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ARTIGOS TEMÁTICOS

Transmissão da experiência: o estranho na narrativa

Nina Virginia de Araujo Leite∗

Resumo:
O artigo se debruça sobre a complexa questão da transmissão da experiência e o
estatuto da ficção como lugar privilegiado para fazer passar o real em jogo no que se
delineia como sendo da ordem da experiência, a partir de sua abordagem pela
psicanálise. Tomando a experiência como se referindo ao que não se imagina, que
efeitos advêm para a literatura de testemunho, especialmente se considerarmos com
Derrida que a condição de sobrevivente é estrutural, muito antes de se deixar
apreender nas malhas de uma contingência? A discussão é tecida por meio da análise
de dois textos que, embora bastante distintos sob vários aspectos, cumprem
perfeitamente a função de passar o real: “Memórias de infância”, de Binjamin
Willkomirski, e “O intruso”, de Jean-Luc Nancy. A categoria freudiana do estranho é
convocada como lugar privilegiado para encaminhar a discussão.

Palavras-chave: verdade e ficção; memória e real.

Abstract
The article focuses on a complex issue: the transmission of experience and fiction’s
status as a privileged way to transmit the real involved as it becomes in ambit of
experience, from psychoanalysis’s point of view. Taking the experience as referring
to what cannot be imaged, which effects it brings to the literature of testimony,
especially if we consider with Derrida that the survivor’s condition is structural, long
before it gets stuck with the meshes of a contingency? The discussion is sewed
through the analysis of two texts which, although quite different in many ways,
perfectly fulfilling the function of transmitting the real: "Memories of a Wartime
Childhood" by Binjamin Willkomirski and "The intruder" by Jean-Luc Nancy. The
freudian category of uncanny is brought as privileged to lead the discussion.

Keywords: truth and fiction, memory and real.


Em recente entrevista à revista Bravo (julho 2008), o escritor Alan Pauls, comentando o
seu mais recente livro História do pranto – um testemunho, critica a posição bastante comum e
































































Prof. Associada do Dep. De Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem/UNICAMP
Membro fundador da Escola de Psicanálise de Campinas.
nleite@iel.unicamp.br

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atual entre os argentinos de apenas atribuir legitimidade testemunhal aos relatos de sujeitos que
viveram os anos da ditadura, negando-a àqueles que não a testemunharam diretamente. Diz ele:

Com esse livro, eu quis mostrar que pode haver testemunho e pode haver verdade em
alguém que não esteve diretamente ligado à ditadura militar, que não viu o que se
sucedeu, assim como o protagonista da história. O que se passa na Argentina é que essa
história dos anos 70 é um monopólio de quem a viveu. Esse é o problema. Aqui, quem
fala dos anos 70 são aqueles que militaram contra o regime, que foram vítimas da
ditadura ou os filhos de vítimas, jornalistas etc. Mas, quando alguém que não pertence a
essa comunidade pretende dizer algo sobre esse período, não importa em que direção, há
sempre a pergunta ‘com que direito você pode falar sobre esse período?’, como se não
existisse vida fora desse meio. Quero cortar isso. Todos têm o direito de falar” (PAULS,
in: FONSECA, julho 2008).

