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DESLOCAMENTO DO PONTO DE VISTA:

DE MACHADO DE ASSIS A RUBEM FONSECA


Maria de Lourdes Abreu de Oliveira - CES/JF

Resumo: Foco narrativo como ângulo de visão em que se coloca o narrador. Exploração
de recursos de técnica narrativa na renovação da arte literária. O conto machadiano e a questão
do ponto de vista: verdadeiro laboratório ficcional. A narrativa curta machadiana, realizada
entre o final do século XIX e início do século XX. Deslocamento do ponto de vista: novas
possibilidades de renovação da técnica nascidas com o cinema. Trânsito entre cinema e
literatura. Fernanda Botelho: elaboração do ponto de vista e do ponto de vista circulante entre as
diversas pessoas do discurso, em Lourenço é nome de jogral. Valorização do visual no mundo
contemporâneo: aumento do intercâmbio entre artes visuais e literatura. Escritura de Rubem
Fonseca em Lúcia McCartney: a grande importância dada ao olhar. Exploração da mobilidade
do ponto de vista.

Palavras-chave: Literatura e cinema; ponto de vista; Machado de Assis; Fernanda


Botelho, Rubem Fonseca.

O foco narrativo como ângulo de visão em que se coloca o narrador vem passando
por alterações ao longo da história da arte literária, levando a conseqüências observáveis
no texto literário, decorrentes da diferença de ponto de vista do narrador clássico
confrontada com o do narrador pós-moderno. Segundo Silviano Santiago,
... o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada,
em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a
ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia,
da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele
narra enquanto atuante (Santiago, 2002, p. 45).

Considerando-se a narrativa literária, a expressão ponto de vista implica uma série


de possibilidades. No uso comum, pelo menos três sentidos podem ser distinguidos:
sentido literal ou percepção, ou seja, o ponto de vista através dos olhos de alguém; o
figurativo ou conceptual, através da visão de mundo de alguém; e transferido ou
interessado, isto é, caracterizando interesse geral de alguém. Enquanto os dois primeiros
referem-se a uma ação percebida ou concebida, o terceiro refere-se a um estado passivo.
Assim uma dada personagem pode “perceber literalmente um certo objeto ou evento;
e/ou este pode ser apresentado em termos de sua concepção; e/ou seu interesse nele
pode ser invocado (mesmo se ele estiver inconsciente desse interesse)” (Chatman, 1978,
p. 153).
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Na abordagem de uma narrativa literária, a situação é bem diversa da que se


observa na vida real, uma vez que não há uma simples presença, mas um complexo em
que, além da personagem e do narrador, há, ainda, a presença do autor implícito, todos
manifestando "uma ou mais espécies de pontos de vista” (Bourneuf & Ouellet, 1976, p.
106).
Ciente desse emaranhado, e mesmo explorando esse aspecto, tentaremos, neste
ensaio, avançar pelo delicado caminho do ponto de vista, apoiando-nos no ponto de
vista de que, afinal, a nossa proposta é um ponto de vista sobre a influência do cinema
no deslocamento do ponto de vista e do ponto de vista circulante entre as diversas
pessoas do discurso.
Cinema e literatura não são a mesma coisa. Em princípio, enquanto o cinema
trabalha com meios de representação concretos, a literatura trabalha com abstrações.
Apesar das diferenças, apresentam pontos de contato e podemos verificar que tanto o
cinema apóia-se na literatura - a narrativa fílmica não só deve a Dickens, mas à ficção
do século XIX e mesmo à da atualidade, alimentando-se, com fartura, especialmente no
romance moderno - quanto a literatura também se apóia no cinema, recorrendo a
processos tipicamente cinematográficos. Cinema e literatura permutam serviços.
Consideremos a narrativa curta machadiana, realizada entre o final do século XIX
e início do século XX, período em que nasce o cinema, quando trocas entre esses meios
ainda não se manifestavam claramente.
É o conto que dará a Machado de Assis um filão rico a explorar, na busca da
renovação da arte literária, funcionando como um verdadeiro laboratório ficcional.
Essas narrativas curtas vão sendo elaboradas até chagarem a uma “concisão, destreza,
variedade formal, e humour que serão sua posterior escolha” (Brayner,1979, p.66).
Na medida em que introduz o leitor no universo do livro, permitindo-lhe a escolha
de caminhos próprios para alcançar o real, Machado renova a arte de narrar. Já não se
trata de um leitor passivo a receber as representações em um mundo fechado de cuja
porta o autor, e só ele, possui a chave. Mostrando-se no ato de carpintaria literária
convoca o leitor a questionar o mundo da ficção. Já não se trata apenas de um narrador
onisciente a manipular um universo fechado de que só ele conhece os segredos.
Machado não escreve o livro da vida, mas a vida sobre um livro. E é, sobretudo, na
colocação do ponto de vista, no entrecruzamento de vozes a manifestarem seu
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posicionamento, que se vai estabelecer o jogo narrador-leitor-personagens no


