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Do estado de incerteza ao hiper-realismo distópico:


Uma reflexão sobre a violência na ficção contemporânea brasileira

Artigo proposto como requisito de conclusão da disciplina Tópicos Avançados em


Estudos Literários III: Literatura e Utopia, ministrada pela Profª. Drª. Ildney Cavalcanti.

Por Marcus Vinícius Matias1

O estado de incerteza

Para iniciar esse artigo partirei de uma breve reflexão sobre a literatura
detetivesca e policial clássica, e seu desdobramento em uma versão contemporânea que
apresenta como principal característica a desconstrução desse gênero: o anti-detetive.
Nesse sentido, poderia afirmar que essa vertente do gênero detetivesco, de uma forma
bem abrangente, está muito próxima da representação contemporânea dos conflitos
distópicos que pretendo abordar ao longo dessa análise, pois, em sua trajetória histórica,
podemos perceber a mudança de um estado ficcional de certeza absoluta, a um estado
de verdades fragmentadas e inconstâncias, culminando em uma literatura na qual a
violência emerge como principal protagonista.
Em uma leitura analítica da ficção anti-detetivesca, portanto, é possível perceber
os efeitos de uma narrativa imprecisa e conflituosa que podem levar habituais leitores
de histórias clássicas de detetive a um possível estado de incerteza em relação à
credibilidade do que é narrado (se levarmos em conta a forma narrativa), assim como a
questionamentos a cerca dos valores morais e da segurança social (se levarmos em
conta a recepção do conteúdo), ou seja, a uma espécie de deslocamento de um estado de
conforto, em relação à previsibilidade típica da narrativa detetivesca, para um estado
caótico devido à decadência social representada nos gêneros citados. Isso pode ser
observado por meio de uma reflexão sobre a leitura/recepção de obras literárias com
esse tema, e que tem como origem uma narrativa da violência contextualizada em uma
contemporaneidade ágil e de constante oscilação entre o real e o ficcional, apontando
para uma visão distópica acentuada sobre nossa realidade.
Convergindo com as histórias policiais e detetivescas, poderemos aproximar a
narrativa da violência a esse gênero, começando pela análise do próprio narrador
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Marcus Vinícius Matias é Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística, da
Universidade Federal de Alagoas, em Língua Inglesa e suas Literaturas, com a dissertação Exploring the
Glassy Maze: Paul Auster’s postmodern anti-detective Fiction, sob a orientação da Profª. Drª. Ildney
Cavalcanti, e, atualmente, doutorando pelo mesmo programa, na linha de pesquisa Literatura, Cultura e
Sociedade. Atua, também, como professor assistente da Fale (Ufal).
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protagonista de tal narrativa, uma vez que seu ato de provocar e descrever uma situação
abusiva sugere que “todo relato é [ou passa a ser] policial” (PIGLIA, 1996, p. 50). Um
bom exemplo disso são os contos “Feliz ano novo” (1994), de Rubem Fonseca, e “A
Lei” (2007), de André Sant’Anna, nas quais há um conflito entre quem narra e o que é
narrado, como uma espécie de confissão e testemunho, culpa e prazer, ou simplesmente
uma postura cínica e perversa em relação a uma dada realidade cruel e conformada em
sua miséria.
O fato é que o narrador participa das cenas de crueldade como observador e
praticante desses atos perversos. Logo, a reciprocidade entre o que se fala e quem fala é
compulsivamente analisada pelo próprio narrador, cíclica e infindavelmente; “O fato é
que [nesse tipo de narrativa] a incerteza entre confissão e testemunho, imaginação,
lembrança ou mera ilusão terminam invadindo o real e diluindo irreversivelmente suas
fronteiras” (DIAS, 2008, p. 34). Daí a relação com as histórias ficcionais
contemporâneas de anti-detetive: a impressão de que a narrativa ou não irá nos levar a
uma elucidação conclusiva de um crime/mistério, ou que a história irá ser concluída
com um grande questionamento ontológico.
Com efeito, se há uma característica marcante em histórias clássicas de detetive,
esta é, justamente, a certeza de que a solução do mistério será revelada pela figura do
detetive, que é aquele que mantém a ordem hegemônica e a assepsia social, baseando-se
na crença em um mundo de estruturas fixas e previsíveis, herdada do pensamento
positivista. Ao contrário das narrativas da violência ou de histórias de anti-detetive, é
essa estrutura fixa e, portanto, previsível das narrativas detetivescas clássicas que nos dá
a confortável segurança de um fim conclusivo e esclarecedor.
No entanto, pela voz desse novo e incerto personagem (o anti-detetive), a
segurança de se chegar a uma conclusão satisfatória devido à previsibilidade dos
acontecimentos, generosamente cedida aos leitores pelas investigações engenhosas do
detetive ficcional e seu raciocínio cientifico positivista, agora já não é mais garantida, e
esse controle quase asséptico da ordem e da credibilidade dos fatos dilui-se ao longo de
uma narrativa subvertida por questões conflituosas envolvendo a alteridade do
protagonista.
Perdido em seus próprios questionamentos, o anti-detetive já não sabe ao certo
em que lado da fronteira social ele se encontra, nem se ainda existem fronteiras. Essas
linhas imaginárias que, no contexto histórico (extra literário), foram claramente
demarcadas pelos poderes hegemônicos e passaram a determinar os espaços de controle
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no contexto urbano; daí sua representação em gêneros como o de detetive e anti-


