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cena n.

19

O Teatro de Jöel Pommerat a partir de


Fragmentos de Je Tremble – entre o
dramaturgo e o encenador

Camila Bauer Bronstrup


Encenadora e professora de teoria teatral e dramaturgia no Departamento de Arte Dramática
(UFRGS)
E-mail: camilabauer@yahoo.com.br

Resumo Abstract

Este trabalho se propõe a analisar alguns This article aims to analyze some impor-
elementos marcantes na poética de Jöel Pom- tant elements in the poetics of Jöel Pommerat,
merat, pensando seu lugar no teatro contem- think-ing about his place in contemporary the-
porâneo a partir da denominação que ele pró- ater from the name that himself uses to define
prio utiliza para definir seu trabalho enquanto his work as a creator: “author of theater”. To
criador: a de “autor de teatro”. Para pensar raise some questions about the relation be-
algumas questões relativas aos cruzamentos tween drama and performance in Pommerat’s
entre a dramaturgia e a encenação na obra de plays, we will use as example some fragments
Pommerat, utilizaremos como exemplo frag- of his text Je Tremble, staged in 2008.
mentos de sua peça Je Tremble (Estremeço),
encenada em 2008.

Palavras-chave Keywords
Jöel Pommerat; Estremeço; dramaturgia con- Jöel Pommerat; Je Tremble; contemporary
temporânea; autor de espetáculos. drama; author of performances.
cena n. 19

“Na encenação Nos mais de 30 anos dedicados à escrita,


eu sou autor, na escritura das palavras, eu Pommerat consumou sua forma de criação
sou autor, na pesquisa e concepção eu sou
na qual os atores tem um papel importante,
autor. Eu sou, portanto, autor de teatro”
(Pommerat apud Cousin, 2015, p. 46). 1 mesmo que não auxiliem diretamente na dra-
maturgia e não a improvisem em cena. Como
esclarece, no início do processo de ensaios o
Jöel Pommerat é um dramaturgo e encena- texto não está acabado, vai se construindo aos
dor francês de grande destaque na atualida- poucos, ainda que solicite aos atores que en-
de. Suas obras chamam a atenção da crítica trem em cena apenas quando tiverem memo-
e do público devido ao alto nível de problema- rizado o fragmento recebido antes do ensaio.
tização estética, à aguçada sensibilidade das “Eu preciso que eles se apropriem do texto,
formas e conteúdos abordados, à precisão cê- que estejam com as palavras e não na recita-
nica, à criatividade presente em sua dramatur- ção ou restituição do texto” (Galea e Pomme-
rat, 2005, p. 59), afirma Jöel em sua entrevista
gia e encenação, além da potência e impacto
a Claudine Galea. Em 1990, movido pelo inte-
das imagens produzidas em seus espetácu-
resse em aprofundar a pesquisa cênico-dra-
los, frequentemente considerados “estranhos”.
matúrgica que vinha desenvolvendo, fundou
Em tempos de discussões acerca do lu-
a Companhia Louis-Brouillard, com quem de-
gar do drama no teatro contemporâneo, Pom- cidiu montar uma peça por ano, ao longo de
merat é alguém que definiu claramente seu 40 anos. É uma espécie de plano artístico e
foco de interesse e concepção artística. Ele ao mesmo tempo uma carta de intenções de
escreve a dramaturgia de seus próprios espe- trabalhar com as mesmas pessoas para que a
táculos e prefere se denominar “autor de tea- linguagem adquirida não se perca e possa ser
tro”. Patrice Pavis define suas criações como ampliada.
“encenação de autor”, em uma analogia ao Pommerat está em pleno vapor criativo e
“cinema de autor”. Para ele, analisando a obra sua produção não cansa de se reinventar. Nos
Les Marchands: últimos anos, teceu uma variedade conside-
rável de abordagens relacionadas ao drama,
A “encenação de autor” encoraja que indo desde estruturas bastante tradicionais,
se trabalhe paralelamente a “trilha
até procedimentos radicais como a utilização
sonora”, e a “filmagem” das imagens,
para em seguida confrontar os dois. de uma única voz em off que narra toda a
Neste contexto, a ligação entre som e peça, com pequenas intervenções sonoras ao
imagem é muito instável. O especta-
dor é forçado a mudar constantemente vivo, como em Les Marchands, que juntamen-
o sentido do movimento de um verso te com Au Monde e D’une seule main formam
a outro. Ora é o som que precede a sua trilogia sobre o trabalho, a guerra, a fabri-
imagem, que ilustra, sóbria ou paro-
dicamente, o texto dito. Ora é a ima- cação de armas e a morte lenta. Aventurou-se
gem que vem primeiro, e se nos impõe também na criação de fragmentos escritos a
como aquilo em que nos faz crer, por
partir de relatos e com uma abordagem pro-
contraste com aquilo que diz o texto e,
assim, passa a ser então uma mentira. cessual que lembra a do teatro documental,
(Pavis, 2010, p. 350). como ocorre em Cet Enfant. Produziu ainda as
releituras de estórias para crianças como