questionamento do mundo.
Seguiremos, por conseguinte, nos textos a serem aqui propostos, o percurso por
ele realizado na busca de recursos novos para narrar a aventura do homem através do
“beco sem saída em que se debate a humanidade” (Brayner, 1979, p.89). Buscaremos,
pois, analisar o ponto de vista em que se coloca o narrador e as modificações havidas,
decorrentes do diálogo que se estabelece no universo ficcional entre narrador, leitor ,
personagens e o patrimônio cultural a que recorre o autor.
Com esse objetivo, consideremos o ângulo de visão em que se posiciona o
narrador, ora maestro, ora personagem, ora simples figurante dessa ópera que se
desenrola nesse teatro especial, criado por Deus, como concessão a Satanás, tomando-se
para orientação o percurso do conto machadiano, seguido na antologia, O conto de
Machado de Assis (1980), organizada por Sonia Brayner.
“Miss Dólar” escrito na terceira pessoa, já convoca o leitor a participar do
universo do conto: “Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem
saber quem era Miss Dollar” (1980, p.23). Se o conto apresenta um enredo de forma
linear, subdivido em partes, quase como uma novela, todavia, uma inovação se verifica:
a perspectiva dialógica, ou seja, o movimento do pensar inserido no discurso. O leitor é
convocado a conjeturar sobre a relação nome /personagem. Por que Miss Dólar? Uma
mulher rica ou uma heroína semelhante às de Shakespeare? Uma jovem ideal e delicada
ou uma governanta rabugenta? Depois de jogar com muitas possibilidades, o narrador
conclui naquele tom de ironia que lhe é peculiar: “Falha dessa vez a proverbial
perspicácia dos leitores: Miss Dollar é uma cadelinha galga” (Ibidem, p. 24).
O leitor é arrancado de sua posição passiva na arquibancada, e jogado na arena,
conclamado, cada vez mais, a compartilhar dinamicamente do trabalho de criação. Para
isso, considere-se uma série de colocações propostas pelo autor em diferentes contos.
Em “Dona Benedita”: “... convido a leitora a observar-lhe as feições” (Idem, p. 109); ou
em “Cantiga de esponsais”: “imagine a leitora que está em 1813”(p. 153). Em “Noite
de Almirante”, o narrador, muito discretamente, solicita a opinião do leitor: “mas uma
vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria declará-lo. Que
vos parece?” (p.77). Em “Conto de Escola”, os leitores são invocados a compreender o
ato do narrador-personagem: “Já lhes disse: o dia estava lindo e depois o tambor...Olhei
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para um e outro lado; afinal não sei como foi, entrei a marchar também ao som do
rufo”(p.196).
Preocupado em perscrutar a alma humana, recorre à onisciência do ponto de vista,
para captar as mínimas sutilezas da psique humana. Em “A causa secreta”, narrativa em
terceira pessoa, o foco narrativo passa por trás da personagem, quando o narrador não a
olha de fora, mas tenta penetrar de um modo objetivo e direto na sua vida psíquica.
Quando Garcia debruça-se sobre o cadáver de Maria Luíza e a beija, rebentando em
soluços, cheio de desespero, o foco narrativo penetra na intimidade da personagem que
o observa: “Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor
moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa” (p. 224).
Na renovação das técnicas, referentes ao ponto de vista, o diálogo passa a
funcionar não apenas como um elemento dentro do texto, mas como forma genérica
mesmo, como “teatralidade”. É o que se pode constatar em contos como “A teoria do
medalhão” ou “O anel de Polícrates” – este com personagens marcadas, como no teatro,
A e Z – embora não se observe, ainda, nesses contos, uma discussão com pontos de
vista a se chocarem, pois se trata de um diálogo em que predomina o ângulo de visão de
uma das personagens.
Já “O enfermeiro” é um conto em primeira pessoa, uma confissão em que a
própria personagem conduz a narrativa. O ponto de vista do criminoso vai-se
modificando em função da modificação do ponto de vista das pessoas que o cercam.
Inicialmente, com reservas: “Eu, a princípio, ia ouvindo, cheio de curiosidade; depois
entrou-me no coração um singular prazer que eu, sinceramente, buscava repelir”
(p.187). Depois, aceitando o que se dizia do velho, embora com certo complexo de
culpa: “o prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia
moral” (p.188). Finalmente, o tempo vai corroendo seus escrúpulos e o ponto de vista
mais cômodo instala-se: “os médicos, a quem contei as moléstias dele, foram acordes
em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo” (p. 188).
No diálogo que se estabelece entre narrador-persongem e a palavra da Escritura, a
colocação do discurso bíblico é questionada, através da ironia às palavras do Cristo,
tomadas às avessas: “Bem aventurados os que possuem, porque eles serão consolados”
(Ibidem, p. 188).
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Assim, o acento da narrativa desloca-se das ações para as opiniões. O narrador


