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TEATRO, DOCUMENTO E FICÇÃO

KINAS, Fernando1

RESUMO

Através da análise de proposições cênicas contemporâneas é possível compreender

a utilidade do teatro documentário na decifração de aspectos da realidade. Estas

experiências mostram uma relação rica e conflituosa entre marcadores tradicionais

do teatro ocidental, especialmente o recurso à ficção, e este projeto teatral que une

experimentação estética e intervenção política.

Palavras-chave: Teatro, teatro documentário, ficção.

ABSTRACT:

Through the analysis of contemporary scenic propositions is possible to understand

the usefulness of documentary theater in deciphering aspects of reality. These

experiments show a rich and conflicted relationship between traditional markers of

western theater, especially the fiction, and this theatrical project that unites aesthetic

experimentation and political intervention.

Key words: Theater, documentary theater, fiction.

Na 11ª edição do prêmio “Europe pour les nouvelles réalités théâtrales”2,

Rodrigo Garcia apresentou Accidens, matar para comer. Nesta curta proposição (o

1
Diretor e pesquisador teatral. Doutor em teatro pela Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3) e
Universidade de São Paulo (USP). Fundou e dirige desde 1996 a Kiwi Companhia de Teatro,
atualmente sediada em São Paulo.
2
O Festival aconteceu em Wroclau, Polônia, de 31 de março a 5 de abril de 2009.

1
termo é do diretor), criada originalmente em 2005, o ator Juan Lorient mata, assa e

come, em cena, uma lagosta. Guy Duplat, jornalista belga, ao destacar o escândalo

que o trabalho provocou na Polônia (semelhante ao ocorrido na Itália, que culminou

com o cancelamento da apresentação), encerra seu artigo sobre o assunto

interrogando-se sobre os papeis e os limites reservados à representação e ao real:

Em um bar de Wroclaw, o escritor Tom Lannoye […] se perguntava se


Garcia não ultrapassava os limites do teatro, que consiste em “fazer
de conta”. Passando ao ato real, ele abandonaria o teatro grego para
entrar no circo romano. Se começamos com uma lagosta onde vamos
parar?3

A invocação do circo romano é significativa. Nós lembramos que Florence

Dupont demonstra que não apenas no circo, mas também no teatro romano, havia

uma opção clara pelo jogo e pela performance.4 Ora, a performance no sentido

empregado aqui está muito distante, ou mesmo em clara contraposição, a um dos

princípios do teatro grego, isto é, a imitação ou representação. Esta separação

absoluta entre representação e performance, entre fazer de conta e fazer realmente,

é instituída sem qualquer cerimônia. Não passa pela cabeça do jornalista investigar

as virtudes (estéticas e políticas) dessa mostração da realidade, ou, recuperando a

definição de ficção teatral proposta por Jean-Marie Schaeffer, desse “faz de conta

lúdico compartilhado” 5, fornecido pelo dispositivo teatral oganizado por Garcia.

Uma lição desta história sobre lagostas é constatar a reação rápida, às vezes

violenta, diante de experiências que colocam em crise o modelo teatral majoritário.

3
DUPLAT, Guy. “Rodrigo Garcia et le scandale du homard”, Bruxelas: Jornal La Libre Belgique.
Disponível em: http://www.lalibre.be/culture/scenes/article/493985/rodrigo-garcia-et-le-scandale-du-
homard.html. Acessado em: 14 abril 2009.
4
Cf. DUPONT, Florence. L’orateur sans visage, essai sur l’acteur romain et son masque. Paris: PUF,
2000.
5
Cf. Schaeffeer, Jean-Marie. Pourquoi la fiction ? Paris: Seuil, 1999.

