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ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA – INTERTEXTUALIDADE

E IMAGINÁRIO

Profª. Drª. Rosani Úrsula Ketzer Umbach*; Angiuli Copetti de Aguiar**

RESUMO: Ensaio Sobre a Cegueira, como romance pós-moderno, levanta,


através da intertextualidade que o fia, diversos questionamentos a respeito da
identidade cultural humana, especialmente da primazia do visual no ocidente. A fim de
analisarmos algumas dessas instâncias intertextuais, elegeremos três principais núcleos
temático-imagéticos. O primeiro diz respeito à figura do narrador comunitário presente
no romance como índice da reestruturação social que se realiza, e como o agregador
de saberes diversos, um intertexto vivo, que assimila experiências pessoais ou relatadas
e as perpetua. O segundo núcleo diz respeito a como imagética do romance se
aproxima, na tradição literária ocidental, da ‘demonic imagery’ descrita pelo crítico
Northrop Frye e como tal modo de representação estabelece o tom geral do romance
dentro do campo lexical e imaginário da animalidade. Por fim, dentro do terceiro
núcleo, trataremos da intertextualidade em relação a três séries de referências: a
primeira referente à aproximação com outras obras literárias; a segunda, à presença
do imaginário cristão; e a terceira, à descrição ou analogia com obras de arte
picturais. Após a análise, concluímos que qualquer entendimento substancial de Ensaio
Sobre a Cegueira requererá necessariamente um mapeamento dos intertextos (ou
subtextos) que a tramam. Percebemos que a imagética que constitui o romance está em
concordância não apenas com seu tema, mas também com o imaginário tradicional da
literatura e pintura do ocidente, através do qual, Saramago discute a primazia da visão
em nossa cultura.

PALAVRAS-CHAVE: Saramago. Intertextualidade. Narrador. Imagética.

*
Professora titular em: Universidade Federal de Santa Maria.
**
Pós-graduando em: Universidade Federal de Santa Maria.
ABSTRACT: Blindness, as a postmodern novel, raises through the
intertextuality that weaves it, several questions concerning human cultural identity,
especially the primacy of the visual in the West. In order to analyze some of these
intertextual instances, we will elect three main theme-imagery nuclei. The first relates
to the figure of the folk narrator, present in the novel as an index of the social
restructuration that is taking place, and as the assembler of different knowledges, a
living intertext, who assimilates personal or reported experiences and perpetuate them.
The second nucleus concerns to how the imagery in the novel resembles, inside Western
literary tradition, the ‘demonic imagery’ describe by the critic Northrop Frye, and how
this mode of representation establishes the general tone of the novel inside the lexical
and imagery field of animalism. Lastly, in the third nucleus, we will deal with
intertextuality in relation to three series of reference: the first one in reference to other
literary works; the second, to the presence of Christian imagery; and the third, to the
description of, or analogy to pictorial works of art. After the analysis, we concluded
that any substantial understanding of Ensaio Sobre a Cegueira necessarily requires a
mapping of the intertexts (or subtexts) that compose it. We perceive that the imagery
that constitutes the novel is in accordance not only with its theme, but also with
traditional Western literary and pictorial imagination, through which Saramago
discusses the primacy of vision in our culture.