assume uma óptica de relatividade, em que o ponto de vista sobre o mundo e sobre si
mesmo desloca-se em função da modificação do ponto de vista dos outros, ponto de
vista que, de certa forma, é conduzido por ele: “Pode ser que eu, involuntariamente,
exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que ela devia morrer, ainda
que não fosse aquela fatalidade...” (Ibidem, p. 188).
Na busca de novos recursos para a aventura literária em que se lança, Machado
debruça-se sobre o patrimônio da cultura popular e enche seus alforjes com tradicionais
maneiras de contar. Assim, em “A igreja do diabo”, a enorme contradição humana é
narrada a partir do ponto de vista de um velho manuscrito: “Conta um velho manuscrito
beneditino que o Diabo, em certo dia teve a idéia de fundar uma igreja” (p.145).
Também o conto “Um apólogo” é iniciado por essa tradicional e impessoal maneia de
contar: “Era uma vez uma agulha...” (p.213). No encerramento, todavia, o narrador
interfere transferindo-se a construção da narrativa, o ponto de vista, para a primeira
pessoa que tira do apólogo a amarga e machadiana lição: “Contei essa história a um
professor de melancolia que me disse, abanando a cabeça: - Também eu tenho servido
de agulha para muita linha ordinária” (Ibidem, p. 215).
Na orquestração das vozes, dos pontos de vista que se digladiam, a cultura
ocidental também é conclamada a manifestar-se, como se verifica no conto “A
cartomante”, em que se estabelece uma relação intertextual com Shakespeare: “Hamlet
observa a Horácio que há mais cousas entre o céu e a terra do que sonha a nossa
filosofia (p. 205). Estabelece-se um diálogo entre o texto shakespeariano e o de
Machado. Do choque entre os pontos de vista de Hamlet, de Camilo, da Cartomante, do
incidente final, contado pelo narrador, nasce a profunda ironia desse texto circular.
Recorrendo seja à narrativa em primeira, seja em terceira, seja às formas
tradicionais de contar histórias, seja à cultura popular ou à literária, Machado de Assis,
experimentando novos recursos, está sempre preocupado em perscrutar, de diversos
ângulos, de muitos pontos de vista, o homem debatendo-se no conflito de suas
contradições.
Comentando a posição de Walter Benjamin sobre o narrador pós-moderno,
Salviano Santiago destaca:
Benjamim pode caracterizar três estágios evolutivos por que passa a
história do narrador. Primeiro estágio: o narrador clássico, cuja função é
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dar ao seu ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência


{...}; segundo: o narrador do romance, cuja função passou a ser a de não
mais poder falar de maneira exemplar ao seu leitor; terceiro: o narrador
que é jornalista, ou seja, aquela que só transmite pelo narrar a
informação, visto que escreve não para narrar a ação da própria
experiência, mas o que aconteceu com x ou y em tal lugar e a tal hora
(Santiago, 2002, p.45-6).

Das narrativas orais à narrativa pós-moderna, grandes mudanças são observáveis


no referente ao ponto de vista. Enquanto o narrador clássico tinha como objetivo ensinar
alguma coisa, nascida da própria experiência, “o narrador pós-moderno é o que
transmite uma ‘sabedoria’ que é decorrência de uma vivência alheia a ele, visto que a
ação que narra não foi tecida na substância viva de sua existência” (Ibidem, p. 46). Com
a hegemonia da imagem no mundo contemporâneo, o olhar passa a ter importância
capital no posicionamento do narrador no trabalho de representar o espetáculo
observado:
São essas as posturas fundamentais do homem contemporâneo, ainda e
sempre mero espectador ou de ações vividas ou de ações ensaiadas e
representadas. Pelo olhar, o homem atual e narrador oscilam entre o
prazer e a crítica, guardando sempre a postura de quem mesmo tendo se
subtraído à ação, pensa e sente, emociona-se com o que nele resta de
corpo e/ou cabeça. (Ibidem, p. 59)

Embora na literatura já houvesse uma constante renovação de possibilidades no


referente à questão do ponto de vista, conforme se pôde observar nos contos
machadianos, novas possibilidades de exploração do ponto de vista nascem com o
cinema. Técnicas como a câmara lenta, a mobilidade e a dinamização do observador
através da câmara, o saltar do longe para o perto, o flashback, a montagem, transitam
para a literatura, gerando uma nova maneira de apreender a realidade. Assim, a câmara,
devido à sua habilidade para mover-se em qualquer direção, vagarosa ou abruptamente,
permite mudanças muito fluidas com relação ao ponto de vista, mudanças que ocorrem,
de modo análogo na literatura, respeitando-se as diferenças de meios.
De modo geral, a dependência do filme, óbvia e firme, do ponto de vista parece ter
tornado os escritores crescentemente cientes dos usos e possibilidades de um ponto de
vista controlado e flexível. De Dos Passos, Faulkner, e Hemingway até o presente, o
estrito controle do ponto de vista tem-se tornado crescentemente importante na ficção;
isto é devido, pelo menos em parte, ao exemplo do filme (Richardson, 1969, p.90).
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Em Lourenço é nome de jogral, Fernanda Botelho, na elaboração da narrativa,