2
Nessa empreitada de manutenção da ordem e de um certo status quo teatral é

mobilizado um arsenal que pode incluir definições rígidas, ou francamente

esquemáticas, do fenômeno teatral, além de ameaças e intimidações contra

supostas derivas consideradas inaceitáveis. Não se entenda, entretanto, que há

valor positivo intrínseco em toda e qualquer ruptura com o cânone teatral. Trata-se

aqui de sinalizar o papel conservador assumido por comentadores e analistas

teatrais no esforço de salvaguardar o modelo hegemônico de teatro.

Também na composicão de personagens (figuras, presenças cênicas etc.)

foram ou estão sendo exercitadas, na escrita como na encenação, formas pouco ou

nada usuais. Elas têm em comum o enfraquecimento do regime ficcional e do

estatuto mimético. Para citar um exemplo, o dramaturgo e diretor genovês Fausto

Paravidino afirma que em Genova 01 “não existe ação teatral e não existem

personagens”. Ele não tem dúvida sobre o que se passa em sua peça: “Somos nós

atores que contamos essa história. Muito simplesmente, representamos o coro de

uma tragédia grega. Tentamos reconstruir a verdade”.6

É justamente o estatuto da personagem, mas também o da ficção, que se

reorganizam em função dessas múltiplas experiências teatrais contemporâneas. Se

os novos seres que povoam as cenas não têm mais a espessura de antes, nem a

estabilidade, a moldura psicológica, a subjetividade ou a identidade que lhes serviam

de esteio, é legítimo supor que uma certa lógica mimética é automaticamente

colocada em questão e que no lugar da simulação e da representação entram em

cena a performance e a presentação. Nessa trajetória, passamos pela

despersonalização das personagens (típica das vanguardas dos anos cinquenta do

século passado), pela impersonalização (tal como descrita por Sarrazac no começo

6
PARAVIDINO, Fausto. “G8 '01 Fausto Paravidino: 'Genova tragica'”, Jornal Corriere della Sera, 26
de fevereiro de 2007, p. 9.

3
deste século7), para vislumbrar, quem sabe, uma nova situação, em que a ideia de

personagem, apesar das tentativas de salvamento e dos impulsos nostálgicos, já

não faz muito sentido.

Em Kaïros, sisyphes et zombies, o diretor, também autor e ator, Oskar

Gómez Mata, convocou para a cena sua própria mãe (as semelhanças com

Accidens, matar para comer param por aí). A companhia dirigida por ele, Alakran,

apresenta trabalhos cênicos em que as distinções frágeis entre ficção e realidade

estimulam, mas também desorientam, o público, abalando hábitos de recepção,

inclusive da crítica especializada. Eva Cousido, colaboradora artística da Comédie

de Genève e pesquisadora que acompanha o trabalho de Gómez Mata, estima que

o “sentimento de improvisação tem como consequência tornar porosa a fronteira

entre realidade e ficção”.8

A inspiração dos cômicos tradicionais (palhaços e saltimbancos), o gosto pela

improvisação (e pelo imprevisto) e o desejo de fazer um teatro cívico e de

intervenção, sugerem ou suscitam outros modelos de presença cênica, distintos do

modelo tradicional, baseado nas personagens. Ao contrário, estas dificultariam o

contato direto com o público e a demonstração dos mecanismos de funcionamento

da sociedade e do próprio teatro, ambos objetivos da Companhia. A convocação da

mãe, apresentada ao público no início da peça e ocupante da cena na condição de

“mãe do diretor”, ao lado de procedimentos como o endereçamento da palavra

diretamente à sala, a construção de cenas que dependem do acaso e a utilização

7
Cf. SARRAZAC, Jean-Pierre. “L’impersonnage. En relisant ‘La crise du personnage’”, in Jouer le
monde. La scène et le travail de l’imaginaire, Centre d’études théâtrales, Université Catholique de
Louvain, nº 20, 2001, pp. 41-50.
8
GÓMEZ MATA, Oskar. “Entretien avec Oskar Gómez Mata et Esperanza López”, por Eva Cousido,
disponível em: http://www.theatre-contemporain.net/spectacles/Kairos-sisyphes-et-
zombies/ensavoirplus/idcontent/14879, acessado em : 19 out. 2009.