Este comentário nos conduz ao cerne da questão que está implicada no título deste
trabalho: o poder de transmissão da ficção, o caráter ficcional da verdade (ou a estrutura de ficção
da verdade, como dizia Lacan), o entrelaçamento entre verdade e ficção, ou a “perturbadora
cumplicidade entre ficção e testemunho”, segundo Derrida (2000, p. 43). Mais ainda, remete à
necessidade de esclarecimento quanto ao que entendemos por experiência no campo da
psicanálise, uma vez que não a sobrepomos ao âmbito do vivido ou do acúmulo de vivências. A
presença do efeito de estranhamento na narrativa é o que nos guiará para circunscrever o efeito de
transmissão do real da experiência. Com isso, delineamos uma aproximação ao que está em jogo
em uma experiência: trata-se de algo que não se imagina. Se a experiência se reveste da
propriedade de se apresentar como algo não antecipável dentro das coordenadas simbólicas e
imaginárias que circunscrevem um dado campo psíquico, então é necessário articulá-la com o
registro do acontecimento real. A pergunta que decorre dessa posição é a seguinte: como fazer
passar em palavras e imagens algo que resiste a elas, algo que irrompe como um rasgo no tecido
da língua?
Não menos pertinente ao tema é a complexa, instigante e rica discussão que tem sido
tecida quanto à figura do sobrevivente e de uma literatura de testemunho. O que caracteriza a
posição daquele que testemunha? Qual o estatuto que devemos atribuir ao sobrevivente se
admitirmos que a potência transmissiva de um texto em nada depende direta e imediatamente da
estória vivida? Qual a relação entre o acontecimento vivido e a experiência enquanto
acontecimento relatado/transmitido?
Em 1896, em uma carta endereçada a Fliess, Freud afirmava que existe uma diferença
importante a ser considerada entre a vivência de uma cena e a sua recordação no que diz respeito
ao afeto envolvido, pois o tratamento com os pacientes neuróticos tinha lhe ensinado que o
desprazer causado pela lembrança de um fragmento da cena era incomensuravelmente superior
ao afeto quando do acontecimento. Se a descoberta de que o valor propriamente traumático da
cena residia em um evento posterior a ela, não encontraríamos aí a razão para recusarmos
qualquer tentativa de análise psicobiográfica de uma obra? Pois, entre o acontecimento vivido e
os efeitos que apenas em um só-depois poderão daí advir há descontinuidade, hiância, lugar
prenhe de invenção e criação.
A própria denominação de literatura de testemunho não deixa de nos interrogar, uma vez
que, se o termo testemunho é usualmente tomado como se referindo a algo de excepcional/real e

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que exige um relato de alguém que o viveu diretamente, por outro lado, sua origem etimológica
nos indica o caráter terceiro que define o seu lugar: do latim tertius=terceiro/testis=terceira
pessoa presente, em instância, demonstrando a posição desde onde devemos recolhê-lo. O
testemunho é sempre mediatizado.
O autor de Fragmentos – Memórias de uma infância 1939-1948 (WILKOMIRSKI, 1999)
no último capítulo do livro, capítulo intitulado “Sobre este livro”, afirma que escreveu estes
fragmentos de memória com o objetivo de investigar a si mesmo e seu passado longínquo,
também em busca de libertação, mas na esperança de que outras pessoas em situação semelhante
possam encontrar alento para falar das lembranças traumáticas de suas infâncias. Se destaco este
ponto é para dimensionar, de algum modo, a maneira como compreendi, em uma primeira leitura
do livro, as intenções explicitadas de alguém que decidiu transformar o seu sofrimento em uma
causa que visa fundar um agrupamento social por via da identificação a um traço, no caso,
nomeado pelo autor, como “as crianças sem identidade que sobreviveram ao holocausto”. De
fato, Binjamin Wilkomirski vive hoje na Suíça, trabalha como músico e é construtor de
instrumentos musicais, mas, enquanto pesquisador e historiador, organizou e mantém um arquivo
sobre crianças judeu-polonesas que, como ele, sobreviveram ao horror dos campos de extermínio.
Presta assistência a esses sobreviventes, juntamente com uma equipe de psicólogos e
historiadores. Ele nos informa, logo no primeiro capítulo, não ser escritor, e isto nos interessa por
colocar a questão da função do escrito para este sujeito, nesta situação. Quero supor que aí, não
apenas o texto, mas o ato mesmo de socializar um relato pessoal que testemunha a história, pela
escrita, funcione como uma possibilidade nova de subjetivação. Afinal, como ele mesmo diz,
“(...) é muito fácil mergulhar em incerteza as lembranças de uma criança, fazê-la calar. Eu queria
minha certeza de volta, e não queria mais calar. Por isso comecei a escrever” (WILKOMIRSKI,
1999). A sua tentativa pode então ser pensada como uma busca que conjuga não apenas o
levantamento – impossível – do véu que encobre a amnésia constitutiva de qualquer sujeito, mas
principalmente as vias particulares que uma contingência histórica impôs para o encobrimento de
uma filiação. É interessante observar que esta busca se pauta, em seu texto, pela referência
constante a questões linguísticas. Que a língua esteja aqui inextricavelmente ligada às condições
de desamparo e de sobrevivência não deve nos surpreender se consideramos a língua materna
enquanto referida às suas articulações com o inconsciente, com isso que nos afeta com efeitos
que são afetos.
Da precariedade das condições de subsistência nos campos de concentração, todos
podemos construir inúmeras representações que compartilham a marca do horror. Não obstante,
apesar do já sabido, o relato das lembranças das experiências não deixa de nos impressionar, e de
um modo muito singular. Na primeira leitura que fiz, junto a um profundo mal-estar, esboçava-se
um estranhamento que, só depois de certo tempo, pude nomear. Penso que me surpreendi com a
clareza, nitidez e riqueza de detalhes das lembranças de uma criança tão pequena – o livro
começa com as mais antigas, por volta dos três anos, especialmente porque mantinham conexão
com outros acontecimentos da mesma época, o que não é habitual com nossas lembranças
infantis. Perguntei-me se, sob condições tão devastadoras, o funcionamento do trabalho de
memória se faria de modo diferente. Levando em conta a afirmação freudiana de que:

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[...] de esos recuerdos de infancia que se llaman los más tempranos no poseemos la
huella mnémica real y efectiva, seno una elaboración posterior de ella, una elaboración
que acaso experimentó los influjos de múltiples poderes psíquicos posteriores. Por lo
tanto, los “recuerdos de infancia” de los individuos llegan con total universalidad a
adquirir el significado de unos “recuerdos encobridores”, y de ese modo cobran notable
analogía con los recuerdos de infancia de los pueblos, consignados en sagas y mitos.
(FREUD, 1901/1988, p.52)

Perguntei-me se no detalhamento das lembranças, embora sem ordenação lógica, não


haveria excesso de encobrimento? Mas se tudo me parecia real demais?
É claro que as lembranças narradas no texto autobiográfico de Wilkomirski obedecem ao
processo de elaboração descrito por Freud, mas há algo real demais que não deixa de impor
diferenças neste processo. Isto é, suponho que a situação limite de adversidade determina uma
série de outras considerações no que diz respeito à construção das ficções da infância. Li, então, o
livro como testemunho, documento da barbárie, marcado com o valor de verdade que as ficções
transmitem. Foi um pouco mais tarde que tive que acrescentar outro capítulo nesta história de
leitura, ao deparar-me com um ensaio na revista Cult (1999) intitulado “Os fragmentos de uma
farsa”, em que o autor, Seligmann-Silva, nos relata alguns fatos sobre a identidade de Binjamin
Wilkomirski a partir de uma reportagem de setembro de 1998, em que o escritor e jornalista
Daniel Ganzfried questiona a veracidade de sua narrativa. Segundo ele, trata-se de uma
impostura, uma vez que Binjamin Wilkomirski é uma invenção de Bruno Doessekker, que não é
judeu e tampouco conheceu os campos de extermínio. As razões que podem levar um sujeito a
criar uma autobiografia fictícia não nos ocuparão por ora; há muito a ser examinado, discutido e
questionado. Mas o que me interessa destacar deste episódio é que a história inventada
documenta uma outra cena da tentativa desesperada de encontrar uma filiação, uma vez que
Wilkomirski/Doessekker tinha ainda um outro nome quando veio ao mundo em 1941 na condição
de filho ilegítimo de Yvonne Berthe Grosjean. Foi acolhido em um orfanato e adotado em 1945
pelos Doessekker, um rico casal de médicos que mudou o seu nome ainda no início de sua vida
escolar.
A descoberta da farsa/impostura confirmou o caráter ficcional que eu tinha atribuído à
obra, mas com um ingrediente surpresa: ele não viveu aquela história, ele não é quem diz ser,
mas com o livro ele coloca em ato aquilo mesmo que o livro descreve: a busca desesperada de
uma identidade, de um nome, de uma história.
O caso Wilkomirski/Doessekker, aqui apresentado em linhas muito gerais, e que
mereceria uma investigação detalhada, interessa-nos por colocar de forma bastante evidente e
dramática a questão que nos ocupa. Sabemos que o livro foi premiado, antes de descoberta a
farsa, como um dos mais eloquentes testemunhos dos horrores do holocausto e que outros textos,
escritos por sobreviventes que verdadeiramente viveram nos campos, não conseguiram tal
repercussão. Parece-nos que, neste caso específico, a ficção é potencialmente mais produtiva na
transmissão do real do que o relato verídico, imprimindo força auxiliar ao argumento de Pauls.
De que modo uma experiência não experienciada (DERRIDA, 2000, p. 56), o que para o senso
comum se apresenta como um absurdo, pode transmitir o real? Articulada a essa questão,
encontramos também a difícil problemática relativa ao caráter literário de um texto, ou seja, uma
vez que a literatura, segundo Derrida, não tem nenhuma essência ou substância – “ela não existe”