recorre ao processo de ponto de vista multifacetado, partindo da visão de seis
personagens principais sobre a morte de Lourenço. Essas personagens são: Luís, o filho
de Lourenço; Matilde, feminista divorciada e amante de Lourenço; Maria da Luz ou
Luzinha, namorada de Luis; Firmino, amigo de Lourenço, também divorciado; .,
Corina, mulher de Lourenço e o próprio Lourenço.
É marcante a influência do cinema, observada na construção dessa narrativa. No
percurso para o pai, tentando desvendar o mistério da morte dele que, implicitamente,
resolveria o mistério de sua vida, os olhos de Luís percorrem a casa, examinando,
detidamente, o local de trabalho de Lourenço, o papel de parede, com rasgões, e a
mancha - influência de Robbe-Grillet? - em forma de cornucópia: "o borrão em forma
de cornucópia no papel adamascado do salão, os salpicos cor de café com leite no papel
com motivos de caça, mesmo atrás da secretária dele...” (Botelho, 1971 p. 9).
Constata-se, pois, que na transposição do cinema para a literatura, o olho humano
funciona como uma câmara a esquadrinhar o mundo. Saltando ora do longe para o
perto, ora de um lado para o outro, a câmara favorece o observador, dotando-o de
mobilidade, de dinamização, eliminando o problema de distanciamento que o separa do
observado. Há, assim, uma violação da ordenação do espaço tanto quanto da ordenação
do tempo, permitindo ao narrador saltar do presente para o passado ou de um lugar para
o outro, sem o cuidado de explicar ao leitor que essas ordens foram rompidas. A era do
dínamo permite essa violação.
Ora, essa ruptura, essa supressão de fases de uma seqüência ou de um trecho de
ação, passando-se abruptamente para os subseqüentes, deixando-se ao leitor ou
espectador o trabalho de completar o que falta, constitui o que se denomina montagem.
É processo altamente artístico, que permite ao narrador decompor e recompor a
realidade, oferecendo-nos a imagem do mundo não gratuitamente, mas de maneira
criativa, nascida do conflito entre duas outras imagens, como a chama nasce do choque
entre o fósforo e a zona de atrito. Recortando o mundo, escolhendo as imagens, e
jogando com elas, o Poeta desvela o mistério que a natureza se empenhava em
esconder: "a justaposição dos ângulos de tomadas de cenas revela o ponto de vista do
artista sobre o fenômeno” (Eisenstein, 1969, p. 175).
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O processo mais comum de se escreverem romances é usar-se a primeira ou a


terceira pessoa, processo que não é indiferente, pois essa mudança do ponto de vista
altera não só o que se conta, mas também o nosso posicionamento de leitor quanto ao
que nos é contado. Todavia, na narrativa romanesca, entram, realmente, em jogo as três
pessoas do verbo: “duas pessoas reais: o autor que conta a história, que corresponderia
na conversação corrente ao ‘eu’, o leitor a quem se conta a história, o ‘tu’, e uma pessoa
fictícia, o ‘herói’, aquele de quem se conta a história, o ‘ele’” (Butor, 1964, p. 61).
Diferentemente da vida real, não há no romance uma identidade literal entre o que
conta e o de quem se conta a história. Na verdade, aquele de quem se fala, a
personagem, é um ser fictício - expressão paradoxal em que repousa a criação literária,
dependendo a verossimilhança do romance desta possibilidade de uma criação da
fantasia comunicar "a impressão da mais lídima verdade existencial” (Candido, 1976, p.
62). Esse ser fictício é um terceiro com relação aos seres concretos - o leitor e o autor -
que entram em comunicação através dele.
De acordo com Michel Butor, é a partir de elementos de sua própria vida que o
romancista cria personagens, máscaras através das quais ele se conta e se sonha e que o
leitor reconstitui a história, a partir dos signos da página, recorrendo a suas experiências
vividas, e que o sonho a que chega ilumina o que lhe falta, aquilo que se conta no
romance é "também alguém que se conta e nos conta” (Butor, 1964, p. 62). Ora, "a
tomada de consciência de tal fato provoca um deslizamento da narrativa da terceira para
a primeira pessoa." (Ibidem, p. 62).
Um problema relacionado ao tempo vai ser gerado com a introdução do narrador
na narrativa: na medida em que se passa das memórias, ao diário, ao monólogo interior,
o espaço de tempo entre o ato e sua narração tende a diminuir. Enquanto o narrador de
uma narrativa em primeira pessoa conta apenas o que sabe de si mesmo, o do monólogo
interior relata o sabido no momento mesmo em que ocorre, colocando-nos diante de
uma consciência fechada, apresentando-se a leitura "como o sonho de uma 'violação', a
que a realidade recusar-se-ia constantemente" (Ibidem, p. 65). Ora, considerando-se que
é necessário haver na leitura a circulação entre as pessoas, torna-se essencial a abertura
dessa consciência. É aí que entra a segunda pessoa: "aquele a quem se conta a sua
própria história” (Ibidem, p. 66). Para suprir as lacunas da gramática, usamos, muitas
vezes, a linguagem corrente, uma pessoa em lugar da outra. Esses deslocamentos
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prestam-se, na linguagem literária, a "aplicações retóricas e poéticas consideráveis”