KEYWORDS: Saramago. Intertextuality. Narrator. Imagery

1. INTRODUÇÃO

Desde a cena de abertura do romance Ensaio Sobre a Cegueira (2006), de José


Saramago, percebemos a proeminência simbólica que exerce a intertextualidade na
obra. A cena em questão, na qual tem princípio o ‘mal-branco’ (a epidemia de cegueira,
como é referida), mostra um cruzamento onde motoristas esperam impacientes pelo
sinal, entre os quais se encontra a primeira vítima que virá a sofrer do mal
desconhecido. Se associarmos tais diversos elementos (cegueira, epidemia,
encruzilhada), percebemos a relação que sutilmente se estabelece entre esta cena e a
narrativa de Édipo, personagem grego que em uma encruzilhada comete a falha de
assassinar seu pai, dando início a uma série de eventos que culminam no miasma que
assola sua cidade e, por fim, em sua cegueira, causada por si próprio. Certamente não é
esta uma associação acidental, entre a narrativa de Saramago e a grega, em ambas as
quais a visão está em direta relação com o conhecimento superficial da realidade. As
palavras de certa personagem no romance, “víamos, mas não enxergávamos”, poderiam
facilmente ser postas nos lábios do herói trágico.
Partindo desta introdução, podemos delinear alguns aspectos que analisaremos
ao longo deste trabalho acerca de Ensaio Sobre a Cegueira. O primeiro ponto diz
respeito à figura do narrador comunitário presente no romance como índice da
reestruturação social que se realiza, e como o agregador de saberes diversos, um
intertexto vivo, que assimila experiências pessoais ou relatadas e as perpetua. Dentro do
escopo desta nova sociedade primitiva a que regressa a sociedade na obra, exploraremos
no segundo momento como sua imagética se aproxima, na tradição literária ocidental,
da ‘demonic imagery’ descrita pelo crítico Northrop Frye (1967) e como tal modo de
representação estabelece o tom geral do romance dentro do campo lexical e imaginário
da animalidade. Por fim, trataremos da intertextualidade do romance em relação a três
séries de referências: a primeira referente à sua aproximação de outras obras literárias; a
segunda, à presença do imaginário cristão; e a terceira, à descrição ou analogia com
obras de arte picturais.

2. O NARRADOR E SUA FIGURA

O narrador é o elemento que mais prontamente destaca-se à primeira leitura


devido à estranheza relativa que causa sua ‘autoconsciência’ em um romance (à parte de
seu experimentalismo tipográfico) de outra forma ‘tradicional’, bem como sua quase
presentificação em seu próprio relato (em que não figura), sentida no uso focal de
dêiticos (este, aquele, agora, nós, etc.), que o aproxima da figura de um ‘contador de
estórias’, ou, como veremos, de ‘parábolas’. A estória é narrada em terceira pessoa,
tendo por foco narrativo a visão por detrás (na nomenclatura de Jean Pouillon):
narrador onisciente, fora da narrativa, que pode penetrar na mente das personagens
(aqui, seletivamente) e tecer comentários, “como um demiurgo” (POUILLON, 1974, p.
62). Durante os primeiros capítulos, até a chegada ao manicômio, o narrador passa do
foco sobre uma personagem a outra conforme elas se cegam, e tal transferência é
assinalada pela referência ao súbito acometimento da doença como ponto de transição
entre uma personagem e outra. Assim, do primeiro cego (“Nessa noite o cego sonhou
que estava cego” (SARAMAGO, 2006, p. 24)), passa-se, no segundo capítulo, ao ladrão
que o ajudara (“Ainda não tinha andado trinta passos quando cegou” (p. 27)), então ao
médico (“Primeiro percebeu que tinha deixado de ver as mãos, depois soube que estava
cego” (p. 30)), à mulher de óculos (“Ainda vejo tudo branco” (p. 33)) e, por fim, à
mulher do médico (“ceguei agora mesmo” (p. 44)) - ainda que tenha falsamente se
declarado cega, a sentença (sua fala) que encerra pelo momento a focalização do
narrador sobre ela segue a mesma estrutura das anteriores.
Tal focalização seletiva se evidencia em passagens como a em que, estando o
narrador acompanhando o médico, agora cego, sua mulher vai buscar-lhe água
oxigenada: “Espera, disse a mulher, deixa-me curar primeiro esse dedo, desapareceu por
uns momentos, voltou com um frasco de água oxigenada” (p. 19); ou em outro
momento no qual o médico está a olhar-se no espelho e “ouviu a mulher entrar no
quarto” (p. 38). Tanto no primeiro trecho quanto no segundo, é o narrador que nos
relata, entretanto, são as percepções da personagem em que ele foca que nos é relatado.
Estando a mulher fora do campo de visão do médico, na primeira passagem ela
desaparece também da visão do narrador, para depois retornar, e na segunda, também
não a vemos chegar: como seu marido, apenas a ouvimos.
Se o narrador pode aproximar-se das personagens a ponto de narrar o mundo
através de suas percepções e pensamentos, pode ele também distanciar-se o suficiente
para colocar-se conscientemente como relator de uma estória - e consciente também do
leitor, a quem se dirige indiretamente através de um ‘nós’. Como que presente na cena,
relatando como uma testemunha ocular o faria, diz ele: “Apreciados como neste
momento é possível…” (p. 12)1; “deve haver ali um problema mecânico qualquer”;
“Aqui, a verdadeira casa de cada um…” (p. 66). Podemos ainda perceber sua própria
voz - e a consciência de dirigir-se a um leitor - em trechos como: “Quanto a nós,
permitir-nos-emos pensar…” (p. 25); “dizendo o que já sabemos” (p.35); “duas já