1A As traduções do francês são nossas para fins de pesquisa.

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Pinocchio, Petit Chaperon Rouge e, a mais Em algum lugar que poderia ser cha-
recente, Cendrillon, que são pensadas numa mado de cabaret ou teatro, onde o
sério e o leve, o grave e o louco por
confluência entre os mitos trazidos pelo univer- uma noite não se oporiam mais, al-
so dos contos infantis e a realidade do mundo guns exemplares da humanidade vem
contar ou procurar uma verdade, sob
contemporâneo, fazendo uma crítica audaz às a condução de um apresentador um
relações familiares na sociedade atual, espe- pouco desconcertante.
cialmente entre pais e filhos. Possui, ao todo, Não tendo nenhum outro estímulo a
não ser o de fazer espetáculos de tudo
cerca de 30 obras, entre suas montagens e e de escapar ao limite entre o bom e o
publicações. 2 mau gosto, o verdadeiro e o falso, este
lugar poderia ser um espelho, este
mesmo espelho dos contos no qual
“O estranho
viemos nos interrogar ou desvendar. 3
são todas as contradições que o real não pode
abrigar porque a vida em sociedade não lhe
permite, essas contradições que existem, mas O teatro de Jöel Pommerat constrói espa-
das quais desviamos. E aqui, não desviamos.” ços onde “tudo é possível”, onde o monstruoso
(Pommerat, em Galea e Pommerat, 2005, p. 60) e o abismal da vida quotidiana são revelados
e denunciados poética e esteticamente. O dra-
Para esta análise, iremos nos concentrar
maturgo se pergunta o que pode nos fazer es-
na obra Je Tremble (1) et (2), criada em 2007
tremecer realmente, hoje em dia, já que tudo
e 2008, durante o período em que Pommerat
é tão banalizado? Para ele, o construído em
esteve como artista residente no Bouffes du
cena deve perturbá-lo, surpreendê-lo, como
Nord, a convite de Peter Brook. Esta peça foi
composta em duas etapas, devido ao interes- quer que aconteça ao espectador. Quando
se do grupo de aprofundar questões trazidas isso não ocorre, o público se torna passivo,
em Je Tremble (1). O texto é formado por di- e o que ele busca é o seu desconcerto, seu
versos quadros que, aos poucos, cruzam-se estado ativo, no qual é necessário desfazer e
através da memória do Apresentador, que ten- refazer constantemente seu sistema de refe-
ta desde o início estabelecer uma relação de rências. Em Je tremble, este desconcerto se
unidade e interdependência com o especta- produz ao trazer à tona questões existenciais
dor: “Senhoras e senhores, nós estamos jun- e colocar em tensão nosso próprio sentido de
tos na verdade desde sempre e pra sempre. existência:
Sim, nós estamos juntos desde sempre, sem
termos escolhido, e sim, porque é assim”, afir- O APRESENTADOR
ma ele na terceira cena da peça. Na descrição Senhoras e senhores, a minha pergun-
ta irá surpreendê-los talvez... tem al-
inicial do texto, lido às vezes como um show guém, nesta sala, esta noite, que não
de cabaret ou um espetáculo de variedades, a existe?
Minha pergunta parece estúpida? Vo-
ação se desenvolve no seguinte espaço: cês acham por acaso que eu sou um

2 Apesar do amplo reconhecimento internacional, no Brasil seu trabalho como encenador segue inédito e sua obra dramatúrgica
nunca foi publicada, ainda que dois textos seus tenham sido traduzidos e levados ao palco em 2012: Cet Enfant (Esta Criança),
que recebeu montagem da Companhia Brasileira, com direção de Márcio Abreu, e Je Tremble (Estremeço), encenada pela Com-
panhia Stravaganza, com direção de Camila Bauer.
3 Todas as traduções citadas de Je Tremble foram feitas por Giovana Soar para a montagem de Estremeço, realizada em Porto
Alegre.