detetive.
Como consequência, essas fronteiras criaram sucos profundos também nas artes,
quando surgiram definições sobre o que era boa literatura e o que não era, ou na criação
e estabelecimento de galerias e museus como os únicos locais para arte, numa clara
demarcação de centros de poder e controle da expressão artística e do pensamento.
Foi justamente em reação a isso, no início do pós-modernismo, que as fronteiras
começaram a se confundir e fragmentar. Assim, por meio de novas percepções como,
por exemplo, de que somos sujeitos de identidades múltiplas, como afirma Stuart Hall
(2002), os fatos e conceitos, até então fixos e previsíveis, se transformaram em
possibilidades, em um grande “e se...?”. Percebo, então, uma clara relação entre a
mudança de pensamento sócio-hitórico, e o desenvolvimento de um gênero detetivesco
que questiona verdades absolutas e discursos monolíticos.
Dá-se início, então, a novas técnicas, meios e perspectivas na narrativa
contemporânea e na expressão do pensamento e da representação do contexto urbano,
ao mesmo tempo em que novas incertezas germinam no sonho utópico de um mundo
melhor, positivo, científico e classificável em grupos rotulados, herdado do positivismo
e de sua visão cientificista.
Em se tratando de literatura, e, mais especificamente, de literatura
contemporânea brasileira, essas incertezas citadas acima podem ser percebidas não
exclusivamente nos gêneros detetivesco e policial (embora sejam neles bem evidentes),
mas também em seus desdobramentos, ou seja, em obras e gêneros cujo tema é a
violência.
Nessas obras, talvez ainda como resquício do rigor cientificista, ou para
provocar um efeito de veracidade documental, a necessidade de uma narração detalhada
e minuciosa de cenas como as de tortura, ou descrições de comunidades periféricas,
onde a violência é determinante, aflora em uma convulsão de imagens cujo efeito parece
ser a de perpetuar a presença da crueldade urbana, evitando que ela se torne lugar
comum.
Na ânsia de não apagar tais imagens, a plasticidade da verossimilhança ganha
contornos hiperrealistas calcados na crueldade e no terror, que provavelmente
conquistam seu espaço em meio a essa incerteza contemporânea comentada
anteriormente. Um dos recursos utilizados para tanto é o uso de fotografias, muitas
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vezes como suporte ao texto literário2, que agem como uma espécie de espelhamento
das imagens narradas, mas que, também, à custa da qualidade literária, ameaçam o teor
ficcional da obra. Como afirma Ângela Dias:
A volúpia de captação do real, o terror de que escorra pelo ralo, a
obstinação em apreendê-lo na eternidade imóvel do visível tendem,
então, a empobrecer a dimensão ficcional da experiência e a
transformá-la em inventário classificatório de tipos e espaços de
exceção: da mesma forma que o quadro de insetos preservados pelo
entomologista, em seu laboratório. (2008, p. 30)

Deixando o uso da fotografia de lado, e assumindo uma estratégia narrativa


hiperrealista, mas com o mesmo intuito de levar uma determinada cena de violência a
uma descrição quase fotográfica, obras como o conto “A lei” (2007), o romance Cidade
de Deus (2002), e outras histórias de crime e de policiais ficcionais que transitam entre a
instituição social e o lado obscuro dessa mesma sociedade, retratam em um
detalhamento minucioso as ações perversas de seus personagens.
Essa estratégia narrativa revela também o quão dúbios se mostram os valores e
crenças diante de uma violência igualmente dúbia: as variações da violência vão para
além da agressão física, quando, por exemplo, se instalam no estado psicológico, tanto
de seus personagens (como em “A lei”), quanto nos de seus próprios leitores/receptores,
ou quando atingem níveis de crueldade que, segundo Ângela Dias (2008), podem ser
exóticas ou melancólicas. A narrativa da violência pode, também, ser percebida em
situações menos reais do que comerciais, como é o caso de se explorar a violência
diariamente para manter a audiência de um telejornal.
Daí a função hiperrealista de se opor a banalização da crueldade, através do
olhar detalhista na narrativa da violência sobre as torturas e crimes cada vez mais cruéis.
Como argumenta Ângela Dias (2008), esse é um olhar fotográfico e ansioso, que não
pode deixar qualquer detalhe de crueldade fora da cena; o mesmo olhar que
encontramos nos contos de André Sant’Anna.
Em “A Lei” (2007), é o narrador que nos apresenta sua história: a de um policial
que se considera burro e perverso e que comete atos de extrema violência (física e
psicológica), acobertados pela sua profissão e inspirados pelos contextos e situações
urbanas que fazem parte de sua rotina. “Eu não estou escrevendo. Eu só estou pensando
que estou escrevendo. É que eu sou burro. Sabe por quê? Porque eu sou da polícia. E na