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Esta e todas as outras ênfases, assinaladas pelo uso do itálico, são nossas.
conhecemos nós” (p. 39); “temos de reconhecer…” (p. 95). Quanto a referências
metalinguísticas, a consciência do narrador como relator de uma estória, percebemo-las
em passagens como: “há por aqui muitas afinidades, umas que já são conhecidas, outras
que agora mesmo se revelarão” (p. 67); “a dimensão extraordinária do cataclismo que o
relato se vem esforçando por descrever” (p. 99). Ao recontar o relato do velho da venda
preta sobre o mundo exterior, o narrador exerce sua maior interferência na narrativa,
não apenas reestruturando em suas próprias palavras o discurso, mas também
‘editorialmente’ declarando sua função de narrador e referindo-se a si mesmo como tal:

A partir deste ponto, salvo alguns soltos comentários que não puderam ser
evitados, o relato do velho da venda preta deixará de ser seguido à letra,
sendo substituído por uma reorganização do discurso oral, orientada no
sentido da valorização da informação pelo uso de um correcto e adequado
vocabulário. É motivo desta alteração, não prevista antes, a expressão sob
controlo, nada vernácula, empregada pelo narrador, a qual por pouco o ia
desqualificando como relator complementar, importante, sem dúvida, pois
sem ele não teríamos maneira de saber o que se passou no mundo exterior,
como relator complementar, dizíamos, destes extraordinários acontecimentos,
quando se sabe que a descrição de quaisquer factos só tem a ganhar com o
rigor e a propriedade dos termos usados. Voltando ao assunto…” (p. 122,
123)

Por essas e ainda diversas outras passagens percebemos a proeminência do


narrador no romance de Saramago, não somente, porém, como elemento narratológico,
mas também como figura ou símbolo na própria estória. Sua imagem como arquétipo,
como ‘figura folclórica’, transparece em três momentos: no velho da venda preta, ao
chegar no manicômio e relatar a situação do mundo exterior; na mulher do médico, ao
ler de um livro para as outras personagens; e no escritor cego, que se aproxima da figura
de São João, escritor do Apocalipse, também ‘cronista do fim do mundo’.
O velho da venda preta assume a imagem do viajante que, vindo de uma terra
distante, carrega consigo estórias a serem relatadas, tal qual a figura folclórica do
narrador que Walter Benjamin descreve em seu ensaio ‘O Narrador’ (1994). Benjamin
distingue dois tipos de narradores, o camponês sedentário, perpetuador do saber do
passado, e o marinheiro comerciante, que leva consigo o saber de terras distantes (p.
199). O velho incorpora o primeiro tipo (a falta de um olho confere-lhe também uma
proximidade com a imagem do deus nórdico Odin, deus viajante), e seu semblante de
sábio ancião provoca nos outros cegos a respeitabilidade da figura do contador de
estórias:
Desta vez aos três e quatro em cada cama, de companhia, os cegos
acomodaram-se o melhor que puderam, e fizeram silêncio, e então o velho da
venda preta contou o que sabia, o que vira com os seus próprios olhos
enquanto os tivera, o que ouvira dizer durante os poucos dias que decorreram
entre o começo da epidemia e a sua própria cegueira. (SARAMAGO, 2006,
p. 122)

Já a figura do camponês sedentário aparece na personagem da mulher do médico, que lê


em voz alta para os outros cegos de um livro que trouxera da biblioteca (p. 279), e, em
outro momento, do livro do escritor que encontram (p.290), enquanto eles “punham-se a
seguir com os olhos da alma as peripécias do enredo” (p. 305), como uma comunidade a
ouvir os relatos do ancião da aldeia.
A terceira figura de Benjamin, que segundo ele vem substituir, na modernidade,
o narrador, é o romancista. Segundo o autor, “O narrador retira da experiência o que ele
conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros” (BENJAMIM, p. 201). O
romancista, entretanto,

segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais


falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não
recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na
descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos
limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance
anuncia a profunda perplexidade de quem vive. (p. 201)