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pouco louco – maturgia rica em didascálias manifesta um


Mas vocês sabem, nós podemos viver
perfeitamente sem existir.
desejo de precisar em palavras seu olhar ima-
(...) Eu mesmo conheci um homem, gético de dramaturgo-encenador, funcionando
que era um amigo, com quem isso como um intento de comunicação com o leitor
aconteceu...
Ah, sim, claro, ele existia um pouco. Do do texto, de modo autônomo ao espetáculo.
lado de fora, em todo caso, para os ou- Afirma Pavis (2010, p. 347) acerca de Pom-
tros. E quando vinha na minha casa,
eu o via claro, como eu e vocês, eu o merat:
via sentar-se na minha poltrona, na mi-
nha frente. Autor e encenador de suas próprias
Atrás do apresentador uma cadeira peças, faz bem mais do que acampar
vazia aparece. Ele se volta. Ele olha a as funções e poderes; inventa um mé-
cadeira e se aproxima dela. todo de trabalho e de intervenção que
Mas ele, diferentemente de mim, ele o coloca no centro de uma saia justa
não SENTIA que ele existia, permanente entre texto e imagem, um
Ele não tinha o SENTIMENTO da sua centro que em seguida se transforma
existência no lugar e no momento em que o es-
e era terrível vejam bem, terrível para pectador deve, ele próprio, situar-se,
ele. um centro chamado silêncio.
Este homem sofria muito, e ele estava
inconsolável.
A cadeira desaparece. O mesmo ocorre com alguns mecanismos
O Apresentador volta-se para o público. narrativos presentes em sua obra, tais como
Um dia, a vida havia lhe tirado a im-
pressão de existir e tinha lhe dado a os procedimentos cinematográficos que utiliza
impressão de não existir. de recorte, montagem, as sugestões de trilha
Um dia a vida lhe deu um vazio no lu-
sonora e de luz, os elementos de cenografia,
gar de alguma coisa.
de figurino, entre outros signos cênicos que já
aparecem de modo alusivo no texto dramático.
Para construir este tipo de abordagem que Propostas deste tipo desafiam o encena-
destaca princípios de incerteza, de questiona- dor contemporâneo, já que suas encenações
mento, de problematizações do eu frente ao contam com efeitos significativos de luz e som,
real, Pommerat escreve textos que dialogam que potencializam ferozmente o texto escri-
com questões humanas de ordem marcada- to,5 como ocorre no fragmento a seguir, de
mente existencialista. É forte sua identificação Je Tremble, onde dois personagens estão em
com os escritos do filósofo François Flahault, cena, mas apenas um fala, o outro emite seu
autor da obra Le Sentiment d’exister (2002), discurso somente por meio da voz em off, ge-
cujas ideias permeiam as falas de Je Tremble. rando uma tensão de opostos:
Nesta cena, repleta de indicações cênicas,4 a
própria presença humana é posta em relevo A MULHER MUITO VELHA
Eu vou deixar você.
por meio de um personagem que aparece e Nós vamos nos separar.
desaparece. Esta opção por compor uma dra- Eu decidi não ser racional
hoje.

4 Inicialmente é a cadeira que aparece e desaparece, depois um homem vestido surge e desaparece, seguido do mesmo homem
nu, e por fim ele volta vestido.
5Neste sentido, a maestria da composição cênica de Pommerat pode, às vezes, desencorajar os encenadores a buscarem
seus textos como material de criação. Como afirmam Boudier e Pisani “para alem de uma regra infeliz e não escrita do teatro
contemporâneo que deseja que não se montem as peças dos autores que criam suas próprias obras, os textos de Pommerat,
extremamente interessantes, seguem à espera do criador que deseje lhes devolver à vida” (2008, p. 157).