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Em O capão pecado, de Ferréz, imagens fotográficas da favela e seus habitantes são exibidas na
intenção de reforçar as descrições de condições sociais diversas, narradas por uma perspectiva ficcional,
mas que acabam por comprometer o discurso numa espécie de neutralização, uma vez que os leitores são
privados da imaginação em nome de uma pretensa autenticação fotográfica.
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polícia todo mundo é burro. Tem que ser burro para ser da polícia” (A lei, 2007, p. 34).
As cenas de estupro de crianças de rua, com a utilização de uma lista telefônica e
narradas em detalhes (inclusive orgânicos), e os requintes de sadismo ao descrever os
espancamentos de mendigos ultrapassam a condição humana, o transformando em uma
criatura, de fato, monstruosa, como pode ser observado no fragmento abaixo:
[...] a gente, nós, os bandidos da polícia, burros, faz, fazemos, na
prática, na real, é uma parada de gostar mesmo, é uma parada na
região genital mesmo, uma parada freudiana mesmo, entre o pau, a
libido e a sacanagem, a maldade, coisa que a gente sente no pau,
quando pega um mendigo, desses acabados, desses que só estão
esperando morrer [...] gostamos, no pau, na libido, de ficar chutando
esse mendigo, [a gente] gosta de ver ele, de o ver, vomitando sangue,
gritando muito no começo e depois indo perdendo a força, todo
arrebentado, até começar a gemer baixinho, a gemer quase morto,
quase não sentindo mais nada, porque a gente faz ele, o bosta, o
mendigo, o otário, não sentir mais nada e esse não sentir mais nada
naquele bolo de carne e sangue e pinga é uma morte viva e ele, aquele
troço desfigurado que a gente chuta na cara, gemendo, da um tesão na
gente[...]. (A lei, 2007, p. 38)

Nesse fragmento percebe-se o tipo perverso de violência que é deflagrado pelo


protagonista policial, partindo de questões sociais e que chegam à sua essência pelos
conflitos sexuais. Tais conflitos são explicitados ainda mais quando ele se refere às
mendigas:
Mas a gente que é, que somos, animal, burros, sente mais tesão,
mesmo, é quando a gente pode dar porrada em mulher. Aí é tesão
mesmo, [...] Porque nesse caso, tem a boceta também, onde a gente
pode enfiar umas coisas, pode enfiar o cano do revolver, pode enfiar
garrafa quebrada, pode enfiar faca, enfiar e tirar, enfiar e tirar, enfiar
e tirar e ir rasgando tudo e fica saindo sangue e a gente, que é a
polícia, fica rindo. (A Lei, 2007, p.39)

Nos dois fragmentos acima é possível perceber a forma detalhada, e por isso
hiperrealista, com que as ações de espancamento e estupro sádicos são realizadas,
principalmente as sensações de prazer e alegria descritas e sentidas pelo
narrador/protagonista, que em seu lugar de policial nos revela a liberdade que tem para
realizar tal ato monstruoso. É o que chamo de Hiperrealismo Distópico: narrativas que
revelam tais paradoxos (como um representante de uma instituição que deveria garantir
a segurança e integridade das pessoas, mas que as aniquila), com base nas descrições
minuciosamente detalhadas desses atos de crueza e monstruosidade, podendo levar a
uma visão pessimista sobre o futuro da vida em uma sociedade ameaçada cada vez mais
por ações violentas em um meio urbano hostil, sem que saibamos mais de que lado está
o bem e o mal.
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Assim como no início dos grandes centros urbanos europeus dos séculos XVIII e
XIX, nos vemos de novo às voltas com a paranóia do medo provocado pela violência
urbana massivamente divulgada pelos tablóides, e suas representações na literatura. No
passado, a figura do detetive ficcional, esse herói que age por meio do uso do intelecto e
da ciência, surgiu como uma forma de sublimar e sugerir uma ilusória idéia de que ele
iria nos proteger e manter a salvo sob o olhar vigilante da segurança. Percebo, então,
como o real e o literário conseguem manter uma relação dialógica na busca por
respostas para, nesse caso, os novos modos de vida e suas relações com a
contemporaneidade, ou mais que isso: como as fronteiras entre o real e o ficcional estão
cada vez mais rasuradas.
O efeito desse enfoque contínuo sobre a violência “real”, sua ficcionalização na
narrativa e o terror provocado por ela, ampliado por uma lente de aumento (o que
considero hiperrealismo), será abordado no tópico seguinte.
O hiper-realismo distópico
O que chamo neste artigo de hiperrealismo distópico tem como ponto de partida
questões voltadas à forma amplificada como a violência está sendo representada na
literatura contemporânea brasileira e seus efeitos, como o pavor ou a incerteza diante de
uma falsa integridade social face à violência, o que também pode se estender à produção
literária contemporânea estrangeira.
No entanto, antes de me aprofundar no conceito de hiperrealismo distópico, será
preciso estabelecer a origem desse termo, apoiando, portanto, minha argumentação.
Nesse sentido, começarei definindo a percepção de realismo na presente literatura, para
depois seguir minha abordagem sobre como surge o conceito de hiperrealismo.
Partindo de uma perspectiva bem abrangente, o termo realismo é entendido
como um modo de percepção objetiva da realidade. Ou, segundo o filósofo Evaldo Pauli
(1997),
É pela colocação exata dos termos do conhecimento que se decide
entre realismo e idealismo. Colocados os termos exatos do
conhecimento ele se revela desde logo como direcionado a um objeto
real: conheço, e, portanto, eu realmente existo; penso objetos, e,
portanto, eles existem (ENCICLOPÉDIA SIMPÓZIO).