(Ibidem, p. 68).
Na estruturação de Lourenço é nome de jogral, constatamos que a narrativa é
descentrada e o ponto de vista, circulante. As personagens se delineiam através de
ópticas que se intercalam, que deslizam de uma para outra, cada um falando de si no
discurso do outro e vice-versa ou em "monólogo compartilhado", conforme colocado
por Lourenço, verdadeira ciranda em que, dando-se as mãos, dançam e cantam em
uníssono, mas cada um preserva sua individualidade.
Buscando o sentido da vida do pai - que lhe daria o sentido da própria vida -
através da decifração do mistério de sua morte - Luis tenta arrancar do passado a sua
imagem, reunindo elementos que Lourenço não pôde ou não quis mostrar-lhe, porque
cada dia era providenciado para que ele não soubesse, adulterando-se-lhe a visão.
O mistério será decifrado através de Luzinha? Terá ela a verdadeira óptica em que
se coloca Lourenço? Luzinha, “tu" a quem se dirige, contando-lhe sua própria história.
Nela Luís vê a que chegou mais próximo ao pai, dirige-se a ela, falando por ela, na sua
ausência. Ou Lourenço será decifrado através do ponto de vista de Matilde? Na imagem
de Matilde, Luís vê como que dois "tus" superpostos, Luzinha destacando-se em
primeiro plano.
Matilde dirige-se a Lourenço, traçando-lhe o caráter, vendo-o através de sua
própria óptica. Há, todavia, um deslizamento do seu "eu" para o "tu" - ou o "você"
brasileiro - dele, pois o ponto de vista de Lourenço volta-se sobre ela. E implícita está a
figura do autor que fala a nós, leitores, através desse "ser fictício", a personagem,
provocando um deslizamento sem fim entre as pessoas do verbo.
E no poema, feito à memória de Lourenço, Matilde, a trovadora, canta as
grandezas e limitações de Portugal, de Lisboa, a cidade de Ulisses, posiciona-se através
do "nós" que abrange o mundo, o homem, na força da palavra do Poeta - "o pastor da
linguagem” (Heidegger, 1967, p. 25) - ligando o existencial ao social.
Firmino vê Lourenço, vê o grupo, como um "nós'" que não é um "eu" repetido
muitas vezes, mas uma composição das pessoas do verbo, um "nós" em que um pode
falar pelo outro, mostrando que o "eu" que narra "pode passar a cada instante de um
indivíduo a outro, que ele pode ser constantemente revezado” (Butor, 1964, p.71), uma
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vez que: "eram os nossos ‘pontos de vista’ definidos em termos de dialética e de


respeito mútuo, que levavam ao nosso entendimento" (Botelho, 1971, p. 65).
Na colocação do ponto de vista, o narrador constantemente recorre à palavra do
outro:
... no falar corrente de todo homem que vive em sociedade, a metade
pelo menos das palavras que ele pronuncia são aquelas do outro
(reconhecidas como tais) transmitidas em todos os graus possíveis de
exatidão e de imparcialidade (ou, antes, de parcialidade). (Bakhtine,
1970, p. 158).