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Então nós vamos parar “Só temos tempo


parar de nos ver. de captar um pouco do real quando o fabri-
Você não me ama como eu preciso
camos poeticamente” (Pommerat, em Galea e
que você me ame
você não me ama como eu gostaria Pommerat, 2005, p. 59)
que você me amasse
você me ama por aquilo que eu não Em seu Théâtre en présence (2007, p. 26),
sou. Jöel afirma que “O teatro não serve a nenhu-
VOZ DO APRESENTADOR ma causa, ao contrário, para mim, ele deve
Meu corpo não se mexia mais e contaminar a reflexão e tentar nos fazer sair
se contentava apenas em olhar para
ela. de nós mesmos. Neste caso, talvez, ele seja
Como podíamos ter chegado neste político”. Para isso, busca formas que levem
ponto?
O que aconteceu que eu não havia o espectador a uma reflexão sobre sua pró-
percebido? pria existência. Pensando com Hegel e Sarra-
Escuro.
Luz. A Mulher muito velha está sentada zac que “a forma é um reservatório do con-
na poltrona. O Apresentador entra, vai teúdo e as formas antigas deixam transpirar
até ela. Ele olha para ela. Acaricia seus
as velhas ideologias (...) Escrever no presente
cabelos depois vai embora. Quando
ele sai de cena, a mulher muito velha não é contentar-se em registrar as mudanças
se transforma em uma jovem mulher. da nossa sociedade; é intervir na ‘conversão’
Quando ele entra em cena, a jovem
volta a ser velha. Quando ele deixa a das formas” (Sarrazac, 2002, p. 33-34). Neste
cena novamente, o fenômeno se re- sentido, suas obras possuem formas que nos
produz.
permitem observar com clareza a contami-
A poética de Pommerat brinca com o real nação do dramático pelo épico e a busca por
e com nossa percepção acerca do que seja múltiplos mecanismos de enunciação que nos
o real, utilizando-se de jogos de luz e escuri- façam refletir sobre diferentes questões huma-
dão, de vazios e preenchimentos. Suas cons- nas. Tomando como exemplo a fala inicial de
truções se acercam àquelas envolvendo um Je Tremble, temos a ação enunciada por meio
“modelo cinematográfico” o qual, como aponta de uma narrativa que antecipa os aconteci-
Pignon (2015, p. 87), é “sobretudo um efeito de mentos do espetáculo:
percepção”, “que suscita no espectador uma
O APRESENTADOR
fascinação perturbadora entre o impulso de re- Senhoras e senhores, boa noite.
conhecimento e a sensação de estranhamen- Antes de iniciar este espetáculo
eu gostaria de lhes dizer uma coisa
to”. No fragmento acima citado, somos levados uma coisa
a pensar nosso olhar sobre a vida e sobre nós que vocês vão ver
é um pouco particular.
mesmos, sobre conceitos como belo, feio, jo- Estamos aqui no início do nosso espe-
vem, velho, realidade, imaginário, distorção e táculo, intitulado “Estremeço”,
espetáculo durante o qual será bem
percepção. Para Pavis (2010, p. 350) “A arte pouco provável que vocês sejam leva-
consiste em desestabilizar o espectador: ele dos a estremecer realmente
deve ir da palavra para a imagem ou o con- este título sendo apenas um título
meio... sei lá –
trário? No caso de Pommerat, essa hesitação quase que um título por acaso.
provém da pequena defasagem entre o visto e Mas ao mesmo tempo, existe uma coi-
sa que acontecerá com certeza
o ouvido, ali onde se coloca a ironia”. e isto eu tenho o dever de lhes contar,

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senhoras e senhores, eu tenho o dever voz. A dramaturgia traz à superfície texturas