No entanto, o realismo também assume uma definição estética quando pensamos


nas artes, o que sugere uma nova leitura do contexto histórico e político iniciado no séc.
XIX até a década de 60, do séc. XX, em que a arte procurava representar a situação
social do homem comum, em oposição aos idealismos românticos.
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Dessa forma, é possível perceber já de início que, por ser uma representação da
realidade, sua essência objetiva se dilui em uma interpretação desse “real”, ou seja, dos
objetos no contexto histórico e social. O realismo, como um movimento filosófico e
estético, que fazia emergir sobre as camadas sociais um entendimento sobre o contexto
histórico e social, possibilitava, aos mais atentos, o desenvolvimento de uma visão
crítica sobre as ações de pessoas comuns.
Como a questão da imagem é relevante nessa discussão, não poderia deixar de
fora um grande representante do movimento realista do séc. XIX, o pintor Gustave
Courbet, que passou a retratar trabalhadores e homens do povo em suas telas. Isso
possibilitou a criação de uma relação de proximidade entre as manifestações artísticas e
sociais, conforme perceptível nas influências anarquistas em sua produção.
Enquanto isso, na Inglaterra do século XIX, pintores como John Everett Millais,
William Holman Hunt e Dante Gabriel Rossetti também se mostraram atraídos pelo
movimento realista, que, apesar de se diferenciarem das preocupações sociais de
Courbet, apresentam a mesma preocupação com a precisão e o detalhamento em
trabalhos que apresentam temas literários e psicológicos, como Ofélia (1851/1852), de
Millais. São, portanto, características como a precisão e o detalhamento, e a
representação de um contexto sócio-histórico, que, mais tarde, determinarão a
configuração do que adoto como características marcantes do hiperrealismo.
A forma como o contexto social é apreendido pelo artista e, através de sua obra,
recebida pelo seu público é, portanto, uma questão que está presente em todo o efeito da
expressão realista, provocando questionamentos próprios a esse movimento, tais como:
um objeto só é real quando passa pela percepção de seu observador, ou pode existir
independente dele? É possível manipular esse objeto na intenção de despertar uma
recepção mais aguda sobre ele, para, então, levar seu observador a um nível reflexivo
mais profundo?
Para tentar responder esses questionamentos usarei, como exemplo, a forma
como a percepção de um gato se difere da de um humano. É notório que o gato
consegue perceber uma frequência sonora que não conseguimos captar. Para o realismo
empírico sons em tal frequência, no entanto, não existiriam porque não os
perceberíamos, ou seja, não são perceptíveis em nossa mente. Mas passariam a existir
se, indiretamente, os percebêssemos através do movimento das orelhas do gato em
direção a uma suposta fonte sonora. Logo, por uma visão moderna, a condição realista
estaria vinculada não apenas à materialidade do objeto propriamente dito (o som), mas
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às relações que criamos com ou a partir desse objeto (inferir o som pelo movimento das
orelhas do gato).
No entanto, essa precisão descritiva e relacional irá se desgastar ao longo do
século XX e exigirá, já na passagem para o século XXI, mais do que uma representação
do real. Para atrair a atenção dos leitores ou apreciadores de artes visuais tão
massivamente cercados por imagens através da mídia, será necessário oferecer uma
realidade tão aguda, que, em seu extremo, ela perde a própria característica de “real”,
tornando-se um realismo mais fotográfico, ou hiperrealismo.
Logo, toda essa digressão pelo realismo tem sua justificativa: uma das
características que definem o hiperrealismo é, precisamente, o fato de ele ser uma
espécie de movimento de otimização do realismo na arte contemporânea. Aproveitando-
se das vantagens da vida pós-moderna e da cibercultura, como a liberdade na utilização
de materiais, técnicas e tecnologias disponíveis na contemporaneidade, essa nova
técnica narrativa e artística se constitui como sendo mais que um simples retorno às
concepções realistas do séc. XIX, mas uma expansão dessas concepções, levando a
extremos a noção de representação objetiva do mundo histórico, e as relações, diretas ou
indiretas, criadas entre as percepções dos observadores desse mundo e seus objetos.
Curiosamente, o hiperrealismo não apresenta tanto destaque na filosofia quanto
nas artes, esfera na qual a preocupação em detalhar as imagens chega à tamanha
precisão que obras pictóricas hiperrealistas assumem uma grande semelhança com a
fotografia, chegando a se confundir com ela. Daí o hiperrealismo ser conhecido também
como “foto-realismo”. No entanto, Richard Estes (2005), famoso por suas pinturas foto-
realistas e um dos destaques na produção artística hiperrealista, afirma: "Não acredito
que a fotografia dê a última palavra sobre a realidade", embora admita que "o foto-
realismo não poderia existir sem a fotografia".
Ao percebermos a contemporaneidade e seu apelo às imagens, tanto na TV
quanto nos meios multimidiáticos, na linguagem “nervosa” das tomadas de cena do
cinema moderno hollywoodiano, nos videogames e nos videoclipes, não é difícil chegar
à conclusão de que estamos na era da imagem e diante de um cenário ideal para um
movimento que se alimenta disso. Mas como isso acontece?
Não se trata de apenas reproduzir fielmente em imagens cenas de um cotidiano,
ou um objeto do cotidiano, mas de restaurar uma visão, ou melhor, uma recepção já
desgastada pelo excesso dessas imagens, a fim de evitar que seu poder seja minimizado
pela banalidade. Daí a força do hiperrealismo: criar um enfoque tão agudo sobre algo,
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ou um objeto tipificado, por via do exagero e da ênfase nos detalhes, que sua imagem e
efeitos parecem ganhar contornos revigorados de si mesmos. Robert Bechtle (2005),
pintor estadunidense, por exemplo, desenvolve seu trabalho tendo como objeto de
representação o universo da classe média, tentando recuperar pela exploração de
situações banais uma experiência mais ampla, seguindo um movimento contrário: se há
um desgaste da imagem, que a leva a banalização, o pintor parte justamente dessa
banalização para resgatar o sentido inicial dessa imagem e todo seu caráter simbólico.
Essa ênfase nos detalhes é perceptível, principalmente, em esculturas e pinturas,
mas na literatura o uso de técnicas hiperrealistas ainda é recente, podendo ser
normalmente percebida quando da utilização de descrições que, devido à sua minúcia,
se aproximam da precisão de uma imagem fotográfica. Por exemplo, uma cena de
tortura pode ser narrada de forma tão precisa e detalhada, ao sugerir uma imagem
formada na mente do leitor/receptor, que se torna, de fato, uma verossimilhança
fotográfica, como foi exemplificado através do conto de André Sant’Anna.
Na descrição de comunidades periféricas das favelas do Rio de Janeiro, em
romances como Inferno (2000), de Patrícia Melo, ou Cidade de Deus (2002), de Paulo
Lins, a violência emerge nas páginas de uma forma tão minuciosa e precisa quanto uma
tomada de cinema. É o caso de uma passagem na obra de Patrícia Melo, onde o
protagonista, Reizinho, um garoto de 13 anos que “trabalha” como vigia do morro para
alertar sobre a chegada da polícia, descreve seu itinerário de casa até seu ponto de
observação. A forma frenética de um texto fragmentado em um excesso de vírgulas que
ora separam substantivos, ora verbos, ou frases curtas e adjetivos mais parece com tiros
de metralhadoras, algo comum nos morros do Rio, mas que conseguem dar movimento
cinematográfico às palavras estáticas na página:
Durante a caminhada morro acima, domésticas sorriem para ele, passam,
crianças, gente indo para o trabalho, oi Reizinho, pedreiros, cumprimentam,
crianças, cachorros, eletricistas, oi, acenam as mãos, latem, cadelas, babás e
digitadores, cachorros, encanadores, gigolôs, porteiros, ladrões de carros,
crianças, sorriem, traficantes de armas, o local é tumultuado, crianças,
lamentos, é barulhento, confuso, entulhado, sujo e colorido. (INFERNO,
2000, p.10)