Essa palavra do outro, mesmo quando é citada integralmente, sem modificações,


sofre influência do contexto em que é colocada, sendo possível tornar-se ridícula a
palavra mais séria e vice-versa. No processo de transmissão, as palavras do outro podem
ser deformadas e exploradas para servir aos mais variados interesses. Recorrendo a um
processo de montagem, Firmino dedica um ensaio a ser feito à memória de Lourenço,
obcecado pela idéia de liberdade.
Na ciranda das pessoas do verbo, Luzinha desliza para Lourenço, que desliza para
Luzinha, do "eu" para o "tu", do "tu" para o "eu", enlaçando-se e fundindo-se, cada um
falando de si no discurso do outro. No ponto de vista de Luzinha, Lourenço é a resposta
que buscava para a vida, o símbolo do mundo decadente, fascinante através dele. Entre
as cinco personagens e suas colocações frente ao mundo está Lourenço - através de um
diário? na verdade o próprio livro escrito para ser encontrado pelo leitor.
Lourenço desliza de uma para outra personagem, confundindo-se o "eu" do
narrador com o "eu" do autor implícito. Lourenço está no outro, como o outro está nele.
Um fragmento que se completa noutro fragmento. Ele se perde na busca de
identificação, deslizando do "eu" para o “tu", precisando do outro para se completar.
Todavia, Lourenço deixa uma pista: a chave do armário, a chave do mistério. E,
sobretudo, o impulso para a transgressão. O gesto para a criação. Embora não haja
resposta. Apenas a busca: "Não Luís, o que vais encontrar é o vazio dentro do armário"
(Botelho, 1971, p. 268).
Lourenço é o que tem nome de jogral. É o ator, é o intérprete. É o vagabundo de
estrada, que,de castelo para castelo, de pessoa para pessoa, de Matilde para Luzinha, de
Luzinha para Luís, de Corina para Firmino, de Firmino para Lourenço, para o "eu",
carregando a sua "frustração de trovador" (Botelho, p. 112), leva a mensagem do Poeta -
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o vigia da linguagem que é a casa do Ser, onde mora o homem (Cf. Heidegger, 1967, p.
24-5) - no seu questionamento do mundo, na perseguição da palavra a ser dita, na busca
do mistério que se esconde no armário.
Essa fragmentação do ponto de vista é a tentativa de apreensão do mundo
contemporâneo, na sua atomização e rapidez. Visão que se nos mostra em abismo, ou
seja, o ponto de vista do leitor, do ponto de vista do autor, através dos pontos de vista
das personagens, situados através da circularidade das pessoas gramaticais. A apreensão
dessa fragmentação, dessa rapidez é alcançada, sobretudo, pelo cinema - a linguagem
do mundo moderno, da era da máquina, do dínamo.
Recorrendo a processos tipicamente cinematográficos, Fernanda Botelho recria,
em Lourenço é nome de jogral, o mundo atomizado, fragmentado, veloz, em que
vivemos, numa narrativa descentrada, em que o homem é o mistério, é o armário vazio -
entre o abismo e a náusea -, buscando no outro o fragmento que lhe falta, na sua
consciência de si de não totalidade, de incompletude, buscando as palavras como
processo de libertação das vozes sinistras que o torturam.
Levando-se, pois, em consideração as relações estabelecidas entre a arte fílmica e
arte literária, levando-se em consideração o comércio que se estabelece entre literatura e
mídia, quando se constata um verdadeiro intercâmbio entre artes visuais e literatura,
com a proliferação de obras situadas nos limites entre elas, como as histórias em
quadrinhos, ou os romances filmados, ou as obras criadas para o cinema e tendo
existência literária e vice-versa, considerando-se toda esta valorização do visual no
mundo contemporâneo, o primeiro aspecto que se manifesta na escritura de Rubem
Fonseca é a grande importância dada ao olhar.
Sob o império do visual, o homem, no mundo contemporâneo, apreende o real de
forma fragmentária, através de olhares sucessivos. Não dispondo de um ponto de vista
fixo, que lhe permita um modo abrangente de ver, nunca chega a uma verdade absoluta.
O conhecer é a visão que se tem do outro. Preocupada com a ação, a ficção pós-
moderna preocupa-se, conseqüentemente, com a exploração de suas possibilidades
visuais: “tende mais e mais a pensar em si como completamente dramatizada, o ideal
sendo uma história na qual o leitor veja tudo, nada seja contado, e na qual não se possa
detectar, absolutamente, a presença do autor” (Richardson, 1969, p. 19).
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A civilização das imagens nasceu da convergência de dois fenômenos sociais: a


atomização da sociedade e a importância alcançada pelas técnicas a serviço da
expressão.
À medida que se aperfeiçoam os materiais, que aparecem câmaras ultra-sensíveis
que devolvem imagens cada vez mais nítidas, à medida que os satélites de
telecomunicação colocam o mundo à mesa de uma família jantando, a televisão se torna
uma convidada permanente, uma espécie de caixa de Pandora, de onde saem as maiores
surpresas que, todavia, são digeridas pelos telespectadores com a mesma
imparcialidade. É este o mundo que Rubem Fonseca reescreve em Lúcia McCartney,
em linguagem, muitas vezes, extremamente violenta.
Esse dinamismo e essa preocupação com o visual encontram apoio no recurso à
mobilidade do ponto de vista, técnica da qual o cinema tem completo controle. No
exercício de sua escritura marcadamente visual, Rubem Fonseca recorre a técnicas
cinematográficas. Na transposição do cinematográfico para a literatura, constata-se que
o olho humano funciona como uma câmara, registrando o mundo: “Abro o olho: Isa,
bandeja, torrada, banana, café, leite, manteiga. Fico espreguiçando. Isa quer que eu
coma” (Fonseca,1969, p.21).
A descontinuidade do entrecho, a tentativa de surpreender o homem em ação,
aspectos que marcam a narrativa contemporânea, distinguindo-a da narrativa
tradicional, caracterizam a linguagem cinematográfica, posta a serviço da literatura, pois
“a câmara favorece a mobilidade e a dinamização do observador e da distância que o
separa do observado. O saltar do longe para o perto ou do lado para a frente, confere ao
texto ênfase e dramatismo”( Moeller, 1975, p. 61).
No conto “Manhã de sol” (p.201-208), verifica-se esta descontinuidade.
Considere-se o trecho:
Pm segura o braço de madureira. madureira solta o braço, corre. À
direita, a quinhentos metros, está a subida para o morro; à esquerda, a
seiscentos metros, está o quartel de polícia militar. madureira corre mais
rapidamente do que um cavalo. Quinhentos, quatrocentos, trezentos,
faltam cem metros.
Da porta do quartel saem quatro Pms. (p.203).