de lhes contar.
No final deste espetáculo, no último
humanas complexas e dicotômicas, reais, ain-
instante deste espetáculo, no último da que se utilize de personagens fantásticos
minuto como a Sereia, o Homem Vampiro e suas mu-
(silêncio)
eu morrerei. lheres, ou o Homem que não existia.
Eu vou morrer
Sim. O teatro é a minha possibilidade de
captar o real e de conduzir o real a um
alto nível de intensidade, de força. (...)
Podemos notar neste fragmento outra fonte É por isso que a arte é essencial para
bastante utilizada por Jöel Pommerat: o meta- mim. Com meios que são artifícios, eu
busco o real. Não a verdade. Só me in-
teatro. Em muitas de suas obras os mecanis-
teressa a realidade. Dizem que minhas
mos da representação não são apenas revela- peças são estranhas. Mas eu passo
dos aos espectadores, mas acabam também meu tempo procurando o real (Pom-
merat, em Galea e Pommerat, 2005, p.
se tornando foco de uma importante reflexão
59).
formal. O autor ironiza o próprio título da peça
e tenta acabar com qualquer expectativa que
Assim, investe em uma construção narra-
o leitor/espectador possa ter quanto a se emo-
tiva que mescla imagens figurativas a outros
cionar com o espetáculo. Recursos deste tipo,
enunciadores ficcionais capazes de produzir
bem como os dispositivos épicos de narra-
um efeito de real, sem abrir mão dos mun-
ção e distanciamento, são frequentes em sua
dos possíveis denotados em cena, de modo a
obra, conforme podemos observar no trecho
oferecer ao espectador lugares onde tudo se
acima, quando o Apresentador anuncia sua
passa como num sonho, brincando com o ima-
morte que, segundo ele, irá ocorrer ao final do
ginário que compõe o mundo de referências
espetáculo. Este fato se construirá ao longo
do receptor: sereia, vampiro, fada, lobo mau,
de toda a peça, por meio de ações dramáti-
o palhaço branco, a terrorista, o presidente, o
cas. Assim, logo na primeira cena, Pommerat
policial, o homem mais rico do mundo. Nes-
nos apresenta a problemática consequência/
te sentido, ao mesmo tempo em que trabalha
causa, bastante comum no teatro contempo-
com fábula, personagem, ação e conflito (ele-
râneo – especialmente em obras de constru-
mentos tradicionais do drama), a forma que
ção fragmentária – que acaba por questionar a
Jöel encontra para compor essa estrutura é
tradicional estrutura de causa e consequência
por meio do isolamento dos personagens, do
presente em formas mais tradicionais. Aqui,
vazio, da fragmentação e da construção die-
sabemos que ele irá morrer e que isto talvez
gética de universos autônomos. Pommerat
não nos faça estremecer. Resta-nos agora
afirma:
descobrir como e porquê.
Por meio dessa linguagem, Pommerat cons- Eu queria realizar um espetáculo que
rompesse com a forma narrativa ma-
trói uma forma anti-realista, ainda que busque gistral, sair das grandes histórias, por-
constantemente o real. Em Je Tremble, temos que neste sistema sempre há um mo-
mento onde temos que ligar um ponto
uma cena na qual a Sereia conversa com seu A a um ponto B. Os dois pontos são
amante/marido, que deseja a amputação de interessantes, mas a passagem entre
eles não tem nada de essencial. O que
sua cauda, mesmo que para isso ela perca a

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é apaixonante no trabalho com frag- da obra é o desfecho de um pedaço de histó-


