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Resumo Abstract
Este trabalho se propõe a analisar alguns This article aims to analyze some impor-
elementos marcantes na poética de Jöel Pom- tant elements in the poetics of Jöel Pommerat,
merat, pensando seu lugar no teatro contem- think-ing about his place in contemporary the-
porâneo a partir da denominação que ele pró- ater from the name that himself uses to define
prio utiliza para definir seu trabalho enquanto his work as a creator: “author of theater”. To
criador: a de “autor de teatro”. Para pensar raise some questions about the relation be-
algumas questões relativas aos cruzamentos tween drama and performance in Pommerat’s
entre a dramaturgia e a encenação na obra de plays, we will use as example some fragments
Pommerat, utilizaremos como exemplo frag- of his text Je Tremble, staged in 2008.
mentos de sua peça Je Tremble (Estremeço),
encenada em 2008.
Palavras-chave Keywords
Jöel Pommerat; Estremeço; dramaturgia con- Jöel Pommerat; Je Tremble; contemporary
temporânea; autor de espetáculos. drama; author of performances.
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Pinocchio, Petit Chaperon Rouge e, a mais Em algum lugar que poderia ser cha-
recente, Cendrillon, que são pensadas numa mado de cabaret ou teatro, onde o
sério e o leve, o grave e o louco por
confluência entre os mitos trazidos pelo univer- uma noite não se oporiam mais, al-
so dos contos infantis e a realidade do mundo guns exemplares da humanidade vem
contar ou procurar uma verdade, sob
contemporâneo, fazendo uma crítica audaz às a condução de um apresentador um
relações familiares na sociedade atual, espe- pouco desconcertante.
cialmente entre pais e filhos. Possui, ao todo, Não tendo nenhum outro estímulo a
não ser o de fazer espetáculos de tudo
cerca de 30 obras, entre suas montagens e e de escapar ao limite entre o bom e o
publicações. 2 mau gosto, o verdadeiro e o falso, este
lugar poderia ser um espelho, este
mesmo espelho dos contos no qual
“O estranho
viemos nos interrogar ou desvendar. 3
são todas as contradições que o real não pode
abrigar porque a vida em sociedade não lhe
permite, essas contradições que existem, mas O teatro de Jöel Pommerat constrói espa-
das quais desviamos. E aqui, não desviamos.” ços onde “tudo é possível”, onde o monstruoso
(Pommerat, em Galea e Pommerat, 2005, p. 60) e o abismal da vida quotidiana são revelados
e denunciados poética e esteticamente. O dra-
Para esta análise, iremos nos concentrar
maturgo se pergunta o que pode nos fazer es-
na obra Je Tremble (1) et (2), criada em 2007
tremecer realmente, hoje em dia, já que tudo
e 2008, durante o período em que Pommerat
é tão banalizado? Para ele, o construído em
esteve como artista residente no Bouffes du
cena deve perturbá-lo, surpreendê-lo, como
Nord, a convite de Peter Brook. Esta peça foi
composta em duas etapas, devido ao interes- quer que aconteça ao espectador. Quando
se do grupo de aprofundar questões trazidas isso não ocorre, o público se torna passivo,
em Je Tremble (1). O texto é formado por di- e o que ele busca é o seu desconcerto, seu
versos quadros que, aos poucos, cruzam-se estado ativo, no qual é necessário desfazer e
através da memória do Apresentador, que ten- refazer constantemente seu sistema de refe-
ta desde o início estabelecer uma relação de rências. Em Je tremble, este desconcerto se
unidade e interdependência com o especta- produz ao trazer à tona questões existenciais
dor: “Senhoras e senhores, nós estamos jun- e colocar em tensão nosso próprio sentido de
tos na verdade desde sempre e pra sempre. existência:
Sim, nós estamos juntos desde sempre, sem
termos escolhido, e sim, porque é assim”, afir- O APRESENTADOR
ma ele na terceira cena da peça. Na descrição Senhoras e senhores, a minha pergun-
ta irá surpreendê-los talvez... tem al-
inicial do texto, lido às vezes como um show guém, nesta sala, esta noite, que não
de cabaret ou um espetáculo de variedades, a existe?
Minha pergunta parece estúpida? Vo-
ação se desenvolve no seguinte espaço: cês acham por acaso que eu sou um
2 Apesar do amplo reconhecimento internacional, no Brasil seu trabalho como encenador segue inédito e sua obra dramatúrgica
nunca foi publicada, ainda que dois textos seus tenham sido traduzidos e levados ao palco em 2012: Cet Enfant (Esta Criança),
que recebeu montagem da Companhia Brasileira, com direção de Márcio Abreu, e Je Tremble (Estremeço), encenada pela Com-
panhia Stravaganza, com direção de Camila Bauer.
3 Todas as traduções citadas de Je Tremble foram feitas por Giovana Soar para a montagem de Estremeço, realizada em Porto
Alegre.
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4 Inicialmente é a cadeira que aparece e desaparece, depois um homem vestido surge e desaparece, seguido do mesmo homem
nu, e por fim ele volta vestido.
