimento considerado co�o
o mais certo de todos: o conhecimento científico" (op. cit.: 19). Para ele A obra de Morin é admiravelmente extensa e complexa, revelando ine­
essa i�norância está exatamente no campo da práxis social, no qual as ciên� gavelmente um espírito criativo, instigante, sensível, compassivo com as
cias sao mcapaze� de conceber em termos científicos e controlar O seu po­ grandes questões planetárias, às vezes até mesmo marginal e dificil de ser
der de mampulaçao e a sua manipulação pelos poderes constituídos. Assim avaliada de forma sistemática, e tem constituído uma semente inspiradora
se;1 méto�o nasce justamente dessa crise da ciência. Mais do que isso, se� de vários núcleos de pesquisa e de pensadores em vários países, principal­
metodo nao parte apenas da refutação dos saberes constituídos, e que "o mente de língua latina. No contexto anglo-saxónico, seu pensamento entra
que é vital hoje não é apenas aprender, não é apenas reaprender, não é ape­ em franca oposição com uma filosofia da ciência hegemonicamente neopo­
nas desaprender, mas sim reorganizar o nosso sistema mental para reapren­ sitiv ista e defensora de uma unificação das ciências sob um grupo único de
der a aprender" (op. cit.: 24). Isso conecta o método exatamente com as ca­ princípios24, dificultando sua difusão.
racterísticas e princípios do paradigma da complexidade, já apresentados Do ponto de vista do itinerário traçado aqui, creio ser possível levantar
em seção anterior. duas anotações críticas mais fundamentais que não invalidam de forma al­
A '.11etodologia proposta busca então rearticular os três impérios (fisica, guma suas importantes contribuições. A primeira diz respeito ao distancia­
. mento de Morin, principalmente em seus últimos trabalhos, da dimensão
b10logia e antropossociologia), cada um hermético em relação aos outros
pela fragmentação disciplinar, substituindo as já conhecidas teorizações ou política e histórica mais concreta. Embora sua conceptualização de para­
"circulações clandestinas" entre os três reinos, necessariamente reducionis­ digma aborde não só aspectos conceituais, lógicos e míticos, incluindo
tas, por uma "circulação reflexiva", através de um anel epistemológico de como esses componentes estão articulados com as determinações econômi­
duas entradas: cas, políticas, sociais e culturais, como vimos acima, sua ênfase tem sido
invariavelmente sobre os primeiros componentes da noção, relegando a
Quadro 1: A "Circulação Reflexiva" de Edgar Morin luta política e ideológica para um plano extremamente secundário. A pró­
pria difusão do pensamento complexo depende da crítica imanente às for­


ças sociais dominantes, mais interessadas na manutenção das formas de
physis -----1� biologia ---1111>► antropossociologia pensar hegemónicas do paradigma da simplicidade. Um exemplo concreto
t+------<llf---
t ---- disso está no chamado complexo médico-industrial, ou seja, na indústria
farmacêutica, de equipamentos médicos e na medicina curativa mercantili­
zada, que se sustentam em uma abordagem predominantemente médica,
positivista, somática e mecanicista. Assim, não é aleatório como seu pensa­
mento está sendo apropriado muito mais no campo da discussão epistemo­
A partir daí, busca-se uma complexa reavaliação das representações
, . _ lógica, da pesquisa científica e da educação, do que pelos movimentos so­
class1cas e d1sJunlivas de cada um dos impérios levando-se em conta os úl­
ciais vivos. É importante reconhecer que existe uma interlocução mais ela-
timos descobrimentos das diversas ciências, buscando mostrar que há tra­
ços de vida e orgamzação no mundo fisico, ou que o mundo do espírito hu­
mano depende de uma base química e que, portanto, não há uma incomuni-
,- Para uma visão introdutória das implicaçõés do pensamento de Morin, de uma perspectiva
anglofônica, ver o trabalho de Kofman (l 996).
Complexidade e pesquiso interdisciplinar
Eduardo Mourão Vasconcelos

tar diretamente da interdisciplinaridade, suas indicações acerca do que cha­


ra de Morin com o movimento feminista e ecológico, mas não com os de­ rna de teoria crítica pós-moderna constituem uma interessante abordagem
mais movimentos centrados nas outras dimensões de opressão social, étni­ das mudanças paradigmáticas nas ciências contemporâneas, com fortes in­
ca/racial e discriminação.
sights sobre o tema da complexidade, seus vínculos com as lutas emancipa­
Em segundo lugar, cabe também ressaltar a sua categorização dos fenô­ tórias e o desafio das práticas interparadigmáticas.
menos do inconsciente dentro do conjunto dos saberes e em seu método de Apesar de ser dificil resumir sua démarche de forma tão sucinta, Santos
articulação circular. Morin foi fortemente influenciado no início de sua for­ rg umenta que a partir de meados do século XIX, com a convergência entre
a
mação pelo pensamento existencialista,particularmente por Ser e tempo de 0 paradigma da modernidade e o capitalismo, a tensão entre energias eman­
Heidegger, que lhe imprimiu um interesse profundo pela temática da morte.
cipatórias e energias de regulação foi marcada por um longo processo de
Seus estudos sobre o assunto e seus efeitos míticos (Morin, 1951/1997), ao degradação das primeiras em favor das segundas, por meio de uma crescen­
mesmo tempo em que abriram uma perspectiva interessante de debate so­ te racionalização da vida coletiva e individual, fazendo com que o paradig­
bre a impossibilidade do hegelianismo e do marxismo de abordar o fenô­ ma da modernidade fosse perdendo o seu potencial de renovação e entran­
meno de forma adequada, direcionaram-no na proposição da unidade de to­ do em crise acentuada nesta virada do milênio. Assim, vivemos em um pro­
das as ciências humanas sobre o guarda-chuva da antropologia. Entretanto, cesso de "transição paradigmática" de longo prazo, em que podemos visua­
essa influência existencialista certamente distanciou-o da busca de uma es­ lizar apenas os indícios do novo paradigma, que ocorre tanto no nível socie­
pecificidade epistemológica própria para os fenômenos inconscientes, como tal quanto epistemológico. No primeiro nível, pode-se vislumbrar apenas
o fizeram Freud e seus seguidores principalmente no contexto europeu com traços de uma .crítica do paradigma sustentado na sociedade patriarcal, ca­
sua primazia sobre o lado pulsional e seu caráter disruptivo em relação à pitalista, marcada pelo consumismo individualizado e mercadorizado, por
cultura, numa direção inversa à da psicologia de ego norte-americana, que identidades-fortaleza, por formas autoritárias de democracia e por um de­
privilegiou a possibilidade adaptativa real do indivíduo ao meio social, senvolvimento global desigual e excludente. Entretanto, para Santos, dei­
inclusive como critério de saúde mental. Qualquer possibilidade de críti­ xou de ser possível conceber estratégias emancipatórias genuínas no âmbi­
ca desta perspectiva ajustadora e pragmática dos saberes "psi", exemplifi­ to do paradigma moderno, inclusive de sua teoria crítica,já que se limitam a
cada pela psicanálise norte-americana, exige necessariamente o reconhe­ reiterar estratégias regulatórias do mesmo tipo. Assim, propõe que a ultra­
cimento das descontinuidades e especificidades dos processos pulsionais passagem desse impasse só pode ser feita a partir de uma crítica radical dos
do inconsciente e da psicanálise enquanto saber, como o faz, por exemplo, modelos regulatórios e emancipatórios do atual paradigma, com o recurso
Adorno (Jacoby, 1997). da "imaginação utópica", para sermos capazes de desenhar os primeiros
traços de horizontes emancipatórios novos do que se pode vislumbrar dos
2. 7. 7. O atual processo de transição paradigmática em Souza Santos paradigmas emergentes.
Boaventura de Souza Santos (1940- ) constitui hoje, sem dúvida, o Para ele, este momento de desconstrução e desfamiliarização em relação
principal expoente da sociologia crítica portuguesa,já contando com ampla ao conhecido não tem um estatuto vanguardista permanente, acima ela expe­
projeção internacional, sendo professor da Universidade de Coimbra e pro­ riência comum da população. Santos indica inclusive que uma desconstrução
fessor visitante de várias universidades importantes da Europa e Estados radical, como faz o pós-modernismo, desconstrói e despolitiza irresponsa­
Unidos. Seus trabalhos têm tido ampla difusão no Brasil, além de sua pre­ velmente também a própria possibilidade de resistência e alternativa (Santos,
sença constante em conferências e seminários, constituindo um dos princi­ 2000: 32-3). Assim, essa desconstrução é entendida como um momento ele
pais "gurus" dos fóruns sociais mundiais realizados em Porto Alegre no iní­ suspensão necessário para criar uma nova familiaridade, um novo senso co­
cio deste milênio. Sua discussão no campo da epistemologia das ciências mum emancipatório, na busca de um "conhecimento prudente para uma vida
contemporâneas está contemplada em vários livros (Santos, 1989, 1995 e decente" (idem: 15-17). Se a ciência moderna se assenta em uma ruptura
2000), em um processo de amadurecimento contínuo, já há um razoável ca­ epistemológica com o senso comum mistificado e conservador, o novo para­
minho de sistematização em um destes últimos trabalhos (Santos, 2000), digma realiza uma segunda ruptura, transformando o conhecimento científi-
que constitui o primeiro de uma série de quatro volumes. Apesar de não tra-
Eduardo Mourão Vasconcelos Complexidade e pesquisa interdisciplinar

co em um novo senso comum emancipatório, acentuando os componentes dialógico, ou seja, de reconhecimento, conhecimento e diálogo com o
utópicos e libertadores do senso comum convencional. auditório que se pretende influenciar, não entendendo-o como algo
fixo, mas em permanente mudança, como um processo social interati­
1