A personagem do escritor (e o próprio escritor do romance) encontra-se entre o


romancista e o narrador. Escrever no século das grandes tragédias (e em meio à grande
tragédia descrita na obra) é um ato profundamente isolado, e as palavras diante do
sofrimento perdem sua força; os sentimentos, “temo-los, mas deixámos de usar as
palavras que os expressam” (SARAMAGO, 2006, p. 277), como diz o escritor no
romance. Mas o relato que se empenha em escrever é o de suas experiências pessoais e
daqueles que ele ouve. Ao ser pergunta sobre o que é que escreve, responde: “Sobre o
que sofremos, sobre a nossa vida, Cada um deve falar do que sabe, e aquilo que não
souber, pergunta” (p. 278). E esta sabedoria de sua experiência, que o narrador busca
compartilhar e preservar, adquire no narrador do próprio romance a forma de uma
parábola: uma parábola sobre os simultâneos término e princípio da estruturação
humana em sociedade, um ensaio a respeito da cegueira pré-racional, animalesca, do
homem e sua evolução.
3. A IMAGÉTICA PRIMITIVA

O crítico Northrop Frye descreve o imaginário do mundo primitivo, o mundo tal


como é, antes da imaginação humana ter começado a agir sobre ele (FRYE, 1967, p.
147), como constituído de um simbolismo, de um conjunto arquetípico de imagens, que
ele denomina ‘demonic imagery’, comumente próximo ao que identificamos como
‘infernal’ (referido a um inferno existencial, tal como em Dante, ou criado pelo homem,
como 1984, por George Orwel), e cujo tema central é a paródia. A obra de Saramago
aqui estudada, como já antes referido, possui por trajetória simbólica a degradação do
homem pela cegueira até atingir um estado bruto, animalesco, e seu ulterior retorno ao
estado ‘humano’ com a retomada da visão. A fim de analisarmos a construção imagética
desse estado ‘primitivo’ no romance, seguiremos o capítulo de Frye sobre ‘demonic
imagery’, trançando paralelos onde houverem com o romance.
O crítico começa por descrever a concepção do mundo divino em tal imaginário.
Nele, o maquinário do destino é administrado por um grupo de remotos e invisíveis
deuses, que demandam sacrifícios, punem presunções e exigem obediência a leis
naturais e morais como um fim em si mesmas (FRYE, 1967, p. 147). Um tal grupo de
deuses remotos é facilmente reconhecido nos soldados que vigiam os cegos presos no
manicômio, controlando seus suprimentos e punindo-os segundo lei arbitrárias, como o
soldado que traça uma linha imaginária a fim de saber quando atirar caso um cego se
aproxime do portão. Mais evidente ainda, a figura do ‘deus terrível’, invisível e distante,
surge na incorpórea voz do altifalante que dia a dia repete mecanicamente as mesmas
instruções e avisos.
O mundo humano, segundo Frye, é uma sociedade mantida unida por uma
espécie de tensão molecular de egos, uma lealdade ao grupo ou ao líder que diminui o
indivíduo, ou, na melhor das hipóteses, contrasta seu prazer com seu dever ou honra (p.
147). Tal sociedade é polarizada entre o líder tirânico, que representa o ego coletivo de
seus seguidores, e o pharmakos, ou vítima sacrificada, que deve ser morta para
fortalecer os outros (p. 148). Esta polarização ocorre no romance quando institui-se o
‘proto-estado’ em torno do cego da arma, o tirano, e seus seguidores, que passam a
controlar os recursos dentro do manicômio. Já a figura do pharmakos surge em dois
momentos, em duas personagens. A primeira delas, na cega das insónias, que morre ao
ser violentada pelos cegos que exigiram um grupo de mulheres em troca de comida. Sua
morte insufla forças à mulher do médico para que ela mate o líder, a segunda figura
sacrificial, em um gesto que remete, como Frye recorda, ao ritual da morte do rei divino
descrito por Frazer (p. 148). A morte do líder, por sua vez, confere forças ao resto do
grupo de cegos oprimidos para que eles se insurjam contra seus opressores.
Junto a estes episódios encontramos ainda outra marca da imagética demoníaca,
agora no que diz respeito à relação social. É a figura da turba que procura pela vítima
sacrificial, o que surge após a mulher do médico ter assassinado o líder tirânico e os
cegos terem infrutiferamente atacado o grupo restante. Ao estarem ela, o médico, o
velho da venda preta e outros cegos sentados em círculo sob a luz do átrio, discutindo o
que deveria ser realizado para reaverem os víveres, uma voz é ouvida: “O que eu sei é