mentos independentes é que estamos
livres desta obrigação. Só conservas
ria, conectada a outras por fios mais ou menos
aquilo que te parece indispensável. sutis, que podem possuir diferentes naturezas
(Pommerat apud Martinez, 2015, p. 94) conectivas, como o topic narrative, a isotopia,
a estrutura-temática, actancial, entre múltiplas
O que lhe interessa é o ponto forte da ação,
abordagens e problematizações.
os fragmentos que portam em si um clímax,
Nesta construção, Jöel parte da ideia de
ainda que a totalidade da obra possa parecer
uma caixa escura, na qual as coisas (imagens/
linear. Na composição por fragmentos, não há
palavras/personagens/situações) emergem,
o desenvolvimento de uma ação dramática do-
ganham vida, para depois sucumbirem e tudo
minante, causal, no sentido aristotélico, mas
se tornar escuridão outra vez. Segundo Pom-
a apresentação de situações e estruturas ca-
merat, este ponto negro é fundamental para
pazes de evocar imagens fortes e criar ações
limparmos nosso olhar e nossa percepção da
verbais geradoras de tensões dramáticas.
poluição da vida, aguçando nossos sentidos
Neste sentido, não podemos falar de uma evo-
para imagens que muitas vezes se parecem
lução dramática, mas da sucessão de situa-
mais a alucinações do que a realidades. E isso
ções e discursos potentes, de micronarrativas
está marcado na estrutura dramatúrgica, grifa-
que formam o todo da enunciação. Este tipo
do em seus vazios e escuros.
de estrutura, segundo Vinaver em seu Écrits
sur le théâtre 2 (1998, p. 190 apud Sarrazac,
2011, p. 46), retrata “uma espécie de olhar an- “Galea - Terias escrito
gustiado sobre a realidade, porque não pode- escrito sem a cena? Pommerat - Acho que
mos apreendê-la senão de modo parcial. Já não. Só o teatro permite estar na encarnação,
ao mesmo tempo no corpo da presença e das
não vemos a realidade, vemos realidades”. O
palavras.” (Pommerat, em Galea e Pommerat,
formalista russo Tomachevsky, define fábula 2005, p. 56)
como o “conjunto de elementos ligados entre
si que nos são comunicados ao longo da obra”
Os personagens, para o dramaturgo, são
que “representa a passagem de uma situação
inicialmente criações artificiais, que encarnam
a outra” (apud Sarrazac, 2011, p. 47). São jus-
ideias e pontos de vista trazidos pelo autor;
tamente esses pontos de passagem que per-
são abstrações, como ele mesmo define (apud
deram o interesse para Pommerat.
Martinez, 2015, p. 96), que adquirem singula-
Se pensarmos com Sarrazac (2011, p.
ridade aos poucos, no contato com outros ele-
39) que a função do desenlace era uma “es-
mentos e com o trabalho do ator. Pommerat
pécie de triunfo da cronologia que é também
investe também em contornos que funcionam
uma bio-lógica”, o que Pommerat faz é cons-
como representações sociais e estados emo-
truir a obra com base em diferentes pontos
cionais: mãe, pai, irmão, irmã, mulher jovem,
centrais, aquilo que é realmente fundamental,
mulher que está muito mal, mulher muito grá-
mas não de uma história unívoca, e sim de di-
vida, prostituta, mulher testemunha, a procu-
ferentes recortes. Os personagens surgem em
radora, um senhor, o adolescente, etc. Estas
cena no ápice de suas crises, trazendo à tona
figuras transitam entre o dramático e o
conflitos que ecoam no vazio. Assim, o final

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narrativo, aproximando-se da arte do rapsodo cuperar o seu posto.


Eu acho que nesta época eu realmente
teorizada por Sarrazac (2011), na medida em não existia mais.
que mesclam relato direto e imitação. Em obras
como Je Tremble, os personagens oscilam en- Nestes casos, o uso da narrativa e dos mo-
tre sujeitos (observadores do mundo/vida) e nólogos é fundamental como ferramenta de
objetos (observados pelo público, no cabaret). isolamento e solidão da personagem. Alfred
Existe uma mistura de linguagens – lírico, épi- Döblin aponta o enfraquecimento do diálogo
co e dramático – a fim de captar o homem con- ao afirmar que “é igualmente um dogma, mas
temporâneo, buscando formas de contemplar um dogma que se desfaz em ruínas, pensar
suas problemáticas e inquietações. Se tomar- [...] o desenvolvimento do drama unicamente
mos como exemplo o personagem da Mulher numa ação dialogada” (Alfred Döblin, apud
de Camiseta, vemos que ela narra o que acon- Sarrazac, 2002, p. 133). Em peças como esta
teceu com sua mãe, ao mesmo tempo em que podemos observar diversos momentos nos
sofre as consequências do passado descrito e quais se confirma que “privado da sua fun-
ainda não superado. É um discurso forte, polí- ção tradicional de formular o conflito e de o
tico, que marca a situação da classe operária conduzir ao seu termo, através de uma série
na França de finais dos anos 60: finita de relações duais, o diálogo dramático
desaparece progressivamente e enfraquece,
A MULHER DE CAMISETA
Toda a força que ela colocava neste tal como um órgão que deixou de ter utilidade”
trabalho ela tirava do resto da sua vida. (Sarrazac, 2002, p. 138). Em Je Tremble, são
Eu era criança, ela começava a não
me enxergar mais poucos os momentos de diálogo; com frequ-
a mim também. ência o enunciado se endereça diretamente
Ela queria tanto vencer.
Um dia, entre a lâmina e a madeira mi- ao espectador, interlocutor quase actancial do
nha mãe deixou um dos seus dedos da discurso. As vozes que falam e anunciam que
mão direita.
Impossível compreender o que ela não “nós não temos mais futuro” ou que “as coisas
tinha feito direito neste dia não estão bem”, precedidas ou seguidas de
Seu dedo era agora como um objeto,
uma parte dela que tinha perdido a um clássico “senhoras e senhores”, compõem
vida, então, ela o jogou fora. o coro que também pergunta se “tem alguém
Ela teve que ficar de licença por três
meses.
aqui, esta noite, que não existe”. Relativiza-se
Depois, ela pediu de volta o mesmo assim a síntese homem-personagem que se
posto desenvolvia no palco por meio do diálogo.
(...)
Minha mãe sofria mas ela não se la- Deste modo, a questão do endereçamento
mentava por estar lá. se revela importante em sua obra: com quem
Algumas semanas depois de ter volta-
do para a fábrica, ela cortou acidental- o sujeito fala? Esta pessoa lhe escuta? Os ac-
mente um outro dedo. tantes são prisioneiros de suas próprias dúvi-
Desta vez o sofrimento a deixou
quase louca. das, sonhos, queixas, frustrações, esperanças
(...) e desilusões, vítimas de suas próprias ideolo-
Suas mãos começavam a parecer
duas pinças. gias e lutas. Em muitos monólogos do drama
Mas, depois dos três meses de licença moderno e contemporâneo, os personagens
obrigatória, ela voltou e lutou para re-
rememoram e contam fragmentos de suas