4
dos nomes reais dos atores e atrizes, produz um "efeito de realidade"9, no sentido de

aumentar os índices de realidade em detrimento de um rico imaginário, que, no

entanto, teria nenhuma ou pouca realidade. A atriz e também fundadora da

Companhia, Esperanza López, diz:

Faz muito tempo que abandonamos a ideia clássica da personagem


em favor de uma personagem que é ao mesmo tempo o ator e o ator
em jogo. O ator está nu. Então, a relação com o espectador é mais
direta e este tem menos tendência a se distanciar da palavra do ator.10

Para Gómez Mata :

Este jogo ambíguo visa novamente a que o espectador se posicione e


se decida a pegar ou a rejeitar aquilo que vê. Para mim, é fundamental
que o espectador se pergunte: ‘É ele, é Oskar que pensa isso? Ele
fala sinceramente ou ele interpreta?’ […] Eu diria que nossa estética
não procura impressionar o público nem jogar com o efeito
emocional.11

Ambas as análises indicam a hipótese de um progressivo abandono da ficção

com evidente intenção política. Um outro caso, exemplar, reforça esta hipótese.

A brutalidade do genocídio de Ruanda em 1994 e o discurso sobre ele, com

suas complexidades políticas, geoestratégicas, econômicas, culturais e religiosas,

estão na base do projeto teatral Rwanda 94, dirigido por Jacques Delcuvellerie com

9
Cf. METZ, Christian. 1965, “À propos de l’impression de réalité au Cinéma”, in Essais sur la
signification au cinéma, vol. I, Paris: Klinksieck e XAVIER, Ismail. Iracema: o cinema-verdade vai ao
teatro. In: Devires - Cinema e Humanidades, v.2. n. 1, 2004, p. 70-85.
10
LÓPEZ, Esperanza. Ibidem.
11
GÓMEZ MATA, Oskar. Ibidem.

5
o coletivo belga Groupov.12 Rwanda 94 marcou sob vários aspectos a cena teatral

europeia. Suas primeiras apresentações aconteceram em 1999, no Festival de

Avignon, ainda como processo de trabalho e as últimas em 2005. Não é possível

analisar aqui a totalidade do impacto deste projeto artístico e político que consumiu

quatro anos de intensas pesquisas e ensaios e se estendeu durante uma longa

temporada que circulou por vários países. Mas podemos destacar algumas reflexões

do diretor e de ensaístas que confirmam as investigações sobre o lugar da ficção no

teatro contemporâneo.

O trabalho, que se apresentava como uma “uma tentativa de reparação

simbólica em direção aos mortos, para uso dos vivos”, impunha imediatamente uma

constatação: como “evocar um acontecimento histórico cuja violência passa os

limites do representável”?13 A forma cênica encontrada reunia depoimentos orais de

ruandeses e ruandesas que escaparam do massacre, imagens ficcionais e de

arquivo sobre o genocídio (filmes, telejornais, reportagens especiais), canções,

pequenas cenas dramáticas, poemas, coros, cantatas, citações de políticos e

diplomatas. Para Delcuvellerie “o conjunto interpreta frequentemene na borda, ou no

limite, daquilo que se convencionou designar como ‘representação’”, portanto há

uma “perturbação […] da ordem e das convenções da representação”.14

12
Cf. o sítio da companhia na internet http://www.groupov.be/index.php/spectacles/show/id/9,
acessado em 27 jan. 2010 e Rwanda 94. Le théâtre face au génocide / Groupov, récit d'une création,
in Alternatives Théâtrales n°67/68, abril 2001.
13
DELCUVELLERIE, Jacques. “De la conception à la réalisation”, in Rwanda 94. Paris: Théâtrales,
2002, p. 166.
14
Ibidem, p. 167.

