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KINAS, Fernando1
RESUMO
do teatro ocidental, especialmente o recurso à ficção, e este projeto teatral que une
ABSTRACT:
western theater, especially the fiction, and this theatrical project that unites aesthetic
Rodrigo Garcia apresentou Accidens, matar para comer. Nesta curta proposição (o
1
Diretor e pesquisador teatral. Doutor em teatro pela Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3) e
Universidade de São Paulo (USP). Fundou e dirige desde 1996 a Kiwi Companhia de Teatro,
atualmente sediada em São Paulo.
2
O Festival aconteceu em Wroclau, Polônia, de 31 de março a 5 de abril de 2009.
1
termo é do diretor), criada originalmente em 2005, o ator Juan Lorient mata, assa e
come, em cena, uma lagosta. Guy Duplat, jornalista belga, ao destacar o escândalo
Dupont demonstra que não apenas no circo, mas também no teatro romano, havia
uma opção clara pelo jogo e pela performance.4 Ora, a performance no sentido
é instituída sem qualquer cerimônia. Não passa pela cabeça do jornalista investigar
definição de ficção teatral proposta por Jean-Marie Schaeffer, desse “faz de conta
Uma lição desta história sobre lagostas é constatar a reação rápida, às vezes
3
DUPLAT, Guy. “Rodrigo Garcia et le scandale du homard”, Bruxelas: Jornal La Libre Belgique.
Disponível em: http://www.lalibre.be/culture/scenes/article/493985/rodrigo-garcia-et-le-scandale-du-
homard.html. Acessado em: 14 abril 2009.
4
Cf. DUPONT, Florence. L’orateur sans visage, essai sur l’acteur romain et son masque. Paris: PUF,
2000.
5
Cf. Schaeffeer, Jean-Marie. Pourquoi la fiction ? Paris: Seuil, 1999.
2
Nessa empreitada de manutenção da ordem e de um certo status quo teatral é
valor positivo intrínseco em toda e qualquer ruptura com o cânone teatral. Trata-se
Paravidino afirma que em Genova 01 “não existe ação teatral e não existem
personagens”. Ele não tem dúvida sobre o que se passa em sua peça: “Somos nós
os novos seres que povoam as cenas não têm mais a espessura de antes, nem a
século passado), pela impersonalização (tal como descrita por Sarrazac no começo
6
PARAVIDINO, Fausto. “G8 '01 Fausto Paravidino: 'Genova tragica'”, Jornal Corriere della Sera, 26
de fevereiro de 2007, p. 9.
3
deste século7), para vislumbrar, quem sabe, uma nova situação, em que a ideia de
Gómez Mata, convocou para a cena sua própria mãe (as semelhanças com
Accidens, matar para comer param por aí). A companhia dirigida por ele, Alakran,
7
Cf. SARRAZAC, Jean-Pierre. “L’impersonnage. En relisant ‘La crise du personnage’”, in Jouer le
monde. La scène et le travail de l’imaginaire, Centre d’études théâtrales, Université Catholique de
Louvain, nº 20, 2001, pp. 41-50.
8
GÓMEZ MATA, Oskar. “Entretien avec Oskar Gómez Mata et Esperanza López”, por Eva Cousido,
disponível em: http://www.theatre-contemporain.net/spectacles/Kairos-sisyphes-et-
zombies/ensavoirplus/idcontent/14879, acessado em : 19 out. 2009.
4
dos nomes reais dos atores e atrizes, produz um "efeito de realidade"9, no sentido de
com evidente intenção política. Um outro caso, exemplar, reforça esta hipótese.
estão na base do projeto teatral Rwanda 94, dirigido por Jacques Delcuvellerie com
9
Cf. METZ, Christian. 1965, “À propos de l’impression de réalité au Cinéma”, in Essais sur la
signification au cinéma, vol. I, Paris: Klinksieck e XAVIER, Ismail. Iracema: o cinema-verdade vai ao
teatro. In: Devires - Cinema e Humanidades, v.2. n. 1, 2004, p. 70-85.
10
LÓPEZ, Esperanza. Ibidem.
11
GÓMEZ MATA, Oskar. Ibidem.
5
o coletivo belga Groupov.12 Rwanda 94 marcou sob vários aspectos a cena teatral
analisar aqui a totalidade do impacto deste projeto artístico e político que consumiu
temporada que circulou por vários países. Mas podemos destacar algumas reflexões
teatro contemporâneo.
simbólica em direção aos mortos, para uso dos vivos”, impunha imediatamente uma
12
Cf. o sítio da companhia na internet http://www.groupov.be/index.php/spectacles/show/id/9,
acessado em 27 jan. 2010 e Rwanda 94. Le théâtre face au génocide / Groupov, récit d'une création,
in Alternatives Théâtrales n°67/68, abril 2001.
13
DELCUVELLERIE, Jacques. “De la conception à la réalisation”, in Rwanda 94. Paris: Théâtrales,
2002, p. 166.
14
Ibidem, p. 167.