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(DERRIDA, 2000, p. 28) – e que, portanto, a literariedade não pode ser pensada como a
propriedade intrínseca de um discurso, é necessário avançar mais e perguntar sobre o que realiza
o efeito de transmissão quando enfrentamos os limites entre ficção e testemunho. No âmbito
deste trabalho, penso que podemos concluir com Derrida em seu comentário sobre o texto
L´instant de ma mort de Maurice Blanchot: “o testemunho não literário não é mais prova do que é
o testemunho na forma de uma ficção literária” (DERRIDA, 2000, p. 56).
Embora seja tarefa muito difícil definir o que responde pela potência transmissiva de um
texto, declinar o que nele realiza a tarefa de executar a passagem que constitui o que é próprio ao
ato de transmissão, não é impossível identificá-lo a partir dos efeitos que produz no leitor. Foi a
partir de tais efeitos que decidi falar sobre um pequeno livro intitulado O intruso de Jean-Luc
Nancy (2006). Os leitores de Lacan não podem deixar de identificar o modo estranhamente
elogioso com que ele se referiu em 1972 a este autor, pelo trabalho que tinha desenvolvido em
parceria com um colega. Tal trabalho se intitula O título da letra (NANCY & LACOUE-
BARTHE, 1991), e sobre ele Lacan afirmou que nunca tinha sido tão bem lido e interpretado e
isto justo porque os autores teriam des-suposto nele o saber (“Se eu disse que eles me odeiam, é
porque eles me des-supõem o saber. E por que não? Por que não, se se verifica estar aí a condição
do que chamei leitura?”). Uma excelente indicação do que vem a ser uma leitura em psicanálise.
O intruso é, então, o título do texto escrito por Jean-Luc Nancy e publicado pela primeira
vez em 1999, que, nas palavras de Derrida, constitui “testemunho único na história da filosofia e
da humanidade: dilacerante, admirável, de uma lúcida sobriedade e exatidão” (DERRIDA, citado
por NANCY, 2006). Quero me aproximar deste texto e abordar a sua potência transmissiva,
tomando-o como um testemunho, na acepção que liga o testemunho à figura do sobrevivente, ou
seja, pretendo tratar o texto como uma escrita da passagem por um acontecimento radical,
evento-limite, escrita que atualiza a passagem por um por meio da morte. Entretanto, o conceito
de sobrevivente aqui mobilizado não recobre a figura colocada em cena na literatura de
testemunho, uma vez que o sobrevivente será referido a um conceito construído e desenvolvido
por Derrida. Para este autor, a sobrevivência não se deixa subsumir ao viver e ao morrer; ela é
originária: a vida é sobrevivência. Não se considera, portanto, apenas o sentido usual de
sobreviver enquanto continuar vivendo, mas também, e principalmente, o de viver DEPOIS da
morte. Como dimensão estrutural e originária, sobreviver não deriva nem do viver nem do
morrer. Cito Derrida:

[...] la supervivencia es um concepto original, que constituye la estructura misma de lo


que llamamos existencia, el Da-sein. Somos estructuralmente supervivientes, marcados
por esta estructura de la huella, del testamento [...] Todo lo que digo acerca de la
supervivencia como complicación de la oposición vida/muerte procede em mi de uma
afirmación incondicional de la vida. La supervivencia es la vida más Allá de la vida, la
vida más que la vida [...] pues la supervivencia no es solo lo que queda: es la vida
más intensa posible. (DERRIDA, 2000, p. 49, grifo meu).

É desta condição estrutural que o texto do filósofo Jean-Luc Nancy é testemunha.


Entretanto, não o tomo como um texto filosófico, e justamente porque suponho que ele
testemunha uma mudança discursiva, um giro que inscreve o batimento de outra coisa, giro
causado por um desejo de transmitir o impossível de transmitir. Jean-Luc Nancy define o intruso

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como o que se introduz por força, por surpresa ou por astúcia, sem direito e sem ter sido admitido
de antemão; marcado, portanto, pelos traços que definem o real enquanto impossível: nem
palavra nem imagem podem antecipá-lo ou representá-lo. Nessa condição, o espírito é levado a
inventar. Enlaça-o imediatamente à condição de estrangeiridade, revelando a sua convivência
com aquilo que carece de familiaridade, de costume e de direito. O intruso enquanto estrangeiro é
uma perturbação na intimidade e opõe dificuldades (poderíamos dizer, resistência) tanto para a
sua admissão quanto para a sua concepção. Neste exato ponto do texto, tendo escrito apenas duas
páginas, o autor interrompe a frase com reticências, como a colocar em suspensão a dificuldade
que acabara de anunciar e, passando para outra coisa (seria outra?), inicia o relato em primeira
pessoa, enunciando: Eu; mas, antes mesmo de colocar o verbo, imediatamente se pergunta: quem,
“eu”? - inscrevendo, assim, a marca da posição enunciativa que se definirá, ao longo do relato,
marcada em constante divisão entre o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação que, intruso,
é dele o coração. O sujeito da enunciação é o cerne/coração ex-timo do sujeito do enunciado.
Aliás, é de seu coração, do autor, que se trata, pois ele logo nos informa, retomando a frase
interrompida: “eu recebi, então, o coração de outro” (NACY, 2006, p. 14).
Depreendemos da distinção entre o eu que enuncia e um “eu” que fala, ou seja, o outro,
que o sujeito da enunciação é o intruso. No Seminário XV (LACAN, 1967-68), Jacques Nassif
afirma: “Todo ato poderia se formular nestes temos, na medida em que o médio (refere-se à voz
média do verbo) em uma língua designa esta falha entre o sujeito do enunciado e sujeito da
enunciação”. Quem fala neste relato é, então, o intruso que habita um lugar interior/exterior ao
sujeito. Mas o intruso não é unívoco, logo seremos apresentados a várias figuras do intruso: no
início, trata-se deste outro que, sujeito da enunciação, parasita EU. Em seguida, a alteridade do
intruso se instala no coração do outro, órgão que será transplantado. Entretanto, um giro no
relato, introduzido pelo questionamento sobre o que vem a ser o seu “próprio coração” que
entrara em colapso, revela que o próprio é o outro nome do intruso/estrangeiro. O seu “próprio”
coração é agora o intruso. Como se dá este giro?
Para acompanhar essa mudança é necessário seguir o relato do que acontece com o
narrador quando lhe informam que teria que fazer um transplante de coração: o que marca este
momento é a vacilação dos signos; é a inversão dos pontos de referência; é a impossibilidade de
um ato. Apenas a “sensação física de um vazio já aberto no peito” (NANCY, 2006, p.16) se
apodera dele e instala um estado de indistinção: “nada poderia separar em mim o orgânico, o
simbólico e o imaginário” (NANCY, 2006, p.16). Uma mesma representação insiste para
significar/indicar esse momento: passar pela borda enquanto se permanece na cobertura: o vazio
já lá, no não ainda; que tempo hiante é esse que se instaura nessa defasagem? É assim que ele
vem a se dar conta de que o seu coração que até este momento batera sem cessar, lhe tinha sido,
até então, ausente, despercebido, e nisto se tornava alheio, fazia intrusão. O que vemos surgir
nesse momento é o horror da emergência do puro vivo, órgão que crua e obscenamente pulsa a
vida no interior do organismo, condição perdida quando nasceu como sujeito. Nada provoca mais
medo ou angústia, disse Lacan, do que a iminência de sermos reduzidos ao real do corpo. O
intruso é, então, este estranho que deveria ter ficado oculto, mas que, pela contingência de uma
falha, (um erro na programação da máquina?) ressurge/retorna provocando horror. No coração do
outro (em princípio exterior) e no próprio (familiar/íntimo) encontramos a mesma condição de
estrangeiro intruso. Mas a passagem do estatuto de intruso de um a outro ilumina a topologia