Santos parte de uma compreensão das lutas sociais hoje muito seme­
vo, de construção do senso comum emancipatório nas diferentes co­
lhante às démarches já indicadas aqui, de que não há um princípio único de
munidades interpretativas e redes onde se insere.
dominação, resistência e transformação social, havendo na verdade várias
1

!: e) Construção social e prática da rebeldia, de subjetividades inconfor­


formas de opressão, muitas das quais negligenciadas pela teoria crítica mo­
derna. Não é mais possível reunir todas as resistências e suas agências sob a mistas e capazes de indignação, e de campos de experimentação so­
alçada de uma mesma teoria comum e, assim, necessitamos fortemente de cial local onde seja possível resistir e promover com êxito alternati­
uma teoria da tradução que torne as diferentes lutas mutuamente inteligí­ vas que tornem possível uma vida digna e decente. Nesse sentido, o
veis, permitindo aos atores coletivos "conversar" sobre as opressões a que novo paradigma não pode ser apenas científico, mas também neces­
resistem e sobre os seus ideais e utopias (idem: 27). sariamente social.
Para ele, a industrialização moderna não trouxe nem progresso nem de­ d) Valorização de dimensões que resistiram à assimilação completa na
senvolvimento, se assentando em uma concepção retrógrada da natureza, sociedade atual e se mantiveram relativamente abertas, como as:
incapaz de perceber a degradação ambiental e da sociedade que a sustenta, • da comunidade, com suas características de solidariedade e partici­
gerando um conhecimento colonialista baseado no princípio de ordem so­ pação, e de resistência à especialização técnico-científica;
bre as coisas, que reduz o outro a objeto, sem reconhecê-lo como sujeito.
• da racionalidade estético-expressiva, contra a fria e impessoal racio­
Um conhecimento alternativo seria solidário, capaz de reconhecer o nalidade cognitivo-instrumental e performativo-utilitária da ciência
outro como sujeito e de cair nas soluções fáceis de um pessimismo reacio­ moderna, valorizando-se então os seus componentes de prazer, de
nário ou de um voluntarismo inconseqüente, partindo das próprias repre­ caráter lúdico, de paixão, emoção, de autoria e de artefatualidade
sentações incompletas e inacabadas de nossa modernidade, implicando nos discursiva (ou seja, o fato de que as obras de arte têm que ser criadas
seguintes elementos: ou construídas intencionalmente, levando em conta a transitorieda­
a) Passagem do monoculturalismo para o multiculturalismo, ou seja, de de de seu poder estético e retórico).
uma postura que assuma o desafio de se comunicar com culturas redu­ e) Valorização das novas discussões dentro da própria ciência moderna so­
zidas ao silêncio. Em outras palavras, as diferenças (diversas formas bre o caos, como campo de saber e não de ignorância, com suas idéias de
de ver o mundo) se tornaram impronunciáveis ou são obrigadas a se não linearidade e complexidade, que nos conduz à noção de um conheci­
expressar apenas na linguagem dominante. A diferença sem inteligibi­ mento prudente, que indica limites à nossa capacidade de previsão e valo­
lidade conduz à incomensurabilidade e, portanto, à indiferença. Daí a riza a análise das conseqüências negativas da ciência e da tecnologia.
necessidade da teoria da tradução acima referida, não como uma gran­
de teoria, mas como suporte epistemológico às práticas emancipató­ t) Distanciamento da dicotomia sujeito-objeto da ciência moderna e sua
rias, todas elas finitas e incompletas, e apenas sustentáveis quando li­ consagração do sujeito epistêmico, mas negação do sujeito empírico e
gadas em rede. encarnado. Nesse sentido, todo conhecimento emancipatório deve ser
também autoconhecimcnto. Os pressupostos subjetivos, valorativos e
b) Superação da crença moderna de que o conhecimento é objetivo e vá­ de crença não estão antes nem depois da explicação científica, mas são
lido independentemente das condições que o tornaram possível e dos parte integrante dela. Assim, o caráter autobiográfico e subjetivo do
valores, com base em uma dicotomia estrutura-ação, gerando um co­ conhecimento emancipatório é plenamente assumido, nos unindo pes­
nhecimento aparentemente descontextualizado e implicando no atual soalmente ao que estudamos.
padrão dominante de profissionalização. Santos reafirma que o para­
digma emergente assume mais explicitamente seu fundamento na re­ g) Superação da distinção entre nature_za c cultura/sociedade, na medida • 1

tórica, já presente na ciência moderna, mas que acentua o seu caráter em que todas as ciências naturais vão se reconhecendo como ciências
Eduardo Mourão Vasconcelos
Complexidade e pesquisa interdisciplinar

sociais' inclusive como formas de conhecimento intrinsecamente oci-


grande em relação à sua base concreta na dinâ�ica �ocietária e h'.stórica,
dentais, capitalistas e sexistas. _
dando nítida sensação de que a dose de 1magmaçao utop1ca e de retonca ul­
h) Ultrapassagem do caráter antropocêntrico e individualista da ética li­ trapassa os limites e as regras de construção analítica em história e em teo­
beral, centrada em uma seqüência linear (um sujeito, uma ação, uma ria social crítica, beirando então ao idealismo. Um exemplo disso está na
conseqüência), voltada para o tempo presente e imediato, e baseada no proposta da segunda ruptura epistemológica, de retorno da ciência ao senso
princípio de que só tem direitos quem pode assumir os deveres corres­ comum, sem atentar para os aspectos imaginários de qualquer senso co­
pondentes. Santos indica um novo princípio de responsabilidade, mais mum emancipatório e seus efeitos de redução da complexidade e diferen­
coletivo e centrado na solidariedade com a natureza e o futuro, que tem ça25, tema que será retomado mais adiante. E, finalmente, sua sistematiza­
direitos, mas sem poder ter deveres. ç ão das estratégias políticas nacionais e globais necessárias à sustentação
É crucial reconhecer o grande esforço e a riqueza dos diversos in­ dos projetos emancipatórios me parece extremamente pouco desenvolvida,
sights de Santos neste minucioso trabalho de ir mapeando os indícios do tendendo a um processo muito fragmentado de experimentações-piloto e de
novo paradigma. Entretanto, não é possível deixar de assinalar algumas movimentos sociais em rede, sem apontar para a necessidade, mesmo que
fragilidades, sem retirar os méritos indicados. Em primeiro lugar, as re­ futura, de estratégias teóricas, políticas e institucionais mais robustas e ca­
ferências às mudanças nos diferentes campos científicos em sua obra pazes de dar sustentação a uma nova ordem internacional mais justa e in­
são apenas ilustrativas de tendências projetadas como gerais da ciência clusiva, mesmo reconhecendo toda a sua complexidade.
moderna e pós-moderna. Considero justo perguntar se ainda podemos
falar da ciência e de seus paradigmas nos diversos períodos históricos
2.8. Sugestões de alguns princípios norteadores para práticas
apenas no singular, sem reconhecer campos epistemológicos diferen­
interdisciplinares e interparadigmáticas a partir da noção de
tes, com autonomia relativa e regras próprias, como já amplamente dis­
complexidade
cutido neste trabalho. A sensação que se tem de Santos é de que a todo
momento está falando do campo das ciências sociais e que tende a ge­ Após essa longa revisão de diferentes e complexas estratégias para a
neralizar suas características para todos os campos disciplinares e pa­ montagem de práticas interdisciplinares, acredito que não poderíamos con­
radigmáticos. Nessa direção, o risco de imperialismo epistemológico é cluir este capítulo sem apresentar de forma menos fragmentada o que em
muito grande. Um segundo aspecto crítico diz respeito à viabilidade de minha visão acredito constituírem princípios básicos para o desenvolvi­
"tradução" entre diferentes paradigmas e campos de saber, na medida mento de práticas interdisciplinares e interparadigmáticas na produção de
eni que procura quebrar a indiferença entre saberes acentuando de for­ conhecimentos em ciências humanas e sociais, levando em conta pelo
ma otimista esta possibilidade, posição que também indiquei de forma menos parte das implicações das contribuições sistematizadas acima.
a-crítica em trabalho anterior (Vasconcelos, 2000). Atualmente, penso Gostaria de fazê-lo indicando alguns princípios epistemológicos e opera­
que uma análise mais cuidadosa dos argumentos de Kuhn referentes à tivos mais gerais, considerando dois tipos de ambientes institucionais: de
incomensurabilidade desautoriza tal otimismo. No presente trabalho, um lado, aqueles de caráter mais universalista, como as universidades; e
procuro defender a possibilidade de tradução apenas para uma lingua­ de outro, aqueles nos quais projetos particulares de pesquisa e seus auto­
gem mais acessível dentro do mesmo paradigma ou para a linguagem do res devem assumir mais explicitamente um projeto ético-político de es­
senso comum, como na estratégia inspirada em Wittgenstein, e de forma querda, antiopressivo, de caráter popular-democrático, com vocação he­
mais sistemática, a estratégia de "comparação contextualizada", como gemónica, como em partidos políticos, ongs, movimentos sociais, ou na
será indicado mais adiante. gestão de políticas públicas.
Outro aspecto polêmico do pensamento de Santos é de natureza teóri­
co-metodológica: às vezes, a análise desenvolvida visando a identificação
dos indícios do novo paradigma é construída com uma autonomia muito
Sobre esse tema, ver os textos de Enriquez ria coletânea de Levy et ai. (1994) e de Kaes em
Kaes et ai. (1991).
Eduardo Mourão Vasconcelos Complexidade e pesquisa interdisciplinar