Observa-se que há violação da ordenação do espaço. A câmara salta do PM,


segurando o braço de madureira, para madureira soltando o braço, para madureira
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correndo, para o morro, para o quartel da polícia, para a corrida de madureira, para os
quatro Pms.
A câmara também se presta para marcar a violação do tempo, saltando do presente
para o passado e vice-versa. No conto “Zoom” (p. 177-183), a ruptura da ordenação
espaço-tempo é evidente. A câmara simplesmente ajusta as lentes que lhe permitem
alcançar os vários graus de grandeza sem perda de foco, indo de uma estação de águas,
para um consultório médico, para uma sala de cartomante, sem a mínima preocupação
de orientar o leitor neste jogo com lentes e focos, espaço e tempo:
Duchas, águas, estetoscópio. Os punhos virados escondendo a sujeira.
Toalhinhas de crochê, a sala de uma cartomante. “Vejamos o seu
coração”. Estetoscópio no peito. “Sou um médico (que tem várias
poltronas de couro vermelho. Esses furos parecem ânus, anos?, mas eu
sou um) especialista”. Pago. “Depois o senhor volta”. Escreve. Olho par
a fonte do Duque de Saxe. Feia Princesa Leopoldina. Sete e trinta,
novamente saxe, cento e quarenta centímetros. (Ordem, ordem, o
progresso nada vale, mas a ordem é necessária). (p. 177).

A movimentação da câmara no registro do mundo segue a mesma movimentação


do olhar. No trabalho de vasculhar o mundo, na captação de imagens, observa-se que
tanto a câmara quanto o olhar de um curioso diante de uma determinada cena de rua
seguem a mesma seqüência. Primeiro uma visão do todo, depois a atenção cada vez
mais concentrada. Considere-se, pois, o trecho que se segue, no conto “Manhã de sol”
(p.201-208), contrapondo-se cada um de seus movimentos aos movimentos de câmara,
por nós acrescidos e grifados:
Na porta do Distrito os populares se aglomeram, barrados (plano de
conjunto).
Os que entram se dirigem à sala do Comissário (plano de meio
conjunto).
Comissário está na sua mesa de trabalho (plano médio), cara magra de
fome e pensamento (grande plano). Madureira e comissário se olham
(plano de detalhe). (p.204).

Assim, a câmara vai de um plano de conjunto, com uma multidão agrupada


diante do distrito, para um plano de meio conjunto, com as personagens isoladas numa
parte do cenário, para um plano médio que isola a personagem, abrangendo apenas uma
parte do seu corpo, para um plano cada vez mais aproximado até chegar aos olhos, ao
plano de detalhe.
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Em “Véspera” (p.169-173), o narrador parte de uma panorâmica da janela de


Bellevue, a câmara (o olhar) girando em torno de um eixo fixo, como um espectador
dotado de uma curiosidade viva, apreendendo o mundo progressivamente. Em seguida a
câmara volta-se sobre o narrador, num plano aproximado, num registro da intimidade,
até chegar ao plano de detalhe: a mão sangrando:
Da janela do Bellevue fiquei olhando os carros deslizando pela Franklin
D. Roosevelt Drive, os barcos do East River e, do outro lado, Queens,
fumaça saindo de uma chaminé, como se nada estivesse acontecendo;
quis chorar, com uma pena enorme dela, e de mim, mas a pena era tanta
que nem para chorar dava, saí de lá dando socos nas paredes até minha
mão sangrar e nunca mais voltei (p. 171).

A técnica do grande plano, com o pormenor assumindo importância primordial,


com a ampliação gigantesca de um fragmento qualquer, também pode ser transportada
para a literatura, conferindo ao objeto ampliado uma personalidade, uma força plástica
completamente novas: “a câmara pôs a descoberto tensões existentes entre o objeto e a
sua ordem de grandeza: o escritor transferiu-as para o papel” (Moeller, p. 61)
. Haja vista a importância dada ao charuto, colocado em grande plano, como se
tomasse toda a tela, na descrição de Mr. Harder, no conto “J. R. Harder, executive”
(p.191-195): “Andando pelo corredor. Hall dos elevadores. An enormous cigar. Uma
folha macia. Uma folha lisa. Uma folha uniforme. Um havana difícil. Um havana de
Fidel Castro” (p.191).
O charuto assume, nessa narrativa, uma importância de primeira grandeza.
Adquire existência própria, caracteriza a personalidade de Mr. Harder, milionário,
americano, esbanjando dinheiro, despreocupado com relação à classe desprivilegiada,
de maneiras não muito buriladas, Se não, veja-se:
Mr. Harder acendeu o charuto. Deu uma baforada. Neste instante chegou
o elevador. As portas se abriram. Mr. Harder tranqüilamente jogou o
charuto na caixa de areia que existia no hall. O charuto inteiro. Mr.
Harder sabia que era proibido portar charuto aceso no elevador. Um
charuto daquele custa 1/8 do salário de um operário não especializado
[...] Um inglês nunca faria uma coisa dessas. Ele era do Texas. Besides
um inglês nunca acende um charuto no hall (p.191).

