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Resumo: Foco narrativo como ângulo de visão em que se coloca o narrador. Exploração
de recursos de técnica narrativa na renovação da arte literária. O conto machadiano e a questão
do ponto de vista: verdadeiro laboratório ficcional. A narrativa curta machadiana, realizada
entre o final do século XIX e início do século XX. Deslocamento do ponto de vista: novas
possibilidades de renovação da técnica nascidas com o cinema. Trânsito entre cinema e
literatura. Fernanda Botelho: elaboração do ponto de vista e do ponto de vista circulante entre as
diversas pessoas do discurso, em Lourenço é nome de jogral. Valorização do visual no mundo
contemporâneo: aumento do intercâmbio entre artes visuais e literatura. Escritura de Rubem
Fonseca em Lúcia McCartney: a grande importância dada ao olhar. Exploração da mobilidade
do ponto de vista.
O foco narrativo como ângulo de visão em que se coloca o narrador vem passando
por alterações ao longo da história da arte literária, levando a conseqüências observáveis
no texto literário, decorrentes da diferença de ponto de vista do narrador clássico
confrontada com o do narrador pós-moderno. Segundo Silviano Santiago,
... o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada,
em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a
ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia,
da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele
narra enquanto atuante (Santiago, 2002, p. 45).
para um e outro lado; afinal não sei como foi, entrei a marchar também ao som do
rufo”(p.196).
Preocupado em perscrutar a alma humana, recorre à onisciência do ponto de vista,
para captar as mínimas sutilezas da psique humana. Em “A causa secreta”, narrativa em
terceira pessoa, o foco narrativo passa por trás da personagem, quando o narrador não a
olha de fora, mas tenta penetrar de um modo objetivo e direto na sua vida psíquica.
Quando Garcia debruça-se sobre o cadáver de Maria Luíza e a beija, rebentando em
soluços, cheio de desespero, o foco narrativo penetra na intimidade da personagem que
o observa: “Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor
moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa” (p. 224).
Na renovação das técnicas, referentes ao ponto de vista, o diálogo passa a
funcionar não apenas como um elemento dentro do texto, mas como forma genérica
mesmo, como “teatralidade”. É o que se pode constatar em contos como “A teoria do
medalhão” ou “O anel de Polícrates” – este com personagens marcadas, como no teatro,
A e Z – embora não se observe, ainda, nesses contos, uma discussão com pontos de
vista a se chocarem, pois se trata de um diálogo em que predomina o ângulo de visão de
uma das personagens.
Já “O enfermeiro” é um conto em primeira pessoa, uma confissão em que a
própria personagem conduz a narrativa. O ponto de vista do criminoso vai-se
modificando em função da modificação do ponto de vista das pessoas que o cercam.
Inicialmente, com reservas: “Eu, a princípio, ia ouvindo, cheio de curiosidade; depois
entrou-me no coração um singular prazer que eu, sinceramente, buscava repelir”
(p.187). Depois, aceitando o que se dizia do velho, embora com certo complexo de
culpa: “o prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia
moral” (p.188). Finalmente, o tempo vai corroendo seus escrúpulos e o ponto de vista
mais cômodo instala-se: “os médicos, a quem contei as moléstias dele, foram acordes
em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo” (p. 188).
No diálogo que se estabelece entre narrador-persongem e a palavra da Escritura, a
colocação do discurso bíblico é questionada, através da ironia às palavras do Cristo,
tomadas às avessas: “Bem aventurados os que possuem, porque eles serão consolados”
(Ibidem, p. 188).
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o vigia da linguagem que é a casa do Ser, onde mora o homem (Cf. Heidegger, 1967, p.
24-5) - no seu questionamento do mundo, na perseguição da palavra a ser dita, na busca
do mistério que se esconde no armário.
Essa fragmentação do ponto de vista é a tentativa de apreensão do mundo
contemporâneo, na sua atomização e rapidez. Visão que se nos mostra em abismo, ou
seja, o ponto de vista do leitor, do ponto de vista do autor, através dos pontos de vista
das personagens, situados através da circularidade das pessoas gramaticais. A apreensão
dessa fragmentação, dessa rapidez é alcançada, sobretudo, pelo cinema - a linguagem
do mundo moderno, da era da máquina, do dínamo.