2.8.1. Princípios norteadores para práticas interdisciplinares e monias, mantendo-se sempre os valores da abertura, tolerância e plura­
interparadigmáticas em instituições de caráter universalista, como as lismo crítico (com explicitação das diferenças, contra o ecletismo ingê­
universidades e institutos públicos de pesquisa26 nuo ou simplificador).
a) Princípio das práticas científicas como propositoras de perspectivas de b ) Princípio de que a valorização da liberdade e da imaginação criadora
visão apenas e sempre aproximativas do real, a partir de uma crítica das como bases do multiperspectivismo implica necessariamente em rea­
posições realistas de unidade sujeito-objeto e de verdade como coinci­ firmar a necessidade dos mecanismos de controle lógico-relacionais
dência ao real (ver a esse respeito as posições de Adorno e Santos des­ no enquadramento do objeto, na abordagem teórica, na consistência
critas acima). A produção do conbecimento se efetiva a partir das narra­ interna do desenbo metodológico, bem como na explicitação das im­
tivas, contribuições e perspectivas particulares de cada teoria, paradig­ plicações subjetivas, éticas e sociais da abordagem proposta, como
ma ou linba de investigação, que se constituem internamente e intera­ busca de aproximação crítica à realidade social concreta: a defesa da
gem através de mecanismos regulatórios lógico-cognitivos e intersubje­ multidimensionalidade dos fenômenos complexos e do multiperspec­
tivos, em suas tentativas de apreensão das relações sociais existentes na tivismo, como exposto no tópico anterior, implica em um risco enor­
realidade social. Isso se dá através do suporte na tradição crítica (exi­ me de se cair na dispersão, em um processo sem fim de inclusão de no­
gências de coerência interna e consistência com as tradições na área) e vos elementos intervenientes, de novas perspectivas de olhar e em um
na comunidade crítica (julgamento dos pares)27 , bem como por meio do relativismo ético-político sem limites. Assim, essa tendência deve ser
crivo da historicização, levando em conta as especificidades dos cam­ compensada, em qualquer projeto concreto de pesquisa ou de constru­
pos epistemológicos, paradi gmáticos, teóricos e disciplinares particula­ ção de conbecimento por meio de uma definição clara do objeto, uma
res, que estabelecem espaços e diretrizes de validade próprios, sem explicitação sistemática dos enquadres epistemológicos, teóricos e pa­
pretensão de generalização linear ou invalidação dos outros espaços, radigmáticos incluídos na análise, das múltiplas decisões envolvidas
evitando assim o risco de imperialismo epistemológico. Dessa forma, na metodologia proposta para a investigação, bem como das implica­
os diversos tipos de prática científica, dentro de seus paradigmas pró­ ções subjetivas, éticas, políticas e sociais da pesquisa, que permitam à
prios, podem ser entendidos como empreendimentos baseados em re­ comunidade científica e acadêmica, e à sociedade em geral, acompa­
gras racionais e relacionais particulares. Isso é que permite a estratégia nbar e avaliar o processo de construção dessa perspectiva particular de
que chamaremos de "comparação contextualizada", que se diferencia conhecimento. Nessa direção, a segunda parte deste livro visa siste­
dos postulados popperianos da corroboração e refutabilidade, na me­ matizar esses diversos elementos necessários ao processo de explicita­
dida em que os resultados só podem ser comparados se se leva em con­ ção da construção metodológica.
ta a perspectiva paradigmática, teórica e o contexto histórico e subjeti­ c) Princípio da contradição, de não identidade ou redutibilidade de um
vo no qual este conbecimento é produzido. Há também aqui um dis­ campo epistemológico ao outro, pela negação das diversas estratégias
tanciamento de relativismos radicais pós-modernos, como o de Feye­ de homogeneização e imperialismo epistemológicos. Ainda que sabe­
rabend, na medida em que se reafirma a mediação de consensos dinâmi­ res interparadigmáticos possam constituir elementos de crítica e de
cos (Kuhn), na apreensão crítica da realidade humana e social, mesmo colocação de limites ao outro e vice-versa, reafirma-se aqui o reconbe­
que em campos particulares, e da permanente avaliação ético-política cimento da autonomia relativa dos saberes e campos paradigmáticos
da práxis dos cientistas, mas com a possibilidade de construção de hege- como base da criatividade, assim sugerido por Adorno.
d) Princípio da tensão e contradição permanentes entre, de um lado, a
práxis social direta, o discurso político e do senso comum (e, portan­
Nesta primeira seção, parte significativa dos princípios é de minha autoria, mas é importan­ to, também da cultura popular); e do outro, a práxis e o discurso cien­
te reconhecer que particularmente os últimos foram adaptados de algumas das propostas feitas
por Wallner (1995).
tífico, teórico e acadêmico, com pretensões universalistas, principal­
mente se baseado no paradigma da complexidade. Se juntamente
, Para isso, a proposta defendida aqui sugere retomar os critérios propostos por Kuhn e indi­
cados neste capítulo, em sua perspectiva relativista moderada.
com a sociologia do conbecimento, negamos a possibilidade de neu-
Eduardo Mourão Vasconcelos complexidade e pesquisa interdisciplinar