6
Fotos do espetáculo Rwanda 94, 2000. Divulgação

A presença de material real (como os depoimentos, que embora roteirizados

estavam sujeitos à improvisação a cada apresentação) e de não-atores/atrizes15,

alteram o estatuto ficcional canônico do evento teatral.

Em Rwanda 94, além dos temas já mencionados, há também um debate,

menos explícito, sobre o próprio teatro, seus poderes e seus limites, e sobre as

relações entre história e ficção. Catherine Naugrette aborda o mesmo tema a partir

do paroxismo de brutalidade que representou o holocausto. Está em jogo, segundo

ela, a própria capacidade de representar. A referência é a conhecida frase de

Adorno sobre a impossibilidade de escrever poemas depois de Auschwitz. No teatro,

e em outras artes, “a experiência traumática do pior no século 20 conduz a uma

crise tanto da legitimidade artística quanto dos poderes da representação”.16 Mas ao

contrário de um possível “desmoronamento da imagem do mundo”17, o trabalho do

Groupov se lançou na tarefa oposta de propor reflexões e imagens críticas do

mundo e, em particular, do genocídio ruandês. Segundo Georges Banu, um projeto

15
Após o prelúdio musical, Yolande Mukagasana diz: “Eu não sou atriz, eu sou simplesmente uma
sobrevivente do genocídio de Ruanda”. Ibidem, p. 15. Yolande não é, de fato, atriz e é, de fato, uma
sobrevivente do genocídio em Ruanda. Estas primeiras linhas do texto, no entanto, foram escritas
pelo diretor Jacques Delcuvellerie. Na sequência, o depoimento é livre, seguindo apenas um roteiro
genérico.
16
NAUGRETTE, Catherine. Paysages dévastés. Belval: Circé, p. 65.
17
Ibidem, p. 67.

7
que coloca questões tão essenciais: “Como testemunhar o pesadelo? Como restituir

a amplitude e dizer o desastre? Como escapar da exasperação da revolta

diretamente protestada?”, um projeto com estas características, diz ele, deveria

necessariamente inventar uma forma. A solução encontrada, conclui Banu, foi a

“reconquista da forma trágica”.18

É preciso verificar com atenção esta conclusão do jornalista e ensaísta

francês. A forma de trabalho e os princípios do Groupov apontam para escolhas e

procedimentos que se opõem ao fatalismo trágico e à sua ideologia. Segundo

Philippe Ivernel a estética e a ética do Groupov estão mais próximas do “teatro

documentário de Peter Weiss, ou do teatro épico e didático de Brecht, ou do teatro,

acertadamente chamado de político, de Piscator”.19 A hipótese de Ivernel parece

mais plausível, embora se possa fazer um reparo, considerando que no lugar de

enquadrar o trabalho do grupo em formas já existentes, talvez seja mais adequado

identificar o que ele tem de inédito, sobretudo no que diz respeito à confrontação

entre ficção e documentário. Como afirma Delcuvellerie, Rwanda 94 é também uma

“interrogação do teatro sobre sua capacidade e seus meios de representar, sobre

seu próprio protocolo de representação”20. Esta atitude, traço definidor de muitas

experiências teatrais contemporâneas, não tem correspondentes diretos nas

experiências históricas citadas po Ivernel. Jean-Marie Piemme, participante ativo do

processo em todas as suas etapas, analisa com acuidade o que ele chamou de eixo

ficção/realidade:

18
BANU, Georges. “Rwanda 94, un événement”, in Alternatives théâtrales, nº 67-68, p. 21. Citado em
DELCUVELLERIE, Jacques. Op. cit., p. 169.
19
IVERNEL, Philippe. “Pour une esthétique de la résistence”, in Alternatives théâtrales, nº 67-68, p.
13. Citado em DELCUVELLERIE, Jacques. Op. cit., p. 169.
20
DELCUVELLERIE, Jacques. Op. cit., p. 171.