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vidas ao invés de agir. “A personagem torna- do circo, da televisão, dos truques de mágica,
se testemunha da sua própria existência e da do music-hall, etc. Esta diversidade caracteri-
sua época”, aponta Sarrazac (2002, p. 161). za o seu teatro, que investe em um existencia-
Nesta aproximação entre personagem, lismo revelador de patologias sociais: depres-
ação e vida real, Pommerat opta por uma lin- são, jogo de aparências, poder, capitalismo,
guagem verbal simples, ao mesmo tempo em queda da unidade familiar, manipulação, bus-
que produtora de significações complexas, es- ca exacerbada pela felicidade, etc.
pecialmente pela teia de discursos que com- Para o encenador, o principal procedimento
põem esse mosaico de situações presente em receptivo é a observação, que vem por meio
sua obra. Em algumas peças não há desen- do “mostrar” que se desenvolve em cena, não
volvimento e finalização de uma trama, mas a de um demonstrar como ocorre num teatro de
apresentação de situações com conflitos sem tese política. “É este nosso trabalho no teatro:
solução. Não encontramos o desenrolar de li- mostrar, o que mostrar, como mostrar. E sem
nhas principal e secundária de ação, mas a excluir o texto, porque a palavra também deve
justaposição desierarquizada de fragmentos ser mostrada” (Pommerat, 2007, p. 26). O au-
de humanidade. Nos é apresentada uma visão tor se utiliza da justaposição de diferentes pon-
prismática e documental acerca da própria tos de vista como mecanismo dramatúrgico, a
existência humana, atuando como registro fim de que o espectador possa compor sua
ficcional de uma realidade difusa e não mais própria análise a partir das problematizações
capturável de modo orgânico, centralizado e trazidas pela obra. Busca construir peças com
homogêneo, como destaca o próprio drama- códigos múltiplos, que demandem uma impli-
turgo. Assim, “o mundo é muito mais uma epo- cação expectatorial frente a estrutura propos-
peia com múltiplos episódios do que um dra- ta. O teatro é pensado por ele como um “lugar
ma onde a unidade de ação se manifestaria” possível de interrogação e de experiência do
(James, William apud Sarrazac, 2002, p. 230). humano, não um lugar onde vamos procurar a
Jöel abre mão da unidade e valoriza a multipli- confirmação daquilo que já sabemos, mas um
cidade de ações que nos apresenta diferentes lugar de possíveis e de retomadas em questão
pontos de vista sobre um mesmo tema, des- daquilo que nos parece adquirido” (Pommerat
centralizando o discurso. apud Pavis, 2010, p. 352).
Estamos, portanto, diante de um dra-
maturgo que transita entre diferentes meca-
“Minha busca
não é só artística, mas humana, pessoal, refle- nismos dramáticos e construtores cênicos.
xiva” (Pommerat, em Galea e Pommerat, 2005, Seu olhar enquanto encenador impregna sua
p. 55) dramaturgia de contrastes, ruídos, ironias, dis-
sonâncias, contradições, silêncios, escuros,
Pommerat busca construir lugares que nos vazios, imagens, sonoridades, recortes, en-
permitam pensar, contemplar o monstruoso: quadramentos, entre muitos outros elementos
aquilo que preferiríamos não ver, mas que va- que poucas vezes são encontrados na drama-
mos ver assim mesmo, como nas “cabines de turgia produzida por dramaturgos que estão
curiosidades” que pegam emprestadas fontes distanciados da prática cênica. Neste