práxis social direta, o discurso político, a cultura popular e o senso


tralidade científica ou acadêmica, reconhecemos também aqui a ne­
comum, com seus imaginários sociais, que tendem a uma simplifica­
cessidade de se manter a tensão permanente com o realismo e a valo­
ção e a encobrir tais contradições e paradoxos para gerarem consenso
rização da experiência concreta como fonte de conhecimento, como
político e mobilização em suas interpelações.
também a necessidade dos mecanismos regulatórios lógico-cogniti­
vos e intersubjetivos no processo de conhecimento. Esta última im­ e) Princípio da autonomia institucional acadêmico-científica e de au­
plica em uma autonomia relativa do ambiente acadêmico e científico to-organização do trabalho teórico e científico, mas com explicitação
para o desvelamento do real de forma mais independente possível mediada de seus valores éticos e de sua práxis social. Este princípio
das pressões sociais imediatas. Assim, entende-se que o reconheci­ tem como pressuposto a impossibilidade de uma fundamentação últi­
mento da necessidade e da legitimidade de processos em que a cria­ ma das ciências a partir de um meta-saber que legitimasse a imposição
ção de sensos comuns emancipatórios e as demandas imediatas da das características da organização aos cientistas e profissionais, bem
práxis social possam interpelar utopias, discursos políticos e imagi­ como de uma ética "de cima" fundamentada em uma metateoria. Estes
i 1! nários sociais mobilizadores, mas é preciso levar em conta que eles princípios, somados à autonomia relativa da prática teórica e científica
1
tendem claramente à redução da complexidade e da diferenciação in­ indicada no tópico anterior, objetivando um distanciamento das exi­
terna dos fenômenos. Dessa forma, é necessário reafirmar que o dis­ gências mais imediatistas do discurso e da ação política direta, exigem
curso com pretensões científicas, teóricas e/ou acadêmi�as e de cará­ a autonomia institucional da universidade e das organizações e grupos
ter universalista, na ótica do pensamento da complexidade, deve ter de pesquisa. Assim, os pesquisadores e demais pessoas participantes
como princípio o pleno reconhecimento das contradições, dos ele­ devem determinar quem trabalha com quem, o objeto de sua pesquisa
mentos não diretamente visíveis aos olhos do senso comum e das di­ e os seus métodos. Entretanto, isso não significa legitimar qualquer
ferenças internas dos fenômenos e processos naturais, humanos e so­ pretensão de neutralidade científica ou acadêmica, nem exime os gru­
ciais, mesmo que isso represente dificuldades na geração de consen­ pos de pesquisa da necessidade de explicitação e do debate aberto,
sos sociais imediatos, ainda que emancipatórios. Dessa maneira, re­ através de mediações institucionais, incluindo com a sociedade mais
conhece-se que há sempre tensões, contradições e paradoxos ativos, ampla e com organizações e grupos populares dos princípios e proble­
permanentes e inerentes aos processos históricos, nos quais as op­ mas éticos da pesquisa e prática científica e profissional, bem como
ções concretas e cotidianas assumidas pelos atores na práxis social das suas relações entre o saber científico e a práxis histórica (vínculos
direta representam soluções temporárias entre interesses, relações de com interesses econômicos e políticos, prioridades e implicações éti­
poder e entre tendências históricas e políticas contraditórias e para­ cas, sociopolíticas e ambientais). Para isso, as estratégias identificadas
doxais 28 , implicando sempre na exigência de permanente revisão críti­ acima de estranhamento e de tradução e decodificação da linguagem e
ca dessas posições, no sentido da reinvenção criativa da história huma­ dos construtos especializados (Wallner & Santos), bem como de uma
na e da democracia, e de adequação às novas descobertas científicas e nova noção de responsabilidade e de criação de um novo senso co­
acadêmicas. Conseqüentemente, se a proposta de prática interdiscipli­ mum emancipatório a partir do reconhecimento do caráter retórico di­
nar e interparadigmática implica em uma exigência de interação entre alógico do conhecimento (Santos), mesmo que em tensão e contradi­
campos teóricos, disciplinares e paradigmáticos diferentes, como tam­ ção pem1anente, constituem indicações fundamentais.
bém entre o saber científico e o senso comum, essas interações não se f) Princípio da gestão da prática interdisciplinar e interparadigmática
superam e se desenvolvem tendo como alicerce o paradoxo permanen­ corno processo de aprendizagem e práxis social, pelo qual estas práti­
te e a tensão ativa e criativa entre os discursos acadêmico/científico e a cas não podem ser reguladas por cânones prestabelecidos, e sua gestão
se dá pelo processo de aprendizagem e/ou práxis reflexiva contínua.
g) Princípio da formação de redes horizontais de colaboração, troca de
Exemplos disso estão no paradoxo e tensão permanentes entre regulação e emancipação na
démarche de Santos, indicado neste trabalho, ou entre direitos civis e sociais na dinâmica da ci­
experiências e trabalhos integrados, em substituição aos processos
dadania (Vasconcelos, 2000), ou ainda entre instituído e instituinte (no sentido atribuído pelas de unificação ou subordinação institucional entre grupos de pesquisa.
correntes de análise institucional francesas a esses termos, como em Baremblitt (1992)).
Eduardo Mourão Vasconcelos
Complexidade e pesquisa interdisciplinar

h) Princípio da necessidade de novos desenhos institucionais, processos


de movimento e guerra de posição, são aproximações importantes na estraté­
de socialização e de reprofissionalização mais ampliada para a forma­
ção e identidade profissional de cientistas e trabalhadores em campos gia contemporânea de construção e análise da luta política e social tendo em
interdisciplinares, de longa duração e mais permanentes, tanto nas ins­ vista projetos popular-democráticos com vocação hegemónica e seus desdo­
tituições de ensino, formação e capacitação científica e profissional bramentos na dinâmica interna dos grupos, partidos políticos, organizações
convencionais, como nos cursos de educação continuada e nas organi­ sociais em geral, e no campo da cultura, da ecologia e das políticas públicas
globais e setoriais, e que podem ser apropriados criticamente pela perspecti­
zações de trabalho cotidiano. Visa-se aqui a montagem de dispositivos
va de complexidade sistematizada aqui.
capazes de elaborar e flexibilizar as identidades profissionais, gerar ci­
entistas e profissionais "híbridos", criar disposição e ambiente para se Para isso, é importante reconhecer as limitações das idéias de Gramsci
"aprender a aprender", reinventar formas participativas de gestão, etc. e m relação ao pensamento complexo contemporâneo, tendo em vista o con­
texto histórico de sua vida e obra. O escopo deste trabalho não permite uma
2.8.2. Princípios norteadores para práticas interdisciplinares e análise aprofundada do tema29 , mas podemos indicar alguns dos tópicos que
interparadigmáticas polarizadas por projetos políticos emancipatórios e certamente merecerão uma análise mais rigorosa em futuros trabalhos. Em
popular-democráticos com vocação hegemónica primeiro lugar, Gramsci tende a radicalizar e generalizar o seu relativismo e
sua epistemologia do saber social e político para todos os campos do conhe­
Além das instituições públicas de caráter universal, é fundamental con­ cimento, inclusive para as ciências tisicas e naturais, classificando seus fenô­
siderar como as estratégias delineadas aqui podem ser apropriadas por menos também como relações históricas e humanas, e, neste particular, efe­
aqueles que, como o autor deste trabalho, se engajam e constroem sua pro­ tua um típico dispositivo de imperialismo epistemológico e ontológico. Em
dução de conhecimento em organizações e movimentos sociais comprome­ segundo lugar, Gramsci radicaliza o seu relativismo no próprio campo das
tidos com as lutas emancipatórias, antiopressivas, popular-democráticas, teorias sociais ao desconhecer a autonomia relativa e a tensão necessária en­
configurando projetos históricos com vocação hegemónica, que visem a tre o saber com pretensões científicas, acadêmicas e universalistas, por um
transformação econômica, social, política e ambiental do nível local ao ní­ lado, e por outro, a ideologia ou discurso político, enquanto saber voltado
vel global e planetário, e que concomitantemente assumem a bandeira do para a práxis interativa e a luta social. Além disso, seria dificil imaginar que
pluralismo, da democracia e do respeito à complexidade e às diferenças étni­ Gramsci, como qualquer pensador de esquerda no início do século XX, não
cas, culturais, existenciais e de gênero. fosse também marcado por uma concepção "essencialista" do que chamava
de "filosofia da práxis", centrada na dinâmica das classes sociais e na ontolo­
2.8.2.1. Introdução - A importância da matriz gramsciana para o gização da classe trabalhadora como o verdadeiro sujeito da história (Laclau
pensamento social crítico de caráter interparadigmático e complexo & Moufle, 1987). Essa concepção implicou em reproduzir uma concepção de
projeto societário comunista futuro marcado pela possibilidade de completa
A meu ver, como já indicamos anteriormente acerca da tradição marxis­ superação das contradições e tensões sociais, no qual teoria e história se uni­
ta, o autor desta no século XX que mais avançou na articulação de um projeto ficariam em uma "filosofia futura que será própria do gênero humano mundi­
de esquerda com uma visão complexa da dinâmica de sociedades civis oci­ almente unificado" (Gramsci, 1948/1978: 22).
dentais e com forte tradição democrática foi sem dúvida alguma Gramsci
Da mesma forma, apesar da clara diferenciação feita por Gramsci entre
(1891-193 7). Sua visão historicista e relativista do próprio materialismo his­
a estratégia de luta nas sociedades orientais e ocidentais, e da criativa noção
tórico, bem como sua inovadora concepção de ideologia, ultrapassaram a
de partido como intelectual coletivo, esse essencialismo se somou à ainda
concepção corrente no marxismo mecanicista da época, que a via como "fal­
forte influência do leninismo na organização política dos partidos comunis­
sa consciência" em oposição à "consciência verdadeira", implicando em uma
tas da época, levando-o a reproduzir e superestimar uma concepção de par-
epistemologia para as ciências sociais mais próxima da que defendemos
aqui. Além disso, conceitos tais como o de sociedade civil, intelectuais orgâ­
nicos, hegemonia, partido como intelectual coletivo, bloco histórico, guerra
Para uma visão inicial descritiva e crítica à filosofia e epistemologia de Gramsci, sugiro os
trabalhos de caráter introdutório de Gmppi (1978) e Coutinho (1999).
·da de e pesquisa interdisciplinar
Eduardo Mourão Vasconcelos P'P 1ex1