8
Todo o espetáculo, de um ponto de vista formal, está tensionado pela
dupla impulsão contraditória do ficcional e do real. Pode-se
evidentemente sustentar que tudo o que aparece em cena é da ordem
do ficcional. Mas no interior desta definição, vê-se bem que um regime
desigual rege as cenas. Algumas cenas são simultaneamente fictícias
e reais, a conferência por exemplo, em que nós estamos mais num
teatro da presentação que da representação. Pode-se dizer a mesma
coisa da narrativa inicial contada por Yolande Mukagasana. Ela
testemunha sua história, sua narrativa pertence a ela, é a sua tragédia
que ela conta, com a perda brutal de seus filhos e do seu marido.
Então, onde nós estamos? Muito próximos da realidade, certamente,
se consideramos o referente. No entanto, na ficção, se inscrevemos
esta palavra na estrutura do espetáculo.21

A estrutura sobre a qual fala Piemme é, em linhas gerais, um sinônimo para

dispositivo. Este conceito indica o novo lugar e as novas funções que a ficção ocupa

ou pode ocupar no teatro contemporâneo.

Trabalhos posteriores do grupo, como Discours sur le colonialisme [Discurso

sobre o colonialismo], criado em 2001 a partir do contundente texto de Aimé

Césaire, continuam, de diferentes maneiras, a pôr e repor estas questões,

questionando, entre outros aspectos, os limites da forma ficcional clássica:

Trata-se da encenação de um texto que não é destinado a priori ao


teatro, um panfleto extremamente violento, magnificamente escrito, e
cujo conteúdo não perdeu nada de sua atualidade, infelizmente. Os
meios cênicos são de uma simplicidade total: uma mesa, uma cadeira,
um copo de água. O ator encarna uma personagem cativante e
intrigante, entre Lumumba e Malcolm “X”, cuja exposição dá lugar às

21
PIEMME, Jean-Marie. “Construction de 'Rwanda 94'”, in Écritures dramatiques contemporaines
(1980-2000). L'avenir d'une crise, Études théâtrales, nº 24-25, op. cit., pp. 71-72.

9
vezes, repentinamente, a uma melopeia ou canto vindo do fundo dos
tempos.22

A opção pela manutenção da personagem é relativizada pela natureza do

texto não dramático, que gera instabilidade da figura cênica pela falta de ancoragem

e referências tradicionais (nome, psicologia, permanência etc.).

A lista de exemplos é grande. Mais produtivo, entretanto, é retomar parte das

reflexões a respeito do teatro documentário tal como proposto por Peter Weiss e

assim assentar algumas bases sobre as quais é possível construir um pensamento

contemporâneo sobre esse fenômeno.

Nos anos 1960 Peter Weiss se filia, segundo suas próprias palavras, à

tradição do teatro político dito realista (proletkult, agitprop, experimentos teatrais de

Piscator, peças didáticas de Brecht). A introdução do documento na cena, que

segundo a lista elaborada por Weiss pode incluir atas, relatórios, estatísticas,

comunicados da bolsa, balanços bancários, cartas, reportagens jornalísticas etc., foi

mais longe do que qualquer tentativa anterior feita neste campo. No entanto, embora

esforçando-se em recusar toda forma de invenção, esta característica determinante

não lhe retirou a condição de obra artística:

Mesmo quando tenta se liberar do quadro que faz dele um meio


artístico, mesmo quando abandona as categorias estéticas, mesmo
quando quer ser algo imperfeito, tomada de posição e ação militar,
mesmo quando dá a impressão de nascer no instante mesmo e agir
sem premeditação, o teatro documentário é no final das contas um
produto artístico e deve sê-lo, se quiser justificar sua existência.23

22
Idem, disponível em http://www.groupov.be/index.php/spectacles/show/id/5, acessado em: 19 jan
2010.
23
WEISS, Peter. “Notes sur le théâtre documentaire”, in Discour sur la genèse et le déroulement de la
très longue guerre de libération du Vietnam illustrant la nécessité de la lutte armée des opprimés
contre leurs oppresseurs. Paris: Seuil, 1968, p. 10.