que não estaríamos nesta situação se não fosse terem-lhes matado o chefe”, e “O que
devíamos fazer era tomar a justiça nas nossas mãos e levá-lo [o assassino do líder] ao
castigo” (SARAMAGO, 2006, p. 191), para receberem comida como recompensa pela
traição. Esta cena recebe uma maior significação ainda ao reconhecermos nela o
conhecido episódio da negação de Pedro na tradição cristã. Isto, porém, será melhor
analisado na seção seguinte.
O mundo animal é representado em termos de monstros e animais predadores
(FRYE, 1967, p. 149). Inúmeras são as referências, literais ou metafóricas, em Ensaio à
violência bestial ou degradação do humano em animal. Listaremos primeiramente a
imagética bestial presente no discurso (do narrador ou das personagens), em analogias e
aproximações, salientando os elementos que façam parte de tal campo semântico: “Pela
janela do carro espreitavam caras vorazes, gulosas de novidade” (p. 12); “via-os
crispados, tensos, de pescoço estendido como se farejassem algo” (p. 49); “vociferou”
(p. 53); “como uma matilha de lobos acordados subitamente” (p. 76); “como um animal
perseguido que vai ficar à espera duma ocasião para atacar” (p. 104); “De dentro saíram
gritos, relinchos, risadas” (p. 175); “A cega das insónias uivava de desespero”; “se
empurravam uns aos outros como hienas em redor de uma carcaça” (p. 176). Os
animais ferozes que de fato surgem no romance são cães que retornaram a um estado
selvagem, como em certa cena em que “uma matilha de cães devora um homem” (p.
251), onde por perto revoam também corvos.
Do mundo vegetal temos apenas a descrição do quintal da velha, o qual “estava
como uma selva jamais explorada” (p. 286), e da “erva que crescia entre as pedras da
calçada” (p. 218) nas ruas da cidade. Por sua vez, o mundo inorgânico demoníaco se
apresenta em três figuras: ruínas, prisão (ou calabouço) e labirinto. (FRYE, 1967, p.
150), e suas formas no romance são as ruas da cidade (ruínas e labirinto), o manicômio
(prisão e labirinto) e o armazém do mercado ao qual desce a mulher do médico
(labirinto e calabouço). O manicômio é chamado pelo autor de “labirinto racional” (p.
211), pois ainda que seja de difícil trânsito para os cegos, é conhecível, e podem eles vir
a viver seguramente em tal ambiente. A cidade, por outro lado, é um “labirinto
dementado” (p. 211), devido ao seu tamanho e complexidade, no qual um cego
encontra-se completamente desamparado. As ruas são descritas como “desertas”, com
“lixo por toda parte” (p. 218), “lixo apodrecido e excrementos humanos e de animais,
automóveis e camiões largados de qualquer maneira e atravancando a via pública,
alguns com as rodas já cercadas de erva” (p. 226).
O local de maior importância simbólica, entretanto, é o armazém ao qual desce a
mulher do médico, um movimento em que reconhecemos a narrativa mítica da
katabasis, ou ‘descida ao submundo’, tal como o fizeram Ulisses, Enéias e Dante (o
narrador se refere ao armazém como “porta do subterrâneo […] por onde se chegaria ao
outro mundo” (p. 304)). Conforme escreve Frye, o labirinto também pode tornar-se as
entranhas de um monstro (FRYE, 1965, p. 150), tal como imagina a mulher que, à sua
frente, na escuridão “um dragão a esperasse de boca aberta” (animal recorrente na
imagética demoníaca). Há nesta cena uma dissolução, uma morte da personagem, como
é típico da katabasis, onde “neste momento era como se não existisse no seu corpo
nenhum órgão vivo” (SARAMAGO, 2006, p. 222), e também um renascimento, pois a
mulher avançando pelo labirinto “de gatas até encontrar algo pela frente” (p. 222), como
um bebê. E tal como nas diversas narrativas da descida ao submundo, em que o herói de
lá regressa com algum conhecimento ou item necessário para sua jornada, assim aqui a
mulher, ao encontrar fósforos, fonte de luz (razão, conhecimento, etc.), é capaz de
localizar os alimentos que viera procurar, e regressa para junto dos outros cegos (sua
comunidade, aldeia), salvando-os.
Toda a imagética aqui considerada estabelece uma relação entre Ensaio Sobre a
Cegueira e outras obras literárias da tradição ocidental e seu imaginário. Esta relação
também se dá mais indiretamente através de associações temáticas e analogias,
incluindo também referências à tradição de arte pictural e, amplamente, ao imaginário
cristão.