tido capaz da completa representação dos mais diversos atores sociais e de aospaíses do Terceiro Mundo, vem recolocando no debate acadêmico e
se constituir como o centro gerador do processo de criação de uma nova vi­ .bOO -·
. a centralidade dos processos econorrucos, e mais· recentemente, de
·
no campo de forças geopo 1•il1co e m1·1·!tares.
são de mundo coerente e unificada. Gramsci também não tinha condições s den·vações diretas e abertas .
de superar em seu pensamento a concepção de natureza e de corpo humano • mCala global , os mecanismos regulatórios de natureza po !'1tica, · 'd1-
· JUfl
. . . .
tão fortemente emaizada na filosofia moderna e particularmente na ontolo­ em . stitucional foram relativamente desestatizados e mternac,onahzados, e
. . , .
gia marxiana, particularmente em seu texto "Americanismo e fordismo", e da se encontram em uma fase ainda mmto embnonarrn.
pela qual a natureza/corpo se opõe à cultura, como objeto de domínio e . E01bora constitua ainda um debate recente e claramente em aberto, ten-
apropriação pela consciência, intencionalidade e pelo trabalho dos seres e posicionar ao lado de um conJunto
. de autores,o que, a despelto · das
humanos, impossibilitando paradigmaticamente a viabilidade de uma teo­ ?/ 1:
,ere ças entre si, tendem
_ a defender
. que o processo
, . . de globalização atual
ria ecológica complexa e de teorias não cognitivas e não dualistas da subje­ 00nstitui um fenomeno lmear, automat1co e urevers1ve '!d , e na tureza
tividade, corporalidade, inconsciente e sexualidade humanos. ·taroente econômico-política, mas um conjunto complexo e mu1·di ti men-

Entretanto, o seu historicismo rigoroso, o antidogmatismo, antiecono­ 1ai envolvendo também fenômenos e identidades sociais, culturais, tec-
micismo, sua atenção minuciosa para com a diversidade institucional, cul­ o�gicos, étnicos, religiosos, locais, ambientais, jurídicos, que se expr:s­
tural, religiosa e_ ideológica da sociedade italiana, já apontavam claramente por constantes processos contra�itórios de hete:o- e homogene1zaçao,
para uma visão muito próxima, no campo social, da idéia de complexidade, _ e reterritorialização, rev!tahzaçao e fragmentaçao de identidades cole­
na forma como tem sido visualizada no final do século XX. as. Essa perspectiva de análise recoloca novamente no debate a impor­
eia da tradição gramsciana e do tema da complexidade e das práticas in­
Assim, categorias tais como ideologia, hegemonia, intelectuais orgâni­ disciplinares e interparadigmáticas, reatando o caráter estratégico da in­
cos, bloco histórico, entre outras, desde que recicladas e libertadas dessas ração do campo da economia política com outros campos de conhec,men�
limitações associadas a seu tempo, constituem ferramentas fundamentais · coroo desenvolvido neste livro. Um bom exemplo dessa perspecbva esta
para estabelecer os fundamentos da luta popular-democrática em socieda­ 'própria configuração interna da coalizão contra a atual orma de globali­
des complexas, pluridimensionais e com movimentos sociais tão diversifi­ f
ção e por uma globalização alternativa, como visto na d1vers1dade de mo­
cados. Isso é particularmente importante em sociedades como a brasileira, ·mentos sociais presentes nos encontros do Fórum Social Global realiza-
que combinam e exigem questões e tarefas políticas desde aquelas associa­ s em Porto Alegre e nas ruidosas manifestações por ocasião dos encon­
das ao capitalismo tardio de Terceiro Mundo, quanto temas e problemas os dos líderes dos países mais ricos, nos últimos anos. Da mesma forma, a
das sociedades contemporâneas mais avançadas. Um avanço significativo ai polarização entre os interesses norte-americanos e o fundamentalismo
deste esforço teórico a partir da matriz gramsciana tem sido realizado por adical islâmico constitui um outro exemplo significativo.
Carlos Nelson Coutinho no contexto brasileiro, tomando como elemen­
to-chave o conceito de "democracia progressiva" de Togliatti e de pluralis­
.8.2.2. Princípios para pesquisas sociais críticas e engajadas, e de caráter
mo (Coutinho, 1980, 1190, 1991, 1992, 1996, 1999).
· terparadigmático e complexo
Antes de avançar, porém, creio que seja importante indicar uma nota crí­
tica complementar sobre os desafios estratégicos mais recentes que o atual Gostaria de concluir este capítulo do livro indicando algumas sugestões
debate acerca das formas de globalização econômica e financeira tem colo­ e princípios que visam estimular práticas científicas e profissionais inter­
cado para o pensamento gramsciano e seus seguidores. Não há dúvidas de . sciplinares e interparadigmáticas em ciências humanas e sociais, susten-
que esta tradição foi profundamente marcada pelo processo de unificação das no paradigma da complexidade, comprometidas com projetos popu­
tardia do Estado italiano e pelas formas convencionais de regulação política e r-democráticos e com vocação hegemónica na sociedade civil, nas insti-
ideológica do Estado-nação típicas do keynesianismo e fordismo. Assim, a
atual conjuntura de ascendência e poder dos mercados financeiros globais e
dos blocos de empresas tecnológicas, informacionais, industriais e comer­ • Tais cama Santas (2002), Bergesen (1990), Habeimas (1995), Kraube & Reinwick (1996),
ciais multinacionais, com suas conseqüências avassaladoras principalmente halte (1996), Giddens (1990), Robertsan (1992) e Vieira (2001).
Eduardo Mourão Vasconcelos Complexidade e pesquiso interdisciplinar