5Neste sentido, a maestria da composição cênica de Pommerat pode, às vezes, desencorajar os encenadores a buscarem
seus textos como material de criação. Como afirmam Boudier e Pisani “para alem de uma regra infeliz e não escrita do teatro
contemporâneo que deseja que não se montem as peças dos autores que criam suas próprias obras, os textos de Pommerat,
extremamente interessantes, seguem à espera do criador que deseje lhes devolver à vida” (2008, p. 157).
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vidas ao invés de agir. “A personagem torna- do circo, da televisão, dos truques de mágica,
se testemunha da sua própria existência e da do music-hall, etc. Esta diversidade caracteri-
sua época”, aponta Sarrazac (2002, p. 161). za o seu teatro, que investe em um existencia-
Nesta aproximação entre personagem, lismo revelador de patologias sociais: depres-
ação e vida real, Pommerat opta por uma lin- são, jogo de aparências, poder, capitalismo,
guagem verbal simples, ao mesmo tempo em queda da unidade familiar, manipulação, bus-
que produtora de significações complexas, es- ca exacerbada pela felicidade, etc.
pecialmente pela teia de discursos que com- Para o encenador, o principal procedimento
põem esse mosaico de situações presente em receptivo é a observação, que vem por meio
sua obra. Em algumas peças não há desen- do “mostrar” que se desenvolve em cena, não
volvimento e finalização de uma trama, mas a de um demonstrar como ocorre num teatro de
apresentação de situações com conflitos sem tese política. “É este nosso trabalho no teatro:
solução. Não encontramos o desenrolar de li- mostrar, o que mostrar, como mostrar. E sem
nhas principal e secundária de ação, mas a excluir o texto, porque a palavra também deve
justaposição desierarquizada de fragmentos ser mostrada” (Pommerat, 2007, p. 26). O au-
de humanidade. Nos é apresentada uma visão tor se utiliza da justaposição de diferentes pon-
prismática e documental acerca da própria tos de vista como mecanismo dramatúrgico, a
existência humana, atuando como registro fim de que o espectador possa compor sua
ficcional de uma realidade difusa e não mais própria análise a partir das problematizações
capturável de modo orgânico, centralizado e trazidas pela obra. Busca construir peças com
homogêneo, como destaca o próprio drama- códigos múltiplos, que demandem uma impli-
turgo. Assim, “o mundo é muito mais uma epo- cação expectatorial frente a estrutura propos-
peia com múltiplos episódios do que um dra- ta. O teatro é pensado por ele como um “lugar
ma onde a unidade de ação se manifestaria” possível de interrogação e de experiência do
(James, William apud Sarrazac, 2002, p. 230). humano, não um lugar onde vamos procurar a
Jöel abre mão da unidade e valoriza a multipli- confirmação daquilo que já sabemos, mas um
cidade de ações que nos apresenta diferentes lugar de possíveis e de retomadas em questão
pontos de vista sobre um mesmo tema, des- daquilo que nos parece adquirido” (Pommerat
centralizando o discurso. apud Pavis, 2010, p. 352).
Estamos, portanto, diante de um dra-
maturgo que transita entre diferentes meca-
“Minha busca
não é só artística, mas humana, pessoal, refle- nismos dramáticos e construtores cênicos.
xiva” (Pommerat, em Galea e Pommerat, 2005, Seu olhar enquanto encenador impregna sua
p. 55) dramaturgia de contrastes, ruídos, ironias, dis-
sonâncias, contradições, silêncios, escuros,
Pommerat busca construir lugares que nos vazios, imagens, sonoridades, recortes, en-
permitam pensar, contemplar o monstruoso: quadramentos, entre muitos outros elementos
aquilo que preferiríamos não ver, mas que va- que poucas vezes são encontrados na drama-
mos ver assim mesmo, como nas “cabines de turgia produzida por dramaturgos que estão
curiosidades” que pegam emprestadas fontes distanciados da prática cênica. Neste
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COUSIN, Marion. L’auteur en scène: pour une SARRAZAC, Jean-Pierre. Juegos de sueño y
redéfinition des relations entre le texte et la otros rodeos: alternativas a la fábula en la dra-
scène. Revue d’Études Théâtrales. Écrire pour maturgia. México D.F.: Toma, Paso de Gato,
le théâtre aujourd’hui. Modèles de représenta- 2011.
tion et modèles de l’art. Paris: Presses Sorbon-
ne Nouvelle, Registres Hors Série 4, 2015. ______. O Futuro do Drama. Porto: Campo
das Letras, 2002.
GALEA, Claudine e POMMERAT, Jöel. Dia-
logue entre Claudine Galea et Jöel Pomme-
rat, novembre-décembre 2005. Disponível Recebido em 13/12/2015.
Aprovado em 12/06/2016.
em <http://www.carrefourtheatre.qc.ca/media/
Pommerat_Ubu%20Scenes_Europe.pdf>.
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