Praticamente nos sentimos no lugar de Reizinho, olhando, sentindo e percebendo


todo movimento e estímulos que passam por ele na sua caminhada; quase estamos lá, ao
seu lado, cumprimentando e sendo cumprimentado pelos passantes, em uma
representação hiperrealista (porque há um exagero descritivo da ação) de sua rotina. A
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escritora consegue, então, representar em detalhes o que provavelmente vê e sente um


morador dos morros do Rio em seu trajeto diário.
O hiperrealismo, portanto, surge em sua forma através do exagero de um
determinado contexto ou objeto, como uma resposta ao, ou conseqüência de um, abuso
da imagem e sua consequente banalização. A própria morte, depois dos resultados das
pesquisas sobre clonagem, e sua divulgação diária nos telejornais e filmes de ação, está
correndo o risco de se tornar banal: morrer passou a fazer parte de uma seqüência
rotineira de anúncios de programas de notícias.
Nesse sentido, através de narrativas ficcionais, como a da violência, o
hiperrealismo pode provocar efeitos de representação exagerada do “real”, com o
propósito de despertar (ou reavivar) nossa percepção sobre o que realmente está
acontecendo no mundo histórico. Assim fazendo, qual será sua consequência? Quais
efeitos podem ser despertados na mente de um leitor/receptor mais atento?
Com base nas minhas reflexões, penso que na recepção de obras literárias com
um enfoque hiperrealista sobre a violência, pode haver pelo menos dois movimentos
distintos: o de despertar uma percepção do contexto histórico e social que envolve o
observador, por uma perspectiva caótica e terrível, levando-o a um estado de incerteza e
de busca desesperada por uma forma qualquer de segurança; ou o de despertar essa
mesma consciência só que por uma perspectiva distópica, ou seja, de descrença em um
futuro melhor, provocando uma reflexão sobre o caos, podendo guiá-lo para uma
posterior busca por uma saída utópica.
É sobre esses aspectos que desenvolverei o próximo sub-tópico, com a intenção
de, primeiro, discorrer sobre os possíveis efeitos da violência sobre a mente dos leitores;
e, segundo, a criação de um estado distópico do pensamento.
A ficção e o terror
Segundo Martin Heidegger (1976), há uma diferença bem clara entre medo e
terror. O primeiro é reconhecível e, portanto, analisável como algo palpável,
classificável. Assim sendo, podemos reconhecê-lo e buscar um controle sobre ele, ou
até atacá-lo. “Nós estamos sempre com medo disso ou daquilo, uma coisa definida, que
nos ameaça desse ou daquele jeito definido” (HEIDEGGER, 1976, p.121).
Então, sendo o medo relativo a um objeto específico, ele pode ser compreendido,
e alguns podem fazer, e até fazem, uso dele. Mas o terror, não. O terror é abstrato, o
terror é esse nada insólito e impalpável: o desconhecido, “ele representa a
impossibilidade essencial de definir o ‘o que’” (HEIDEGGER, 1976, p.121). Esta é,
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segundo Heidegger, a estrutura da realidade que, acrescento, compõe o cenário