tuições e na esfera pública, bem como na esfera internacionalista e global. com o discurso político, constituem um dos pilares que sustentam a noção
�stes princípios não a�ulam aqueles indicados na seção anterior sobre prin­ de autonomia institucional da universidade e da pesquisa em relação às
c1p1os para as msl!tu1çoes de caráter universalista, mas os reorientam dado demandas sociais e políticas imediatas, e, naturalmente, as práticas acadê­
o novo enquadre de engajamento na luta política. micas orgânicas aos projetos históricos de cunho popular-democrático
não só mantêm como acentuam e radicalizam essa tensão.
a) Assumir como prioridade fundamental na pesquisa a tomada de en­
cargo e a responsabilidade social acerca de uma temática, grupo popu­ Assim, a tarefa permanente e fundamental da pesquisa e da atuação
lacional ou área de intervenção pública, com todas as suas complexi­ profissional engajada é criar as bases e manter uma retaguarda efetiva de ci­
dades, desafios, paradoxos e incertezas. entistas, intelectuais orgânicos e organizações acadêmicas com uma auto­
nomia relativa da práxis social direta, capaz de gerar um conhecimento
Isso significa dizer que em situações de pesquisa, estudo, ou quando
_ mais desarmado, amplo, global e permanentemente atualizado sobre os te­
assum1'.11os a responsabilidade por uma temática, área ou programa de po­
_ mas em foco, principalmente tendo em vista a rapidez e volutibilidade da
hl!ca publica, devemos aceitar toda a complexidade do tema, incluindo as
produção do conhecimento nos dias atuais. Do ponto de vista metodológi­
diversas contribuições dos vários campos de saber, seus aspectos pouco co, essa constituiria a dimensão mais enciclopédica e exploratória da estra­
conhecidos, suas áreas de incerteza, os "buracos" do conhecimento sobre
tégia interdisciplinar e interparadigrnática, na qual ganham importância
ele, principalmente nos interstícios e contradições entre as diversas com­
fundamental as revisões do tipo bibliográfica, teórica, histórica e de expe­
petências científicas, teóricas e profissionais que incidem sobre o tema.
riências, que devem ser as mais amplas possíveis, com cobertura interna­
Essa postura não é fácil, já que implica estar atento a todas as contribui­
cional, dadas as características atuais da globalização e internacionalização
ções possíveis sobre o tema em foco, incluindo aceitar que algumas delas
dos processos científicos, tecnológicos e culturais. Além disso, são cruciais
possam ser oriundas de perspectivas conservadoras, que avançaram no
as pesquisas de seguimento estratégico e interno, com cobertura up-to-date
tratamento de questões particulares, como também reconhecer e identifi­
das experiências em curso e das novas produções lançadas diariamente na
car explicitamente os limites de nossa competência atual, o que vai de en­
mídia comum e especializada31 .
contro à luta de poder e competição entre os diversos atores sociais no
campo. Ao contrário, as estratégias mais comuns têm sido de se esconder Gostaria de dar um exemplo no campo mais específico de minha práti­
no estágio atual de competência ou supervalorizar um ponto de vista teó­ ca profissional, o da saúde mental. No Brasil atual, o tema dos novos dispo­
rico-político que direciona a priori e redutivamente o enquadramento dos sitivos residenciais está na ordem do dia, após as portarias recentes de nor­
fenômenos, de forma dedutiva ou indutiva, recalcando e varrendo para malização e financiamento dessa modalidade de serviço pelo Ministério da
debaixo do tapete as áreas de desconhecimento, incerteza e conflito. Isso Saúde em 2000, a partir de algumas poucas experiências pioneiras no país.
implica na prática em desresponsabilização e negligência teórica e social A pesquisa e a implementação destes dispositivos implica confrontar-se ne­
bem como em desestimular o desenvolvimento de uma liderança efetiva� cessariamente com uma variedade de questões, que vão desde as estratégias
criadora no campo, capaz de gerar uma vocação hegemónica menos coer­ de conversão dos velhos asilos, capacitação de trabalhadores, preparação
citiva. Assim, colocar a responsabilidade social como prioridade implica dos usuários, até aspectos éticos, arquitetônicos, urbanísticos, clínicos, an­
aceitar toda a complexidade de uma temática ou área de atuação, aceitan­ tropológicos, comunitários, de gênero, de gestão doméstica e grupal, de in-
do a tensão e a autonomia relativa entre um discurso político que "vende"
um imaginário de competência na luta competitiva entre os atores sociais,
e uma retaguarda aberta, não ortodoxa, de produção de conhecimento vol­ 3 - Hoje, as lideranças das empresas mais dinâmicas fazem seguimentos por meio da contrata­
tado para a interrogação e a pesquisa, capaz de reconhecer a complexida­ ção de agências especializadas de marketing estratégico, estabelecendo uma pauta de temas e
de e a diferenciação dos fenômenos sociais e naturais, o nosso não saber, uma lista de fontes permanentes. Os relatórios são enviados quinzenalmente ou mensalmente
para os notebooks dos gerentes, via e-mail. Em algumas delas há seminários periódicos em que
as competências alheias e as questões, paradoxos, "buracos" e problemas se analisam as principais tendências. Os antigos clips das assessorias de comunicação parecem
futuros que ninguém ainda enfrentou satisfatoriamente. Como vimos an­ carroças quando comparadas a esse processo, princtpalmente porque as infonnações são siste­
teriormente, essa autonomia relativa da prática científica e sua tensão matizadas, avaliadas, tendo as principais tendências resumidas e indicadas em quadros-chave,
gráficos e tabelas utilizando o que há de mais avançado em softwares.
Eduardo Mourão Vasconcelos
/Complexidade e pesquisa interdisciplinar
tegração institucional com outros serviços sociais, de saúde mental, de
saú­
de, etc. _!'1a medida em que venho pesquisando e promovendo cursos dor, mas identificadas e deixadas em aberto por meio da abertura de suas
de ca­
pac1taçao no tema, uma primeira aproximação ao assunto foi realizada caixas pretas particulares e da tradução para uma linguagem mais acessível
atra­
vés de uma revisão bibliográfica e de experiências internacionais (Vasco
n­ ao sens o comum, ao debate e à crítica mútua fraterna em um campo de ali­
ce!os, 20�0) visando apresentá-lo ao público brasileiro. Nesse campo
_ : de anças. Esse constitui o momento propriamente dito para se avaliar e imple­
praticas tao movadoras e praticamente desconhecidas no Brasil, deixar mentar as estratégias epistemológicas discutidas durante este ensaio. Nor­
de
tratar qualquer dessas questões implica em estimular o despreparo dos m almente, estabiliza-se um conjunto mais ou menos permanente de interlo­
futu,

1
ros gerentes e trabalhadores que hoje começam a difundir tais dispositiv cuções, que vão se constituindo em parcerias para a pesquisa e para a práti­
os
no pais., Em suma, mesmo se contássemos com um contexto econômico ca social e política concreta. A prioridade da práxis significa desestimular a
político e social mais favorável, haveria ainda enormes desafios, ortodoxia teórica e as tentativas tão comuns de converter/cooptar o outro ou
parado'.
xos, mcertezas, problemas, de ordem teórica, clínica, técnica, assiste de invalidar sua perspectiva na sua totalidade, mas ao contrário, buscar re­
ncial e
humana, que requereriam fomentar a criatividade e inovação perma conhecer também as suas contribuições e a partir de que momento a dinâ­
_ nente
nos serviços, nas equipes profissionais e na pesquisa. mica ou trajetória desta posição particular pode implicar em uma contradi­
Outro exemplo de tema complexo e inovador no campo da saúde men­ ção ou paradoxo significativo, impondo limites a uma abordagem integrada
tal e das políticas sociais no Brasil é o do empowerment. Desta vez ou linear. Implica também em valorizar mais enfaticamente as contribui­
utilizei ções práticas dos diversos atores e o reconhecimento não só da riqueza do
a revisão histórica como forma de abordar a temática para o contex;o
brasi­ pluralismo, como também o estranhamento, a diferença, a impossibilidade
leiro (Vasconcelos, 2001).
de alinhamento e linearidade, o paradoxo e a incerteza, constituem compo­
b) Buscar a identificação de parceiros mais comprometidos ética, políti­ nentes inerentes à abordagem inovadora e criativa de temas e práticas com­
ca e teoncamente com o tema, visando a estabilização gradativa, mas plexas. Assim, nos projetos conjuntos desta aliança (ou, na linguagem
aberta, de uma frente popular-democrática e pluralista de abordagens gramsciana, deste "bloco histórico"), garante-se sempre o direito de mani­
e �rupos de pesquisa e de trabalho em torno de um projeto, tema festação particular das diferentes concepções participantes.
ou
pratica social, dando prioridade à práxis (em relação à identidade teó­
Em estágios mais avançados, a estabilização de alianças, abordagens e
i1 rica e ideológica a priori) e à inserção concreta nos movimentos
so­ de trabalhos interdisciplinares e interparadigmáticos engajados permite sis­
ciais, processo cuja sedimentação histórica permite reivindicar mais
1

tarde um papel de liderança política e de vocação hegemónica. Nesse tematizações (sempre provisórias, mas consolidando a sedimentação das
caminho, deve-se buscar sempre aceitar a tensão entre o discurso discussões e experiências já realizadas) na forma de livros teóricos, publi­
teó­ cações periódicas, livros básicos de formação profissional, manuais para
rico e político, bem como o pluralismo e as diferenças entre os parcei
­ trabalhadores de nível médio, ativistas, bem como de cartilhas de divulga­
ros e abordagens no trabalho cotidiano, assumindo que paradoxos e
_ in­ ção para o grande público. A partir deste estágio de consolidação, a capaci­
certezas constituem parte integrante da geração de conhecimento e
da