Bauer Bronstrup // O Teatro de Jöel Pommerat a partir de Fragmentos de Je Tremble – entre o dramaturgo e o encenador
cena n. 19

sentido, dramaturgos-encenadores como Jöel Consultado em 4 de novembro de 2015.


Pommerat, mas também poderíamos citar Sa-
rah Kane, Jean-Luc Lagarce, Michel Vinaver, MARTINEZ, Ariane. Dramaturgie du miroite-
Valère Novarina, Ivan Viripaev, Jan Lawers, e ment. Le modèle du spectacle de variété chez
a lista é imensa, parecem haver superado esta Jöel Pommerat. Revue d’Études Théâtrales.
querela entre texto e encenação, nos mostran- Écrire pour le théâtre aujourd’hui. Modèles de
do o quanto uma dramaturgia dita de “gabi- représentation et modèles de l’art. Paris: Pres-
nete” pode ser tratada em um contexto atual ses Sorbonne Nouvelle, Registres Hors Série
no seio da criação e da prática artística, em 4, 2015.
uma confluência entre dramaturgia pensada
enquanto texto escrito, como manifestação PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea:
monossemiótica (posto que se utiliza “apenas” origens, tendências, perspectivas. São Paulo:
das palavras como expressão), e a polissemia Perspectiva, 2010.
da encenação contemporânea que Pommerat
já prevê em gérmen e potencialidades quando PIGNON, Rafaëlle Jolivet. L’écriture scénique
escreve solitário seu texto dramático. de Jöel Pommerat à l’épreuve du modèle ciné-
matographique. Revue d’Études Théâtrales.
Écrire pour le théâtre aujourd’hui. Modèles de
Referências représentation et modèles de l’art. Paris: Pres-
ses Sorbonne Nouvelle, Registres Hors Série
BOUDIER, Marion e PISANI, Guillermo. Jöel 4, 2015.
Pommerat: une démarche qui fait oeuvre.
Jeu: revue de théâtre. Número 127 (2), 2008, POMMERAT, Jöel. Je Tremble (1) et (2). Paris:
p.150-157. Disponível em <http://www.erudit. Actes Sud, 2009.
org/culture/jeu1060667/jeu1114969/23855ac.
html?vue=resume>. Consultado em 07 de no- ______. Théâtre en présence. Paris: Actes
vembro de 2015. Sud, 2007.

COUSIN, Marion. L’auteur en scène: pour une SARRAZAC, Jean-Pierre. Juegos de sueño y
redéfinition des relations entre le texte et la otros rodeos: alternativas a la fábula en la dra-
scène. Revue d’Études Théâtrales. Écrire pour maturgia. México D.F.: Toma, Paso de Gato,
le théâtre aujourd’hui. Modèles de représenta- 2011.
tion et modèles de l’art. Paris: Presses Sorbon-
ne Nouvelle, Registres Hors Série 4, 2015. ______. O Futuro do Drama. Porto: Campo
das Letras, 2002.
GALEA, Claudine e POMMERAT, Jöel. Dia-
logue entre Claudine Galea et Jöel Pomme-
rat, novembre-décembre 2005. Disponível Recebido em 13/12/2015.
Aprovado em 12/06/2016.
em <http://www.carrefourtheatre.qc.ca/media/
Pommerat_Ubu%20Scenes_Europe.pdf>.

Bauer Bronstrup // O Teatro de Jöel Pommerat a partir de Fragmentos de Je Tremble – entre o dramaturgo e o encenador

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