6
Fotos do espetáculo Rwanda 94, 2000. Divulgação
menos explícito, sobre o próprio teatro, seus poderes e seus limites, e sobre as
relações entre história e ficção. Catherine Naugrette aborda o mesmo tema a partir
15
Após o prelúdio musical, Yolande Mukagasana diz: “Eu não sou atriz, eu sou simplesmente uma
sobrevivente do genocídio de Ruanda”. Ibidem, p. 15. Yolande não é, de fato, atriz e é, de fato, uma
sobrevivente do genocídio em Ruanda. Estas primeiras linhas do texto, no entanto, foram escritas
pelo diretor Jacques Delcuvellerie. Na sequência, o depoimento é livre, seguindo apenas um roteiro
genérico.
16
NAUGRETTE, Catherine. Paysages dévastés. Belval: Circé, p. 65.
17
Ibidem, p. 67.
7
que coloca questões tão essenciais: “Como testemunhar o pesadelo? Como restituir
identificar o que ele tem de inédito, sobretudo no que diz respeito à confrontação
processo em todas as suas etapas, analisa com acuidade o que ele chamou de eixo
ficção/realidade:
18
BANU, Georges. “Rwanda 94, un événement”, in Alternatives théâtrales, nº 67-68, p. 21. Citado em
DELCUVELLERIE, Jacques. Op. cit., p. 169.
19
IVERNEL, Philippe. “Pour une esthétique de la résistence”, in Alternatives théâtrales, nº 67-68, p.
13. Citado em DELCUVELLERIE, Jacques. Op. cit., p. 169.
20
DELCUVELLERIE, Jacques. Op. cit., p. 171.
8
Todo o espetáculo, de um ponto de vista formal, está tensionado pela
dupla impulsão contraditória do ficcional e do real. Pode-se
evidentemente sustentar que tudo o que aparece em cena é da ordem
do ficcional. Mas no interior desta definição, vê-se bem que um regime
desigual rege as cenas. Algumas cenas são simultaneamente fictícias
e reais, a conferência por exemplo, em que nós estamos mais num
teatro da presentação que da representação. Pode-se dizer a mesma
coisa da narrativa inicial contada por Yolande Mukagasana. Ela
testemunha sua história, sua narrativa pertence a ela, é a sua tragédia
que ela conta, com a perda brutal de seus filhos e do seu marido.
Então, onde nós estamos? Muito próximos da realidade, certamente,
se consideramos o referente. No entanto, na ficção, se inscrevemos
esta palavra na estrutura do espetáculo.21
dispositivo. Este conceito indica o novo lugar e as novas funções que a ficção ocupa
21
PIEMME, Jean-Marie. “Construction de 'Rwanda 94'”, in Écritures dramatiques contemporaines
(1980-2000). L'avenir d'une crise, Études théâtrales, nº 24-25, op. cit., pp. 71-72.
9
vezes, repentinamente, a uma melopeia ou canto vindo do fundo dos
tempos.22
texto não dramático, que gera instabilidade da figura cênica pela falta de ancoragem
reflexões a respeito do teatro documentário tal como proposto por Peter Weiss e
Nos anos 1960 Peter Weiss se filia, segundo suas próprias palavras, à
segundo a lista elaborada por Weiss pode incluir atas, relatórios, estatísticas,
mais longe do que qualquer tentativa anterior feita neste campo. No entanto, embora
22
Idem, disponível em http://www.groupov.be/index.php/spectacles/show/id/5, acessado em: 19 jan
2010.
23
WEISS, Peter. “Notes sur le théâtre documentaire”, in Discour sur la genèse et le déroulement de la
très longue guerre de libération du Vietnam illustrant la nécessité de la lutte armée des opprimés
contre leurs oppresseurs. Paris: Seuil, 1968, p. 10.
10
Weiss reconhece, assim, que o teatro documentário representa “a imagem de
uma parcela da realidade arrancada ao fluxo contínuo da vida”, embora afirme que
este tipo de teatro “se recusa a toda invenção”.24 Para ele, o teatro documentário
não modifica o material autêntico usado na difusão cênica, mas apenas estrutura a
ou uma atriz que fala?, qual a entonação escolhida?, qual a duração das pausas?,
este tipo de teatro esteja livre de “invenção”. Weiss, inclusive, fornece exemplos de
Ainda que um puro teatro de relatório, pela própria natureza do dispositivo teatral,
ilusão cênica e o interesse pelo exame das estruturas sociais no lugar dos embates
24
Ibidem.
25
“O teatro documentário toma partido”, reconhece Peter Weiss em outro trecho, ibidem, p. 12.
26
ROSENFELD, Anatol. “O teatro documentário”, in Prismas do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008,
p. 122 (itálicos nossos).
11
historiador – sem, evidentemente, conseguir evitar o elemento ficcional”, como
dos fatos. Mas é certamente o trabalho de Peter Weiss o mais bem-sucedido e cujos
continuar válido como estímulo àquela parcela do teatro contemporâneo que está
funcionamento da sociedade.
27
Cf. DORT, Bernard. Op. cit., p. 28.
28
Ibidem, pp. 123 e 126.
29
WEISS, Peter. Op. cit., p. 14.
30
Cf. DORT, Bernard. Op. cit., p. 29.
12
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