1
dade crescente de sistematização do campo e de articulação entre organiza­ 1
prática social em temas complexos.
ções, atores sociais e intelectuais orgânicos, acaba por gerar um potencial
Se a primeira das dimensões da estratégia interdisciplinar (descrita de liderança e direção política, elemento-chave para se colocar na luta
aci­
ma) acentua o caráter mais enciclopédico e exploratório, esta segun pela hegemonia no campo em foco através das instituições específicas,
da bus­
ca ir fechando o foco gradaüvamente para as abordagens de autore como os partidos e instituições de gestão pública. Nesse movimento, o con­
s e gru­
pos que comunguem de pnncípios ético-políticos mínimos no campo ceito gramsciano de hegemonia acaba ganhando novos sentidos. Em vez de
em
foco, que possam passar pelo crivo da historicização e de uma totaliz se configurar como uma concepção de mundo coerente internamente do
ação
pro�ress1va rdatlva, não identitária (e aqui a referência proposta ponto de vista filosófico e racional, que se acredita capaz de unificar a hu­
_ é Adorno,
e nao Gramsc1) e CUJaS contribuiçõe s teóricas, disciplinares, profissionais, manidade por meio de sua difusão na cultura, nas instituições e nos intelec­
_ _
metodolog1cas, tecmc as e práticas sejam inovadoras e críticas. As diferen­ tuais orgânicos, a capacidade hegemônica e diretiva se fortalece primordi­
ças não devem ser ignoradas em um ecletismo ingênuo ou homo almente através do potencial de interação e ·aprendizagem com as múltiplas
geneiza-
perspectivas sociais existentes no campo popular-democrático de forma
Eduardo Mourão Vasconcelos Complexidade e pesquisa interdisciplinar

atualizada e up-to-date com as vertiginosas mudanças científicas e tecnoló­ dinâmica desse movimento social comporta hegemonias internas e lide­
gicas atuais, mantendo-se porém a direção ético-política básica, e os crivos ranças não só na estratégia e princípios mais gerais de todo o movimento,
da historicização e de totalização progressiva não identitária. corno também em períodos diferentes e nas diversas regiões e cidades.
De qualquer forma, o posicionamento ético-político mais claro tende a Essa pluralidade de contribuições e perspectivas revela não só a comple­
acentuar a tensão entre o discurso teórico/científico e o discurso político di­ xida de do campo, mas também o dinamismo e a riqueza do movimento
reto, e o nsco permanente é o da institucionalização excessiva, do congela­ social como um todo. Em relação aos riscos assinalados acima, um pro­
mento da pesqrnsa e da busca de inovação, e do imaginário narcísico d� cess o de institucionalização efetivamente aconteceu no Brasil na década
competência e ?nipotência. Esses processos são reforçados pela luta políti­ de I 980, quando a maioria das lideranças do movimento de reforma psi­
ca, pela necessidade de financiamento, pelas apropriações institucionais e quiátrica entrou no aparelho de Estado para implementar programas e ser­
alianças com o poder constituído, pela competição com forças conservado­ viç os. Alguns anos mais tarde, uma parte do movimento, em um processo
ras e mesmo com outras perspectivas progressistas. A institucionalização de reavaliação, teve que reorientar valores, estratégias e formas de organi­
sempre mduz a tendências no sentido de bloquear o contato do grupo ou zação e re-vinculação com a sociedade civil e seus movimentos sociais,
movimento com a diferença, a complexidade, os processos instituintes e no período 1987-89, quando emergiu o movimento da luta'antimanicomi­
com novas forças criativas, tanto internas e externas. No entanto tais ten­ al. Esta nova perspectiva, mais radical que o sanitarisrno dos anos oitenta,
dências podem ser contrabalançadas se o grupo ou movimento 'mantiver acabou se tornando hegemónica nos anos noventa, promovendo um avan­
uma retaguarda relativamente autônoma de pesquisa exploratória e aberta ço significativo no processo de reforma psiquiátrica nesta última década
;
il �o novo, como indicado no item anterior; se buscar a renovação e auto-aná­ (Vasconcelos, 2000; Amarante, 1995).
!
lise permanente, como indicado logo a seguir; e se o grupo mantiver, mes­ c) Assumir, de acordo com o princípio da interação e implicação do pes­
mo se engaJado na esfera institucional pública, um vínculo orgânico e uma quisador do paradigma da complexidade, a perspectiva de que a capa­
retaguarda organizativa com os grupos e movimentos sociais populares vi­
cidade de produção de conhecimento inovador e criativo em ciências
vos da sociedade civil.
humanas e sociais se sustenta diretamente no processo de singulariza­
De novo, os processos identificados nesta seção são claramente exem­ ção, na mobilização dos impulsos estéticos, no processo de individua­
pl'.fidveis no campo da saúde mental no Brasil. Os valores ético-políticos ção do(s) pesquisador(es) e de construção de narrativas e perspectivas
'1
_
1: mm1mos sao visualizados no projeto da reforma psiquiátrica e na estraté­ próprias de visão do mundo. Por outro lado, esta ênfase no pólo da sin­
gia de desinstitucionalização e, para parte dos atores, na plataforma do gularidade e do particular exige a contrapartida nos princípios institu­
movimento de luta antimanicomial como movimento social autônomo. cionalistas da auto-análise e da análise da implicação, por meio de dis­
Entretanto, dentro dessa aliança ampla se agregam as mais diversas ten­ positivos permanentes de crítica dos particularismos e individualis­
dências teóricas, tipos de profissionais, atores sociais e suas organizações mos possessivos, das identidades e culturas pessoais e profissionais
_ _ _
respectivas: psicanalistas (das mais diversas linhas, incluindo lacanianos compactas, das abordagens sectárias e não tolerantes da diferença, dos
freudianos, kleinianos, etc. e suas dissidências pós-freudianas (junguia� imaginários sociais idealizados, dos seguidismos fáceis, ingênuos e
nos, reichianos), institucionalistas (também nas suas mais diversas linhas carismáticos, e das formas verticais de poder e gestão.
como basaglianos, esquizoanalistas, socioanalistas, psicossociólogos, se�
gmdor�s da psicoterapia institucional, etc.), marxistas, existencialistas, De acordo com a perspectiva do paradigma da complexidade assumida
antropologos (particularmente aqueles inspirados nos trabalhos de Du­ neste trabalho, a produção de conhecimento, e de forma mais direta nas
mont), epidemiólogos, sanitaristas, ecologistas, feministas, especialistas ciências humanas e sociais, depende fortemente da experiência sócio-histó­
em gênero e etnia/raça, psiquiatras, médicos, educadores, enfermeiros rica, pessoal e da subjetividade dos pesquisadores. O desenvolvimento da
assis:entes sociais, artistas, terapeutas ocupacionais, terapeutas de famíli� criatividade e inovação nessa esfera se sustenta fundamentalmente na capa­
_ cidade de os pesquisadores, enquanto indivíduos ou como grupos particula­
(s1stem1cos, psicanalistas), etc., bem como lideranças de movimentos
grupos e associações de usuários, familiares e trabalhadores. É claro que� res de pesquisa, assumirem o seu processo de singularidade e individua-
Eduardo Mourão Vasconcelos de e pesquisa interdisciplinar
· Cornplexida