4. INTERTEXTUALIDADES E ANALOGIAS

Três são as principais séries de referências intertextuais presentes em Ensaio


Sobre a Cegueira. A primeira delas diz respeito à associação com outras obras
ficcionais, ou elementos consagrados delas, o que introduz-se sutilmente,
transparecendo no texto apenas indiretamente ao leitor através de alusões que ele pode
ou não vir a identificar (ou criar), mas que indubitavelmente enriquecem sua
experiência da leitura. A segunda série refere-se a paralelos com episódios do texto
bíblico, cujas presenças no romance tornam-se mais evidente por serem por vezes
apontados diretamente pelo narrador. A terceira série corresponde a analogias com ou
descrições de obras de arte picturais, referidas diretamente, tal como a segunda série, e
com ela confluindo, ao final do romance, na cena da igreja.
As referências picturais em Ensaio Sobre a Cegueira foram já exploradas por
Sotta (2010), portanto apenas as identificaremos aqui, complementando o
reconhecimento de alguma referência não apontada. Também não nos demoraremos na
primeira séria de intertextualidades, visto que não possuem presença efetiva no texto,
mas podemos numerar entre elas a já referida associação possível com a estória de
Édipo e seus temas; A Divina Comédia, de Dante Alighieri; A Peste de Albert Camus; O
Processo, de Franz Kafka, em que um mal desconhecido leva pouco a pouco o
protagonista a um estado sub-humano (o médico certa hora diz à sua mulher “Temo que
sejas como a testemunha que anda à procura do tribunal aonde a convocou não sabe
quem e onde terá de declarar não sabe quê” (p. 283), tal como K. no romance de Kafka);
bem como o episódio bíblico da destruição de Sodoma e Gomorra, no qual os habitantes
da primeira cidade são cegados devido a seus pecados (como pensa a rapariga dos
óculos escuros, prostituta, ao cegar, “o que queria dizer era que tinha sido castigada por
causa do seu mau porte, da sua imoralidade” (p. 36)).
Esta referência leva-nos à segunda série, de paralelos com o texto bíblico, agora
constituída de referências mais explícitas. A primeira delas é a do herói hebreu Sansão,
que foi cegado ao ser capturado, e, cativo, recobrando de Deus suas forças, derrubou os
pilares do templo onde seus captores festejavam, matando a todos, inclusive a si
mesmo. Assim descreve o narrador um cego servindo de sentinela para o grupo dos
cegos controladores: “O cego dormia com a cabeça apoiada à ombreira da porta, o
cajado escorregara sem ruído para o chão, ali estava um cego desarmado e sem colunas
para derrubar” (p. 157), o que pressagia o ruir do manicômio e a morte dos cegos que
mantinham os outros ‘cativos’, através do incêndio que provoca uma mulher, no qual a
mesma morre.
A segunda referência é a já antes mencionada cena que alude ao episódio da
negação de Pedro: a mulher do médico estando no lugar do apóstolo, e a mulher que ela
salvara, no lugar de sua (possível) acusadora. No romance o narrador diz das
personagens que “Estavam sentados no chão, sob a luz amarelada da única lâmpada do
átrio, mais ou menos formando um círculo” (p. 190); e quanto à mulher salva: “À
entrada da porta que dava para as camaratas da ala direita apareceu uma mulher que
estivera a ouvir escondida” (p. 192). A esses dois trechos podemos contrastar o relato
bíblico em que Pedro segue Jesus após este ser preso: “E, havendo-se acendido fogo no
meio do pátio, estando todos sentados, assentou-se Pedro entre eles. E como certa
criada, vendo-o estar assentado ao fogo, pusesse os olhos nele, disse: Este também
estava com ele” (Lucas 22:54-562). Ainda a mesma cena em Saramago faz referência a
outra estória bíblica, a de Rute e Noemi. A mulher salva diz à mulher do médico:
“Aonde tu fores, eu irei” (SARAMAGO, 2006, p. 192), palavras que ecoam as de Rute
a sua sogra, Noemi: “aonde quer que tu fores irei eu” (Rute 1:163).
Da série de referências bíblicas às picturais, podemos fazer ponte através da
Parábola dos Cegos, de Pieter Brueghel, aludida no romance ao narrador considerar
como uma família de cegos haveria de cuidar uns dos outros, pois “teria de suceder-lhes
o mesmo que aos cegos da pintura, caminhando juntos, caindo juntos e juntos
morrendo” (SARAMAGO, 2006, p. 125). O único momento, entretanto, em que
pinturas são diretamente referenciadas pelas personagens é quando um cego, relatando a
última coisa que vira antes de cegar, diz: “O último que vi foi um quadro” (p. 130), e
segue com a descrição de tal ‘quadro’ (na verdade um agregado de vários outros).
Inicia: “Tinha ido ao museu, era uma seara com corvos e ciprestes e um sol que dava a
2
https://www.bibliaonline.com.br/acf/lc/22 (Acessado 01 de julho de 2015)
3
https://www.bibliaonline.com.br/acf/rt/1 (Acessado 01 de julho de 2015)
Figura 1. Parábola dos Cegos (1568)
Pieter Brueghel