Em “O caso de F. A .” (p.61-94), os dentes da personagem crescem, são colocados


em um primeiro plano que lhes concede importância primordial: “Cheguei em casa,
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Celeste me abriu a porta e saiu correndo para botar a dentadura. Voltou com uns dentes
enormes”(p.72).
Há, ainda, a considerar, no livro em estudo, a tentativa de surpreender o homem
em ação, característica marcante em um mundo dominado pelo visual. Desde o primeiro
conto: “Desempenho” (p.13-18) - em que a personagem central é revelada através de
suas atitudes dentro de um ringue de vale tudo - até o último: “Relato de ocorrência”
(p.211-214) - em que as personagens são manifestas através de seu comportamento ante
uma vaca morta numa ponte por um ônibus que, ao abalroá-la, se precipita no rio, com
um saldo negativo de cinco mortos - torna-se evidente esse aspecto. Nos contos de
Lúcia McCartney, não existe por parte do narrador uma preocupação em evidenciar o
que a personagem sente, mas é a partir do modo de agir das personagens, é a partir do
ponto de vista em que se coloca esse narrador, observando o comportamento delas, que
o leitor chega a conhecê-las.
Assim, em “Os inocentes” (p.187), história extremamente econômica, de pura
ação, escrita em uma página apenas, a ingenuidade, a inocência de uma família recém-
chegada à praia é revelada pelo confronto entre o seu comportamento, correndo para um
espaço vazio num conglomerado de barracas, e biquínis, e chapéus, e toalhas: “Olha,
parece que reservaram lugar para nós” e o comportamento dos banhistas, fugindo do
local onde a mulher nua, inchada, roxa, foi jogada pelo mar: “Banhistas instalam
barracas longe da coisa morta, logo envolvida por enorme círculo de areia, indiferença,
asco”.
É cinematográfica esta preocupação em seguir as ações das personagens através
do olhar. No conto “Os músicos” (p.199), também narrado de forma bastante objetiva, é
como se uma câmara passeasse por uma sala, reproduzindo pela imagem, pelas ações
das personagens o burburinho que domina o ambiente, como se pode constatar nos
exemplos que se seguem: “chegam os músicos, três: piano, violino, bateria”, “as
pessoas comem bebem suam sem ao menos por um instante levantar os olhos para o
balcão”, “Elpídio na bateria, cinqüenta anos, mulato, coloca um lenço no pescoço para
proteger o colarinho”, “todos começam, não exatamente ao mesmo tempo, a tocar a
valsa da Viúva Alegre”, “Os garçons passam apressadamente carregando pratos e
travessas”. O órgão da visão, como se fosse uma câmara cinematográfica, desloca-se de
um ponto a outro da sala no seu trabalho de representar o mundo. E em flash-back
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lança-se para o passado: “quando Sara, sua mãe, morreu, ele tocou Strauss no
restaurante com o coração cheio de alegria” (p. 199).
Neste processo de alargamento do horizonte perceptivo do narrador, cabe, ainda,
chamar atenção para a mudança de perspectiva, quando o enfoque se transfere dos olhos
de uma personagem para os de outra, técnica tipicamente cinematográfica. Sirva de
exemplo o próprio conto “Os inocentes” (p. 187), em que na mudança de enfoque, há
mudança de visão de mundo. Na visão dos banhistas, o espaço vazio, branco, de areia, é
um espaço de morte, que gera angústia existencial, enquanto para a da família recém-
chegada é um espaço de vida, que gera alegria.
Concluindo, verifica-se que de Machado de Assis a Fernando Botelho e Rubem
Fonseca houve uma crescente exploração de recursos de técnica narrativa na renovação
da arte literária. Partindo-se do conto machadiano, constata-se que a questão do ponto
de vista é trabalhada exaustivamente pelo autor, funcionando a narrativa curta, realizada
entre o final do século XIX e início do século XX, período em que nasce o cinema,
quando relações e trocas entre esses meios ainda não se manifestavam claramente, como
verdadeiro laboratório ficcional.
O deslocamento do ponto de vista oferece novas possibilidades de renovação da
técnica nascidas com o cinema. Na poética de Fernanda Botelho e de Rubem Fonseca o
trânsito entre cinema e literatura é marcadamente explorado. Do ponto de vista
circulante entre as diversas pessoas do discurso, evidenciado na escritura de Lourenço é
nome de jogral, passa-se para uma escritura centrada no visual e na mobilidade do
ponto de vista, manifesta nos contos de Lúcia McCartney.
Assim, a questão do ponto de vista, na narrativa de língua portuguesa
contemporânea, distingue-se da narrativa tradicional pela força do olhar e da linguagem
cinematográfica, postas a serviço da literatura, salto que foi seguido, neste ensaio, a
partir da exploração do ângulo de visão em que se coloca o narrador na narrativa curta
machadiana.

Referências Bibliográficas
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SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

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