Recorrendo a processos tipicamente cinematográficos, Fernanda Botelho recria,
em Lourenço é nome de jogral, o mundo atomizado, fragmentado, veloz, em que
vivemos, numa narrativa descentrada, em que o homem é o mistério, é o armário vazio -
entre o abismo e a náusea -, buscando no outro o fragmento que lhe falta, na sua
consciência de si de não totalidade, de incompletude, buscando as palavras como
processo de libertação das vozes sinistras que o torturam.
Levando-se, pois, em consideração as relações estabelecidas entre a arte fílmica e
arte literária, levando-se em consideração o comércio que se estabelece entre literatura e
mídia, quando se constata um verdadeiro intercâmbio entre artes visuais e literatura,
com a proliferação de obras situadas nos limites entre elas, como as histórias em
quadrinhos, ou os romances filmados, ou as obras criadas para o cinema e tendo
existência literária e vice-versa, considerando-se toda esta valorização do visual no
mundo contemporâneo, o primeiro aspecto que se manifesta na escritura de Rubem
Fonseca é a grande importância dada ao olhar.
Sob o império do visual, o homem, no mundo contemporâneo, apreende o real de
forma fragmentária, através de olhares sucessivos. Não dispondo de um ponto de vista
fixo, que lhe permita um modo abrangente de ver, nunca chega a uma verdade absoluta.
O conhecer é a visão que se tem do outro. Preocupada com a ação, a ficção pós-
moderna preocupa-se, conseqüentemente, com a exploração de suas possibilidades
visuais: “tende mais e mais a pensar em si como completamente dramatizada, o ideal
sendo uma história na qual o leitor veja tudo, nada seja contado, e na qual não se possa
detectar, absolutamente, a presença do autor” (Richardson, 1969, p. 19).
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correndo, para o morro, para o quartel da polícia, para a corrida de madureira, para os
quatro Pms.
A câmara também se presta para marcar a violação do tempo, saltando do presente
para o passado e vice-versa. No conto “Zoom” (p. 177-183), a ruptura da ordenação
espaço-tempo é evidente. A câmara simplesmente ajusta as lentes que lhe permitem
alcançar os vários graus de grandeza sem perda de foco, indo de uma estação de águas,
para um consultório médico, para uma sala de cartomante, sem a mínima preocupação
de orientar o leitor neste jogo com lentes e focos, espaço e tempo:
Duchas, águas, estetoscópio. Os punhos virados escondendo a sujeira.
Toalhinhas de crochê, a sala de uma cartomante. “Vejamos o seu
coração”. Estetoscópio no peito. “Sou um médico (que tem várias
poltronas de couro vermelho. Esses furos parecem ânus, anos?, mas eu
sou um) especialista”. Pago. “Depois o senhor volta”. Escreve. Olho par
a fonte do Duque de Saxe. Feia Princesa Leopoldina. Sete e trinta,
novamente saxe, cento e quarenta centímetros. (Ordem, ordem, o
progresso nada vale, mas a ordem é necessária). (p. 177).
Celeste me abriu a porta e saiu correndo para botar a dentadura. Voltou com uns dentes
enormes”(p.72).
Há, ainda, a considerar, no livro em estudo, a tentativa de surpreender o homem
em ação, característica marcante em um mundo dominado pelo visual. Desde o primeiro
conto: “Desempenho” (p.13-18) - em que a personagem central é revelada através de
suas atitudes dentro de um ringue de vale tudo - até o último: “Relato de ocorrência”
(p.211-214) - em que as personagens são manifestas através de seu comportamento ante
uma vaca morta numa ponte por um ônibus que, ao abalroá-la, se precipita no rio, com
um saldo negativo de cinco mortos - torna-se evidente esse aspecto. Nos contos de
Lúcia McCartney, não existe por parte do narrador uma preocupação em evidenciar o
que a personagem sente, mas é a partir do modo de agir das personagens, é a partir do
ponto de vista em que se coloca esse narrador, observando o comportamento delas, que
o leitor chega a conhecê-las.