ideia de ter sido feito com bocados doutros sóis, Isso tem todo o aspecto de ser de um
holandês,” (p. 130); nesta descrição parecem mesclar-se três pinturas de Van Gogh,
Campo de Trigo com Corvos (1890) (seara e corvos), O Semeador (1888) (seara, corvos
e sol) e Campo de Trigo Verde com Ciprestes (1889) (seara e ciprestes). Em seguida, o
cego refere-se a um quadro de Goya: “mas havia também um cão a afundar-se, já estava
meio enterrado, o infeliz, Quando a esse, só pode ser de um espanhol, antes dele
ninguém tinha pintado assim um cão, depois dele ninguém mais se atreveu,” (p. 130),
descrição na qual identifica-se Cão Semi-Afundado (1821-1823). A próxima, “uma
carroça carregada de feno, puxada por cavalos, a atravessar uma ribeira, Tinha uma casa
à esquerda, Sim, Então é de inglês”, descreve uma pintura do artista inglês John
Constable, The Hay Wain (1821).
Também alude o cego a A Última Ceia (1495-1498), de Leonardo da Vinci: “E
estavam uns homens a comer, […] Os homens eram treze” (p. 130), e a O Nascimento
de Vênus (1484-1486), de Sandro Botticelli: “Também havia uma mulher nua, de
cabelos louros, dentro de uma concha que flutuava no mar, e muitas flores ao redor dela,
Italiano, claro” (p. 130, 131). Por fim, o cego conclui sua descrição com a cena de uma
batalha, que parece referir-se a Guernica (1937), de Pablo Picasso: “E uma batalha, […]
Mortos e feridos, É natural, mais tarde ou mais cedo todas as crianças morrem, e os
soldados também, E um cavalo com medo, Com os olhos a quererem saltar-lhe das
órbitas” (p. 131). Outra referência inclui ainda o quadro A Liberdade Guiando o Povo
(1830), de Eugène Delacroix, na cena em que a mulher do médico, “com os seios meio

Figura 2. Guernica (1937)


Pablo Picasso

descobertos” (p. 209), guia os cegos para fora do manicômio.