contemporâneo. É nessa estrutura que a narrativa da violência se apresenta e desperta a
grande incerteza sobre a segurança social e seus valores corrompidos.
Logo, ao imaginar que essa ameaça impalpável e inclassificável, o terror, age
como um espectro assombrando o imaginário social, concluo que não só a idéia de uma
sociedade baseada em conceitos sólidos de moral e valores se desfaz sob o efeito
ameaçador da incerteza, mas também que outros efeitos isso pode trazer nas novas
concepções de relações sociais. Esse caos nas relações sociais, principalmente, urbanas,
me leva aos conceitos de Ângela Dias (2000) ao classifica pelo menos três tipos de
crueldades possíveis nessas relações: a crueldade propriamente dita (a da dor física da
qual não há escapatória); a crueldade exótica e a crueldade melancólica.
É essa última, a crueldade da melancolia, provocada pela perda narcisista (de
não ser mais reconhecido no olhar do outro, ou se negar ao outro, restando apenas o eu
vazio) que, particularmente, me chama atenção, porque ela nos torna mais vulneráveis
ao desconhecido e, portanto, nos insere em uma filosofia da incerteza, alimentada pelo
espectro do terror. Assim, se nossa identidade, segundo Laccan, está no olhar do outro e
se esse olhar tornou-se vazio, então aqui reside a crueldade melancólica, crueldade que
fere pela indiferença narcísica. Além dos rostos anônimos que habitam os grandes
centros urbanos, agora surge também a privação identitária, o não-ser vivente e
excluído, daí a crueldade: privar o ser de sua existência.
A distopia
O termo distopia tem sido usado nos estudos literários para conceituar uma
perspectiva decadente ou pessimista em relação ao futuro dos sistemas sociais e seus
contextos, principalmente, urbanos, como podemos observar no conceito oferecido por
Tom Moylan ao citar Sargent e sua lista de taxionomia relativa aos subgêneros dos
utopismos literários, como sendo:
uma sociedade inexistente descrita em consideráveis detalhes e
normalmente localizada em um tempo e espaço que o autor pretende
sugerir a um leitor contemporâneo como pior que uma sociedade
contemporânea, mas que normalmente inclui pelo menos uma enclave
eutópica ou sustenta a esperança que a distopia pode ser superada e
substituída pela eutopia (p.195) 3

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A non-existent society described in considerable detail and normally located in time and space that the
author intended a contemporaneous reader to view as worse than contemporary society but that normally
includes at least one eutopian enclave or holds out hope that the dystopia can be overcome and replaced
with a eutopia. Todas as traduções foram feitas por mim.
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A distopia pode, também, ser entendida por pelo menos dois outros princípios: o
da crítica, o qual se opõe a uma possível tendência ditatorial da utopia, quando essa
passa a impor a idealização de um Estado perfeito (como é o caso da obra de Thomas
More), sendo desejado como prática real, mas que não atende as necessidades
individuais, tais como a liberdade e individualização da responsabilidade (NUNES,
2010); ou o principio da descrença, segundo o qual não há um futuro melhor,
entendendo este futuro como um lugar decadente e problemático.
Em relação à crítica ao pensamento utópico, a distopia assume a função
reguladora de evitar que, em nome de um ideal harmônico e coletivo, um determinado
sistema político acabe por atingir exatamente o objetivo contrário, ao cercear a
liberdade de expressão ao custo desse mesmo ideal coletivo. Nesse sentido, é possível
afirmar que o século XX presenciou muitos exemplos desastrosos da aplicação utópica
na tentativa de construção de uma sociedade perfeita, como é o caso de sistemas
políticos com propostas libertárias que acabaram tornando-se sistemas ditatoriais.
Por conta disso, muitas produções literárias passaram a abordar uma perspectiva
negativa e em contextos urbanos, abandonando o sonho utópico de um lugar melhor e
bucólico, principalmente após as grandes guerras, para assumirem uma postura mais
voltada a um futuro, ou presente, decadente, a exemplo de Brave New World (1930), de
Aldous Huxley; Animal Farm (1945) e Nineteen Eighty-Four (1948), ambas de George
Orwell, onde são narrados sistemas e relações sociais de controle, que surgiram de uma
proposta de coletividade igualitária e harmônica.
É como se a tentativa de se criar uma sociedade onde todos tivessem os mesmos
direitos, devesse se manter apenas no nível da idealização, porque o impulso de
concretizar esse sonho levaria, inevitavelmente, o sujeito à destruição de si próprio e à
instauração de um sistema ditatorial opressor e decadente, ou seja, a uma realidade
distópica.
Com o olhar voltado para esse novo mundo distópico, críticas sobre a crescente
manifestação da violência e um inevitável futuro caótico, passaram a ser mais
recorrentes na literatura e no cinema contemporâneos. Obras como A Clockwork
Orange (1962), do escritor Anthony Burgess, representam uma sociedade sitiada pela
degeneração juvenil e, consequentemente, ameaçada pela violência.
No caso da obra de Burgess, um grupo de jovens cultua o que eles chamam de
“ultra violência”, como forma de expressão e passa-tempo, em um cenário atemporal,
mas que sugere algo futurista-psicodélico, no qual a ordem e tranquilidade são
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subjugadas por seus atos. Até que um grupo de pesquisadores e representantes do