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singular que coloca em continuidade o dentro e o fora: “algo se desprendia de mim, ou surgia em
mim onde não havia nada: nada mais que a ‘própria’ imersão em mim de um ‘eu mesmo’ que
nunca tinha se identificado como esse corpo, ainda menos como esse coração, e que se
contemplava de repente” (NANCY, 2006, p.18).
O coração “próprio” converte-se, então, em estrangeiro, e justamente porque estava
dentro, diz o narrador, confessando que, se a estrangeiridade vinha de fora, era porque antes tinha
aparecido dentro. A intrusão real produziu efeitos surpreendentes, o mais impressionante sendo
que o espírito vem a se enfrentar com o que o autor denomina de objeto nulo: “nada que saber,
nada que compreender, nada que sentir” (NANCY, 2006, p.18-19). Produz aqui a intrusão de um
corpo alheio ao pensamento. Este é o ponto fundamental: o inconcebível para o pensamento, o
ponto em que o simbólico rateia frente ao objeto nulo. Uma passagem fundamental opera neste
ponto: da intrusão real de um corpo estranho (o seu próprio coração e o do outro) para a invasão
de um corpo alheio ao pensamento. Importante destacar que não se trata de uma metáfora, mas é
o real intruso no corpo que determina o inconcebível no pensamento. Afinal, como o autor
afirma, “(...) a falta de preparo para a morte não é mais do que a morte mesma: seu golpe e
injustiça” (NANCY, 2006, p.25).
Se a situação relatada é fruto de uma dupla contingência, ou melhor, do entrecruzamento
de duas contingências, uma pessoal – a falha do coração – e uma contingência na história das
técnicas – na medida em que a possibilidade de um transplante cardíaco bem-sucedido é fruto do
momento atual do avanço tecnocientífico – nem por isto, ou talvez justo por isto, ela deixa de ser
real na acepção que uma situação traumática lhe confere. “Antes, eu estaria morto; mais adiante
seria, pelo contrário, um sobrevivente. Mas sempre esse “eu” se encontra estreitamente
aprisionado em um nicho de possibilidades técnicas”. Efeito das técnicas, o “eu” se revela como
instância de desconhecimento da causa que move o sujeito.
Desafiando e excedendo a capacidade de representação, a coisa intrusa adquire a figura da
morte, ou melhor, a figura de “a vida/a morte” moebianamente enlaçadas: “(...) uma suspensão do
continuum de ser, uma escansão na qual ‘eu’ não tem/não tenho muito que fazer” (NANCY,
2006, p.26) – um corte radical, pura hiância figurada na abertura do tórax. O discurso que ordena
os dispositivos que tornam possível o transplante vige sob a égide de uma restitutio ad integrum,
fazendo fantasmaticamente crer que, encontrando um coração que de novo palpita, recupera-se
um estado de integridade mítica anterior. Neste ponto, o texto de Nancy mostra-se iluminador,
pois desvela a impossibilidade de retornar a uma condição anterior, e, assim, indica a potência
analítica da experiência: há um salto impossível de ser recoberto e já não se pode ser o “mesmo”.
O transplante não deixa de atualizar um ponto de conexão da morte de um com a vida de outro,
da morte com a vida, um ponto em que o incomunicável se comunica.
Ao longo da leitura de O intruso somos constantemente convocados a nos remeter ao
texto freudiano sobre o estranho. O que há de Unheimlich na condição do sujeito que se submete
a um transplante de coração para além da evidência da presença de um estrangeiro em si mesmo?
A dúvida sobre se na verdade é animado um ser em aparência vivo e, inversamente, se não pode
ter alma certa coisa inerte, indicada por Jentsch, é assumida por Freud como o ponto de partida de
suas indagações. O morto-vivo ou a figura andróide em que se transforma o sujeito situa-se
claramente na dimensão dessa dúvida: ainda sou “eu”? Quem “eu”?