Assim, em “Os inocentes” (p.187), história extremamente econômica, de pura
ação, escrita em uma página apenas, a ingenuidade, a inocência de uma família recém-
chegada à praia é revelada pelo confronto entre o seu comportamento, correndo para um
espaço vazio num conglomerado de barracas, e biquínis, e chapéus, e toalhas: “Olha,
parece que reservaram lugar para nós” e o comportamento dos banhistas, fugindo do
local onde a mulher nua, inchada, roxa, foi jogada pelo mar: “Banhistas instalam
barracas longe da coisa morta, logo envolvida por enorme círculo de areia, indiferença,
asco”.
É cinematográfica esta preocupação em seguir as ações das personagens através
do olhar. No conto “Os músicos” (p.199), também narrado de forma bastante objetiva, é
como se uma câmara passeasse por uma sala, reproduzindo pela imagem, pelas ações
das personagens o burburinho que domina o ambiente, como se pode constatar nos
exemplos que se seguem: “chegam os músicos, três: piano, violino, bateria”, “as
pessoas comem bebem suam sem ao menos por um instante levantar os olhos para o
balcão”, “Elpídio na bateria, cinqüenta anos, mulato, coloca um lenço no pescoço para
proteger o colarinho”, “todos começam, não exatamente ao mesmo tempo, a tocar a
valsa da Viúva Alegre”, “Os garçons passam apressadamente carregando pratos e
travessas”. O órgão da visão, como se fosse uma câmara cinematográfica, desloca-se de
um ponto a outro da sala no seu trabalho de representar o mundo. E em flash-back
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lança-se para o passado: “quando Sara, sua mãe, morreu, ele tocou Strauss no
restaurante com o coração cheio de alegria” (p. 199).
Neste processo de alargamento do horizonte perceptivo do narrador, cabe, ainda,
chamar atenção para a mudança de perspectiva, quando o enfoque se transfere dos olhos
de uma personagem para os de outra, técnica tipicamente cinematográfica. Sirva de
exemplo o próprio conto “Os inocentes” (p. 187), em que na mudança de enfoque, há
mudança de visão de mundo. Na visão dos banhistas, o espaço vazio, branco, de areia, é
um espaço de morte, que gera angústia existencial, enquanto para a da família recém-
chegada é um espaço de vida, que gera alegria.
Concluindo, verifica-se que de Machado de Assis a Fernando Botelho e Rubem
Fonseca houve uma crescente exploração de recursos de técnica narrativa na renovação
da arte literária. Partindo-se do conto machadiano, constata-se que a questão do ponto
de vista é trabalhada exaustivamente pelo autor, funcionando a narrativa curta, realizada
entre o final do século XIX e início do século XX, período em que nasce o cinema,
quando relações e trocas entre esses meios ainda não se manifestavam claramente, como
verdadeiro laboratório ficcional.
O deslocamento do ponto de vista oferece novas possibilidades de renovação da
técnica nascidas com o cinema. Na poética de Fernanda Botelho e de Rubem Fonseca o
trânsito entre cinema e literatura é marcadamente explorado. Do ponto de vista
circulante entre as diversas pessoas do discurso, evidenciado na escritura de Lourenço é
nome de jogral, passa-se para uma escritura centrada no visual e na mobilidade do
ponto de vista, manifesta nos contos de Lúcia McCartney.
Assim, a questão do ponto de vista, na narrativa de língua portuguesa
contemporânea, distingue-se da narrativa tradicional pela força do olhar e da linguagem
cinematográfica, postas a serviço da literatura, salto que foi seguido, neste ensaio, a
partir da exploração do ângulo de visão em que se coloca o narrador na narrativa curta
machadiana.
Referências Bibliográficas
BAKHTINE, Mikhail. Esthétique et théorie du roman. Paris: Gallimard, 1978.
BOURNEUF, Roland & OUELLET, Réal. O universo do romance. Coimbra;
Almedina, 1976.
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