Estado, em um desejo utópico, ou seja, em nome de um ideal político que pretendia
restabelecer o bem estar social acabando com os impulsos agressivos de seus habitantes,
decide adotar experimentos em um desses jovens (seu líder), na tentativa de conter seus
atos agressivos e apresentar uma solução para o problema social da violência.
O resultado é desastroso, e o jovem volta a assumir o mesmo caráter cínico de
outrora. Esse final pode ser interpretado como uma crítica ao pensamento utópico, que
visa a criação de um novo sistema político social em lugar do caótico contexto
permeado por problemas reais experimentados por uma determinada sociedade. Em
relação a obras como esta, a pesquisadora Christina Braid afirma que:
Enquanto seus [distópicos] mundos ficcionais elucidam o ameaçador
pesadelo da violência que se espalha – uma violência que de alguma
forma não pode escapar da condição humana - as distopias têm
também imaginado tais possibilidades, tais mundos que deixam os
leitores ponderando sobre a tão imobilizada complexidade que
governa as relações entre a justiça, o Estado e o individuo.
Textos utópicos, particularmente no modo distópico, são apropriados
e essenciais, e podem apoiar o exame dialógico recomendado por de
Vries e Weber entre as disciplinas sobre o tópico da violência. (2006,
p. 47–65)4

Em “A lei”, por exemplo, a insistência em representar ficcionalmente cenas ou


situações violentas narradas exata e objetivamente, como que estabelecendo uma
representação da experiência histórica, acaba por criar uma representação exagerada
daquele “real”, e, ao mesmo tempo, despertar o terror de nos sentirmos em meio a essa
violência, ao direcionar a recepção de tal história para um referente extra literário
caótico.
Com efeito, segundo Heidegger, esse estado de terror sobre o desconhecido, uma
vez que a violência ganha proporções complexas e multiformes na contemporaneidade,
acaba por nos deixar em uma espécie de suspensão frente a qualquer reação, já que
“todas as coisas, e nós junto com elas, afundam dentro de um tipo de indiferença. Mas
não no sentido de um mero desaparecer; em se afastando elas se voltam para nós”
(HEIDEGGER, 1976, p. 122), como o olhar vazio do outro determinando nossa
identidade.

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While their fictitious worlds elucidate the looming nightmare of repressive violence that pervades—a
violence that somehow cannot escape the human condition—dystopias have also imagined such
possibilities, such worlds that leave readers to ponder the often immobilizing complexities governing the
relationship between justice, state, and individual. Utopian writing, particularly in the dystopian mode, is
appropriate and essential and might support deVries and Weber’s (1997) recommended dialogical
examination between disciplines on the topic of violence.
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É esse observar de longe, que nos aproxima do terror, que nos rodeia e nos
oprime, já que não há nada a que nos agarrar, nada a classificar como uma ameaça
objetiva. Há apenas a violência de algo que, por não conseguirmos classificar, se torna
um “nada” opressivo.
No entanto, é provavelmente a tentativa de superarmos esse estado de terror que
pode nos dar consciência do declínio de um mundo construído como um sistema
homogêneo, o qual é formado por objetos e leis bem definidos. A consciência desse
novo estado do pensamento pode ser engendrada pela via do deslocamento da percepção
causada pela violência. O terror é opressivo, portanto, porque, ao nos cobrir com seu
manto da incerteza, ele acaba por revelar que não há nada ou ninguém a quem recorrer a
não ser a nossa própria consciência.
Em uma analogia direta com as histórias ficcionais de detetive, podemos
observar que o detetive ficcional perdeu-se em sua própria busca e já não pode mais nos
amparar em nome de um poder hegemônico, que agora também se vê sob a ameaça do
caos urbano. Nesse sentido, ao nos levar ao nada, o terror acaba por destruir, “quebrar, o
caráter superficial e a habitação inclusiva do homem falso” ( SPANOS,1987, p.16), um
cidadão que vivia sob a ilusão de um sistema imune a deterioração social.
É assim que o hiperrealismo distópico apresenta-se aqui como uma possível
resposta crítico-reflexiva a um sistema sócio-político-cultural corrompido pela
violência, que, representada em obras literárias brasileiras contemporâneas, pode levar
seus leitores/receptores à criação de um pensamento reflexivo sobre sua realidade
histórica.
O efeito disso pode ser, primeiro, um estado de angústia causado pelo terror e o
caos sugerido por tais obras, para, depois, refletir sobre uma possível saída desse estado.
Se essa saída é pela via da ironia, cinismo e culto ao caos, ou por novas propostas
utópicas, isso vai depender do contexto no qual tal reflexão é elaborada. Ou, como
aponta Ângela Dias:
A ditadura da imagem, ao reproduzir um real em que personagens,
como fantoches ou sombras, arremedam as aparências lustrosas da
mídia, pelo efeito hiper-realista que cria, pode ser tanto a réplica de
um narrador crítico e enojado com a vulgaridade corrente, como a
cínica mimesis de um descrente com o mundo corrompido, que se
compraz em apostar no caos (2008, p. 34).