Quando o médico e sua mulher, após não haverem conseguido retornar ao
armazém do mercado, adentram uma igreja buscando descanso, lá encontram todas as
imagens sagradas vendadas por tinta branca. Várias são as personagens representadas
(Cristo, Pedro, Miguel, etc.), todas tendo seus olhos tapados por uma camada de tinta,
branca como a cegueira dos homens. Entretanto, a última imagem descrita destaca-se
por estar ali “uma mulher que não tinha os olhos tapados porque já os levava arrancados
numa bandeja de prata” (p. 301). Esta referência a Santa Lúcia é central para muitos
temas e episódios do romance (principalmente no que diz respeito à mulher do médico),
unindo as três séries de referências, literária, cristã e pictórica. Mártir cristã, Santa Lúcia
foi sentenciada à prostituição forçada pelo governador da Sicília ao recusar-se a fazer
sacrifícios a ídolos pagãos. Segundo a lenda, Deus tê-la-ia feito imóvel e impossível de
ser carregada quando guardas vieram prendê-la. Entre as várias torturas que sofreu
inclui-se ter sido queimada viva e ter tido seus olhos arrancadas, os quais foram mais
tarde curados por Deus (o que lhe confere o título de santa padroeira dos cegos). Lúcia
por fim foi morta tendo seu pescoço perfurado por uma adaga (BRIDGE, 1910).
Conforme diz a rapariga de óculos escuros, “As mulheres ressuscitam umas nas
outras, as honradas ressuscitam nas putas, as putas ressuscitam nas honradas”
(SARAMAGO, 2006, p. 199), e assim a lenda de Santa Lúcia interpenetra as mulheres
do romance, ora despontando em uma, ora renascendo em outra. A mulher das insónias,
forçada à prostituição junto às outras cegas, como a santa, morre e ‘renasce’ na mulher
que incendeia o manicômio, que também acaba por falecer nas próprias chamas.
Também a mulher do médico é associada a ela, ela que zela pelos outros cegos, como
sua padroeira, e a única que ainda possui sua visão, como a pintura não possui tinta
sobre os olhos. E é ela que tem sua garganta ‘perfurada’ ao ser violada pelo líder dos
cegos malvados, e também ela que ironicamente vinga-se (e à santa) apunhalando o
pescoço do líder com uma tesoura. Também torna-se relevante a presença de Santa
Lúcia no texto de Saramago ao recordarmos a estória de Dante em A Divina Comédia, o
qual é guiado pelo inferno por Virgílio, enviado pela santa, que se apieda de Dante.

5. CONCLUSÃO

Considerando a grande quantidade de referências intertextuais presentes em


Ensaio Sobre a Cegueira (ainda muitas outras poderiam ser reconhecidas), e a
relevância que adquirem para a narrativa, cada qual estabelecendo um paralelo preciso
com algum aspecto do romance, concluímos que um entendimento substancial da obra
requer necessariamente um mapeamento dos intertextos (ou subtextos) que a tramam. A
imagética que a constitui está em concordância não apenas com seu tema, mas também
com o imaginário tradicional da literatura e pintura do ocidente, bem como do
cristianismo. Também com esta tradição Saramago estabelece relações que, uma vez
percebidas, enriquecem a leitura de sua obra, expandindo o leque de suas significações
possíveis.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. In:


Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. Ed.
São Paulo: Brasiliense, 1994.
BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. [On Line]. Disponível em:
<https://www.bibliaonline.com.br/acf>. Acesso: 1 de julho de 2015.
BRIDGE, James. "St. Lucy." In: The Catholic Encyclopedia. Vol. 9. New York: Robert
Appleton Company, 1910. [On Line]. Disponível em:
<http://www.newadvent.org/cathen/09414a.htm>. Acesso: 3 de julho de 2015.
BRUEGHEL, Pieter. Parábola dos Cegos. 1568. [On Line]. Disponível em:
<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/2f/Pieter_Bruegel_the_Elder_(156
8)_The_Blind_Leading_the_Blind.jpg>. Acesso em: 2 de julho de 2015.
FRYE, Northrop. Anatomy of criticism. New York: Atheneum, 1967.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SOTTA, Cleomar Pinheiro. De Mãos Dadas: literatura e pintura em Ensaio sobre a
cegueira. [On Line]. Disponível em: <
http://www.assis.unesp.br/Home/PosGraduacao/Letras/SEL/anais_2010/cleomarpinheir
o.pdf>. Acesso em: 2 de julho de 2015.
PICASSO, Pablo. Guernica. 1937. [On Line]. Disponível em:
<http://www.markwk.com/teaching/lessons/quino-picasso-
%20guernica/images/guernica_all.jpg>. Acesso em: 2 de julho de 2015.
POUILLON, Jean. O tempo no romance. São Paulo: Cultrix, 1974.

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