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Mas é na figura do duplo que penso residir parte do efeito de estranhamento que atravessa
o sujeito. O estudo de Rank sobre o “duplo” revela os vínculos do duplo com a própria imagem
vista no espelho e com a sombra, o espírito tutelar, a doutrina da alma e o medo da morte.
Baseando-se em tal estudo, Freud observa que o duplo foi na sua origem uma segurança contra o
sepultamento do eu, um “enérgico desmentido” do poder da morte e que provavelmente a alma
“imortal” foi o primeiro duplo do corpo. Essas representações nasceram do irrestrito amor por si
mesmo – o narcisismo primário; mas com a superação desta fase, afirma Freud, muda o signo do
duplo: de um seguro de sobrevivência passa a ser o estranho anunciador da morte. Mudança do
familiar para o estranho. Mas, continua Freud, a representação do duplo não é necessariamente
abandonada junto com o narcisismo inicial, sobrevivendo em novas configurações do ego, pois
no interior deste se forma no percurso do desenvolvimento uma instância particular que pode
contrapor-se ao resto do eu, que serve à observação de si e à autocrítica. Tal instância realiza o
trabalho da censura psíquica e se faz notar como “consciência moral”. É pela intervenção desta
instância particular que o eu pode tratar como objeto o resto do eu. Capaz de observar-se a si
mesmo, tal instância possibilita preencher a antiga representação do duplo com um novo
conteúdo e atribuir-lhe diversas coisas, principalmente tudo aquilo que aparece frente à
autocrítica como pertencente ao velho narcisismo superado da época primordial.
Se bem que Freud admite que a motivação manifesta da figura do duplo não permite
compreender o grau extraordinariamente alto de Unheimlich a ele aderido, afirmando que o
caráter de estranho só pode residir no fato de que o duplo é uma formação oriunda das épocas
primordiais da alma já superadas, podemos atribuir o efeito de estranhamento tão presente na
situação vivida e no relato de O intruso à ausência de uma instância que por efeito da
avassaladora presença real do impensável não opera mais o recalcamento da origem do eu na
alteridade. Entretanto, como o próprio Freud nos adverte, é necessário fazer uma distinção entre o
estranho vivido e o estranho que meramente se representa ou sobre o qual se lê. No seio desta
distinção, reside uma questão importante quanto ao estatuto que podemos atribuir ao relato que
analisamos, pois tomando-o como o relato de uma situação vivida e que produz efeitos de
Unheimlich para o sujeito que a experimenta poderíamos apreciar a potência transmissiva do
texto ao atribuirmos ao relato o estatuto de metáfora de um processo de análise; entretanto,
tomando-o, para além do relato que é, como dotado de um caráter ficcional, portanto literário,
deveríamos encontrar na materialidade do texto os elementos que apresentam e encenam a
fantasia que comanda o ato de escrita. De todo modo, em ambas as condições, é legítimo propor
que algo passa.

REFERÊNCIAS

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Companhia das Letras, 1999.

Recebido em: 22 de maio de 2009


Aprovado em: 29 de junho de 2009

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