A questão levantada aqui é que, com a criação de uma imagem exagerada sobre
um contexto violento, ou sobre a representação de um estado de violência nas
experiências extra literárias, um inevitável mundo de incertezas e instabilidades é
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transportado para dentro das obras literárias, através de uma “redução estrutural” que,
por sua vez, pode representar uma realidade abusiva.
A percepção dessa realidade pode ter como resultado uma reação por parte dos
leitores/receptores que, ao perceberem uma realidade distópica, podem partir para a
busca de um estado melhor, criando, portanto, um movimento dialógico entre distopia e
utopia; uma sendo possível apenas na condição da existência da outra.
Esse movimento de tomada de consciência, por meio de uma visão distópica,
pode levar a uma reflexão sobre um determinado contexto histórico, permitindo o
princípio de uma reação crítica que desenvolva talvez, a novas concepções utópicas
como possíveis respostas diante de uma realidade decadente.
Ao argumentar sobre as novas características da literatura contemporânea
brasileira, Anderson Gongora, afirma que
a literatura brasileira dos últimos anos, além de cumprir com a sua
função mimética, da beleza e do prazer, [...] também é “uma literatura
violenta, de condenação da violência - tanto na desintegração da
forma quanto no desnudamento da linguagem, tanto no rompimento
do discurso quanto na exacerbação dos temas”. (2007)

O poder da representação literária, ao trazer a decadência social para vitrine,


pode estabelecer também uma postura de resistência contra a violência, levantando
questionamentos como: o exercício da crueldade, por via da literatura ou do cinema,
pode levar à redução da prática da violência no contexto histórico?
É provável que pelo menos uma parte desse impulso gerado pela necessidade
da violênca (que não conseguimos extinguir) pode ser saciada. Isso é, talvez, o que está
acontecendo na nova produção literária brasileira, com o reconhecimento de escritores
que vêm da periferia, e com o desvelamento dessa realidade marginal retratada
diretamente por suas próprias vítimas.
Se o processo de redemocratização ocorrido a partir dos anos 80 (séc.XX) teve
influência sobre a nova produção literária, esta, sem dúvida, atingiu seu ápice nos anos
90, com obras produzidas sobre a favela e por escritores engendrados nas estruturas da
pobreza. Segundo Beatriz Resende, “Há uma desterritorialização da literatura e da arte,
e nesta mesma década [1990] aparece a grande novidade: as novas vozes, sobretudo, as
da periferia” (2008).
No entanto, é justamente aí que reside o princípio de crueldade: ao tentar
buscar um sentido para sua realidade, quem quer que o faça vai se deparar com a
insustentável condição do real e sua definição, que segundo Clément Rosset, “mesmo
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supondo esta [a realidade] inteiramente conhecida e explorada, não entregará jamais as


chaves de sua prória compreensão, por não conter em sí-mesma as regras de
decodificação que permitiriam decifrar sua natureza e seu sentido” (1989, p.12).
Portanto, o “real” exagerado pelas lentes hiperrealistas é de fato um real
insuportável e cruel. Relatando, por um lado, a natureza intrisicamente dolorosa e
trágica da realidade, Rosset aponta também uma outra concepção da crueldade do real:
[...] entendo também por crueldade do real o caráter único, e
consequentemente irremediável e inapelável, desta realidade – caráter
que impossibilita ao mesmo tempo de conservá-la à distância e de
atenuar seu rigor pelo recurso a qualquer instância que fosse exterior
a ela. Cruor,de onde deriva crudelis (cruel) assim como crudus (cru,
não digerido, indigesto), designa a carne escorchada e ensanguentada:
ou seja, a coisa mesma privada de seus ornamentos ou
acompanhamentos ordinários, no presente caso, a pele, e reduzida
assim à sua única realidade, tão sangrenta quanto indigesta. (1989,
p.17)

Com base nessa citação, e transferindo o exemplo para a questão debatida aqui
(o hiperrealismo distópico frente à narrativa da violência), observo que a crueldade
pode ser, então, entendida como a insuportável consciência de um estado não sublimado
e, portanto, de uma realidade imediata e sem nenhum artifício que amenize sua crueza,
na qual estamos inseridos e da qual não podemos escapar, sendo esta, portanto, uma
visão distópica.
Paradoxalmente, tudo o que foi discutido até aqui, através do ponto de vista
literário, vai de encontro a crueldade desse “real”, ou tenta, justamente sublimá-lo: o
realismo literário, ao se opor aos idealismos românticos, na intenção de retratar uma
realidade objetiva, acaba caindo em uma espécie de sonho utópico (as políticas
socialistas de valorização do homem comum); o hiperrealismo, ao exagerar as
concepções do realismo, também transforma os objetos do mundo histórico em uma
exagerada percepção dos mesmos; e finalmente, o pensamento distópico, que aqui é
entendido como uma visão crítica em relação ao mundo histórico decadente, devido ao
aumento de diversas formas de violência, leva a um terror do desconhecido e a uma
possível reação a isso (um retorno a utopia).
Em todo caso, se o “real” é um estado de crueza insuportável, no qual modo de
vida social algum se sustenta, em seu estado bruto, levando a criação de uma realidade
permeada por idealizações e tentativas de convívio social negociáveis, a proposta do
hiperrealismo distópico observado em produções literárias que exageram a violência
com a finalidade de chamar a atenção para um futuro próximo e decadente, pode servir
a esse propósito, caso isso leve, quem sabe, a uma esperança de vida melhor, calcada
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em um novo pensamento utópico. Isso nos levará de volta à definição de Moylan sobre
distopia literária, apresentada acima, como uma forma de um novo retorno ao
pensamento utópico.
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____________________________________________________________Referências

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