10
Weiss reconhece, assim, que o teatro documentário representa “a imagem de

uma parcela da realidade arrancada ao fluxo contínuo da vida”, embora afirme que

este tipo de teatro “se recusa a toda invenção”.24 Para ele, o teatro documentário

não modifica o material autêntico usado na difusão cênica, mas apenas estrutura a

sua forma. Esta posição é dificilmente aceitável, porque qualquer recorte da

realidade, além das escolhas obrigatórias de enunciação e/ou encenação (é um ator

ou uma atriz que fala?, qual a entonação escolhida?, qual a duração das pausas?,

qual a sequência de apresentação do material?, e ainda, qual o teatro ou espaço

cênico escolhido? qual o preço dos ingressos? etc.), implica sempre em

posicionamento25, em uma operação consciente. Portanto, não se pode afirmar que

este tipo de teatro esteja livre de “invenção”. Weiss, inclusive, fornece exemplos de

intervenção formal sobre o material documentário (criação de ritmos, rupturas e

gradações, recurso à caricatura, utilização de máscaras e songs).

Independente desta suposta ausência total de invenção, está clara a opção

em recusar o regime ficcional tradicional. Anatol Rosenfeld, na época em que estas

experiências estavam no apogeu, afirmou que “tanto Hochhuth [Rolf Hochhuth,

escritor e dramaturgo alemão, nascido em 1931] como outros expoentes do teatro

documentário procuram eliminar, na medida do possível, o elemento ficcional”.26

Ainda que um puro teatro de relatório, pela própria natureza do dispositivo teatral,

não pareça completamente possível, é inegável a recusa da imitação, a ruptura da

ilusão cênica e o interesse pelo exame das estruturas sociais no lugar dos embates

entre subjetividades heróicas ou mundanas. Se Hochhuth, de fato, “insiste em ser

24
Ibidem.
25
“O teatro documentário toma partido”, reconhece Peter Weiss em outro trecho, ibidem, p. 12.
26
ROSENFELD, Anatol. “O teatro documentário”, in Prismas do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008,
p. 122 (itálicos nossos).

11
historiador – sem, evidentemente, conseguir evitar o elemento ficcional”, como

afirma Rosenfeld e também Bernard Dort,27 a situação é bastante diferente no caso

de Weiss e mesmo de Kipphardt (O caso Oppenheimer), que apesar dos

“acréscimos fictícios”28 feitos ao inquérito judicial que constitui a base documental da

peça, aproxima-se muito mais que Hochhuth da exposição imediata (não-mediada)

dos fatos. Mas é certamente o trabalho de Peter Weiss o mais bem-sucedido e cujos

resultados não parecem ter sido inteiramente desenvolvidos.

A contribuição de Weiss está em propor, sistematizar e exercitar um tipo de

teatro radicalmente político, que abandona “os cânones estéticos do teatro

tradicional”, que coloca “seus próprios métodos em questão” e que é capaz de

desenvolver “novas técnicas adaptadas às novas situações”.29 O teatro

documentário de Weiss não é apenas uma investigação formal, alheia à situação

política e sociológica. Entre seus objetivos estaria o de estabelecer um modelo das

contradições do real. A cena, assim, seria um local de decifração da realidade.30

Suas funções, características e objetivos lhe dariam condições para questionar a

concepção fatalista de mundo, distanciando-se das formas que cedem ora ao

desespero narcísico, ora à cólera inconsequente.

Este quadro geral, embora apresentado de forma simplificada, parece

continuar válido como estímulo àquela parcela do teatro contemporâneo que está

repensando o lugar e os usos da fição tradicional para, assim, repensar o

funcionamento da sociedade.

27
Cf. DORT, Bernard. Op. cit., p. 28.
28
Ibidem, pp. 123 e 126.
29
WEISS, Peter. Op. cit., p. 14.
30
Cf. DORT, Bernard. Op. cit., p. 29.

12
13

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