ção32. Esse processo é enfatizado por perspectivas psicanalíticas que dão criativo de seus companheiros de banda. Os músicos dejazz mais experientes
destaque à pulsão inconsciente e à singularidade dos indivíduos, corno a la­ dize m que, quando tocam urna música particular, nunca a fazem da mesma
caniana; pela abordagem guattariana, corno indicado neste trabalho; pelas fonna precisa e com as mesmas notas que nas vezes anteriores. Apenas as
tradições psicossociológicas (Levy et ai., 1994); e ainda pela perspectiva bandas maiores acabam tendo urna estrutura mais rígida, mas mesmo assim
junguiana, que o denomina "processo de individuação" (Jung, 1995). os pouco? solistas têm necessariamente autonomia para criar nos momentos
de solo. E claro que os músicos mais novos precisam de um bom tempo de
Paralelamente, perspectivas corno a guattariana, junguiana e a de Ador­ fonnação e experiência para conquistarem gradativamente essa autonomia,
no vão chamar também a atenção para a irnportància da experiência estética
mas sabem que o caminho passa necessariamente por, e dependem funda­
neste processo. Corno vimos, o paradigma ético-estético de Guattari enfati­
mentalmente de, seu processo de individuação musical.
za a arte corno forma privilegiada de conexão com os fluxos desejantes em
constante devir e criação, corno forma de estimular as forças individuais e Tudo isto que foi dito sobre a estrutura de funcionamento nojazz é seme­
sociais instituintes. Da mesma forma, na estética de Adorno, a obra de arte lhante ao processo da pesquisa crítica interdisciplinar e complexa, trocan­
constitui um elemento fundamental de mobilização da liberdade, autono­ do-se o contexto e os termos da música para o campo da pesquisa. As dife­
mia e transcendência em relação à positividade das formas sociais constituí­ renças, a meu ver, estão no fato de que em pesquisa engajada se é obrigado:
das e à alienação da indústria cultural hegemónica (Adorno, 1970). E ainda - a explicar o caminho percorrido e a justificar as decisões tornadas em
em Jung, a expressão artística constitui urna forma crucial de imaginação urna construção teórico-metodológica, conceituai ou em urna investi­
ativa, do necessário contato com as imagens, a energia e os conteúdos in­ gação, permitindo a comunidade científica, acadêmica ou profissional
conscientes, elemento-chave do processo de individuação. Assim, a criati­ acompanhar e avaliar os passos feitos e os resultados encontrados;
vidade corno base do desenvolvimento pessoal e da produção de conheci­
- a discutir os crivos da historicidade e do processo de totalização dinâ­
mento inovador requer urna política ativa, do ponto de vista coletivo e indi­
mica não identitária das abordagens e contribuições utilizadas;
vidual, e principalmente por parte dos pesquisadores, de estímulo e contato
permanente com a criação artística. O primeiro capítulo deste livro consti­ - a discutir as implicações ético-políticas de seu trabalho.
tui um bom exemplo disso. De qualquer forma, no terreno da complexidade não há lugar para o que
Para concretizar ainda mais o que está sendo dito, sugiro urna analogia identificamos no campo do imperialismo epistemológico corno um imagi­
entre ojazz conternporàneo, corno a forma mais criativa de produção musical nário marcado pela polaridade "onipotência total/impotência radical" entre
do último século, e a produção do conhecimento interdisciplinar e complexo. mestre e aprendiz, ou por urna relação permanentemente marcada pela tute­
Se o leitor prestar atenção, verá que a partitura de cada música nas bandas la-dependência ou pela idealização excessiva do primeiro, que geram pro­
atuais, quando existe, é constituída geralmente de apenas urna folha, constan­ cessos imitativos e formas de conhecimento endógeno e herdado.
do apenas os acordes ou a linha melódica básica. A partir dela, a própria es­
Corno forma não só de estimular o processo de individuação, mas tam­
trutura de funcionamento e os critérios de competência profissional no jazz
bém de estabelecer mediações capazes de controlar seus excessos particu­
exigem que cada músico desenvolva individualmente sua habilidade com o
laristas potenciais no plano coletivo, é fundamental recuperar a proposta de
instrumento e o gênero musical, seu próprio estilo de tocar e compor, bem
corno sua capacidade de comunicação intuitiva com os outros músicos da dispositivos de auto-análise e de análise da implicação. Na tradição do mo­
banda, já que será necessariamente chamado a desenvolver seus próprios so­ vimento institucionalista, a maioria das tendências acentua a importância
desses dispositivos em que os grupos e organizações criativos, inovadores e
los e improvisações, bem corno a decodificar, sintonizar-se e sustentar o solo
comprometidos com lutas emancipatórias possam estar permanentemente
avaliando a conjuntura de seu trabalho, seus objetivos, estratégias, práticas
· concretas, suas formas de organização, a implicação psicoafetiva e só­
Como já indicamos na apresentação deste livro, é fundamental diferenciar individualiza­ cio-histórica dos participantes, as formas de interpelar sua emoção, prazer e
ção, processo histórico e cultural em desenvolvimento nas elites das sociedades ocidentais de produções estéticas, corno estratégias de evitar a reprodução de práticas au­
capitalismo central, e individuação, como processo de diferenciação e maturação psicológica de
cada indivíduo ou pessoa 0/asconcelos, 1992).
toritárias, sectárias, instrumentais e alienadoras (Lourau, 1995; Barbier,
Eduardo Mourão Vasconcelos
Complexidade e pesquisa interdisciplinar

1985; Baremblitt, 1992; Levy et ai., 1994). Essa literatura aponta para uma para o leitor tratar-se muito mais de um itinerário de leituras e temas para
variedade enorme de dispositivos possíveis, desde as práticas de supervi­ pesquisa e aprofundamento, sem qualquer pretensão de alcançar um pata­
são, avaliação, processos grupais, encontros, seminários, dispositivos de mar satisfatório de sistematização. No entanto, acredito ter ficado clara,
auto-análise e autogestão, etc. pelo menos, a importância crucial do debate. De um lado, temos a fragmen­
d) Assumir a perspectiva da interdisciplinaridade e da complexidade tação e simplificação do saber nas ciências convencionais. Em outro pólo,
como valores ético-políticos inerentes às lutas emancipatórias e popu­ temos as perspectivas pós-modernas, enfatizadoras da diferença e diversi­
lar-democráticas, a serem incorporados de forma explícita em nossa dade, mas cuja ruptura completa com o realismo e fragmentação, relativis­
subjetividade, formação e organizações científicas, profissionais e dis­ mo radical e dispersão provocam sérias limitações para a construção de um
positivos dos movimentos sociais. arcabouço teórico e institucional capaz de sustentar as lutas emancipatórias
para além do plano da clínica e da micropolítica, principalmente em uma
A aceitação da complexidade como paradigma, suas implicações em conjuntura que nos exige construir projetos históricos e ambientais alterna­
termos de responsabilidade social, da ênfase na dimensão ético-política tivos e mecanismos regulatórios não só em escala nacional (particularmen­
das práticas sociais, e seu conseqüente compromisso com a implementa­ te em países do Terceiro Mundo), mas principalmente planetária, capaz de
ção de práticas interdisciplinares as mais amplas possíveis, como vimos, fazer frente à hegemonia neoliberal globalizada atual. Enfim, em uma ter­
não são processos espontâneos e fáceis. Eles exigem disponibilidade e ceira perspectiva, temos uma crise radical dos paradigmas e epistemologias
abertura para se confrontar com a diversidade em si mesmo e nos outros, convencionais, fundamentados no humanismo racionalista e nos projetos
e vão na contramão dos atuais paradigmas e a forma atual de instituciona­ históricos alternativos que marcaram a modernidade, com suas dificulda­
lização das práticas científicas e profissionais instrumentais, requerendo des inerentes de lidar com a complexidade, com o pluralismo e a diversida­
então para a sua implementação uma vontade e compromissos políticos e de dos campos de saber e de dinâmicas transversais específicas que atraves­
existenciais explícitos. sam as diversas formas de opressão nas sociedades contemporâneas. Este
Nesse campo, além das instituições propriamente científicas, uma das ensaio buscou não só montar este panorama mais amplo do debate, mas
também localizá-lo no plano concreto das teorias e práticas, através de
maiores dificuldades e bloqueios às práticas baseadas na complexidade e na
exemplos nos campos particulares da saúde mental e do serviço social.
interdisciplinaridade estão no profissionalismo, com seus mandatos sociais '
legais incorporados na legislação, nos princípios e na prática das entidades Entre esses três extremos, o debate acerca da complexidade e da inter-
corporativas profissionais, bem como nas culturas e identidades profissio­ disciplinaridade é crucial para o delineamento de propostas intermediárias,
nais compactas, voltadas para modelos teóricos e de atuação muito padro­ capazes de apontar alternativas que evitem os problemas inerentes a essas
nizados e fechados à experimentação, aprendizagem mútua e ao diálogo três posições e, ao mesmo tempo, que resgatem a perspectiva das lutas
com outros campos do saber. Desse modo, no capítulo seguinte será discu­ emancipatórias no plano teórico e histórico concreto e na dimensão exigida
tida a noção de profissionalismo, suas dificuldades inerentes em relação às pela atual conjuntura, do plano local ao planetário. Assim, para finalizar, �!
práticas interdisciplinares, indicando-se algumas sugestões de como esti­ acredito pelo menos ter sustentado satisfatoriamente a hipótese de que os
mular essas práticas no contexto. conceitos de complexidade e de práticas interdisciplinares e interparadig­
máticas, com todas as suas implicações epistemológicas, teóricas e práti­
cas, são imprescindíveis e constituem parte integrante e fundamental da
2.9. Considerações finais agenda emancipatória nas sociedades de capitalismo avançado e no ambi­
ente da pós-modernidade.
Este ensaio visou montar uma revisão do debate contemporâneo acerca
da complexidade, das práticas interdisciplinares e interparadigmáticas, e A partir daí, convido o leitor para o próximo capítulo, no qual examina­
remos de forma mais concreta as diferentes modalidades de práticas "in­
suas bases epistemológicas, tendo como pano de fundo o contexto histórico
ter-" e "trans-" entre diferentes formas de saber, suas dificuldades e obstá­
do neoliberalismo, globalização e da pós-modernidade, assim como contri­
buir com algumas intuições e propostas que considero novas nessa discus­ culos, incluindo sugestões de como incentivá-las na prática cotidiana da
pesquisa e da vida profissional.
são. Dada a extensão e complexidade do tema, penso ter deixado evidente

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